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Prof. Dr. Wagner de JP 1 Introdução – O aparecimento de O2 na Terra primitiva possibilitou um grande salto na eficiência de produção de energia por parte dos organismos vivos em função de o O2 ser um poderoso agente oxidante. Contudo, a distribuição de O2 para todas as células dos organismos vertebrados torna-se um problema, já que a simples dissolução de O2 no plasma não é capaz de suprir as necessidades metabólicas de todos os tecidos com a devida eficiência. Sendo assim, a natureza desenvolveu nos vertebrados um eficiente sistema destinado a distribuir o O2 aos tecidos, o sistema circulatório. Um homem adulto de 70 quilos apresenta aproximadamente 6 litros de sangue, um tecido formado por diferentes tipos celulares incluindo o eritrócito. Os eritrócitos são células discoidais côncavas nas quais está presente uma proteína especializada em interagir com o O2, a hemoglobina. O tecido muscular esquelético, em função de sua alta taxa metabólica dispõe de uma proteína de reserva de O2 similar à hemoglobina, a mioglobina. A mioglobina e a hemoglobina apresentam relações evolutivas, contudo, a hemoglobina possui quatro cadeias polipeptídicas, enquanto que a mioglobina possui somente uma. A hemoglobina é especializada em transportar O2, ao passo que a mioglobina atua como reserva de O2, a primeira apresenta quatro grupos heme e a segunda, somente um. As porções heme são grupos prostéticos dessas proteínas e são o sítio onde ocorre a interação com o O2, são formados por um anel de protoporfirina, a qual por meio de quatro átomos de nitrogênio coordena um átomo de ferro em seu estado ferroso (Fe+2). A interação desses átomos de nitrogênio com o ferro impede que esse metal assuma o estado férrico (Fe+3), o qual não tem afinidade pelo O2, ao contrário do Fe +2. A captação de oxigênio por parte da hemoglobina – A constante de dissociação do oxigênio no plasma é de 0,03, esse valor indica que para cada mmHg (milímetros de mercúrio) de pressão parcial de O2 haverá 0,03 mililitros de O2 dissolvidos em 100 mL de plasma na temperatura de 36 graus. Assim, na pressão alveolar de O2 igual a 100 mmHg haverá tão somente 0,3 mL de O2 para cada 100 mL de plasma. Esse valor é extremamente baixo e não atende às demandas de O2 por parte de quase todos os tecidos corpóreos. Assim, é razoável supor que deve haver uma forma de transporte de O2 que seja adequada às necessidades metabólicas do organismo humano. De fato, a função de transporte de O2 fica a cargo da hemoglobina uma vez que a constante de dissociação do O2 na hemoglobina é de 1,34, sendo portanto muito maior do que a do plasma. A dinâmica de oxigenação dos tecidos implica necessariamente na capacidade da hemoglobina em ligar-se ao oxigênio nos alvéolos pulmonares e posteriormente desligar-se dele no ambiente dos tecidos. Para cumprir essa tarefa a hemoglobina apresenta alta afinidade por oxigênio quando a pressão parcial de oxigênio (PO2) é alta, essa situação está presente nos alvéolos pulmonares e impulsiona o deslocamento do oxigênio dos alvéolos para os capilares pulmonares. A situação inversa, ou seja, o desacoplamento do oxigênio da molécula de hemoglobina ocorre nos tecidos em função da baixa PO2. A molécula de hemoglobina melhor descrita (Hb-A) é formada por um tetrâmero constituído por dímeros de cadeias idênticas (11 e 22) que relacionam-se entre si de forma não covalente (pontes de hidrogênio, interações hidrofóbicas, por exemplo) formando um tetrâmero. As subunidades são formadas por 141 resíduos de aminoácidos enquanto que as subunidades apresentam 146 resíduos em sua composição e tanto a subunidade quanto a comportam um grupo heme. A hemoglobina ocupa 35% do conteúdo de um eritrócito e é sintetizada no interior dos eritrócitos jovens (eritroblastos) por meio de uma série de etapas complexas. A porção globina da molécula é sintetizada no citosol do eritroblasto, o grupo heme por sua vez é sintetizado nas mitocôndrias. In vivo, a hemoglobina pode apresentar duas estruturas quaternárias distintas. Uma é a estrutura T (tensa), característica da forma desoxigenada (desoxi-Hb) cuja afinidade ao oxigênio é baixa, a outra é a estrutura R (relaxada), característica da forma (oxi-Hb), nessa forma a molécula de hemoglobina apresenta alta afinidade pelo oxigênio (Figura 1). Nos eritrócitos, as hemoglobinas encontram-se num equilíbrio das duas formas; a concentração de formas parcialmente ligadas é baixa. Estrutura da molécula de hemoglobina humana, os grupos heme estão representados em verde. Inseridos em cada globina representadas em amarelo azul, verde e vermelho. PDB: 1A3N Bioquímica do transporte de gases Prof. Dr. Wagner de JP 2 A hemoglobina interage com o oxigênio de forma cooperativa – A hemoglobina deve necessariamente acoplar-se de forma eficiente ao oxigênio no ambiente dos alvéolos pulmonares e desacoplar o mesmo com igual eficiência no ambiente tissular. Para que essa função seja plenamente cumprida, a hemoglobina apresenta um comportamento particularmente importante, ela é capaz de sofrer uma transição entre o estado T e R na medida em que moléculas de oxigênio vão progressivamente se ligando a seus grupos heme. Essa propriedade denomina-se cooperatividade e é demonstrada na figura 2. Para explicar a propriedade cooperativa da molécula de hemoglobina dois modelos foram propostos, o modelo coordenado e o modelo seqüencial. No primeiro a ligação de oxigênio induz mudanças estruturais que alteram a energia livre relativa entre as duas formas, T e R mudando o equilíbrio em favor da forma de alta afinidade (forma R). Os estados T e R são mantidos em função de pares iônicos que se situam nas subunidades 11 e 22, quando ocorre a transição de T para R, outros pares iônicos assumem as superfícies das subunidades 11 e 22. De fato, o estado T é mantido por 3 resíduos de aminoácidos (alfa2 Lis40, beta1 His146, beta1 Asp94) que formam duas pontes salinas. Partindo da estrutura desoxigenada, a ligação parcial de oxigênio (duas ou três moléculas) é suficiente para mudar o equilíbrio do estado T para o estado R, que capturará os oxigênios restantes com maior afinidade. Contrariamente, começando com a forma totalmente oxigenada, a perda de um ou dois oxigênios muda o equilíbrio de R para T, estimulando a liberação dos oxigênios restantes. Quando a primeira molécula