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Revista Eletrônica Print by<http://www.funrei.br/revistas/filosofia> Metavnoia. São João del-Rei, n. 1, p 84-91, 1998/1999 A PROPÓSITO DA INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA RAZÃO PURA DE IMMANUEL KANT Acadêmico Neilson da Silva (PBIC-CNPq) Orientador: Prof. Adelmo José da Silva (FUNREI-DFIME) Resumo: O objetivo desse trabalho é fazer um comentário acerca da introdução à Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant. A introdução e também os prefácios da primeira e da segunda edição da Crítica da Razão Pura constituem a propedêutica para uma melhor compreensão do criticismo kantiano. Immanuel Kant assegura que a primeira fase da sua filosofia segue o exem- plo das transformações ocorridas na ciência do seu tempo. Parodiando o método dos consagra- dos físicos modernos, Kant limita todo o nosso conhecimento à experiência sensível. Depois, seguindo o exemplo da química no que diz respeito aos processos de separação das substân- cias, Kant divide o mundo filosófico em fenômeno e nôumeno. Por conseguinte, Ao descobrir que a Terra não era o centro do universo, descobriu-se, também, o verdadeiro lugar do homem no mundo do conhecimento; todavia é influenciado pela mudança de paradigma ocorrida na astro- nomia que Kant realiza a chamada revolução copernicana na filosofia. Kant fez com que o con- ceito de razão passasse por diversas modificações. O incondicionado conduz a razão à preten- são orgulhosa de obter uma unidade absoluta dos fenômenos, o que segundo Kant é impossível. A metafísica tradicional, que partia do pressuposto de poder conhecer os seus enunciados trans- cendentes, encontra, em Kant, a impossibilidade de demonstrar, através da razão, os seus pres- supostos de natureza puramente intelectual. Palavras-chave: Razão. Paralogismo. Antinomia. 1. Introdução metafísica, que no passado fora considerada a rainha de todas as ciências, no mundo moderno precisou de um novo conceito para se sustentar. Daí resulta a importância de Kant, pois foi ele quem dividiu o mundo filosófico em fenômeno e nôumeno. Na visão kantiana, o fenômeno é possível de ser conhecido, quando se encontra sujeito às formas a priori da sensibilida- de, do entendimento e da razão; o nôu- meno, Kant denomina coisa em si, não podendo, em hipótese alguma, ser co- nhecido, mas somente pensado. Não é dada, ao homem, a capacidade de co- nhecer o nôumeno, portanto, fica impos- sibilitado o conhecimento acerca dos diversos enunciados metafísicos: a per- manência da alma, o mundo como tota- lidade e a existência de um ser originá- rio. Kant não tem como finalidade negar a metafísica mas, sim, discutir a sua impossibilidade como ciência puramente teórica que visa a alcançar o incondicio- nado. Além disso, Kant tem o mérito de ter realizado uma síntese entre o racio- nalismo dogmático e o empirismo cépti- co, demonstrando que tanto a razão como a experiência possuem limites. De acordo com a sua filosofia crítica, aquilo que se encontra para além do mundo dos fenômenos, do universo da experi- ência possível, não pode, de modo al- gum, ser conhecido por meio das facul- dades cognitivas do homem. 2. A Descoberta de Kant No tempo de Kant, o mundo do conhe- cimento encontrava-se diante de duas correntes de considerável destaque: o racionalismo dogmático e o empirismo céptico. Essas correntes discutiam a origem do conhecimento, porém o rigor era igualmente válido em ambas as ar- gumentações. O racionalismo dogmático visava a co- nhecer seus objetos absolutamente a priori, defendia com rigor a origem do conhecimento pela razão, fundamentado no princípio das idéias inatas e no méto- do dedutivo-matemático. Os dogmáticos acreditavam no poder exclusivo da razão e apoiavam-se nos domínios dos juízos analíticos de explicação. Assim, através do princípio de identidade, que apre- senta universalidade e necessidade rigo- rosas, pretendiam os racionalistas de- monstrar a validade e a verdade acerca dos seus pressupostos científicos. Nos juízos analíticos, pela simples análise do conceito, podemos determinar, anterior- mente a qualquer experiência, o valor de verdade de uma proposição. Com isso, ao dizer que “o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está implicita- mente contido nesse conceito A” [KANT, 1994, p. 42], formulamos um juízo de explicação que possui uma verdade objetiva. Entretanto, os juízos de