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JULIANA DE CASTRO BIILL INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA NO CONFLITO DA SOMÁLIA Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitário de Brasília. Orientador: Professora Inês Porto BRASÍLIA 2006 RESUMO O presente trabalho discute como as Nações Unidas lidaram com a situação de um país vítima de um conflito civil, a Somália. A forma peculiar como ocorreu a Intervenção chamou atenção da comunidade internacional. São abordados aspectos históricos, a diferenciação entre Operações de Paz e Intervenções Humanitárias trazendo críticas e reflexões quanto à atuação da ONU e de outros Estados nos conflitos que marcam o século XX. PALAVRAS-CHAVE: Conflitos civis no Pós-guerra Fria; Violação dos Direitos Humanos; Estado da Somália, Atuação do Conselho de Segurança da ONU; Intervenções Humanitárias. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................4 1 O CONTINENTE AFRICANO............................................................................................7 1.1 BREVE HISTÓRICO DO COLONIALISMO AFRICANO (SÉCULOS XIX E XX) ...........................7 1.2 RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS POR VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS..............................................................................................................................11 1.3 OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU..........................................................................................13 1.4 O CONFLITO NA SOMÁLIA................................................................................................14 1.4.1 A colonização e luta pela independência ................................................................14 1.5 O CONFLITO NA DÉCADA DE 90 .......................................................................................15 1.6 O CONFLITO ARMADO......................................................................................................20 1.6.1 Características ........................................................................................................20 1.6.2 Quando são aplicados esses direitos.......................................................................21 1.6.3Legitimidade para se envolver no conflito ...............................................................23 2 ATUAÇÃO DA ONU NA SOMÁLIA ...............................................................................24 2. 1 INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA ........................................................................................24 2.1.1 O complexo conceito de Intervenção Humanitária (necessidade de autorização do uso da força pelo Conselho de Segurança a partir do capítulo VII da Carta da ONU)..26 2.1.2 A diferença entre Intervenção Humanitária e Operações de Paz...........................27 2.1.3 As 5 Intervenções Humanitárias autorizadas pelo Conselho de Segurança e as críticas: seletividade, corrupção, desconhecimento da política interna do país .............28 2.1.4 O fracasso das Operações de Paz da Somália........................................................29 2.2 ATUAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA .......................................................................30 3 REFLEXÕES SOBRE A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA NA SOMÁLIA............36 3.1 A ÉTICA DA INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA ......................................................................36 3.1.1Seletividade Política dos Estados e da ONU............................................................36 3.1.2 A complexidade das guerras civis ...........................................................................40 3.2 FORMAS ALTERNATIVAS À INTERVENÇÃO .......................................................................41 3.2.1 Assistência Humanitária..........................................................................................42 3.2.2 Difusão do Direito Humanitário em tempos de paz................................................44 3.2.3 O papel das organizações regionais na manutenção da paz ..................................45 3.3 QUESTIONAMENTOS DA AÇÃO DO CICV NO CONFLITO DA SOMÁLIA ..............................46 3.4 FUNÇÃO DA ONUSOM PARA PREVENIR O CONFLITO ......................................................48 CONCLUSÃO.........................................................................................................................51 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................54 INTRODUÇÃO O tema que escolhi para ser discutido no trabalho de Monografia busca formas de garantir a segurança da população civil no âmbito internacional, tratando especificamente sobre o conflito civil em um país, vítima de conseqüências catastróficas de combates armados internos: a Somália. A motivação para a escolha para trabalhar com esse tema foi, inicialmente, a curiosidade em estudar a fundo as barbaridades sofridas pelo povo africano. Vários países africanos são palcos de genocídio e, em alguns casos, temos a notícia de que não se faz nada a respeito. Portanto, houve também uma indignação que motivou esta escolha. Apesar do interesse em explorar todo continente africano, não seria possível delimitar e sequer concluir este trabalho em um ano. Infelizmente, a África é um continente cheio de conflitos dos mais variados tipos. Recentemente, um caso de genocídio foi tratado nos cinemas (no filme “Hotel Ruanda”) e deixou muita gente chocada, mas poucos que saem abalados das salas do cinema sabem que uma tragédia de igual proporção acontece, neste momento, no Sudão, onde o governo tenta concretizar uma limpeza étnica contra os habitantes não-árabes. Este é apenas um dos diversos problemas que o continente apresenta. Sobram razões para estudar temas de tamanha relevância. Os casos que chamaram atenção da comunidade internacional sofreram algum tipo de Intervenção ou Assistência Humanitária. Pelas peculiaridades da Intervenção ocorrida na Somália, este foi o país escolhido para ser o objeto de estudo principal desta pesquisa. 5 Há inúmeras questões a serem levantadas sob este foco, por isso o trabalho de problematização não foi fácil, assim como a delimitação temática. Foi preciso entender, em primeiro lugar, a diferença entre Direito Humanitário Internacional e Direitos Humanos. A transição de uma situação de Paz, na qual operam os Direitos Humanos, para a realidade que pretende ser estudada: Conflitos Armados, que podem ser internacionais ou internos – este último é o caso da Somália. Além dessas duas situações, o Estado pode ainda se encontrar num período delicado de pós-conflito, no qual serão apurados possíveis crimes de guerra pelo Direito Penal Internacional, quando se procura proteger os direitos dos refugiados, enfim, tentar resgatar uma situação de paz, reconstruir o país e a identidade dos povos em conflito. Esses pontos não serão abordados neste trabalho. Em todos esses momentos, a ONU desempenha um papel importante, seja de ‘peacekeeping’, peacemaking’ ou ‘peaceenforcement’. O que pretendo abordar, dentro desse contexto, é tanto a função das Missões de Paz, como a situação mais grave, a da Intervenção, quando o conflito já chegou ao limite. Para tanto, o trabalho foi estruturado da seguinte forma: o primeiro capítulo trata da colonização e descolonização dos Estados africanos dentro de um contexto mais amplo, buscando explicações para esclarecer a origem das rivalidades étnicas, religiosas e culturais que fazem eclodir conflitos como os que observamos hoje. Inicialmente vemos que muito se deve à imposição de fronteiras arbitrárias, à conseqüênciada descolonização tardia e à tremenda influência dos ideais da Guerra-Fria. O desafio político, social e econômico enfrentados pelos governos impede-os, muitas vezes de garantir a proteção mínima aos direitos humanos. Todo esse quadro também gerou um enorme impacto na Somália. Este 6 Estado teve sua independência somente em 1960, passou de um regime ditatorial, a uma nação sem governo, e, posteriormente, à liderança de um general opressivo. Em meio ao caos e à fome, a comunidade internacional se mobilizou. No capítulo seguinte, é feita uma explicação sobre o que é a Intervenção Humanitária, que tem um complexo conceito, e o que a difere das Operações de Paz, qual o objetivo de cada uma e em que contexto são adotadas. No caso em questão, analisar como ocorreu a fracassada atuação do Conselho de Segurança na Somália. Antes de concluir a pesquisa, sugeri, no terceiro capítulo, que fossem feitas reflexões sobre a peculiar Intervenção que ocorreu em um país que sabemos ser pobre e sem influências no mundo. Ao mesmo tempo, outros conflitos armados de grande dimensão aconteciam na África. Pose ser que haja certa seletividade política justificando essa questão. É importante também refletir sobre o que pode ser feito para impedir que outros conflitos armados cheguem ao caos. E quando Estado já está se encontra em tal situação, há outras alternativas à tão polêmica Intervenção? 