de oxigênio liga- se a um grupo heme em uma subunidade da hemoglobina, essa subunidade sofre alterações conformacionais que são transmitidas para toda a molécula facilitando assim acepção de mais moléculas de oxigênio. Desse modo, a segunda molécula de oxigênio a ligar-se à hemoglobina encontra mais facilidade que a primeira e a terceira, liga-se mais facilmente que a segunda até que a quarta molécula de oxigênio a encontra pelo menos 20 vezes mais facilidade em ligar-se ao heme, quando comparada com a primeira molécula de oxigênio a interagir com o primeiro heme da molécula de hemoglobina. Esse mecanismo pelo qual o oxigênio é capaz de alterar a conformação espacial de uma 20 40 60 80 100 100 50 Pressão de O2 no sangue arterial Pressão de O2 no sangue venoso % d e s a tu ra çã o c o m O 2 Pressão parcial de O2 Figura 2 - Curva de saturação pelo oxigênio da hemoglobina e da mioglobina. A curva azul indica a cooperatividade da molécula de hemoglobina frente ao oxigênio. A forma sigmóide indica a transição entre os estados T (baixa afinidade pelo O2 nos tecidos e R, alta afinidade pelo O2nos alvéolos pulmonares. A curva vermelha refere-se ao comportamento da mioglobina frente ao O2. A mioglobina não é uma proteína de transporte de O2, mas sim de reserva . Assim sendo, a curva é distinta da hemoglobina. N CH CH 2 CH 2 COO- CH 3 N CH 3 CH 2 CH 2 COO- N N HC C H HC CH 3 CH CH 2 CH 3 CH CH 2 Fe+ 2 A B C Figura 1 – As estruturas relacionadas ao transporte de oxigênio. Em “A” eritrócitos e sua forma côncava; em “B” molécula de hemoglobina, destacando os dímeros 11 e 22 em cores amarelo, azul, salmão e verde; em “C” a estrutura do grupo heme com o átomo de ferro situado ao centro do anel de proptoporfirina. 1 1 2 2 Prof. Dr. Wagner de JP 3 subunidade da hemoglobina, de modo a transmitir essa alteração para as demais subunidades, tornando-as mais capazes de aceptar outras moléculas de oxigênio chama-se regulação alostérica (do grego, allos=”outra”; stereos= “forma”). No modelo seqüencial o acoplamento de uma molécula de oxigênio a um dos grupos heme da hemoglobina aumenta a afinidade de ligação dos grupos heme restantes para outras moléculas de oxigênio, sem que ocorra uma total conversão do estado T para R (Figura 3) como propõe o modelo coordenado. Na verdade, nenhum dos dois modelos é capaz de explicar de forma satisfatória o comportamento da hemoglobina frente ao oxigênio, de modo que é necessário um modelo híbrido, uma vez que ela exibe característica do modelo coordenado e também do modelo seqüencial em determinadas circunstâncias. Por exemplo, quando três grupos heme da hemoglobina estão preenchidos com oxigênio encontra-se quase sempre no estado R, mostrando um comportamento compatível com o modelo coordenado. Contudo, quando somente um grupo heme está ocupado por oxigênio permanece no estado T, mas nessa condição a hemoglobina é capaz de ligar-se a outras moléculas de oxigênio com 3 vezes mais afinidade do que quando completamente desoxigenada, uma característica compatível somente com o modelo seqüencial. A interação do oxigênio com o Fe+2 presente no heme – O grupo heme consiste de um átomo de ferro inserido em um anel heterocíclico chamado de porfirina. O átomo de ferro é capaz de fazer seis ligações, sendo que quatro delas interagem com os nitrogênios do núcleo de porfirina. A quinta ligação do ferro ocorre com o anel de imidazol da histidina F8 que faz parte da porção globina da molécula de hemoglobina e, finalmente a sexta ligação do ferro ocorrerá com o oxigênio (Figura 4) Quando o oxigênio liga-se ao ferro no grupo heme o átomo de ferro se desloca para dentro do plano do grupo heme uma vez que altera o estado eletrônico do heme, encurtando assim em 0,1Å as pontes Fe-N-porfirina fazendo baixar a abóbada da porfirina (Figura 4). Esse efeito faz com que durante a transição TR, o Fe+2 arraste com ele o resíduo de histidina acoplado à hélice 8 (His-F8) à qual ele está covalentemente ligado. A ligação do oxigênio é que promove alteração do átomo de ferro. No estado desoxigenado, o ferro apresenta 5 ligantes – os quatro nitrogênios do grupo heme e a histidina proximal, e como já mencionado seu estado de valência é Fe+2 com spin alto e raio iônico de 2.06Å. No estado oxigenado, o ferro apresenta 6 ligantes – os 5 anteriores e agora a molécula de oxigênio, e está em um estado Fe+2 mas com spin baixo e raio iônico de 1.98Å (Tabela 1). O raio do átomo de ferro é relevante porque a distância dos átomos de nitrogênios ao centro do grupo heme é 2,03Å; isto implica que o ferro permanecerá no plano dos nitrogênios na oxi-Hb, mas não na desoxi-Hb. A ligação do oxigênio altera toda a estrutura da molécula de hemoglobina, de forma que a estrutura espacial da desoxihemoglobina e da oxihemoglobina são perceptivelmente diferentes. Em ambas as formas, as subunidades e fazem encontram-se em íntimo contato. As interações na interface 1-1 e seu equivalente simétrico 2-2 envolvem 35 resíduos de aminoácidos, enquanto que os da interface 1-2 e 2-1 envolvem 19 resíduos. O2 O2 O2 O2 O2 O2 O2 O2 O2 O2 Figura 3 – Esquema explicativo do modelo seqüencial. O acoplamento de uma molécula de oxigênio a uma subunidade da molécula de hemoglobina e alterações espaciais dessa subunidade (círculos coloridos). Essa alteração conformacional induz mudanças estruturais em subunidades vizinhas (quadrados com linhas em azul e cantos arredondados), aumentando sua afinidade em ligar-se ao oxigênio. Prof. Dr. Wagner de JP 4 O oxigênio altera a estrutura quaternária da hemoglobina – A ligação do oxigênio altera toda a estrutura do tetrâmero de hemoglobina, de forma que a estrutura espacial da desoxihemoglobina e da oxihemoglobina são espacialmente diferentes. Em ambas as formas, as subunidades e fazem contato extenso, esses contatos ocorrem por meio da ligação do oxigênio aos grupos heme de cada globina e também por meio das pontes salinas formadas pelos H+, que interagem com resíduos específicos de aminoácidos. Os contatos na interface 1-1 e seu equivalente simétrico 2-2 envolvem 35 resíduos de aminoácidos, enquanto que os das interfaces 1-2 e 2-1 envolvem 19 resíduos. Quando o oxigênio é ligado aos grupos heme da desoxihemoglobina, as subunidades de 11 e 22 da molécula, a qual permanece rígida, mudam levemente suas posições relativas e tornam-se mais próximas. Isso quer dizer que ocorre