expli- cação dizem apenas o óbvio e nada acrescentam ao nosso conhecimento. Na proposição “a bola é redonda”, poder-se- á considerar que o predicado ‘redonda’ está contido no conceito do sujeito ‘bola’. Portanto, tal proposição é um juízo ana- lítico, pois podemos saber a priori a ver- dade desse juízo sem recorrer à experi- ência. Todo o problema, segundo Kant, reside no fato dos juízos de explicação serem estéreis, isto é nada acrescentam ao nosso conhecimento, por afirmarem algo que já é essencial ao sujeito, provo- A 86 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura ... Revista Eletrônica Print by<http://www.funrei.br/revistas/filosofia> Metavnoia. São João del-Rei, n. 1, p. 84-91, 1998/1999 cando assim um certo imobilismo no universo das relações de conhecimento, ou uma identidade do tipo a=a. Ao contrário do racionalismo dogmático, o empirismo céptico fazia severas críti- cas à concepção de idéias inatas e bus- cava compreender a ciência sempre por meio dos juízos sintéticos, a posteriori, juízos de experiência. Tais juízos são capazes de acrescentar algo ao sujeito, porque são progressivos e fornecedores de conteúdo empírico. Kant chama a esses juízos “sintéticos” devido ao fato de possuírem o conteúdo retirado da experiência sensível. Assim, os empi- ristas cépticos defendiam o conheci- mento pela experiência e emitiam juízos de extensão, os quais possuem um pre- dicado “B totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele” [KANT, 1994, p. 42]. Porém, nos juízos sintéti- cos, essa ligação não é pensada por identidade do tipo a=a, mas do tipo a=b. Além disso, os juízos de extensão forne- cem matéria, conteúdo indispensável para toda a relação de conhecimento sintético. A questão a ser colocada é que os juízos de extensão não são universais nem necessários, uma vez que somente posso pensá-lo por indução. Quando digo que “a água entra em estado de ebulição a 100º C” , por mais que eu analise esse juízo não consigo, por iden- tidade a=a, pensar o predicado contido na essência do sujeito. Tenho, necessa- riamente, que verificar vários casos par- ticulares para somente a posteriori emitir tal juízo. Apesar de as duas posições conterem o argumento de maneira rigorosa, Kant encontra determinados juízos que são formados tanto pelo elemento sintético como pelo componente a priori. Nas palavras de Kant, a proposição “toda mudança tem que ter necessariamente uma causa” nos conduz pensá-la de modo analítico, devido ao fato de ser rigorosamente universal e necessária; porém, essa proposição é sintética a priori, porque, apesar de ser universal e necessária, o conceito de ‘mudança’ somente pode ser obtido através da ex- periência1. Como pudemos observar, temos de um lado o juízo analítico, que possui univer- salidade e necessidade, mas que é inca- paz de nos acrescentar qualquer conhe- cimento; de outro lado temos o juízo sintético, tirado da experiência, que pos- sui a capacidade de acrescentar conhe- cimentos devido ao fato de possuir um conteúdo de experiência, mas que não posso, de modo algum, pensá-lo de maneira universal e a necessária. 1 KANT, Introdução à C. R. Pura, 1994, p. 37. Kant pretende superar essa dicotomia, pois tanto uma posição como outra aca- baram por deixar um abismo que divide as relações de conhecimento. As duas posições, o racionalismo dogmático e o empirismo céptico, separaram a razão da matéria, os conceitos do conteúdo.É o próprio Kant quem reconhece que “sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, ne- nhum seria pensado. Os pensamentos sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos são cegas” [KANT, 1994, p. 89]. O conhecimento é, para Kant, síntese a priori. Somente a síntese a priori pode reunir o fenômeno, que é intuído na sensibilidade e o conceito, que é efetivado no entendimento. O fenôme- no fornece uma multiplicidade nas for- mas da sensibilidade e as formas do entendimento faz a síntese de maneira a fornecer a unidade. Logo, para que haja conhecimento, precisamos tanto da ex- periência, fornecida pela nossa faculda- de de sensibilidade, como também do conceito, fornecido pela nossa faculdade de entendimento. O conhecimento como síntese a priori é possível, uma vez que ele pode dar tanto a universalidade e a necessidade rigorosa como a matéria ou conteúdo proveniente do mundo exterior. Esta é a descoberta genial de Kant: o juízo sinté- tico a priori, que reúne o conteúdo e a forma. A síntese concretizada por Kant supera, no entanto, através dos juízos sintéticos a priori, a concepção raciona- lista dogmática pautada em juízos de explicação e a concepção empirista cép- tica fundamentada nos juízos de exten- são. Porém, a filosofia kantiana tem ainda o objetivo de verificar a possibili- dade de aplicação de tais juízos, ao mundo do conhecimento. Somente as- sim, o filósofo poderia avaliar a validade de sua descoberta e formar as bases para todo os seus pressupostos gnosio- lógicos. 