1 O CONTINENTE AFRICANO 1.1 Breve histórico do colonialismo africano (séculos XIX e XX) O colonialismo impediu o crescimento e desenvolvimento político, econômico e social da África. Durante a luta pelo continente no século dezenove, as potências européias dividiram-na em unidades territoriais com fronteiras definidas arbitrariamente. As colônias que surgiram frequentemente sofriam com a falta de eficácia do governo interno, e as diferenças e antagonismos entre os vários grupos criados eram enormes. Aos africanos não era dada qualquer voz para negociações políticas. Planejadas para dar assistência às necessidades das potências, as economias coloniais exploravam largamente o trabalho sem qualquer qualificação ou com pouca experiência, e a educação era negligenciada. Ou seja, os países colonizadores não prepararam os países africanos para a autonomia política, muito pelo contrário, fizeram de tudo para desorganizar e antagonizar politicamente os diversos grupos culturais, e a independência tardia de muitos países africanos só ocorreu durante a década de 60.1 Conseqüentemente, a descolonização criou novos desafios com os quais a primeira geração de governos autônomos não estava preparada para lidar. Historicamente, sabemos que as transições para independência são geralmente sangrentas. Apesar da OAU (Organization of African Unity)2- organização regional política e econômica responsável por distribuir segurança, prevenir e administrar conflitos- ter decidido aceitar as fronteiras 1 BERMAN, Eric G. ; SAMS, Katie E. Peacekeeping in Africa: Capabilities and Culpabilities. Unites Nations Publications, 2000. 2 A OAU criou um eficiente mecanismo de prevenção de conflitos que foi copiado mais tarde pela SADC- Southern African Development Community, também pela ECPWAS -West African States, e demais organizações menores e mais subregionalizadas que se organizaram com base na idéia principal da OAU. Isso foi muito importante para o continente como um todo. Inclusive, antes mesmo de ser reconhecida como organização, a OAU ajudou em operações de paz retirando, por exemplo, militares em Ruanda, Libéria, Guiné-Bissau. 8 coloniais arbitrárias, a existência dessas fronteiras mal definidas e controversas ao longo de todo o continente contribuiu para a ocorrência de muitos conflitos. Até os dias de hoje, percebemos conseqüências dessa delimitação: a diversidade étnica, lingüística e religiosa dentro dessas fronteiras estabelecidas dificulta a construção de identidades nacionais. A Guerra Fria afetou a segurança dos governos africanos já que tanto a União Soviética como os Estados Unidos tentavam converter os recém-independentes Estados africanos para suas respectivas causas. Os interesses em torná-los socialistas ou capitalistas visavam tão somente aumentar suas áreas de influência. Como resultado, eles freqüentemente apoiaram autoritarismo, corrupção e governos opressivos. Moscou e Washington ajudaram a incentivar diversos conflitos no continente fornecendo armamentos tanto para os governos como para grupos rebeldes desde que esses continuassem apoiando suas ideologias3. Ambos tinham um objetivo em comum que era ganhar mais influência a qualquer custo. Apesar de ambas as superpotências terem usado assistência militar para competir por influência, elas conseguiram exercitar algumas restrições em períodos de tensão. Durante o estágio inicial da guerra entre a Etiópia e a Somália, em 1977, por exemplo, Moscou e Washington ficaram relutantes em atender o alto nível de apoio militar requisitado. A União Soviética não promoveu qualquer tipo de ajuda ao novo governo de Addis Abeba até que os Estados Unidos indicassem claramente que haviam se distanciado do conflito.4 Com o fim de toda essa rivalidade entre socialismo e capitalismo, muitos líderes africanos, que estavam acostumados a receber apoio de fora, não contavam mais com esses patrocínios. Os patrocínios emprestavam legitimidade política e apoio militar para seus regimes. Os Estados Unidos já não precisavam mais se aproximar dos líderes africanos em 3 BOWDE, Mark. African atrocities and the rest of the world. Policy Review, Issue 101, Jun/Jul2000. 4 NEUMAN, Stephanie. Assistance in recent wars: the dominance of the superpowers. Nova York: Praeger, 1986, p. 31-32. 9 troca de alianças. A Ex-URSS também não tinha mais razão para dar-lhes qualquer assistência, e Cuba concordou em retirar suas tropas do continente. Muitas potências, que ainda mantiveram interesse nas antigas colônias, também passaram a reduzir seu comprometimento (a França, entretanto, foi um país que permaneceu com políticas intervencionistas fortes, tentando proteger seu legado). Em decorrência dessa situação mundial, os grupos oprimidos começaram cada vez mais abertamente a desafiar a legitimidade desses líderes, e seus regimes enfraquecidos ficaram, então, mais suscetíveis à violência e inquietude doméstica.5 Os próprios líderes africanos ajudaram a criar muitas das crises que vemos nos dias de hoje. Muitos deles tentaram forçar uma unidade nacional impondo poderes políticos ao Estado. Os governos se tornaram incapazes de conter a corrupção, não havia transparência em seus regimes, assim como não havia uma forma pacífica para substituição ou troca de um governante. Crescia o descaso com respeito aos Direitos Humanos porque o controle político era cada vez mais importante. Esse tipo de situação se torna especialmente crítica quando o Estado é o principal fornecedor de empregos, e, além disso, os partidos políticos são amplamente baseados em caráter étnico ou baseados em critérios regionais6. As responsabilidades sociais que deveriam ser providas pelo Estado foram substancialmente ignoradas ou sub-contratadas: organizações internacionais voluntárias (PVOs)7, organizações não-governamentais e diversos órgãos das Nações Unidas têm se tornado mais e mais envolvidos no desenvolvimento, educação e setores da saúde. Mesmo com o auxílio externo, é ainda muito difícil para os Estados agirem autonomamente. Como 5 BERMAN, Eric G. ; SAMS, Katie E. Peacekeeping in Africa: Capabilities and Culpabilities. Unites Nations Publications,2000. 6 ROPP, Stephen C.; SIKKINK, Kathyryn. The power of human rights: international norms and domestic change. Reino Unido: Cambridge University Press. 1999. 7 Private Volunatry Organization. 10 exemplo da necessidade de ajuda financeira, sabe-se que apesar de freqüentes doações externas, a epidemia da AIDS ainda tem um impacto devastador no continente, já que de cada dez pessoas infectadas em 1998, sete moravam na África8. Os Estados também encontram dificuldades em munir sua própria segurança. Muitas forças militares africanas sequer contam com pessoal ou disciplina para defender o país. No caso extremo de Serra Leoa, os soldados não são apenas desmotivados e corruptos, eles são subversivos.9 Para estabelecer e manter a ordem, os Estados africanos contam, muitas vezes, com a ajuda de firmas particulares de segurança (ou “mercenários corporativos”). Alguns vêem essas firmas como provedoras de serviços úteis aos Estados - contanto que seus pagamentos sejam feitos em dia.10 Já para outros, trata-se da maior e mais sofisticada ameaça à paz, soberania e autodeterminação das pessoas de muitos países africanos. De fato, os desafios políticos, militares, econômicos e sociais enfrentados pelos Estados são tão grandes que alguns nem mesmo conseguem operar sozinhos. Então, as tentativas por parte da comunidade internacional no sentido de reverter esse caminho se tornam em vão. Em decorrência da seqüência das guerras civis devastadoras especialmente na Libéria e na Somália, assim como o despertar imediato decorrente do genocídio em Ruanda, chegou a ser proposto que certas partes da África fossem re-colonizadas, desta vez pelas Nações Unidas, com propósitos humanitários, até o momento em que o Estado estivesse 8 Os dados apresentados por esta revista podem der questionáveis já que a AIDS se tornou uma “doença política”, usada como apelo de marketing para atrair mais dinheiro em doações. VEJA. São Paulo: Abril, 1917 ed., n. 32, 2005. 9 GEORGES, Abi-Saab. La deuxième génération des opérations de maintien de la paix. V. 4, n. 20, 1992. 10 RENO,William. Privatizingthe war in Sierra Leonne. Current History, maio,1997. 11 preparado a governar efetiva e humanitariamente.11 Esse sentimento é considerado por alguns muito radical e pouco provável. O aumento de conflitos civis no Pós-guerra Fria gerou conseqüências severas. A população civil se tornou combatente e está armada. Houve uma necessidade de surgimento de novas formas de garantir a segurança da população civil uma vez que os tradicionais meios de contenção de conflitos não são suficientes nas crises atuais. Hoje vemos o aumento de massas em deslocamento, grupos de refugiados e genocídios.12 1.2 Responsabilidade Internacional dos Estados por violação aos Direitos Humanos Durante a Guerra Fria, as ações do Conselho de Segurança da ONU estiveram congeladas pela tensão provocada pela disputa entre Estados Unidos e União Soviética. Ainda havia, mesmo assim, preocupação com a defesa de indivíduos e minorias étnicas e o combate a governos opressores. Os conflitos atuais, no entanto, decorrem de violência dentro dos próprios países. Isso faz com que a população se arme em defesa de suas vidas e proteção às suas etnias gerando então sérias conseqüências humanitárias. Facilmente conclui-se que a substituição dos tradicionais conflitos entre Estados por conflitos entre civis, já no pós-guerra, exige medidas mais apropriadas para manutenção da paz. Em 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou a ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’ com o objetivo de tentar estabelecer um padrão de conquistas para todos os povos e Nações. O impacto dessas normas pode ser avaliado analisando o porquê, como, e sob que condições as normas internacionais influenciam as ações dos Estados. 