uma mudança na estrutura quaternária e as subunidades sofrem um processo de compactação. Como resultado disso, a molécula de oxihemoglobina apresenta uma estrutura mais compacta que a de desoxihemoglobina e a cavidade de aproximadamente 20Å de diâmetro formada pelas interações entre as subunidades 1-2 e 1-2 torna-se menor (Figura 5 ). A redução da cavidade central da molécula pode ser explicada pelo deslocamento das subunidades 1-2 e 2-1 na vigência do oxigênio, produzindo uma alteração na estrutura N N O2 Fe+2 + O2 Hélice F Hélice F Raio iônico de 2.06 Å His F8 His F8 Fe +2 Raio iônico de 1.98 Å Figura 4 - A ligação do oxigênio é acompanhada por uma mudança no estado do ferro. Em “A” No estado desoxigenado, o ferro possui 5 ligantes os quatro nitrogênios do grupo heme e a histidina proximal, e está num estado Fe ++ com spin alto e raio iônico de 2.06Å. No estado oxigenado, o ferro possui 6 ligantes – os 5 anteriores mais o oxigênio, e está em um estado Fe ++ com spin baixo e raio iônico de 1.98Å. O raio é importante porque a distância dos nitrogênios ao centro do heme é 2,03Å; isto implica que o ferro permanecerá no plano dos nitrogênios na oxi-Hb, mas não na desoxi-Hb. O Fe está 0,6Å acima do pano do centro do anel porfirínico abobadado. Na presença do oxigênio, o ferro desloca-se na direção do centro do anel, arrastando a histidina 8 e a hélice F a ela ligada. A B Em “B” o grupo heme de uma das subunidades da hemoglobina é mostrado no círculo em destaque e a molécula do oxigênio em azul e a hélice F mostrada em laranja. Note que a inserção do oxigênio no grupo heme causa alteração na subunidade da hemoglobina que se reflete para toda a molécula, causando alterações espaciais importantes que modificam as propriedades bioquímicas da molécula. Em “C” a estrutura espacial do heme. As esferas em cinza compõem os anéis porfirínicos, as esferas azuis representam os nitrogênios que coordenam o átomo de ferro,representado pela esfera laranja ao centro. As esferas vermelhas indicam resíduos de aminoácidos pertencentes à hélice F. C Tabela 1 – Propriedades das formas oxigenada e desoxigenada da Hb humana. Propriedades OxiHb desoxiHb Afinidade ao oxigênio Alta (k4=0,17mmHg) Baixa (k1=26mmHg) Estado de spin do ferro Spin baixo Spin alto Raio do Fe +2 1,98Å 2,06Å MWC Terminologia Estado relaxado (R) Estado tenso (T) k1=constante de ligação da primeira molécula de O2 ao heme; k4=constante de ligação da quarta molécula de O2 ao heme. Prof. Dr. Wagner de JP 5 quaternária. A oxigenação promove uma rotação de 15º de um dímero em relação ao outro (Figura 5 letra A) aproximando assim, as subunidades e estreitando o canal central da hemoglobina. Os dois hemes se aproximam enquanto os dois hemes se afastam um dos outros. Junto a essas mudanças os resíduos que ligam H+ nas cadeias e mudam de um ambiente relativamente hidrofílico para um relativamente hidrofóbico. Alguns átomos da interface 1-2 e 2-1 deslocam-se por uma distância de até 6 Å. A oxigenação provoca modificações estruturais quaternárias tão grandes, que os cristais de desoxiemoglobina se estilhaçam ao serem expostos ao oxigênio. Essa mudança conformacional da molécula de hemoglobina aumenta a tendência desses grupos protonados de perderem H+, isso que dizer que eles tornam-se ácidos mais fortes quando a hemoglobina é oxigenada, uma mudança que pode explicar o efeito Bohr que será discutido adiante. PDB: 1LFQ PDB: 1A3N 1 1 2 2 1 1 2 2 7,5º Diâm. Central 20 Å Diâm. Central 20 Å y y z q y x p z q 18 p 15º Figura 5 - Diagrama ilustrando a mudança na estrutura quaternária que acompanha a ligação de oxigênio à hemoglobina. Em “A” estrutura espacial da oxihemoglobina (à direita) e da desoxihemoglobina (à esquerda). A seta na cavidade central indica a alteração conformacional desencadeada pelo oxigênio. Em “B”, a oxihemoglobina apresenta uma ligeira mudança da posição do dímero 11 em relação ao dímero 22 (ou vice-versa). No diagrama da estrutura ligada os dímeros 11 estão superpostos, e os dímeros 22 representados em negro (não ligada) e vermelho (ligada). A posição do dímero 22 ligado é obtida pela rotação de 12-15° em torno do eixo P, deslocando 1Å para baixo ao longo de “p”. O eixo “p” é perpendicular ao eixo de simetria “y” e a relação entre os eixos de visão e os eixos moleculares padrões são mostradas no diagrama central inferior (Figura adaptada de Baldwin & Chothia, 1979). A B Prof. Dr. Wagner de JP 6 A Hemoglobina não transporta somente oxigênio – O efeito Bohr - No ambiente dos alvéolos pulmonares mais de 90% do oxigênio se difunde para o eritrócito ligando-se à molécula de hemoglobina. Uma pequena fração de oxigênio é transportada, dissolvida no plasma na forma física e obedece a lei de Henry, cujo enunciado refere que a quantidade de gás dissolvido em um determinado líquido, a uma determinada temperatura, é igual ao produto da pressão parcial desse gás no líquido, multiplicado por um coeficiente de solubilidade particular para cada mistura gás-líquido. No ambiente dos alvéolos pulmonares mais de 90% do oxigênio difunde-se através do eritrócito indo combinar-se com a hemoglobina. Uma pequena fração de oxigênio é transportado dissolvido no plasma na forma de solução simples, essa fração de oxigênio dissolvido ou fração física (Figura 6). Além de transportar praticamente todo o oxigênio dos pulmões aos tecidos, a hemoglobina transporta cerca de 20% do total de CO2 e H + formados nos tecidos até os pulmões e rins. Nos tecidos periféricos a hemoglobina capta H+ e CO2 e em altas concentrações de CO2 e baixos valores de pH, a afinidade da hemoglobina por O2 reduz dramaticamente. Inversamente, nos capilares pulmonares, à medida que o CO2 é excretado e o pH do sangue aumenta, a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio também se eleva. Esse efeito do pH e da concentração de CO2 interferindo na captação e liberação do oxigênio por parte da hemoglobina denomina- se efeito Bhor em homenagem ao fisiologista dinamarquês, seu descobridor. O efeito Bhor é, portanto, resultado do equilíbrio entre oxigênio e os outros ligantes que podem ser aceptados pela hemoglobina CO2 e H +. É necessário destacar que o H+ não interage no mesmo sítio que o oxigênio, ao passo que o oxigênio se liga ao íon Fe+2 do grupo heme, os prótons H+ligam-se a qualquer um dos vários resíduos de aminoácidos das porções globínicas da