2. 1. Os Problemas do Conhecimento: A questão aqui colocada é, no entanto, a possibilidade ou não da validade e da aplicabilidade dos juízos sintéticos a priori, no mundo do conhecimento. Se- gundo Kant, “todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos, daí passa ao entendimento e termina na razão, acima da qual nada se encontra em nós mais elevado que elabore a matéria da intui- ção e a traga a mais alta unidade de pensamento” [KANT, 1994, p. 298]. São as formas a priori existentes no homem que permitem o conhecimento. Em ou- tras palavras, a estrutura humana é constituída de tal modo que as faculda- des de conhecimento possibilitam a ex- plicação do condicionado que é forneci- do pelo mundo fenomênico. É influenciado pela revolução copernica- 87 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura ... Revista Eletrônica Print by<http://www.funrei.br/revistas/filosofia> Metavnoia. São João del-Rei, n. 1, p. 84-91, 1998/1999 na que Kant entende o sujeito como elemento unificador de todo o conteúdo fornecido pelos sentidos. “Ao invés de fazer o espírito gravitar em torno das coisas, Kant mostrou que as coisas gi- ram em torno do espírito. A natureza é, em parte, obra do homem, de sua sensi- bilidade e do seu pensamento”2. É fun- damentado nesse princípio que Kant faz uso do termo “transcendental” e não do “transcendente”. O transcendental são as condições do sujeito e as suas faculda- des a priori que possibilitam toda a rela- ção de conhecimento. O elemento trans- cendente, por sua vez, é incondicionado, não pode ser objeto de conhecimento, pois ele transcende, de maneira a ultra- passar, as faculdades de conhecimento do homem. A consciência do homem permite a ele próprio estabelecer a uni- dade na multiplicidade fornecida pelo mundo sensível. Kant pergunta se os juízos sintéticos a priori são possíveis na matemática e na física. No primeiro caso, temos a estéti- ca transcendental que verifica se pode- mos aplicar os mesmos juízos à Mate- mática pelas formas da sensibilidade. No segundo momento, na analítica trans- cendental, Kant investiga se é possível aplicar os juízos sintéticos a priori à físi- ca, por meio das formas do entendi- mento. Na estética transcendental, Kant trata da sensibilidade enquanto faculdade que possibilita as intuições dos objetos. As formas a priori da sensibilidade são o espaço e o tempo existentes no sujeito. O espaço existe objetivamente para ordenar as coisas existentes fora do sujeito. O espaço não existe nas coisas e sim no homem. O tempo, da mesma maneira, existe no sujeito e tem como função ordenar internamente as intui- ções. O mundo exterior é caótico e as formas a priori da sensibilidade, o espa- ço e o tempo são, portanto, a condição para a realização de qualquer experiên- cia. Assim, “as sensações podem ser intuídas uma ao lado de outra (espaço) ou uma colocada antes ou depois de uma outra (tempo). Fora destas duas formas a priori universais e necessárias da sensibilidade não é possível conceber nenhuma experiência”3. Portanto, para Kant, a intuição empírica “é a apreensão imediata das sensações ordenadas nas formas a priori do espaço e do tempo. Na intuição do espaço podemos dese- nhar as figuras da geometria, como na intuição do tempo podemos construir os números com a adição de sucessivas unidades”4. O que é importante notar é o fato de que a intuição não conceitua o 2 CHALLAYE, 1966, p. 196. 3 SCIACCA, 1968, p.189-90. 