11 MAZRUI, Ali A. Decaying parts of África need benign colonization. The International Herald Tribune, 4 de agosto de 1994. 12 SZCLARZ, Eduardo. Aqui e agora: um país africano é palco de um genocídio e ninguém faz nada. Superinteressante. Out. 2005. 12 A Declaração Universal dos Direitos Humanos contem artigos que detalham os direitos ao trabalho, ao descanso, dentre outros. Escolhi acompanhar em especial o progresso do direito à vida. Isso não significa que os outros sejam de menor importância. Ocorre que o direito básico à vida é amplamente institucionalizado em tratados internacionais que países ao redor do mundo ratificaram, ou seja, com eles concordaram. Hoje, para aferir a aplicabilidade dessas normas, podemos contar com a ajuda dos dados fornecidos pela Anistia Internacional, pelas Nações Unidas e suas Missões. Eles detêm ampla informação sobre os níveis em que os direitos humanos são praticados, ou negligenciados no mundo. Uma melhoria na estabilidade dos direitos humanos requer medidas de transformação política em qualquer Estado. Ou seja, a manutenção dos direitos humanos caminha lado a lado com reestruturação interna. Os governos são considerados aceitantes da validade das normas de direitos humanos quando, em primeiro lugar, ratificam os tratados internacionais de direitos humanos, incluindo os protocolos opcionais. Essas normas devem estar institucionalizadas na Constituição do país e / ou em suas leis internas. Deve haver também algum mecanismo para que o cidadão possa denunciar qualquer tipo de violação aos Direitos Humanos.13 O estudo de manutenção da paz na África é muito importante. Numa época em que os Estados africanos estão assumindo um grau maior de responsabilidade pela promoção da paz e segurança em seu continente, os autores de um outro trabalho bastante interessante oferecem uma detalhada descrição dos esforços dos Estados africanos para apoiar programas que enfatizam suas próprias capacidades. Em seu livro, Eric G. Berman e Katie E. 13 ROPP, Stephen C.; SIKKINK, Kathyryn. The power of human rights: international norms and domestic change. Reino Unido: Cambridge University Press. 1999. 13 Sams14 revisam os efeitos de uma crescente tendência da comunidade internacional em confiar em organizações regionais que promovam a paz e a segurança na África, analisando tanto os esforços internos quanto as forças externas para desenvolver a capacidade individual e coletiva dos países africanos de encarregar-se das operações de manutenção da paz. 1.3 Operações de Paz da ONU Com o fim da Guerra-Fria, as Missões de Paz se expandiram por todo o mundo. No entanto, acredito que devido ao rastro deixado pelas dificuldades experimentadas na Somália em 1993, que representaram um acordar para a ONU, as operações de paz em larga escala têm sido abandonadas e substituídas por missões menores e mais especializadas de monitoração. Entre 1989 e 1993, dez Missões foram autorizadas pelas Nações Unidas para atuarem por toda a África. Nos cinco anos seguintes, somente cinco foram instaladas.15 O Conselho de Segurança da ONU, criado em 1945, era inerte e, até 1990, incapaz de tomar qualquer decisão para prevenir conflitos. Ele contava com o consentimento de todas as partes envolvidas e monitorava acordos de cessar-fogo. As operações de paz representam uma tentativa de resolver, ou mesmo amenizar, as conseqüências humanitárias dos conflitos internacionais. É considerado o primeiro passo em direção à intervenção humanitária, até porque em sua trajetória, o uso da força foi sofrendo ampliações. 14 BERMAN, Eric G. ; SAMS, Katie E. Peacekeeping in Africa: Capabilitiesand Culpabilities. Unites Nations Publications, 2000. 15 Ob.loc.cit. 14 As operações são estabelecidas pelo Conselho de Segurança, que decide seu tamanho, seus objetivos e seu tempo no campo. As tropas têm acesso a armamentos mais leves e devem usar força apenas como último recurso e em autodefesa.16 1.4 O conflito na Somália 1.4.1 A colonização e luta pela independência O sul da Somália se tornou colônia italiana em 1904. Em 1936, a Itália invadiu também a Etiópia e passou a dominar o extremo leste da África. Em 1941, durante a II Guerra Mundial, a Somália italiana foi ocupada pelos britânicos, aí começaram as primeiras rebeliões contra o colonialismo. O movimento nacionalista ganhou impulso em 1945 com a formação de organizações anticolonialistas. No pós-guerra, o Reino Unido entregou à Etiópia o deserto de Ogaden, que fazia parte da Somália, provocando indignação entre os somalis. Uma decisão da ONU deu à Itália mandato para administrar temporariamente sua ex-colônia no sul da Somália. A independência ocorreu em 1960, com a retirada de italianos e britânicos e a unificação da Somália, que se tornou uma República. Em 1969, um golpe militar levou ao poder o general Siad Barre.17 Tensões com a Etiópia pela posse de Ogaden, habitado por somalis, levaram à invasão do território pela Somália em 1977, deflagrando a Guerra do Chifre da África. A URSS, até então aliada do regime somali, mudou de lado e apoiou a Etiópia. A Somália voltou-se para os EUA. Em 1978, as tropas somalis foram expulsas de Ogaden pela Etiópia com a ajuda de soldados cubanos. Um milhão de somalis que viviam em Ogaden tornam-se refugiados na Somália. Combates prosseguiram em Ogaden até a assinatura do acordo de paz, em 1988, que incorporou a região à Etiópia. 16 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos. A prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.p.49. 17 África- uma porta para o mundo.Disponível em: <http://www.catolicanet.com.br/gf/conteudo.asp?pagina=458>. Acesso em: 19 out. 2005. 15 1.5 O conflito na década de 90 O general Barre governou ditatorialmente até 1991, quando foi derrotado por uma coligação de grupos rebeldes e fugiu do país. As facções vitoriosas estavam divididas e a Somália passou a ser uma nação sem governo, com mais de 20 clãs armados lutando entre si. Os principais pertenciam ao Congresso da Somália Unificada (USC), movimento dividido em duas facções rivais: uma liderada pelo presidente interino Ali Mahdi Mohammed e outra chefiada pelo general Mohammed Farah Aidid, que, em 1992, fundou a Aliança Nacional da Somália (SNA). Outro grupo expressivo era o clã Isac, reunido no Movimento Nacional da Somália (SNM), que conquistou o norte e autoproclamou a "República da Somalilândia" - não reconhecida internacionalmente, em abril de 199118. Nesse ambiente de caos a fome se alastrou. Entidades humanitárias estrangeiras enviavam alimentos que eram confiscados pelos grupos armados, em especial pelo clã de Aidid. Tropas dos EUA intervêm na Somália, com autorização da ONU, em 1992. No ano seguinte foram substituídas por uma força de paz da ONU, a ONUSOM, que também entrou no combate contra a guerrilha de Aidid. Pouco depois, os EUA retornaram com tropas especiais e bombardearam posições de Aidid, sem derrotá-lo. A pressão da opinião pública norte-americana, contrária ao envolvimento na Somália, levou a uma nova retirada dos EUA em 1994. A intervenção militar internacional terminou em 1995, com a saída das últimas tropas. Um confronto entre clãs na Somalilândia, em 1995, deixou centenas de mortos e refugiados, que se dirigiram para a Etiópia. Em agosto de 1996, Aidid morreu em combate e foi substituído por seu filho Hussein Mohammed Aidid. Em fevereiro de 1997, Mohammed 18 NEIR, Aryeh. Bloody Somalia. Nation, v. 246, Issue 25, 25 jun.1988, p.8884-885. 16 Ibrahim Egal foi reeleito para presidente da Somalilândia. Nos meses seguintes, a seca prolongada agravou a fome no sudoeste do país.19 Em dezembro de 1997 – após um ano de negociações –, a maioria dos grupos políticos em atividade na Somália assinou declaração conjunta no Cairo (Egito) visando à pacificação do país. Uma das medidas acertadas foi a instituição de um Conselho Presidencial e de um Legislativo. Em maio de 1998 formou-se um governo de transição integrado pela maioria das facções. Os combates, porém, não cessaram. Em junho, a violência entre clãs no sul matou cerca de 40 pessoas. Em setembro entrou em funcionamento um Parlamento Regional na autoproclamada região autônoma de Puntland (nordeste do país). 20 Em 1979, ansioso por obter assistência econômica e militar americana, Siad Barre promulgou uma nova Constituição Liberal. Aprovada por um referendo nacional, esta Constituição estipulava a restauração de muitos direitos civis que haviam sido extintos. Era ‘garantida’ a liberdade de expressão, religião, publicação e o direito de participar em assembléias e organizações. A Constituição também apoiava a inviolabilidade do lar e privacidade de correspondência. Em novembro de 1992, a administração do presidente Bush mandou 30.000 soldados americanos para a Somália, no que foi descrito como uma ‘missão humanitária’ para oferecer assistência na distribuição de mantimentos que vinham sendo interceptados pelas milícias armadas e então não alcançavam a população civil necessitada. A situação do país era de caos profundo: massas de deslocados por suas fronteiras, não havia instituições jurídicas, políticas ou administrativas, um milhão e meio de pessoas estavam à beira da morte e mais de 19 NEIR, Aryeh. Bloody Somalia. Nation, v. 246, Issue 25, 25 jun.1988, p.8884-885. 