hemoglobina, com destaque para o resíduo His-146 (His HC3) das subunidades β. Quando esse resíduo se torna protonado ele forma um dos três pares iônicos que mantêm a conformação T. O par iônico mantêm e estabiliza a forma protonada do resíduo de histidina HC3, proporcionando um valor de pKa extremamente alto no estado T. Esse valor de pKa reduz para 6,0 no estado R (oxihemoglobina), uma vez que o par iônico torna-se incapaz de se formar, já que o resíduo de His-146 não é capaz de aceptar H+ no estado R em valores de pH igual a 7,6, o pH do sangue no ambiente dos alvéolos pulmonares. Embora a hemoglobina seja capaz de captar CO2, a maior parte desse gás (cerca de 63%) é transportado no interior do eritrócito na forma de íon bicarbonato (HCO3 -) numa reação tal qual o CO2 combina-se com a água no interior do eritrócito combina-se com o CO2 para formar ácido carbônico (H2CO3). Posteriormente a enzima anidrase carbônica dissocia o H2CO3 em um próton de H + e um ânion HCO3 -. A anidrase carbônica presente em altas concentrações no interior dos eritrócitos catalisa a hidratação do CO2 para formar H2CO3. Nos eritrócitos essas reações são dirigidas para a direita, pela ação das massas, visto que o CO2 está sempre sendo suprido pelos tecidos. Nos eritrócitos o H2CO3 se dissocia em H + e HCO3 -. O próton de hidrogênio (H+) permanece no interior do eritrócito, onde será tamponado pela desoxihemoglobina e transportado para o sangue, nessa forma. A desoxihemoglobina é melhor tampão para o H+ que a oxihemoglobina. O tamponamento de H+ por parte da hemoglobina cumpre duas funções, a primeira é que impede queda do pH intraeritrocitário e a segunda é que a liberação do H+ por pela hemoglobina no ambiente tissular facilita a liberação do O2 para as células. O HCO3 - decorrente da dissociação do H2CO3 poderia causar desequilíbrio hidroeletrolítico no eritrócito, se o mesmo não fosse extrudido do eritrócito em um mecanismo de troca com o cloreto (Cl-). Esse fenômeno de trocas entre cargas negativas (saída de HCO3 - e entrada de Cl-) denomina- se fuga de cloreto que é realizado por uma proteína trocadora de ânions chamada de proteína de banda três. Prof. Dr. Wagner de JP 7 O efeito Haldane – Nos alvéolos pulmonares a captação de oxigênio por parte da hemoglobina promove alterações estruturais na molécula, que culminam com o deslocamento de prótons de H+, anteriormente captados pelos resíduos de aminoácidos gerando no interior do eritrócito um microambiente ácido. Esse H+ combinam-se com o HCO3- para formar H2CO3 que, sob a ação da anidrase carbônica sofre dissociação em H2O + CO2. O CO2 é prontamente liberado nos alvéolos pulmonares (Figura 7). Esse mecanismo responde pela maior parte do CO2 liberado, cerca de 63%, outras formas de transporte de CO2 no interior do eritrócito também ocorrem, cerca de 5% dissolvido na célula na forma física e aproximadamente 21% na forma de carbaminoglobina, seguindo a reação Hb-NH2 + CO2 Hb-NHCOOH. Os compostos carbamínicos são portanto,formados pela combinação de CO2 com porções aminoterminais da porção globínica da hemoglobina. Figura 7 - A Ligação do O2 ao centro heme faz com que a hemoglobina libere H + adquirindo um caráter ácido, o que por sua vez promove o deslocamento do CO2 em suas formas carbamino-hemoglobina e HCO - 3. Esse processo é conhecido como Efeito Haldane. Adaptado de: Aires, MM-Fisiologia. Ed. Guanabara koogan, 1999. Alvéolos 63% 5% 21% CO2 90% Hb H + H + H + H + H + H + H + H + + HCO-3 + H+ + CO2 H2CO3 H2O + CO2 A C CO2 CO2 N COO - H Hb H + N H H Hb + H+ HCO-3 + H + 63% 5% 21% CO2 + CO2 90% CO2 + H2O + H2CO3 AC Cl- H2O N H H Hb Tamponado pela Hb N COO - H Hb CO2 10% 5% <1% 5% CO2 CO2 + CO2 + H2O H2CO3 Tamponados pelas soluções tampão do plasma N H H N COO - H Prot CO2 T E C ID O S CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 Figura 6 – Formas pelas quais o CO2 é transportado no plasma e no interior dos eritrócitos. No eritrócito a extrusão de HCO3 - e a entrada de Cl- é acompanhada da entrada de água também, o que torna o eritrócito oxigenado mais túrgido que o eritrócito desoxigenado. Adaptado de: Aires, MM-Fisiologia. Ed. Guanabara koogan, 1999. HCO-3 + H + + H+ Prof. Dr. Wagner de JP 8 A hemoglobina S e a anemia falciforme – A anemia falciforme é uma doença monogênica e hereditária decorrente de anormalidades envolvidas com a molécula de hemoglobina, onde ocorre a substituição do resíduo de ácido glutâmico pelo resíduo de valina na posição 6 da cadeia beta da hemoglobina. A troca desse único resíduo de aminoácido dá origem a hemoglobina S (HbS) que, quando desoxigenada promove distorção da forma eritrocitária, fazendo com que a célula adquira um aspecto de foice. A cada desoxigenação da molécula de HbS ocorre aquisição do formato em foice, e após ser submetido a sucessivas alterações estruturais o eritrócito perde a capacidade de retornar a sua forma discóide bicôncava normal. Esses eritrócitos siclêmicos irreversíveis provavelmente resultam da perda ou do enrijecimento de porções da membrana plasmática, em decorrência de danos estruturais no citoesqueleto. Além disso, afoiçamentos repetidos podem também levar à formação de inclusões morfológicas conhecidas como corpúsculos de Heinz. Essas inclusões se ligam à membrana e são parcialmente responsáveis pela destruição prematura dessas hemácias. A forma homozigota da anemia falciforme (HbSS) ocorre quando o indivíduo herda um gene da hemoglobina falciforme da mãe ou do pai. Assim sendo, para que essa condição ocorra é necessário que cada um dos pais seja portador de pelo menos um gene falciforme, o que significa que cada um é portador de um gene da hemoglobina falciforme (HbS) e um gene da hemoglobina normal (HbA). O traço falciforme não é uma doença, indica apenas que o indivíduo herdou de seus pais um gene para a hemoglobina normal (A) e outro para a hemoglobina falciforme (S). Estudos mostram que as alterações genéticas que levam à anemia falciforme têm origem, há milhares de anos, na Ásia menor, como forma genética de organismos se protegerem da malária. De fato, a hemoglobina S proporciona aumento da resistência para a malária como no caso da África, onde a malária é endêmica e por conta disso a freqüência desse gene é alta na população. Diversos estudos mostram que os heterozigotos para anemia falciforme são mais resistentes à forma grave da malária, de