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analisar o padrão de atuação do CSNU em casos de conflito na década de 1990 (essas situações serão descritas com detalhes no Capítulo 3), é possível notar que já não se questiona a legitimidade de acionamento dos mecanismos da Carta das Nações Unidas: a comunidade internacional pode agir para debelar situações como as da Somália, da Bósnia ou de Ruanda. Fonseca acrescenta, porém, que “outro ponto inevitável é que, à medida que os conflitos afetam diferenciadamente os interesses estratégicos das potências, dos que comandam o processo de segurança coletiva, formas de solução do conflito estarão necessariamente contaminadas por variáveis geopolíticas”49. 46 Idem. p. 153. 47 Idem. p. 159. 48 TESÓN, Fernando. The liberal case for humanitarian intervention. In: KEOHANE, Robert et al. Humanitarian Intervention: Ethical, Legal and Political Dilemmas. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 104. 49 Idem. p. 162. 41 considerações sobre os conceitos de soberania, legalidade e legitimidade Outro exemplo mencionado pelo autor refere-se às questões de direitos humanos, que alcançam “sentido universal” e que são objeto de ações legítimas da comunidade internacional, amparadas na Carta das Nações Unidas e em várias convenções internacionais. Para Fonseca, no pós-Guerra Fria houve o “reforço da legitimidade”, observado a partir de três fenômenos: a universalização dos direitos humanos, reconhecida pela Conferência de Viena; a “relativa descontaminação” do tema da condição de instrumento político; e o fato de que, como no caso do meio ambiente, se multiplicam ONGs, muitas com alcance transnacional, que defendem os direitos humanos como um valor em si. O autor conclui com a observação de que a legitimidade é fundamental para a compreensão do comportamento dos Estados no mundo contemporâneo, pois “cria balizas e constrangimentos mesmo para os que têm poder” e que “é razoável supor que se reforçará a tendência a que se criem normas crescentemente estritas”50. É importante salientar aqui, conforme Fonseca Jr., que o tema da legitimidade liga o mundo da cultura ao mundo da política e tem, portanto, forte carga de valor: “É um dos mecanismos pelos quais se estabelecem as bases para o juízo sobre os limites do ‘certo’ e do ‘errado’ em política e os limites do politicamente possível51.” No entanto, “a força dos argumentos legítimos nasce em parte do fato de que possam ser generalizados e, portanto, ter alcance universal”52. 1.4 A questão da legalidade Segundo Gelson Fonseca Jr., “lógica e historicamente, a legitimidade como espaço de proposição precede e acompanha a legalidade como fonte de obrigação”53. A legalidade, por sua vez, é importante por várias razões. A principal delas diz respeito ao fato de que o rule of law é o principal propósito do Direito Internacional. Segundo o verbete “legalidade” do Dicionário de Política: “Na linguagem política, entende-se por legalidade um atributo e um requisito do poder, daí dizer-se que um poder é legal ou age legalmente ou tem o 50 Idem. p. 163. 51 Idem. p. 187. 52 Idem. p. 207. 53 Idem. p. 187. ana maria bierrenbach 42 timbre da legalidade quando é exercido no âmbito ou em conformidade com as leis estabelecidas ou pelo menos aceitas54.” Bobbio observa que nem sempre se faz distinção, no uso comum, entre legalidade e legitimidade. Costuma-se falar em legalidade quando se trata do exercício do poder, e de legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: “O poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente, o poder legal é um poder que está sendo exercido em conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato. O contrário de um poder legal é um poder arbitrário55.” Bobbio faz referência a Weber, para quem somente no Estado moderno se pode encontrar a concretização plena do princípio da legalidade, pois este se organiza segundo critérios legais e racionais, contrariamente às formas tradicionais e carismáticas, em que a obediência é devida à pessoa do senhor ou à pessoa do chefe. No Estado moderno, deve-se obediência “ao ordenamento impessoal definido legalmente e aos indivíduos que têm funções de chefia neste ordenamento em virtude da legalidade formal das prescrições e no âmbito das mesmas”56. Bobbio distingue três níveis nos quais a legalidade opera: o primeiro diz respeito à relação entre a lei e a pessoa do “príncipe”: a legalidade, nesse caso, significa que o “príncipe” se submete às leis. O segundo nível refere-se à relação entre o “príncipe” e os seus súditos, no sentido de que os governantes devem exercer seu poder unicamente por meio da promulgação de leis que tenham a validade para todos e que tenham por objetivo o bem comum. O terceiro nível diz respeito à aplicação das leis em relação a casos particulares. Nesse nível, a legalidade consiste em exigir que os juízes definam as controvérsias com base em prescrições definidas na forma de normas legislativas. Conforme Bobbio, a expressão tradicional desse aspecto do princípio de legalidade é a máxima nullum crimen, nulla poena sine lege, ou seja, não há crime nem pena sem leis anteriores que os definam. A última categoria mencionada por Bobbio vem ao encontro de exemplos, nas relações internacionais, de situação em que havia legitimidade, mas cuja legalidade foi contestada. Os Tribunais Internacionais de Nuremberg e Tóquio, estabelecidos ao final da 54 BOBBIO, N. Op. cit., 1992. p. 674, 55 Idem. 56 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Apud BOBBIO, N. Op. cit., 1992. p. 675. 43 considerações sobre os conceitos de soberania, legalidade e legitimidade Segunda Guerra Mundial, assim com os Tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e para Ruanda, na década de 1990, sofreram críticas quanto à sua legalidade, pelo fato de representarem aplicação ex post facto da lei, embora sua legitimidade fosse praticamente inquestionável. Em Nuremberg, houve condenações por crimes contra a humanidade, tipo penal que não existia antes de ser instituído pelo próprio Estatuto que criou o Tribunal. Zahar e Sluiter, autores de obra sobre o Direito Penal Internacional, criticam os Tribunais ad hoc: If a legal system functions more or less smoothly, and if it is generally accepted, then it is legitimate. Lack of that kind of foundation is not tantamount to a lack of legitimacy in the pragmatists’view. Witness the hold Nuremberg has had on popular imagination, despite what scholars might say about victor’s justice and the other shortcomings of that process. In international criminal law, where there is no constitution, there is intuition about what is right and what is wrong. Pragmatism would have us brush aside the dominant rhetoric of the tribunals, namely the principle of legality, and simply accept what works. Despite the availability of this alternative view, we prefer the proposition that tribunal law must, in the first place, be assessed with reference to its foundations. The creation or of legal principles by tribunal judges should be identified for what it is (…). Where there is a fog of legality, this should also be identified. Pragmatism may well be the only realistic response to many questions of legitimacy, but it is a philosophy that has nothing to say about those situations where actual foundations in prior law are found to exist57. O Embaixador Gelson Fonseca Jr., preocupado com a questão da transposição dos conceitos da legitimidade e da legalidade do plano interno para o plano internacional, salienta que nas relações entre Estados o sistema legal não é coercitivo e que não há tribunais que resolvam controvérsias de forma compulsória. O próprio processo de criação das normas é disperso, pois lhe faz falta um órgão legislativo central e único. No âmbito internacional, a adesão às leis é, portanto,