20 A country studies – Somalia .The library of Congress. Junho, 2005. Disponível em: <http://lcweb2.loc.gov/frd/cs/sotoc.html > Acesso em: 12 ago. 2005 17 300 mil já haviam morrido pela fome.21 O Conselho de Segurança das Nações Unidas apoiou a iniciativa de garantir a assistência humanitária à população civil no mês seguinte pela Resolução 794. Inicialmente muitos somalis ficaram gratos pela ajuda americana. No momento em que as tropas americanas começaram a chegar, a maior parte do país não funcionava em paz e a falta de comida se alastrava. No entanto, poucos somalis podiam estar envolvidos com as decisões tomadas neste momento crucial. A maioria dos somalis passou a ver as forças americanas como representantes do governo que havia sido o maior apoiador da tão odiada ditadura. A presença estrangeira em um país que tinha sido libertado do domínio colonial por pouco mais de três décadas se transformou em repulsão e sentimento de indignação. Contribuindo para estas preocupações havia o fato de que as tropas americanas que chegavam à Somália eram forças de combate de elite, e não treinadas para missões humanitárias. As tropas não tinham treinamento adequado já que eram formadas por pessoas de várias nacionalidades que não tem treinamento regularmente. Esses integrantes têm dificuldade de interagir com a população e entender sua realidade social. O ideal seria que seus atos fossem supervisionados por uma organização nacional e que todos os envolvidos tivessem ciência do limite do mandato que cumprem. Talvez esses problemas no campo pudessem ser evitados se a ONU tivesse tropas próprias. Importante salientar que as tropas de um exército, de qualquer Estado que ele seja, são treinadas para matar, e da forma mais eficaz possível; não são treinadas para distribuir comida ou dar qualqueroutro tipo de assistência humanitária. 21 WEISS, Thomas. The United Nations and changing world politics. Westview Press, 1994. 18 Milhares de armas enviadas pelos americanos às forças armadas de Barre acabaram ficando nas mãos da milícia rival que as utilizaram não só contra as tropas americanas como também para obstar a distribuição dos mantimentos. Os soldados americanos passaram a ser ouvidos repetindo o slogan :”The only good somali is a dead somali”. 22 A luta pelo poder entre tribos e clãs rivais colocou a Somália em guerra civil, num estado de miséria mais agudo do que aquele cotidianamente vivido no Leste da África. Em seu plano de paz a ONU enviava medicamentos e comida à população do país. Os milicianos do exército do truculento Mohamed Farah Aidid, o "Hitler da Somália", entretanto, interceptavam os fornecimentos. Em maio de 1993, os Estados Unidos finalmente transferiram esta missão falha para as Nações Unidas. Esta foi a primeira vez que a corporação mundial combinou peacekeeping, peacenforcement e assistência humanitária, assim como também foi a primeira vez que as Nações Unidas intervieram sem um convite formal do governo anfitrião (porque não havia nenhum).Tanto a figura de peacekeeping como peacenforcement devem ser autorizadas pelo Conselho de Segurança de acordo com a gravidade do conflito. Na primeira, as partes envolvidas e o governo consentem e estão dispostas a colaborar com a Missão, há um estado de paz para ser preservado. A sua principal função é intermediar acordos dentro da região. Se partirmos para um cenário de peacenforcement, é sinal de que a primeira tentativa falhou. Já nessa situação, as forças armadas sob o comando de um país (sob legitimidade da ONU) fazem valer o teor do mandato coercitivamente com a principal função de desarmar a população e impor a paz. Trata-se de uma conjunção de atividade política, militar e humanitária, o que normalmente não costuma ser eficaz. A assistência humanitária tanto pode 22 ÖSTERDAHL, Inger. By all means, intervene! (The Security Council and the Use of Force under Chapter VII of the UN Charter in Iraq (to protect the Kurds), in Bosnia, Somalia, Rwanda and H iti). Nordic Journal of International Law, v. 66 ,Issue 2/3, May.97, p241-271. 19 representar um ato de força para desarmar a população, conter a violência ou simplesmente a distribuição de remédios e alimento. Pouca era a confiança depositada nas Nações Unidas pelos somalis, especialmente quando o Secretário Geral das Nações Unidas passou a ser Boutros-Ghali, grande apoiador de Barre quando esteve à frente das relações exteriores do Egito. Apesar de as Nações Unidas estarem tecnicamente no controle, as forças americanas continuavam agindo de forma agressiva. A batalha de Mogadishu (dramatizada no filme “The Black Hawk Down”) resultou na morte de 18 marines americanos e centenas de civis. A principal missão americana na Somália passou então a ser a proteção de suas próprias tropas que sabemos, tem como “filosofia” que “nenhum homem deve ser deixado para trás”. Essa fracassada manobra militar promovida pelo exército americano na Somália, em outubro de 1993 foi concebida pelo general William Garrison e executada por um grupo de soldados de elite que resolvem invadir a cidade Mogadishu para capturar dois importantes líderes e integrantes do governo do ditador Farrah Aidid, que comandava a guerrilha e afundava o país na guerra civil e que vinha promovendo um longo massacre no país. O problema é que toda a cidade estava a favor de Aidid. Tão mal preparados estavam os soldados que chegaram em local desconhecido e deram ordem de prisão a Aidid. Ao subestimar a força das milícias locais, a Inteligência Militar americana colocou suas tropas em uma posição vulnerável. Os soldados tentaram resgatar os feridos, mas acabaram sendo cercados por uma hostil e assustadora multidão de guerrilheiros. Com isso, uma manobra que deveria durar apenas meia hora se arrastou por várias horas, resultando na morte de mais de mil somalis. O resultado foi desastroso, assim como se provou ser a guerra do Vietnã. Um grupo de soldados que teoricamente fazia parte da Força de Paz da 20 Organização das Nações Unidas entra em uma guerra sem sentido e além disso somalis foram trucidados sem piedade. Afinal, o que os Estados Unidos estavam fazendo lá? Aquilo era, acima de tudo, uma guerra civil. É claro que a crueldade com que o ditador estava lidando com sua população precisava ser combatida, mas até que ponto essa ação militar ajudou em alguma coisa? Até que ponto mais violência ajudou a resolver o problema? O presidente Bill Clinton ordenou a retirada das tropas americanas em maio de 1994. A última missão de “peacekeeping” foi levada pela ONU um ano mais tarde. A intervenção americana na Somália hoje é considerada um fiasco. Não fosse esse relevante fiasco, o incidente de Ruanda, por exemplo, talvez pudesse ter sido contornado, ao menos amenizado. Nunca saberemos. 1.6 O conflito armado 1.6.1 Características A dificuldade de regular os direitos das vítimas de conflitos em um país é clara, já que os tratados sobre o direito da guerra foram elaborados antes da Segunda Guerra Mundial. O direito humanitário de proteção às vítimas tem seu respaldo nas Convenções de Genebra e em dois protocolos de 1977, um trata das vítimas de conflitos armados internacionais e o outro das vítimas de conflitos não internacionais. A classificação desses conflitos também não é simples. A maioria deles envolve um enorme número de pessoas, etnias, religiões diferentes lutando por objetivos diferentes. A interpretação dada de acordo com o artigo 3°, comum às quatro Convenções de Genebra de 1949, é que uma situação é reconhecida como conflito armado não-internacional quando existem hostilidades abertas no território de um Estado, entre forças 21 armadas e/ou grupos armados sob um comando responsável, ou seja, com um mínimo de organização, cuja ação hostil apresente um caráter coletivo. De maneira complementar, para melhorar a proteção das vítimas dos conflitos armados, o conceito de conflito armado não- internacional foi especificado no 1° artigo do Protocolo Adicional II de 1977. Fundamentados nas exigências humanitárias e na boa fé, o Protocolo Adicional II e o artigo 3°, comum às Convenções de Genebra, são aplicados quando se apresenta, de fato, uma situação de conflito armado. Mais do que isso, as normas deste artigo 3° têm valor consuetudinário e devem ser minimamente aplicadas e respeitadas – sem distinção – pelas forças armadas e pelos grupos armados organizados. Cabe apontar que a aplicação das disposições anteriores não afeta o estatuto jurídico das partes em conflito nem os reconhece23. Diversos comentadores considerariam que se deve aplicar as leis da guerra “sempre que forças armadas regulares se envolvem em batalha contra forças armadas regulares de um estado estrangeiro, ou entram no território de um estado estrangeiro sem permissão”. “Entrar em combate” parece visualizar uma contenda física e “entrar no território de um estado estrangeiro” visualiza uma entrada física. 