modo que os indivíduos com esta característica têm mais chances de sobreviver em ambientes onde a malária é prevalente, já que o protozoário não se reproduz em eritrócitos falciformes. Em função dessa vantagem adaptativa, o gene da hemoglobina S tornou-se freqüente entre os negros, tornando-se o único mecanismo humano de seleção natural, em um universo de mais de 30 mil genes, que a ciência, até então, conseguiu entender. O fenômeno de afoiçamento dos eritrócitos é responsável por todo o quadro fisiopatológico apresentado pelos portadores de anemia falciforme. A hemoglobina S quando desoxigenada torna-se insolúvel, ao contrário da hemoglobina normal (A), que mesmo desoxigenada permanece solúvel. A presença do resíduo de valina em vez de ácido glutâmico na HbS, gera um contato hidrofóbico adesivo na face externa das duas cadeias beta da molécula de hemoglobina. Isso corre porque a valina não apresenta carga elétrica, enquanto que o ácido glutâmico possui uma carga elétrica em pH=7,4 (Figura 8). Essa ausência de cargas elétricas por parte da valina na HbS faz com que, na forma desoxigenada, a hemoglobina sofra polimerização, já que as superfícies adesivas de moléculas tendem a se combinar, formando filamentos longos que são responsáveis pela deformação do eritrócito em sua forma característica de lâmina de foice. Fatores que alteram a finidade da hemoglobina para com o oxigênio – A representação gráfica da pressão parcial de oxigênio em função da concentração de oxigênio na hemoglobina é conhecida como curva de dissociação da hemoglobina e apresenta um formato sigmóide. Os fatores que aumentam a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio desviam a curva sigmóide para a esquerda, enquanto que os fatores que reduzem a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio deslocam a curva para a direita. Diversos fatores alteram a finidade da hemoglobina pelo oxigênio, sendo que quatro desses fatores são particularmente relevantes e por essa razão foram bem estudados: a PCO2 (pressão parcial de CO2), o pH, a temperatura e os níveis intracelulares de 2,3BPG (2,3 bifosfoglicerato). CO2 – Nos tecidos periféricos a concentração de CO2 é naturalmente elevada e uma fração desse gás liga-se ao grupo terminal -amino de cada globina presente na hemoglobina, formando grupos carbamino segundo a reação que se segue: NH 2 C R H C O CO2 + C O C N H C O O R H H+ Terminal amino de um dado resíduo de aminoácido Terminal carbamino Essa reação gera um próton H+ colaborando para o efeito Bohr e os carbamatos formados, também atuam na formação de pontes salinas adicionais que atuam na conversão do estado R para o estado T. Prof. Dr. Wagner de JP 9 Desse modo, o aumento da PCO2 altera o equilíbrio da hemoglobina do estado R para o estado T favorecendo a liberação do O2 como mostrado na figura 9 (letra A), onde a curva de dissociação da hemoglobina apresenta-se deslocada para a direita em função do aumento da PCO2 nos tecidos periféricos. pH – A hemoglobina também apresenta redução de sua afinidade pelo oxigênio frente a valores reduzidos de pH de modo que, em meio ácido ocorre desvio para a direita da curva de dissociação da hemoglobina (figura 9 letra B). Normalmente, o pH intraeritrocitário é 0,2 unidade mais ácido que o plasma. Nos capilares sistêmicos, CO2 (que é hidratado até ácido carbônico) e ácidos fixos (úrico, pirúvico, láctico, fosfórico, etc.) são liberados para a corrente sangüínea, fazendo com que o pH local caia, facilitando a oxigenação tecidual por conta do efeito Bohr. Já no ambiente alveolar CO2 está sendo liberado para os pulmões aumentando o pH local elevando assim a afinidade da Hb para o oxigênio (desvio para a esquerda da curva sigmóide), o quefacilita a captação de O2 pelo sangue a partir do ar alveolar. 2,3-Bifosfoglicerato (2,3-BPG) – O 2,3 bifosfoglicerato é um dos intermediários formados durante a via glicolítica, a via pela qual os eritrócitos geram sua fonte de energia (ATP) já que não dispõem de mitocôndrias. A curva de dissociação da hemoglobina sofre deslocamento para a direita (Figura 9 letra C) na presença de aumento das concentrações intraeritrocitárias de 2,3-BPG. Nos eritrócitos, o 2,3-BPG existe numa concentração que é quatro vezes maior que a do ATP, concentração molar equivalente à da hemoglobina. O aumento dessa substância no eritrócito é uma resposta altamente adaptativa a estados de maior necessidade tissular de O2. De fato, seu nível se eleva em pacientes com insuficiência cardíaca, hipoxemia crônica, altitudes, após exercício físico prolongado e intenso e também na anemia. O acúmulo de 2,3-BPG no eritrócito desloca para a direita a curva de dissociação da hemoglobina, diminuindo a afinidade da Hb pelo O2 e facilitando desse modo a transferência desse gás do eritrócito para os tecidos. Mutação Figura 8 - Na condição conhecida como anemia falciforme o eritrócito assume a forma de uma foice (siderócito), letra B. Essa condição decorre da substituição de um único resíduo de aminoácido na posição 6 da cadeia beta da molécula de hemoglobina (glutamato por valina). Essa sutil alteração faz com que a desoxihemoglobina forme filamentos (letra A) no interior dos eritrócitos, deformando o eritrócito de sua forma original discóide para a forma de foice, mais fágil às rupturas no interior dos leitos vasculares. Essa condição que, parece ser uma desvantagem pode ser útil em ambientes onde há prevalência de malária. O parasito da malária (Plasmodium) apresenta parte de seu ciclo de vida no interior do eritrócito e, eritrócitos (letra C, seta) falciformes reduzem a probabilidade do plasmodium em habitar essas células. Desse modo, portadores de anemia falciforme tendem a apresentar resistência à malária. A B C Prof. Dr. Wagner de JP 10 Temperatura - O efeito do aumento da temperatura sobre a afinidade da hemoglobina pelo O2 é similar ao da acidez, ou seja, a redução da temperatura desloca a curva de dissociação da hemoglobina para a esquerda, enquanto que aumentos da temperatura deslocam a curva para a direita. Esse efeito da temperatura sobre a curva de dissociação da hemoglobina pode estar relacionado à influência da temperatura sobre a atividade do H+. Isso é particularmente útil nos músculos esqueléticos, uma vez que esses se aquecem durante a atividade física, e esse aquecimento facilita a liberação de O2 suprindo as