4 Idem. objeto; ela é, unicamente, uma primeira fase do processo cognitivo. É da noção de espaço e de tempo que verificamos a possibilidade de se aplicarem os juízos sintéticos a priori à matemática. Quando pensamos a proposição “7+5=12”, à primeira vista iludidos pela garantia da sua universalidade e neces- sidade poderíamos pensar que ela é analítica a priori. Porém, por mais que analisemos o conceito da soma desses fatores, jamais encontraremos o seu produto. Portanto, “temos que superar estes conceitos, procurando a ajuda da intuição correspondente a um deles, por exemplo os cinco dedos da mão” [KANT, 1994, p. 47]. Poder-se-á considerar que o espaço e o tempo que permitem a matemática são a priori, mas os mesmos sem as coisas não fazem sentido. O espaço sem os objetos é vazio de conte- údo, o tempo sem a seqüência sucessiva dos dados não é capaz de fazer nenhu- ma síntese. Segundo Kant, as intuições puras da sensibilidade, o espaço e o tempo, possuem uma realidade empírica quando se referem aos fenômenos e uma idealidade transcendental por existi- rem no homem como formas da sua sensibilidade independentemente das coisas exteriores. Com isso, podemos concluir que é possível a Matemática como ciência, pois ela admite que lhe sejam aplicados, com rigorosa validade, os juízos sintéticos a priori através das intuições puras da sensibilidade, o espa- ço e o tempo. Na analítica transcendental, Kant trata do entendimento enquanto faculdade que possibilita a formação dos conceitos. O entendimento representa uma segun- da fase na marcha do conhecimento. Existe a sensibilidade que pode intuir mas que não é capaz de conceituar. Há o entendimento que é capaz de concei- tuar mas que não é capaz de intuir. No entanto, para que haja conhecimento, conceitos e intuições não podem sepa- rar-se de modo algum. O Mito da Caverna de Platão propõe a existência de dois mundos, o sensível e o inteligível, entretanto, na concepção de Georges Pascal, em Kant, não existe “outro mundo que não seja o sensível; e é isto, precisamente, o que toda a análi- se do entendimento irá demonstrar”5. Através do entendimento, Kant deseja explicar como seriam possíveis os juízos sintéticos a priori na Física, ou seja, como é possível a Física como ciência, como síntese a priori. Ao estabelecer as relações acerca das doze categorias, (totalidade, pluralidade, unidade, afirma- ção, negação, limitação, substancialida- de, causalidade, ação recíproca, realida- 5 PASCAL, 1996, p. 61. 88 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura ... Revista Eletrônica Print by<http://www.funrei.br/revistas/filosofia> Metavnoia. São João del-Rei, n. 1, p. 84-91, 1998/1999de, necessidade e possibilidade), Kant procura demonstrar que a Física é a aplicação dos conceitos do entendimento aos objetos fornecidos pela intuição. O primeiro passo do conhecimento, as formas a priori de primeiro grau, deno- mina-se intuição e a segunda fase do processo, ou seja, as formas a priori de segundo grau, chama-se categorias do entendimento. O que garante à Física, universalidade e necessidade rigorosas são, no entanto, as próprias categorias. Para Kant, o mundo exterior é desorde- nado e é, portanto, o homem o detentor das faculdades que possibilitam, de certo modo, a organização dessa realidade. No tempo de Kant, os progressos das ciências experimentais eram visíveis e concretos. Com isso, o filósofo demons- trava um certo otimismo, tendo em conta as revoluções científicas. Tal conclusão pode ser compreendida como uma ten- tativa de superação do ceticismo empi- rista e do dogmatismo racionalista. Kant ao demonstrar a possibilidade de uma ciência dos fenômenos, fundamentada nas formas da sensibilidade e do enten- dimento, verifica a possibilidade do co- nhecimento dos vários objetos limitados pela experiência sensível. Assim, a filosofia kantiana termina por resolver, segundo o seu sistema, a problemática essencial do conhecimento, ou seja, a validade e a aplicabilidade dos juízos sintéticos a priori na matemática e nas ciências naturais. Ainda que Kant tenha operado uma verdadeira revolução na gnosiologia, o seu objetivo principal não consiste em fundar uma teoria do co- nhecimento, mas completar seu sistema filosófico investigando a natureza dos enunciados da metafísica. Portando, fica ainda uma indagação: é possível aplicar juízos sintéticos a priori à metafísica? Em outras palavras é possível uma me- tafísica como ciência? Kant agora pre- tende saber quais são os limites da ra- zão humana. 