1.6.2 Quando são aplicados esses direitos 24 As leis dos conflitos armados também são chamadas de leis da guerra. O primeiro termo é mais adequado, pois os Estados-Nações, hoje em dia, raramente declaram guerra, mas freqüentemente envolvem-se em conflitos armados além de o termo ‘guerra’ ter um alcance menos amplo. As leis dos conflitos armados aplicam-se sempre que dois Estados- Nações se envolvem em um conflito. “Qualquer desavença que surja entre dois Estadose leve à intervenção de membros das forças armadas é um conflito armado, de acordo com o artigo 23 Ten WILLIM, Fenrick J. The rule of proportionality and protocol I in conventional warfare. Military Law Review 98 , (1982): 91. O Coronel Fenrick era assessor legal das Forças Canadenses. 24 FIELD MANUAL. The law of land warfare. (FM) 27-10, 18 July 1956, Article 34. 22 2°, mesmo que uma das partes negue a existência do estado de guerra”. Isto apenas desloca a questão para o que constitui “intervenção”, mas, de novo, parece que se trata de contenda física. Há três princípios básicos centrais às leis do conflito armado.25 O princípio da necessidade militar “permite a aplicação de apenas o grau de força exigida para a submissão completa ou parcial do inimigo com o mínimo desperdício de vidas, tempo e recursos físicos, desde que esse grau de força controlada não seja proibido, por alguma outra razão, pelas leis da guerra.” Esse princípio também pode ser definido como “as medidas que são indispensáveis para garantir os fins da guerra e que são legais de acordo com as leis e os usos modernos da guerra”. 26 O segundo princípio básico é o princípio de humanidade. Sua finalidade é proibir o emprego de qualquer espécie ou grau de força que não seja necessário para o propósito da guerra, quer dizer, para a submissão parcial ou completa do inimigo com a mínima perda possível de vidas, tempo e recursos físicos. As leis do combate terrestre proibiram o emprego de “armas, projeteis ou material calculado para produzir sofrimento desnecessário”. Por exemplo: lanças com pontas farpadas, balas de formato irregular, ou balas mergulhadas em substâncias inflamáveis ou projeteis recheados de vidro. A Convenção de 1981 Sobre a Proibição ou Restrição de Certas Armas Convencionais que podem ser julgadas excessivas ou ter efeitos indiscriminados acrescentou armas que resultassem em fragmentos não detectáveis no corpo, minas, armadilhas de minas e armas incendiárias. 25 PICTET, Jean S. Commentary, Geneva Convention Relative to the Protection of Civilian Persons in Time of War, v. 4 , Geneva: International Committee of the Red Cross, 1958, p. 20. 26 LEPARD, Brian D. Rethinking humanitarian intervention. The Pennsylvania State University Press, 2002. 23 O terceiro princípio básico das leis do conflito armado é princípio do cavalheirismo. Sua premissa é que o combate de uma guerra deve ser feito “de acordo com as formalidades e cortesias reconhecidas”. Esse princípio reconhece que, freqüentemente, iludir o adversário é fundamental para uma vitória militar, e não proíbe o uso dessa prática, mas ressalva como e quando ela possa ser usada.27 1.6.3Legitimidade para se envolver no conflito Um conjunto de fatores (que representa) a comunidade internacional faz com que ela unida venha intervir na soberania de um país, quando este demonstra claramente sua incapacidade ou falta de interesse em defender seus cidadãos do genocídio, dos crimes de guerra e da limpeza étnica. Isso amplia a interpretação das normas que tangem os conflitos internacionais. As leis internacionais de antes se limitavam em estabelecer tratados e leis de guerra, hoje elas tem que ser mais abrangentes, já que as Intervenções Humanitárias por causa de violação aos Direitos Humanos em decorrência do conflito armado, são uma novidade da década de 90. 27WEIZENBAUM, Joseph. Computer power and human reason: from judgment to calculation. American Journal of International Law. 86. São Francisco, out. 1992. 2 ATUAÇÃO DA ONU NA SOMÁLIA 2. 1 Intervenção Humanitária Demais era esperado das Nações Unidas com o desfecho da guerra-fria e ela se provou incapaz de alcançar tais expectativas. O mundo pós-Guerra Fria é marcado por abusos aos direitos humanos, crises humanitárias e guerras civis. É um cenário diferente ao qual a ONU teve que se adaptar cumprindo a proposta de manter a paz mundial, já que antes essas questões eram consideradas responsabilidade do próprio Estado. Os mecanismos para manutenção da paz se tornaram, por um instante, serviços de emergência da comunidade internacional, até mesmo em momentos em que não havia sequer paz para ser mantida, casos em que os civis não são mais vítimas acidentais, mas sim combatentes. A ONU estava abalada no pós-Guerra Fria, passando por tensões e muitos de seus Estados membros desacreditados, uma vez que sua eficácia como medida de defesa aos direitos humanos passou a ser questionada. A ONU contratou algumas ONG’s para desempenhar suas tarefas de assistência no Camboja, por exemplo. Só na antiga URSS, mais de vinte conflitos violentos resultaram em centenas de mortos. O ponto decisivo foi então a Somália. A situação era vista como um risco sem precedentes que almejava nada menos que a reestruturação de um país inteiro a fim de torná-lo capaz de operar sozinho. Os esforços da comunidade internacional na Somália mal chegaram perto dessa expectativa. Uma força multinacional implementada pelas Nações Unidas (ONUSOM I) autorizada pela resolução 751,28 de abril de 1992, conseguiu 28 Resolução 751: Pede insistentemente a todas as partes e a todos os movimentos e facções que facilitem os esforços que a ONU e suas instituições especializadas, bem como as organizações com vocação humanitária empreenderam com vista a levar uma assistência humanitária de urgência à população da Somália, e pede 25 brevemente distribuir ajuda humanitária, o que foi crucial para a população. No entanto, as duas operações de paz (ONUSOM I e II) provaram ser deficientes em equipamentos e pessoal, além de incapazes de auxiliar a reestruturação do governo local para trazer, enfim, a paz para a Somália. Depois de uma considerável perda de vidas e muito pouco progresso, os peacekeepers se retiraram em março de 1995. A deficiência e o colapso da Somália precipitaram um rápido e decisivo toque de recolher das missões da ONU globalmente. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, os cinco membros permanentes do Conselho, liderados pelos Estados Unidos, se tornaram cada vez mais relutantes em compromissar suas tropas e seu dinheiro para apoiar tentativas de manutenção da paz como esta. Como resultado, as metas da comunidade internacional em relação à manutenção da paz se tornaram mais modestas. O abuso aos direito humanos na década de 90 rompeu a paz e a segurança internacional e deu ensejo às intervenções humanitárias: um conjunto de fatores que representa a comunidade internacional unida para intervir na soberania de um país, quando este demonstra claramente sua incapacidade ou falta de interesse em defender seus cidadãos do genocídio, dos crimes de guerra e da limpeza étnica. Isso amplia a interpretação das normas que tangem os conflitos internacionais. Os Direitos Humanos protegem o indivíduo em face de abusos cometidos pelo Estado, em tempo de paz. O Direito Humanitário é uma espécie de direitos humanos e rege as relações entre combatentes em tempos de conflito, colocando a salvo civis, doentes, náufragos, prisioneiros, dentre outros. O direito do uso da força refere-se à interpretação do capítulo VII da Carta da ONU, que vai estabelecer as hipóteses em que o uso da força é legal e legítimo na comunidade internacional. As leis internacionais de antes se limitavam em estabelecer tratados e leis de guerra, hoje elas têm novamente que sejamrespeitadas a garantia e a segurança do pessoal das organizações e que seja garantida a total liberdade de movimento em Mogadíscio e nos arredores, bem como em outras partes da Somália. Na ausência de cooperação, o Conselho de Segurança não exclui a possibilidade de tomar outras medidas para assegurar o encaminhamento da ajuda humanitária. 26 que ser mais abrangentes29 já que as Intervenções Humanitárias por causa de violação aos Direitos Humanos são uma novidade da década de 90. 2.1.1 O complexo conceito de Intervenção Humanitária (necessidade de autorização do uso da força pelo Conselho de Segurança a partir do capítulo VII da Carta da ONU) O conceito de intervenção humanitária já foi definido de várias formas,e não há uma definição normativa fixada nos documentos de direito internacional. Em princípio, todo Estado é independente. O princípio da soberania diz respeito à garantia de não- intervenção de um Estado ou organização na condução de um governo. A intervenção nos assuntos internos de um outro Estado é uma violação do direito internacional. Porém, a intervenção humanitária passa a ser uma ação legítima da sociedade internacional quando o Estado trata a sua população de forma brutal e há extremo sofrimento humano. Quando a obrigação de proteger seus cidadãos é negligenciada, o direito a autonomia soberana pode ser negado por uma decisão coletiva. A intervenção humanitária envolve uma situação em que principalmente os aspectos humanitários motivam a decisão. Os elementos que a difere da assistência humanitária são a falta de consentimento do governo e o uso ou a permissão do uso da força. A intervenção humanitária é aceita como prática legítima através da aplicação do Capítulo VII da Carta com o objetivo se solucionar crises humanitárias dentro de um país. Para ser considerada ação resultante da associação entre direitos humanos e segurança internacional, a resolução que autoriza a intervenção deve fazer menção ao Capítulo VII, declarando a situação humanitária uma ameaça à paz internacional. 