células musculares de O2 em momentos em que esse aporte é necessário. Por outro lado, em situações de hipotermia induzida, as temperaturas tissulares extremamente baixas reduzem o consumo celular de O2. A redução da temperatura do sangue, ao mesmo tempo, aumenta a afinidade da hemoglobina pelo O2. Hemoglobinopatias – O termo hemoglobinopatias refere-se a uma das condições que acometem a hemoglobina sendo que a mais conhecida é a condição que desencadeia anemia falciforme. Anemia falciforme é o termo utilizado para uma morbidade hereditária na qual os eritrócitos assumem a forma de uma foice, mas recebem a designação hematológica de drepanócitos. Ocorre com maior ou menor severidade de acordo com o caso, o que causa deficiência do transporte de gases nos indivíduos que possuem a doença. É comum em afrodescendentes e sendo assim, o conhecimento sobre a origem étnica do paciente pode ser de grande valia na análise genética de indivíduos acometidos por algum tipo de hemoglobinopatia. A formação da hemoglobina S (HbS) é determinada por um par genético que sofre alteração nos portadores da doença. Neles, há a presença de ao menos um gene mutante, que leva o organismo a produzir a hemoglobina S. 0 20 40 60 80 100 100 80 60 40 20 PCO2 (mmHg) 20 40 80 A 100 80 60 40 20 0 20 40 60 80 100 pH 7,6 7,4 7,2 B 100 80 60 40 20 0 20 40 60 80 100 2,3 BPG HbF HbA C Adição de 2,3 BPG 100 80 60 40 20 Temperatura em C 20 43 D 37 10 Figura 9 – Fatores que alteram a curva de dissociação da hemoglobina. Em “A” Pressão parcial de CO2 (PCO2), “B” pH, “C” 2,3-bifosfoglicerato e D temperatura. Na letra “C” é mostrada a curva de dissociação da HbF (hemoglobina fetal) com o propósito de compará-la à da HbA (hemoglobina do adulto). As linhas tracejadas em C mostram a P50, ou seja, a pressão parcial de O2 necessária para saturar 50% a hemoglobina. S a tu ra çã o d e H b c o m O 2 S a tu ra ç ã o d e H b c o m O 2 PO2 (mmHg) PO2 (mmHg) 0 20 40 60 80 100 Figura 10 – Eritrócitos falciformes (drepanócitos). Prof. Dr. Wagner de JP 11 Essa hemoglobina apresenta, em sua estrutura primária, uma troca do sexto resíduo de aminoácido (um resíduo de ácido glutâmico é substituído resíduo de valina). Esta alteração é conseqüência da substituição de um único nucleotídeo na sequência de DNA. Ao invés do nucleotídeo adenina na posição 20 da cadeia de DNA, na seqüência anormal encontra-se o nucleotídeo timina que por sua vez altera a seqüência de códons de GAG para GTG. A alteração conformacional ocorre porque o grupo radical da valina não possui carga elétrica, enquanto que o ácido glutâmico possui carga negativa em pH 7,4 (esse valor de pH é o fisiológico e nesse valor o grupo carboxila se ioniza, perdendo um próton de hidrogênio) e encontra-se na face externa da molécula. Assim a substituição do resíduo de ácido glutâmico por valina cria um ponto hidrofóbico de ligação na superfície externa da cadeia beta, alterando a conformação final da proteína. Essa molécula de hemoglobina é capaz de transportar o oxigênio, mas, quando o mesmo passa para os tecidos, as moléculas da sua hemoglobina se aglutinam em formas gelatinosas de polímeros, também chamadas tactóides, que acabam por alterar a estrutura do eritrócito tornando-os frágeis em função das alterações na sua membrana. Quando recebem novamente o oxigênio, podem ou não recuperar seu formato original. Após algum tempo, por não suportar bem modificações físicas, a hemoglobina pode manter a forma gelatinosa permanentemente e, conseqüentemente, o formato de foice do eritrócito. Nessa forma, sua vida útil torna-se menor, o que pode vir a causar anemia hemolítica. O gene causador da anemia falciforme tem uma relação de co-dominância com o gene normal. Assim, há indivíduos portadores de uma forma branda e de uma forma severa da mesma doença. O teste de falcização tem como objetivo diagnosticar anemia falciforme. O método baseia-se na redução da tensão de O2 induzindo à formação de agregados cristalinos já que a hemoglobina S na ausência de O2 torna-se insolúvel quando comparada com a hemoglobina íntegra. Para o teste uma gota de sangue obtida por meio de punção digital é colocada em uma lâmina e recoberta com uma lamínula. As bordas da lamínula são vedadas com petrolato e após cerca de seis horas pode-se fazer a observação em microscópio óptico. Outra forma de realizaro teste é adicionar ao sangue da lâmina metabissulfito de sódio na concentração de 2% antes de cobrir o mesmo com a lamínula. Como o metabissulfito é um poderoso redutor a reação é acelerada permitindo a observação no intervalo de 15 a 60 minutos. Contudo, atualmente os kits para testes de falcização são bastante eficazes e seu método consiste em desoxigenar a hemoglobina S que por tornar-se insolúvel precipita-se em determinados meios. Os testes de lamínula ou os kits não são totalmente específicos para hemoglobina S sendo que produzem falcização para outras hemoglobinas como, por exemplo, a hemoglobina F, (HbF forma fetal da hemoglobina) por essa razão o teste deve ser feito em bebês somente após 4 a 6 meses após o nascimento uma vez que é o período em que a hemoglobina F passa a ser substituída pela hemoglolobina A (HbA forma presente no adulto). O diagnóstico definitivo da anemia falciforme pode ser obtido por meio da eletroforese de hemoglobina. Nesse teste produz-se uma separação das frações HbS, HbA e outras formas de hemoglobina que porventura estejam presentes na amostra. A eletroforese de hemoglobina permite a identificação de diversos tipos de hemoglobina, que podem identificar uma doença hemolítica. Por exemplo, se Hb A2 for de 4 a 5,8% da hemoglobina total, então existe a implicação de talassemia menor. Se Hb A2 estiver abaixo de 2%, isso sugere uma doença de hemoglobina H. A talassemia menor é também sugerida se Hb F for 2 a 5% da hemoglobina total, e talassemia maior se Hb F compreender 10 a 90%. Se o total da hemoglobina for Hb F, isso sugere persistência hereditária homozigota de hemoglobina fetal. Se Hb F compreender 15% do total de hemoglobina, isso sugere Hb S homozigota. Hemoglobina C - A hemoglobina C (Hb C) é uma variante originada pela substituição do ácido glutâmico por lisina na posição 6 da cadeia beta da globina da hemoglobina, conduzindo a um leve distúrbio hemolítico. Os portadores dessa condição são homozigotos (CC) para o gene da hemoglobina C (Hb-C). Estima-se