2.2. Os Problemas da Metafísica: Kant expõe, na Crítica da Razão Pura, a dia- lética transcendental, que trata da im- possibilidade da metafísica como conhe- cimento do nôumeno. Na ordem das condições, a tentativa arrogante de completar de modo absoluto a unidade dos fenômenos leva a razão a buscar o incondicionado e ultrapassar os seus limites, chegando assim, a uma ilusão natural, conhecimento aparente e inevi- tável. Poder-se-á até mesmo considerar que as idéias de alma, tratadas na psi- cologia racional, as idéias de mundo, discutidas na cosmologia racional, e as idéias de Deus, demonstradas pela teo- logia racional, não podem de modo al- gum ser explicadas pela racionalidade. Para se entender, com precisão, o pro- blema geral da metafísica, precisamos compreender a diferença existente entre fenômeno e nôumeno. O primeiro é, para Kant, a coisa tal como ela nos apa- rece, o indeterminado, que constitui os vários elementos do mundo sensível ou fenomênico, é aquilo que as faculdades cognitivas do homem podem perceber e trazer à unidade dando origem ao co- nhecimento. Ao segundo, Kant denomina “coisa em si”, “coisa incognoscível” ou “ser de pensamento”, que não pode, em hipótese alguma, ser conhecido. Para que haja conhecimento, o objeto não pode ser desprovido de conteúdo; o nôumeno é uma idéia da razão que não se sujeita às formas inseparáveis da sensibilidade e do entendimento huma- no. Ora, se o nôumeno não é objeto de conhecimento, também não podemos aplicar a ele os juízos sintéticos a priori. A crítica de Kant estabeleceu que tais juízos somente podem ser aplicados ao mundo sensível; são válidos unicamente para objetos de conteúdo concreto. Os limites do conhecimento são, portanto, a experiência sensível. A metafísica como ciência é impossível; diz Kant: o fato da metafísica até hoje se ter mantido em estado tão vacilante entre incertezas e contradições é simplesmente devido a não se ter pensado mais cedo neste problema, nem talvez mesmo na distinção entre juízos analí- ticos e juízos sintéticos. A salvação ou ruína da metafísica assenta na solução deste pro- blema ou numa demonstração satisfatória de que não há realmente possibilidade de resol- ver o que ela pretende ver esclarecido [KANT, 1994, p. 49]. No tempo de Kant, a metafísica já esta- va renegada a segundo plano e foi jus- tamente o seu fracasso que deixara aberto o caminho ao ceticismo. As pre- tensões de se conhecer o incondicionado conduz, necessariamente, a infinitas contradições. Para demonstrar os paralogismos, ar- gumentos contraditórios, acerca das idéias de alma e de Deus, e as antino- mias, conflito entre duas afirmações demonstradas ou refutadas com igual rigor, referentes à idéia de mundo, Kant estabelece que “se alguém dissesse que todo corpo cheira bem ou não cheira bem, então ocorre uma terceira alterna- tiva, ou seja que ele de modo algum cheira (emite odores), e desse modo ambas as proposições conflitantes po- dem ser falsas” [KANT, 1988, p. 80]. Com isso, Kant pretende apontar toda a contradição existente nas proposições que tentam afirmar certos conhecimen- tos metafísicos acerca das coisas em si mesmas. Kant comporta-se como crítico severo diante da Psicologia Racional, pois esta acredita ser possível conhecer a alma destituída do corpo. Kant demonstra quatro paralogismos cometidos pela 89 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura ... Revista Eletrônica Print by<http://www.funrei.br/revistas/filosofia> Metavnoia. São João del-Rei, n. 1, p. 84-91, 1998/1999 psicologia racional. Segundo Adolfo Bo- naccini, O paralogismo principal é aquele que se refere à substancialidade da alma, depois de demonstrada que a alma é substancia o psicólogo racional deriva analiticamente a simplicidade, a personalidade e a imortalidade da alma6. A Psicologia Racional transforma “a unidade subjetiva da consciência, que serve de fundamento às categorias, em substância de existência objetiva”7. Ape- sar do espírito possuir uma função unifi- cadora das representações, é um para- logismo acreditar ser possível o conhe- cimento dele separado do corpo. So- mente seria possível deduzir analitica- mente e a de modo a priori as proposi- ções da psicologia racional se o homem fosse possuidor de uma intuição inte- lectual, o que é impossível. Todo o nos- so conhecimento supõe uma síntese a priori e as idéias de alma não encontram nenhuma experiência que lhes possa ser adequada. Logo, não é possível provar a realidade ou irrealidade da alma, se é mortal ou imortal; a alma não é objeto de conhecimento, mas um ser de pensa- mento, um nôumeno ou coisa em si. Apontando as antinomias Kant rejeita a Cosmologia Racional, a qual visa a ex- plicar o mundo exterior enquanto totali- dade. É humanamente impossível tal pretensão, pois não podemos saber