29 NOVICK, Marek Antoni (Ex-integrante da Comissão Européia de Direitos Humanos, co-fundador da Kelsinki Foundation, em Varsóvia, observador da ONU no Kosovo desde 2000). Além do Fato: A síndrome da intervenção. Disponível em: < http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/internacional/2005/11/05/jorint2005>. Acesso em: 23 ago. 2005. 27 2.1.2 A diferença entre Intervenção Humanitária e Operações de Paz A assistência humanitária tenta assistir os não-combatentes atingidos pelo conflito com distribuição de alimentos, medicamentos (distribuídos por organizações não- governamentais, pela Cruz Vermelha), e protegendo seus direitos fundamentais. Para este tipo de operação (peacekeeping) funcionar, as partes envolvidas no conflito têm que estar dispostas a cooperar, o governo desejar a intervenção, e há um estado de paz para ser mantido. Já o objetivo principal das operações de peace enforcement é tentar desarmar a população e impor a paz (adotando embargos de armas ou embargos econômicos, por exemplo, ou mesmo usando a força para fazer cessar as hostilidades). Trata-se de uma conjunção de atividades política, militar e humanitária. As operações internacionais de paz devem ser extremamente bem planejadas, cautelosas e bem avaliadas. Ambas devem ser autorizadas pelo Conselho de Segurança. A não-colaboração do Estado prejudica a segurança dos que se dispõem a prestar essa ajuda, fazendo com que essas modalidades de intervenção não sejam suficientes para garantir um ambiente seguro. Quando o modelo acima referido falha, evolui-se para a permissão da utilização de tropas militares, que vão fazer valer o teor do mandato para garantir a assistência humanitária coercitivamente. Essas forças armadas ficam sob o comando de um país legitimado pela ONU. Há uma reunião de três fatores que caracterizam uma intervenção:30 “o objeto da ação tem que ser um Estado soberano, que se opõe à ingerência externa, e a intervenção deve representar um esforço de influenciar sua conduta doméstica, ocupando-se de tarefas em relação às quais o Estado teria titularidade.”. O principal objetivo desse tipo de ação deve ser a proteção de aspectos humanitários. A diferença para a ação promovida pelas 30 BOUTROS-GHALI, Boutros Supplement to an agenda for peace: position paper of the secretary-general on the occasion of the fifth anniversary of the United Nations,. Disponível em:<http:// www.un.org>. Acesso em: 17 jun.2006. 28 organizações não-governamentais e operações de peacekeeping é a permissão do uso da força e não é necessário o consentimento do Estado onde ela vai ocorrer. 2.1.3 As 5 Intervenções Humanitárias autorizadas pelo Conselho de Segurança e as críticas: seletividade, corrupção, desconhecimento da política interna do país Na década de noventa, cinco intervenções foram autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU. O surgimento dos conflitos e a forma como foram tratados são bem semelhantes: uma delas foi a intervenção no colapso do Estado da Somália, além da capitulação do Iraque na intervenção do Kuwait para derrubar Sadam Hussein, a proteção da população civil em Ruanda, intervenção do golpe militar no Haiti e a tentativa de controlar a crise nos Bálcãs. O texto escrito por Simone Martins Rodrigues31 critica o papel das intervenções da ONU, que vêm violando a neutralidade e imparcialidade, princípios sobre os quais a ONU foi criada, passando de um modelo de ‘peacekeeping’ para ‘peace enforcement’. Os conflitos citados comprovam que o tipo de intervenção coercitiva pode não funcionar e pode ainda trazer efeitos mais danosos. Como principais exemplos desse quadro, temos Somália e Serra Leoa, onde os conflitos ainda persistem. O texto demonstra uma preocupação especial com a escolha da estratégia de prevenção ou contenção de conflitos internacionais, de modo a não piorar as rivalidades étnicas já existentes no local e não anular a legitimidade das forças internacionais.32 Outros problemas identificados são: seletividade política (intervir em alguns conflitos, outros não), corrupção das tropas da ONU, dificuldade de situar-se em meio a conflitos entre grupos e tribos diferenciados, como foi na Somália, e ainda, o interesse econômico de certos Estados. 31 RODRIGUES, Simone Martins. Intervenção humanitária em conflitos internos: desafios e propostas. Não Publicado. Páginas: 01-11. 32 RODRIGUES, Simone Martins. Intervenção humanitária em conflitos internos: desafios e propostas. Não Publicado. Páginas: 01-11. 29 2.1.4 O fracasso das Operações de Paz da Somália A primeira operação das Nações Unidas na Somália (ONUSOM I), ostensivamente uma tradicional missão de paz, demonstrou suas limitações quando atuando em ambiente hostil. Apesar de o Conselho ter estabelecido a operação em abril de 1992 33, os acordos acerca da designação de infantaria não foram alcançados até meados de agosto (em princípio, 500 haviam sido designados). Sem consultar os envolvidos no conflito, o Conselho autorizou a expansão da ONUSOM para 3.500 no fim de agosto34 e depois para 4.219 em setembro. Essas ações antagonizaram os envolvidos e colocaram em risco o pouco que os acordos iniciais já tinham alcançado.35 A esta altura, a ONUSOM compreendia apenas 54 observadores militares e 839 soldados e a força nunca conseguiu avançar além do aeroporto da capital da Somália, Mogadíscio. Havia muito pouco que a missão podia fazer dado ao colapso que o governo já tinha sofrido. Além disso, as facções hostis constantemente atacavam ospeacekeepers das Nações Unidas. Conforme a crise humanitária piorava, a força de manutenção de paz se tornava incapaz de cumprir sua própria ordem que mandava monitorar o cessar-fogo, proteger os integrantes da ONU e resguardar suas atividades de assistência para socorro Apesar da existência da United Task Force (UNITAF)e da coalizão multinacional liderada pelos Estados Unidos que foi autorizada a cooperar trabalhando lado a lado com a UNOSOM, ela não tinha como se manter e se abastecer. Em face a situação de maior deterioração dos direitos humanitários, em dezembro de 1992, o Conselho de Segurança autorizou que os Estados Membros “usassem todos os meios necessários para 33 UN Document S/RES/751 (1992), 24 de abril de 1992. 34 UN Document S/RES/775 (1992), 28 de agosto de 1992; UM Document S/24480, The situation in Somália: report of Secretary-General, 24 de agosto de 1992, p37 35 Fighting for hope in Somália, Peacekeeping and Multinational Operation., n. 6, Oslo: Norsk Utenrikspolitisk Institut, 1995,p.28. 30 estabelecer, o mais rápido possível, ambiente seguro para a atuação das operações humanitárias na Somália com base no Capítulo VII da Carta”. 36 2.2 Atuação do Conselho de Segurança Em dezembro de 1992 o Conselho de Segurança aceitou uma oferta dos Estados Unidos para liderar uma operação militar para permitir a ajuda humanitária, fazendo com que os líderes dos clãs e ladrões parassem de interferir no esforço internacional em distribuir comida para os somalis que morriam de fome. Aqui fica uma dúvida: porque tal interesse estratégico na Somália ,uma país pobre, sem nenhuma influência no mundo? Havia outros países na região em situação pior, como Angola. Especulo: exploração do subsolo rico em petróleo? A intervenção foi autorizada a partir da resolução 794 do Conselho de Segurança, invocando o capítulo VII para autorizar o estabelecimento da UNITAF37 (Unified Task Force). Pela Resolução 794, as Nações Unidas reconheceram que a situação na Somália estava se deteriorando, e, devido à complexidade da questão, requeria uma resposta excepcional e imediata. A magnitude da tragédia humana causada pelo conflito criou obstáculos para a distribuição de assistência humanitária constituindo assim uma ameaça à paz e segurança da comunidade internacional. Com essa justificativa, o Conselho de Segurança autorizou o uso de todos os meios de força necessários para estabelecer, o mais rápido possível, um ambiente seguro para a distribuição de ajuda humanitária, sendo permitido o uso da força militar. Esta Resolução foi a primeira a estabelecer uma operação explicitamente sob o Capítulo VII (que trata dos casos de ameaça à paz e à segurança internacionais) e contou com o apoio do Conselho bem como dos membros africanos. 36 UN Document S/RES/794 (1992), 3 de dezembro,1992 37 A UNITAF era constituída de 24 países que desembarcaram em Mogadíscio em dezembro de 1992. Visava diminuição da fome reduzir o número de mortos. 