que o gene está presente em cerca de 3% dos afroamericanos de forma que a doença não é comum. A origem da hemoglobina C, tal como da hemoglobina S, é africana e sua propagação foi ampla na região do Mediterrâneo e Américas por meio do tráfico de escravos, em diferentes períodos da história da humanidade (Bonini-Domingos et al., 2003). Esse processo de distribuição do gene da globina beta possibilitou sua interação com outras hemoglobinas variantes e talassemias, amplamente observado na população brasileira. De fato, possui prevalência entre 15% a 30% nos povos de origem africana, e sua freqüência é bastante variável na população brasileira, dependendo da região analisada. Os portadores da doença apresentam leptocitose (leptócitos, eritrócitos em forma de alvo), mas não desenvolvem anemia. Prof. Dr. Wagner de JP 12 A troca do aminoácido confere características estruturais e funcionais próprias à molécula, facilitando a sua identificação por metodologias de rotina diagnóstica. De fato, a eletroforese é o método de rotina utilizado na identificação de portadores desse tipo de hemoglobinopatia (Figura 11) embora existam outros métodos de identificação mais sofisticados como, por exemplo, a cromatografia líquida de alta pressão (HPLC). Na eletroforese de Hb-C apresenta padrão de migração similar à HB-A2, no entanto, a presença de Hb-A2 não supera valores acima de 10% da hemoglobina total modo que a hemoglobina que migra na área da Hb-A2 em valores que excedem 10% é forte indicativo de Hb-C. Figura 11 – Padrão eletroforético de uma amostra de hemoglobina C (1) e hemoglobina normal (2) em acetato de celulose. Fonte: Bonini-Domingos et AL., 2003. 1 2 Prof. Dr. Wagner de JP 13 RESUMO Introdução – Os eritrócitos são células discoidais côncavas nas quais está presente uma proteína especializada em interagir com o O2, a hemoglobina. O tecido muscular esquelético, em função de sua alta taxa metabólica dispõe de uma proteína de reserva de O2 similar à hemoglobina, a mioglobina. A mioglobina e a hemoglobina apresentam relações evolutivas, contudo, a hemoglobina possui quatro cadeias polipeptídicas, enquanto que a mioglobina possui somente uma. A hemoglobina é especializada em transportar O2, ao passo que a mioglobina atua como reserva de O2, a primeira apresenta quatro grupos heme e a segunda, somente um. O sítio onde ocorre a interação com o O2 nessas proteínas é formado por um anel de protoporfirina, a qual por meio de quatro átomos de nitrogênio coordena um átomo de ferro (Fe+2). N CH CH2 CH2 COO- CH3 N CH3CH2 CH 2 COO- N N HC C H HC CH3 CH CH 2 CH3 CH CH2 Fe+2 A B C Figura 1 – As estruturas relacionadas ao transporte de oxigênio. Em “A” eritrócitos e sua forma côncava; em “B” molécula de hemoglobina, destacando os dímeros 11 e 22 em cores amarelo, azul, salmão e verde; em “C” a estrutura do grupo heme com o átomo de ferro situado ao centro do anel de proptoporfirina. 1 1 2 2 A captação de oxigênio por parte da hemoglobina – A dinâmica de oxigenação dos tecidos implica necessariamente na capacidade da hemoglobina em ligar-se ao oxigênio nos alvéolos pulmonares e posteriormente desligar-se dele no ambiente dos tecidos. Para cumprir essa tarefa a hemoglobina apresenta alta afinidade por oxigênio quando a pressão parcial de oxigênio (PO2) é alta, essa situação está presente nos alvéolos pulmonares e impulsiona o deslocamento do oxigênio dos alvéolos para os capilares pulmonares. A situação inversa, ou seja, o desacoplamento do oxigênio da molécula de hemoglobina ocorre nos tecidos em função da baixa PO2. A molécula de hemoglobina é formada por um tetrâmero constituído por dímeros de cadeias idênticas (11 e 22) que relacionam-se entre si de forma não covalente (pontes de hidrogênio, interações hidrofóbicas, por exemplo) formando um tetrâmero (Figura 1). A hemoglobina pode apresentar duas estruturas quaternárias distintas. Uma é a estrutura T (tensa), característica da forma desoxigenada (desoxi-Hb) cuja afinidade ao oxigênio é baixa, a outra é a estrutura R (relaxada), característica da forma (oxi-Hb), nessa forma a molécula de hemoglobina apresenta alta afinidade pelo oxigênio Nos eritrócitos, as hemoglobinas encontram-se num equilíbrio das duas formas; a concentração de formas parcialmente ligadas é baixa. A hemoglobina interage com o oxigênio de forma cooperativa – A hemoglobina apresenta um comportamento particularmente importante, ela é capaz de sofrer uma transição entre o estado T e R na medida em que moléculas de oxigênio vão progressivamente se ligando a seus grupos heme. Essa propriedade denomina-se cooperatividade e é demonstrada na figura 2. 20 40 60 80 100 100 50 Pressão de O2 no sangue arterial Pressão de O2 no sangue venoso % d e s a tu ra ç ã o c o m O 2 Figura 2 - Curva de saturação pelo oxigênio da hemoglobina e da mioglobina. A curva azul indica a cooperatividade da molécula de hemoglobina frente ao oxigênio. A forma sigmóide indica a transição entre os estados T (baixa afinidade pelo O2 nos tecidos e R, alta afinidade pelo O2 nos alvéolos pulmonares. A curva vermelha refere-se ao comportamento da mioglobina frente ao O2. A mioglobina não é uma proteína de transporte de O2, mas sim de reserva. Assim sendo, a curva é distinta da hemoglobina. A interação do oxigênio com o Fe+2 presente no grupo heme – Quando o oxigênio liga-se ao ferro no grupo heme o átomo de ferro se desloca-separa dentro do plano do grupo heme uma vez que altera o estado eletrônico do heme, encurtando assim em 0,1Å as pontes Fe-N-porfirina fazendo baixar a abóbada da porfirina (Figura 3). Esse efeito faz com que durante a transição TR, o Fe+2 arraste com ele o resíduo de histidina acoplado à hélice 8 (His-F8) à qual ele está covalentemente ligado. A ligação do oxigênio é que promove alteração do átomo de ferro. A distância dos átomos de nitrogênios ao centro do grupo heme é 2,03Å; isto implica que o ferro permanecerá no plano dos nitrogênios na oxi-Hb, mas não na desoxi-Hb. A ligação do oxigênio altera toda a estrutura da molécula de hemoglobina, de forma que a estrutura espacial da desoxihemoglobina e da oxihemoglobina são perceptivelmente diferentes. N N O2 Fe+2 + O2 Hélice F Hélice F Raio iônico de 2.06 Å His F8 His F8 Fe +2 Raio iônico de 1.98 Å Figura 3 - A ligação do oxigênio é acompanhada por uma mudança no estado do ferro. No estado desoxigenado, o ferro possui 5 ligantes