ab- solutamente nada acerca da origem do universo, se ele foi ou não criado no tempo e no espaço, se é finito ou infinito. Quando tentamos pensar tal explicação somente conseguimos chegar a antino- mias. Instaura-se o conflito da razão consigo mesma. Não sabemos “se a matéria é, ou não, composta de ele- mentos simples e incomponíveis; se é possível ou impossível que haja causas livres não causadas por outras causas; se há ou não há um ser necessário do qual dependam as realidades contin- gentes”8. Não possuem nenhum funda- mento os argumentos acerca das idéias de mundo; é falaciosa e contraditória toda proposição emitida para afirmar qualquer conhecimento acerca do cos- mos como totalidade. Depois de consideradas todas essas questões, Kant demonstra ainda o para- logismo, que diz respeito à idéia de Deus. O ser originário na perspectiva kantiana serve de fundamento primeiro, ou mesmo de primeiro princípio, a toda ordem existente no universo. O filósofo argumenta que são equivocadas todas as provas da Teologia Racional. Kant apresenta três provas: a ontológica, que parte de puros conceitos do entendi- mento para chegar àidéia de perfeição 6 BONACCINI, 1996, p. 60. 7 CHALLAYE, 1996, p. 194. 8 Idem. absoluta e demonstrar, analiticamente e totalmente a priori, a existência de um ser originário; a cosmológica, que acre- dita ser possível provar a existência de um primeiro princípio de modo a poste- riori partindo do ser contingente para chegar ao ser absolutamente necessário; a físico-teológica, que pretende afirmar a posteriori, partindo da ordem e harmonia do universo, a existência do ser originá- rio como uma espécie de inteligência ordenadora. É rejeitada, por Kant, a prova a priori ontológica da existência de Deus. O criticismo de Kant demonstra que quan- do pensamos “um ser (sem defeitos) mantém-se sempre o problema de saber se existe ou não” [KANT, 1994, p. 505]. Considerando o conteúdo a posteriori como limite do conhecimento, compre- ende-se que na filosofia de Kant a reali- dade é uma categoria do intelecto que somente possui validade rigorosa quan- do aplicada aos fenômenos. Num uso puramente teórico desta categoria, na busca da demonstração de um nôume- no, a razão extrapola seus limites e cai em contradição. A prova ontológica é falaciosa por “confundir a existência da coisa com o simples conceito da coisa” [Idem]. O ser absoluto constitui uma idéia da razão que ultrapassa os limites da experiência sensível e encontra-se muito além do entendimento humano. Ao partir do mundo natural a prova cos- mológica, fundamentada no princípio de causalidade e correspondência, nos faz pensar que ela é a posteriori. Ela esta- belece que se existe o contingente tem que existir o necessário e ainda o abso- lutamente necessário. Kant demonstra que a prova cosmológica começa no mundo sensível mas não permanece nele. Essa demonstração faz uso da experiência a posteriori do mundo natu- ral para dar unicamente um primeiro passo “a saber para se elevar para se elevar à existência de um ser necessário em geral. O fundamento da prova nada nos ensina acerca dos atributos desse ser; então a razão afasta-se” [KANT, 1994, p. 508] completamente do mundo sensível para buscar a conclusão do raciocínio a partir dos puros conceitos do entendimento. O paralogismo se com- pleta quando é demonstrado que “o con- ceito puramente intelectual do contin- gente não pode produzir nenhuma pro- posição sintética como a da causalidade, e o princípio desta só no mundo sensível encontra significação e critério para sua aplicação” [KANT, 1994, p. 511]. Aban- donando o mundo sensível, a demons- tração cosmológica comete o mesmo devaneio da prova ontológica operando a síntese do raciocínio de modo pura- mente intelectual. A prova cosmológica que se gabava de operar a sua síntese de modo a posteriori, é uma prova a 90 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura ... Revista Eletrônica Print by<http://www.funrei.br/revistas/filosofia> Metavnoia. São João del-Rei, n. 1, p. 84-91, 1998/1999 priori ocultada. Partindo da ordem harmonia e hierarquia dos seres do universo e ainda do princí- pio de causalidade, a prova físico- teológica busca fundamentar seu racio- cínio de modo a posteriori. Segundo Kant, esta demonstração entra facil- mente em conflito consigo mesma quan- do percebemos que “todas as leis da passagem dos efeitos para as causas e até mesmo toda síntese e toda extensão