31 A ONU já havia, mais cedo no mesmo ano, provido uma pequena força de peacekeeping, autorizada pela Resolução 775 (28 de agosto) que tinha se provado incapaz de proteger as operações de ajuda que vinham de fora (como a UNITAF). A operação não foi solicitada por um governo que pudesse dizer ser o representante do Estado soberano da Somália, ela foi iniciada pelo Conselho de Segurança por pedido de organizações e Estados- membros. Os Estados Unidos proveram a maioria das forças armadas, que receberam o codinome Operation Restore Hope, outros países do leste também contribuíram com pequenas contingências militares. A intervenção fez com que fosse possível pôr fim à fome na maioria do país com poucas mortes e feridos. Seu comando principal era que todos os partidos, movimento e facções somalis cooperassem com os esforços das Nações Unidas (por meio de suas agências especializadas e organizações humanitárias) no sentido de garantir a liberdade de locomoção das tropas especialmente na região de Mogadíscio.38 Na primavera de 1993, no entanto, as Nações Unidas tiveram que adotar violenta ação militar contra um líder de um dos clãs que disputava o poder. Os apoiadores desse chefe estavam amplamente armados e já teriam supostamente atacado e ferido soldados membros das Nações Unidas. Um grande número de civis foi morto e ferido no curso desta ação, o que fez com que críticas fossem levantadas a respeito do mandato em questão das Nações Unidas e, particularmente, se a ONU havia extrapolado sua responsabilidade ao se envolver diretamente na guerra civil somali ao não definir precisamente o teor do mandato contido na Resolução. A Carta da ONU prevê os meios pacíficos de resolução de conflitos no Capítulo VI. É estabelecido que fracassados todos os meios pacíficos, o Conselho pode optar por outras medidas para que suas decisões sejam cumpridas. Essas medidas podem não 38 S/RES/775 (1992) 32 envolver o emprego de forças armadas ou se tratarem de ações militares intervencionistas, porém o uso da força é repelido no artigo 2 da Carta :“todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso de força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado ou qualquer outra ação incompatível com os propósitos das Nações Unidas”. Não há, no entanto, nenhuma especificação sobre o tipo ou extensão das tropas a serem usadas numa ação militar. As ações militares da ONU têm a função de forçar as partes combatentes a concordar com um cessar-fogo por isso seria necessário mais que uma força de manutenção de paz. Esse uso da força foi autorizado pela primeira vez na Somália. No mesmo período em que a ONU ficou marcada pela desorganização de suas agências operacionais e pela falta de vontade política por parte das grandes potências, o presidente Siad Barre fugia para o Quênia e era adotada a Resolução 794. A situação da Somália era caótica e mesmo assim o pessoal da Organização foi retirado da Somália em janeiro de 1991 sob a alegação de que lhes faltava condições seguras em Mogadíscio. O apoio humanitário foi deixado por conta de organizações não-governamentais e da Cruz Vermelha. Mesmo depois de o Estado da Somália ter entrado em colapso, sem governo reconhecido, não houve a destinação do dinheiro designado para fins humanitários devido ao comportamento inerte do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Mesmo assim a sociedade internacional ainda não havia se mobilizado para a questão. O ambiente para a atuação de manutenção da paz se tornou extremamente perigoso, demandando mais autoridade para o uso da força, o que mistura os princípios das operações de manutenção da paz com ação coercitiva. Então, a permissão para utilização de todos os meios de força na Somália não se deu em último caso, depois de fracassados todos os meios pacíficos de resolução de conflitos. Foi uma operação ineficiente desde o momento em que não havia paz para ser mantida. 33 Ainda em 1993, a confusão crescente das tropas das Nações Unida em tentar prender o líder de um dos clãs guerrilheiros estava provocando controvérsias fazendo com que as missões humanitárias internacionais perdessem sua credibilidade. Em 5 de junho, forças sob o comando de Aidid atacaram forças paquistanesas em Mogadíscio. O Conselho de Segurança denunciou Aidid por ter cometido crimes de guerra. O comandante americano frente a ONUSOM II proclamou Aidid um fora da lei e instituiu uma recompensa por sua captura. Ele foi muito criticado, pois esse ataque foi interpretado como umfavorecimento a uma das facções em luta.39 Alguns membros do congresso dos Estados Unidos exigiram que o presidente Clinton retirasse os militares da Somália. Porém, em agosto de 1993, mais combatentes foram despachados para auxiliar a perseguição a Aidid. Tudo o que havia sido alcançado estava em perigo de se perder dada essa ‘virada’ nos acontecimentos. O presidente americano anunciou a retirada das tropas dentro de seis meses. A Somália tinha se tornado um protetorado das Nações Unidas, menos quanto ao nome. Não apenas a comunidade internacional interferiu militarmente na Somália, mas também as Nações Unidas tomaram para si a responsabilidade de governar o país até o momento que o Estado somali pudesse ser reconstruído (RES 814/1993). 40 O governo consistia de um comitê de ONGs, um comandante e um mensageiro da ONU, marcando a partida da era pós-colonial ,na qual a intervenção era um proibição internacional absoluta (os Estados são independentes quanto à administração de seus assuntos e as interferências externas são violações de suas prerrogativas e ao princípio da soberania), para a autorização o 39 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 40 Solicita ao Secretário Geral com a assistência de todas as entidades relevantes das Nações Unidas, oficiais e agências especializadas, que promovam assistência humanitária para o povo da Somália com intuito de reabilitar suas instituições políticas e sua economia, incluindo em particular: a) assistir a repatriação dos refugiados e deslocados da Somália; b) assistir o povo da Somália a promover a reconciliação política pela participação em todos os setores da sociedade e o re-estabelecimento de instituições nacionais e regionais e administração civil em todo o país; c) assistir o re-estabelecimento da polícia somali visando a manutenção da paz, estabilidade e ordem, incluindo investigação quanto às sérias violações da lei internacional humanitária; d) assistir o povo somali no desenvolvimento de um programa de remoção de minas; e)desenvolver atividades de informação pública em apoio aos atos das Nações Unidas no país. 34 uso da força militar visando a reconstrução de um país. A intervenção humanitária passa a ser ação legítima da sociedade internacional à medida que se observa situações de extremo sofrimento humano. As situações caóticas pelas quais passou a Somália, onde o Estado deixou de ter comando, são mesmo justificativas para tamanha intervenção militar tendo por base apenas a lei internacional, desde que haja bons prospectos de que a ordem pode vir a ser restaurada e o Estado trazido de volta à existência em resultado de tais ações? O empreendimento de ações com caráter coercitivo, baseadas no Capítulo VII, desvincula as operações de manutenção da paz de necessidade do consentimento. As Nações Unidas ainda justificam sua atuação como sendo uma resposta internacional para uma “ameaça a paz mundial” cuja repercussão afetou a segurança de toda uma região. As ações foram desproporcionais, em minha opinião. Não havia razões óbvias de paz e segurança (A Intervenção Humanitária surgiu como uma medida de segurança internacional, sendo autorizada pelo Capítulo VII da Carta no qual são estabelecidas as funções do Conselho de Segurança: garantir assistência humanitária, defender os direitos humanos tendo como sua função principal a garantia da segurança e da paz) que justificassem a intervenção da Somália daquela forma, certamente nenhuma que se comparasse ao caso Iraque-Kuwait, que foi bem pior. O presidente americano caracterizou a operação Restore Hope como uma reação positiva dos Estados Unidos e de outros países aos apelos feitos pelas agências humanitárias por tropas de fora que pudessem prover segurança para alimentar o povo. O secretário de defesa a enquadrou como uma missão claramente humanitária e tenta provar seu argumento ao dizer que sempre respeitaram a soberania e a independência somali. Esse foi um 35 comprometimento americano: não clamar para si qualquer direito a soberania somali por ter ocupado o território, prometendo não permanecer no país mais do que o necessário para assegurar assistência humanitária. 3 REFLEXÕES SOBRE A INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA NA SOMÁLIA 3.1 A ética da Intervenção Humanitária São esses os problemas éticos mais graves de uma intervenção humanitária: a) a seletividade política do Conselho de Segurança que opta por intervir em alguns países e em outros não; b) a complexidade das guerras civis, conflitos que ao invés de envolver as forças armadas de dois Estados, são mais caóticas, não se sabe quem são os combatentes, o direito humanitário não é respeitado. As guerras civis são muito mais imprevisíveis e de difícil controle. 