do nosso conhecimento em geral repor- tam-se unicamente à experiência possí- vel, por conseguinte a objetos do mundo dos sentidos e só com referência a estes podem ter uma significação” [KANT, 1994, p. 519]. A observação permite-nos estabelecer, acerca da regularidade do movimento natural das coisas, uma grandeza que seja causa primeira deste processo da passagem dos efeitos para as causas, ou seja, uma grandeza abso- luta que serve de sustentáculo a toda a cadeia ordenada e justaposta de ele- mentos do mundo natural. O princípio da causalidade fortalece a convicção da possibilidade de existência de um ser originário para fundamentar a totalidade deste ordenamento. Após considerado tudo isto, a razão cai novamente em contradição quando infere apoditica- mente poder conhecer esta grandeza, bem como afirmar de modo incontestá- vel a existência real do ser originário. A demonstração da existência de uma primeira causa ou primeiro princípio constitui o passo decisivo para a razão formular a síntese e fazer surgir o para- logismo que faz esta prova cometer a mesma contradição da demonstração cosmológica. Kant diz que a segunda e terceira provas podem ser imediatamente descartadas, pois elas subentendem a primeira. Kant demonstrou ser possível transitar da prova físico-teológica à cosmológica e desta para a demonstração ontológica. Podemos anunciar dois pontos relevan- tes a partir do que ficou demonstrado; como pudemos observar a prova ontoló- gica é uma ilusão da razão entre os pu- ros conceitos do entendimento e no que concerne às outras duas provas Kant entende que o princípio da causalidade é válido somente no âmbito dos fenôme- nos. As provas cosmológica e físico te- ológica que se dizem a posteriori, são provas a priori disfarçadas de a posterio- ri. Portanto, nenhuma prova da existên- cia do ser originário possui força de- monstrativa sem conduzir a razão a infi- nitas contradições. Sendo Deus um nôumeno, não posso afirmar ser con- creta a sua existência, uma vez que não tenho como aplicar meu conhecimento sintético a priori a objetos desprovidos de matéria ou de qualquer conteúdo sensível. A filosofia kantiana, então, vem de- monstrar que os objetos da metafísica são seres noumênicos, que se encon- tram para além do mundo da experiência possível. “A razão especulativa é um princípio de unidade. Leva o entendi- mento a unificar, a sistematizar, o esfor- ço satisfatório quando se aplica ao mun- do dos fenômenos. Mas, num uso teóri- co, a razão procura ultrapassar o mundo dos fenômenos; daí a ilusão metafísi- ca”9. Segundo Kant, iludida de que as moléculas de ar impedem a sua livre trajetória no espaço, uma ave poderia “pensar” que no vácuo ela pudesse voar melhor; entretanto, seria debalde tal pensamento, pois no vácuo, sem a re- sistência proporcionada pelas partículas de ar, a ave jamais voaria. A razão tem a crença de que pode pensar melhor saindo do mundo sensível, mundo dos fenômenos, para chegar ao incondicio- nado; porém, o que acontece é a ilusão de se ter alcançado o conhecimento dos objetos noumênicos. Nesse sentido, o que acontece, quando o homem tem essa intenção, é o fato de sua razão cair no vazio. 3. Considerações Acerca Da Filosofia Crítica De Kant A crítica kantiana termina por concluir a possibilidade de dissolver, com o seu método, até mesmo a mais sólida e sutil Filosofia. Não resta dúvida de que o propósito de Kant foi, em suma, elevar a crítica ao seu mais alto grau. Somente a crítica é capaz de “cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fa- natismo e a superstição, que podem tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o ceticismo, que são sobretudo perigosos” [KANT, 1994, p. 30]. A atualidade da filosofia kantiana não se resume, unicamente, na tentativa de superar o racionalismo dogmático e o empirismo céptico, pois ela tem ainda a pretensão de propor uma forma de razão que proceda criticamente sem passivi- dade. O que chamamos crítica, em Kant, tem fundamental importância para o universo do conhecimento, pois ela acaba por descobrir na razão um uso regulador que é, portanto, o reconhecimento da impos- sibilidade de se atingir os objetos cuja natureza é desprovida de conteúdo ma- terial. Na busca de resposta para esse problema, o próprio kantismo entende que a questão essencial levantada pela Crítica da Razão Pura é unicamente a “de saber até onde posso esperaralcan- çar com a razão, se me for retirada toda a matéria e todo o concurso da experi- 9 CHALLAYE, 1996, p. 194. 