3.1.1Seletividade Política dos Estados e da ONU Como já mencionado anteriormente, a bipolaridade do mundo regeu as relações internacionais por muitos anos e fez com que os direitos humanos fossem usados como arma ideológica na disputa entre o bloco oriental e o bloco ocidental. A universalização dos direitos humanos colidiu com essa política de poder. Tal divisão ideológica impedia a comunidade internacional de punir os governos que violassem os direitos humanos.41 Todos temiam uma terceira guerra mundial. Têm-se relatos de que alguns que tentaram divulgar suas idéias e não concordavam com o sistema imposto, foram mandados para campos de concentração. Só com a queda do muro de Berlim, o mundo passou a se revoltar contra seus líderes opressores e esses a serem (nem sempre) devidamente punidos. O general comunista Pinochet (acusado de perseguição política e assassinatos no Chile), Nicolai Ceausescu (ele e sua mulher acabaram presos e submetidos a um julgamento 41 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Direitos Humanos no século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais. 37 sumário. Condenados à morte, foram executados diante das câmeras de TV), Slobodam Milosevic (quando pagando pelos assassinatos cometidos na Bósnia- Hersegovina morreu na prisão). E mesmo assim muitos outros foram “deixados de lado”. Os diferentes tratamentos em relação às violações dos direitos humanos revelam a existência de políticas seletivas, de acordo com a conveniência e interesses políticos das grandes potências. Tanto se mobilizam para pôr fim a perseguições de minorias étnicas e religiosas como se mostram indiferentes a esses acontecimentos. A seletividade decorre da combinação do comprometimento dos Estados com as normas de proteção dos direitos humanos, previstas nos tratados internacionais, com a política de poder que privilegia os seus interesses particulares.42 Outro fator que pode explicar a falta de atitude dos governos em relação à violação dos direitos humanos na esfera internacional, pode ser uma “cumplicidade” em relação ao Estado infrator. Mesmo aqueles que poderiam fazer alguma coisa se sentem paralisados pelo medo de vir a sofrer algum tipo de acusação de desrespeito aos direitos humanos da parte deles. A análise das formas de se garantir a segurança da população civil na Somália, com o auxílio da análise comparada de outros casos, é extremamente relevante. Não só há todo um histórico de massacres, como hoje milhões de pessoas estão sendo mortas ou expulsas de suas residências. Algumas recebem ajuda de organizações internacionais e outras ficam completamente desamparadas, refugiados continuam desprotegidos. Será que não há nenhuma solução realista paratodos estes problemas? Não obstante tantas limitações, os direitos humanos são cada vez mais objeto de interesse geral. O avanço da tecnologia de informação nos permite uma visão imediata do que se passa nos Estados, da violência, 42 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Fabris,1997. 38 assassinato de opositores do governo. Já que os Estados não são os únicos componentes do novo espaço internacional dos direitos humanos, é mais real que organizações não- governamentais formem-se em nível transnacional cooperando com o Estado. A pressão das organizações não-governamentais é decisiva para fazer com que os governos respeitem as políticas de defesa dos direitos humanos.43 A importância de se discutir o tema é inegável: constantemente vemos reportagens nos meios de comunicação nacionais e internacionais, filmes e documentários trazendo abordagens um tanto ecléticas. Questões como proporcionalidade, custo, capacidade, conseqüências indiretas precisam ser decididas antes de tomar qualquer ação ou política.44 Além do argumento contrário à intervenção, no sentido de que ela pode vir a promover somente o interesse do autor da intervenção, alguns condenam a intervenção explicitamente por violar o princípio de soberania45. Soluções judiciárias ou arbitrais também são recomendadas se a controvérsia não puder ser resolvida pela via diplomática, mas muitas vezes não são buscadas. Frequentemente as ações do Conselho de Segurança sofrem com a não determinação das condições sob as quais o poder coativo deve ser exercido, com a falta de indicação clara das pessoas que devem exercê-lo e falta de planejamento que deve ser seguido, também com a imprecisão dos mandatos estabelecendo quanta força as autoridades terão competência para dispor ao exercer o poder. Ou seja, a falta de disciplina do uso da força na experiência jurídica. Enxergo a obrigação da não-intervenção como respeito ao 43 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 184. 44 BETTATI, Mário. O direito de ingerência. Mutação da ordem internacional. Instituto Piaget, 1996. 45 BOBBIO, Norberto. Il problema della guerra e lê vie della pace. Bologna. 39 direito de autodeterminação, neste caso, a ética envolvendo as intervenções não pode levantar dúvidas.46 São apontados como argumentos favoráveis à intervenção: a desintegração e fragmentação de Estados que coloca em questão a habilidade dos governantes para satisfazer as obrigações que possuem em relação à população local e à comunidade internacional.47 Além disso, o reconhecimento de valores comuns, proteção dos direitos humanos e a preservação do meio ambiente criam incentivos para aumentar o interesse internacional e ações coletivas para a solução de problemas comuns. As vítimas de um conflito devem se beneficiar da assistência ou intervenção, independente da sua origem, desde que essa ajuda ou intervenção seja puramente humanitária e destinada a exercer o direito aos cuidados, o direito à vida. A ética e a moral não podem, de forma alguma, ser afastadas dando lugar a interesses políticos ou pessoais. O interesse deve ser a preservação da vida e dos direitos das gerações futuras. Os tipos de intervenção e as operações de paz, num momento de guerra ou no pós-guerra, devem ser cuidadosamente estudados. 46 JACKSON, H.Robert. Humane intervention: armed humanitarianism. International Journal.Canadian Institute of International Affairs, 27 de out. 1994. 47 LYONS, Gene M. Introduction: international intervention, state sovereignty, and the future of international society. 40 3.1.2 A complexidade das guerras civis A amplitude de determinadas violências coletivas ou de conflitos armados internos ou internacionais geram situações críticas com numerosas vítimas. Sua sobrevivência depende de uma assistência rápida e eficaz. As guerras hoje são diferentes das tradicionais guerras entre Estados. Os conflitos armados internos são motivados por questões étnicas, religiosas.Os civis deixaram de ser alvo acidental para se tornarem alvo de violência o que faz com que a população se arme, dificultando a distinção entre combatentes e não-combatentes. Esses conflitos que faziam parte de assuntos internos dos Estados, passam a fazer parte das prerrogativas do Conselho de Segurança da ONU.48 A dificuldade de regular os direitos das vítimas de conflitos em um país é clara. O direito humanitário de proteção às vítimas tem seu respaldo nas Convenções de Genebra de 1949 e em dois protocolos de 1977; um trata, dentre outras coisas, das vítimas de conflitos armados internacionais e o outro das vítimas de conflitos não internacionais. A classificação desses conflitos também não é simples. A maioria deles envolve um enorme número de pessoas, etnias, religiões diferentes lutando por objetivos diferentes. De acordo com o Programa de Desenvolvimento da ONU, entre 1989 e 1992, com o fim da Guerra Fria, aproximadamente 82 conflitos armados eclodiram no mundo e , destes, apenas três eram entre Estados.49 Isso decorre principalmente do ressurgimento do nacionalismo e da busca da autodeterminação, que colocam em oposição facções dentro de um mesmo país. A luta passa a acontecer não só entre exércitos nacionais, mas entre grupos de guerrilhas. As interferências ilícitas, as guerras fomentadas, as fronteiras mantidas à força, 48 RODRIGUES, Simone Martins. Intervenção humanitária em conflitos internos: desafios e propostas. Disponível pelo E- mail :smartinsrodrigues@hotmail.com . Tese não publicada. 49 HIPPEL, Karin von. The resurgence of nationalism and its intenational implications. p.196. 41 a repressão a movimentos nacionalistas, tráfico de armas, hoje se traduzem em destruição, miséria e conflitos armados.50 Foram muitas as dificuldades enfrentadas pelas tropas que atuaram na Somália. Como se encontravam em ambiente hostil, o êxito da missão ficou comprometido por não haver uma boa relação com a sociedade local. Talvez isso decorra de uma falta de treinamento adequado das tropas que eram forças de combate de elite, e não treinadas para missões humanitárias. Para afastar essas dificuldades, seria necessária a definição clara das circunstâncias da crise e o tipo de atuação mais apropriada que a ONU deveria autorizar. As tropas americanas foram colocadas em posição vulnerável, passaram a agir de forma agressiva e seu objetivo principal passou a ser o resgate de seus soldados. 3.2 Formas alternativas à Intervenção Com a modificação no caráter dos conflitos internacionais, os meios tradicionais de contenção de conflito se mostram insuficientes nas crises atuais. Novas estratégias precisam ser elaboradas para reduzir as conseqüências humanitárias dos conflitos civis51. 50 RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos. A prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.p.7. 51 RODRIGUES, Simone Martins. Intervenção humanitária em conflitos internos: desafios e propostas. Disponível pelo E- mail :smartinsrodrigues@hotmail.com . Tese não publicada. 42 3.2.1 Assistência Humanitária O direito da assistência humanitária é produto de costume internacional, formado a partir da aprovação pela Assembléia Geral da ONU, em 1988,
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