91 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura ... Revista Eletrônica Print by<http://www.funrei.br/revistas/filosofia> Metavnoia. São João del-Rei, n. 1, p. 84-91, 1998/1999 ência” [KANT, 1994, p. 7]. Ora, a nature- za humana é constituída de tal modo que não nos permite conhecer os objetos noumênicos da razão especulativa. Quando a razão tenta elevar à unidade os elementos ou seres de pensamentos, ela de modo algum consegue seguir seu caminho sem cair, inevitavelmente, nos erros, em argumentos sofísticos e sem fundamentos. Talvez a razão, segundo Kant, se encontre diante do seu com- promisso mais difícil, o “conhecimento de si mesma” [KANT, 1994, p. 5]. Acerca da razão, poder-se-á considerar que a crítica conduz à “constituição de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as pretensões infun- dadas; e tudo isso não por decisão arbi- trária, mas em nome das suas leis eter- nas e imutáveis” [Idem]. A metafísica não pode conhecer com legitimidade e com validade as coisas em si. Portanto, segundo Kant, a razão deve, necessari- amente, ser entendida como crítica de si mesma. De modo algum é possível uma metafí- sica como ciência, e isso somente a crítica é capaz de concluir. Assim, o “dever da Filosofia era dissipar a ilusão proveniente de um mal-entendido, mes- mo com o risco de destruir uma quimera tão amada e enaltecida” [KANT, 1994, p. 6]. No entanto, somente a crítica é capaz de evitar que a razão ultrapasse o uni- verso da experiência, o mundo dos fe- nômenos. Para além do mundo sensível nada pode ser demonstrado ou conheci- do, nem a existência, nem a não exis- tência de seres noumênicos. Certamente a metafísica deve ter algum significado para o universo da ética, mas seus seres de pensamento não podem ser, de modo algum, objetos de conhecimento. Conclusão Em se tratando de Filosofia, nada se pode afirmar apoditicamente acerca do mundo inteligível, é o que Kant nos en- sina. Do ponto de vista metafísico, a Crítica da Razão Pura teve como finali- dade demonstrar os paralogismos e as antinomias acerca das idéias da razão. Kant, em momento algum, demonstra a impossibilidade da metafísica em geral; afinal, no campo da ética, ela possui um inestimável atributo. É no universo do conhecimento, que a metafísica teve absurdas pretensões, entre elas a tenta- tiva de, por meio da razão, elevar-se ao incondicionado. A crítica surgiu como uma espécie de instrumento para de- monstrar a impossibilidade da metafísica enquanto ciência. Tal crítica deve, ne- cessariamente, acompanhar todo conhe- cimento, bem como os seus pressupos- tos gnosiológicos, para que o homem nunca ultrapasse os limites exigidos pela experiência. O problema da razão, se- gundo Kant, tem sido, de fato, tentar conhecer objetos transcendentes que somente podem ser pensados, objetos que estão para além da realidade sensí- vel, muito além do universo condiciona- do pela experiência. A razão deve preo- cupar-se não com o mundo noumênico, mas tão somente com o mundo dos fe- nômenos. Diante da tentativa debalde de elucidar questões transcendentes, a razão se esquiva conseguindo somente cair em argumentos falaciosos e errô- neos. Referências Bibliográficas BONACCINI, Juan Adolfo. Acerca da Segunda Versão dos Paralogismos da Razão Pura. Anais de Filosofia, São João del-Rei : FUNREI, n. 3, p. 59 - 66, Jun. 1996. CHALLAYE, Félicien. Pequena História das Grandes Filosofias. Tradução e notas de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco Penna. Rio de Janeiro : Nacional, 1966 DELEUZE, Gilles. Para Ler Kant. Tradução de Sônia Dantas Pinto Guimarães. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1976. KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão; Introdução e Notas de Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gul- benkian, 1994. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura: outros Textos Filosóficos. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1987 - V. II (In: Coleção - Os Pensadores n. 25). PASCAL, Georges. O Pensamento de Kant. Introdução e tradução de Raimundo Vier. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. SCIACCA, Michele Frederico. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. Tradução de Luís Washin- gton Vita. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
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