os quatro nitrogênios do grupo heme e a histidina proximal, e está num estado Fe++ com spin alto e raio iônico de 2.06Å. No estado oxigenado, o ferro possui 6 ligantes – os 5 anteriores mais o oxigênio, e está em um estado Fe++ com spin baixo e raio iônico de 1.98Å. O raio é importante porque a distância dos nitrogênios ao centro do heme é 2,03Å; isto implica que o ferro permanecerá no plano dos nitrogênios na oxi-Hb, mas não na desoxi-Hb. O Fe está 0,6Å acima do pano do centro do anel porfirínico abobadado. Na presença do oxigênio, o ferro desloca-se na direção do centro do anel, arrastando a histidina 8 e a hélice F a ela ligada. Prof. Dr. Wagner de JP 14 O oxigênio altera a estrutura quaternária da hemoglobina – A ligação do oxigênio altera toda a estrutura do tetrâmero de hemoglobina. As subunidades e fazem contato entre si. Quando o oxigênio é ligado aos grupos heme da desoxihemoglobina, as subunidades de 11 e 22 da molécula, a qual permanece rígida, mudam levemente suas posições relativas e tornam-se mais próximas. Isso quer dizer que ocorre uma mudança na estrutura quaternária e as subunidades sofrem um processo de compactação. Como resultado disso, a molécula de oxihemoglobina apresenta uma estrutura mais compacta que a de desoxihemoglobina e a cavidade de aproximadamente 20Å de diâmetro formada pelas interações entre as subunidades 1-2 e 1-2 torna-se menor (Figura 4 ). Além disso, a oxigenação promove uma rotação de 15º de um dímero em relação ao outro. A oxigenação provoca modificações estruturais quaternárias tão grandes, que os cristais de desoxiemoglobina se estilhaçam ao serem expostos ao oxigênio. Essa mudança conformacional da molécula de hemoglobina pode explicar o efeito Bohr. O efeito Bohr - Nos tecidos periféricos a hemoglobina capta H+ e CO2 e em altas concentrações de CO2 e baixos valores de pH, a afinidade da hemoglobina por O2 reduz dramaticamente. Inversamente, nos capilares pulmonares, à medida que o CO2 é excretado e o pH do sangue aumenta, a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio também se eleva. Esse efeito do pH e da concentração de CO2 interferindo na captação e liberação do oxigênio por parte da hemoglobina denomina-se efeito Bhor em homenagem ao fisiologista dinamarquês, seu descobridor. O efeito Bhor é, portanto, resultado do equilíbrio entre oxigênio e os outros ligantes que podem ser aceptados pela hemoglobina CO2 e H +. O efeito Haldane – Nos alvéolos pulmonares a captação de oxigênio por parte da hemoglobina promove alterações estruturais na molécula, que culminam com o deslocamento de prótons de H+, anteriormente captados pelos resíduos de aminoácidos gerando no interior do eritrócito um microambiente ácido. Esse H+ combinam-se com o HCO3 - para formar H2CO3 que, sob a ação da anidrase carbônica sofre dissociação em H2O + CO2. O CO2 é prontamente liberado nos alvéolos pulmonares (Figura 5). 1 1 2 2 7,5º Diâm. Central 20 Å y q p 15º Figura 4 - A oxihemoglobina apresenta uma ligeira mudança da posição do dímero 11 em relação ao dímero 22 (ou vice-versa). No diagrama da estrutura ligada os dímeros 11 estão superpostos, e os dímeros 22 representados em negro (não ligada) e vermelho (ligada). A posição do dímero 22 ligado é obtida pela rotação de 12-15° em torno do eixo P, deslocando 1Å para baixo ao longo de “p”. O eixo “p” é perpendicular ao eixo de simetria “y” e a relação entre os eixos de visão e os eixos moleculares padrões são mostradas no diagrama central inferior (Figura adaptada de Baldwin & Chothia, 1979). Fatores que alteram a finidade da hemoglobina para com o oxigênio - Diversos fatores alteram a finidade da hemoglobina pelo oxigênio, sendo que quatro desses fatores são particularmente relevantes: a) Dióxido de carbono - Nos tecidos periféricos a concentração de CO2 é naturalmente elevada e uma fração desse gás liga-se ao grupo terminal -amino de cada globina presente na hemoglobina dando origem à formação de H+ favorecendo o deslocamento do estado R da hemoglobina para o T; b) pH – a hemoglobina altera sua afinidade por O2 ou O2 em função do pH. Hemoglobinopatias - O termo hemoglobinopatias refere-se a uma das condições que acometem a hemoglobina sendo que a mais conhecida é a condição que desencadeia anemia falciforme. O portador de anemia falciforme apresenta a hemoglobina S (HbS). Essa molécula de hemoglobina é capaz de transportar o oxigênio, mas, quando o mesmo passa para os tecidos, as moléculas da sua hemoglobina se aglutinam em formas gelatinosas de polímeros, também chamadas tactóides, que acabam por alterar a estrutura do eritrócito tornando-os frágeis em função das alterações na sua membrana. Já a hemoglobina C (Hb C) é uma variante originada pela substituição do ácido glutâmico por lisina na posição 6 da cadeia beta da globina da hemoglobina, conduzindo a um leve distúrbio hemolítico. Os portadores da doença apresentam leptocitose (leptócitos, eritrócitos em forma de alvo), mas não desenvolvem anemia. A lv é o lo s Hb H+ H+ H+ H+ H+ H+ + HCO-3 H2CO3 H2O + CO2 H+ ERITRÓCITO Figura 5 - A Ligação do O2 ao centro heme faz com que a hemoglobina libere H+ adquirindo um caráter ácido, o que por sua vez promove o deslocamento do CO2 em suas formas carbamino- hemoglobina e HCO-3. Esse processo é conhecido como Efeito Haldane. Adaptado de: Aires, MM-Fisiologia. Ed. Guanabara koogan, 1999. Nos tecidos periféricos onde o pH tende a ser ácidos a hemnoglobina ganha afinidade por CO2 e reduz sua afinidade por O2. Já no ambiente alveolar CO2 está sendo liberado para os pulmões aumentando o pH local elevando assim a afinidade da Hb para o oxigênio, o que facilita a captação de O2 pelo sangue a partir do ar alveolar; c) 2,3- Bifosfoglicerato (2,3-BPG) - O acúmulo de 2,3-BPG no eritrócito reduz a afinidade da hemoglobina pelo O2, facilitando desse modo a transferência desse gás do eritrócito para os tecido; d) Temperatura - O aumento da temperatura facilita a liberação do oxigênio por parte da hemoglobina enquanto que temperaturas baixas reduz. Por outro lado, em situações de hipotermia induzida, as temperaturas tissulares extremamente baixas reduzem o consumo celular de O2. A redução da temperatura do sangue, ao mesmo tempo, aumenta a afinidade da hemoglobina pelo O2. Prof. Dr. Wagner de JP 15 REFERÊNCIAS Dominguez de Villota ED, Ruiz Carmona MT, RubioJJ, de Andrés S (December 1981). "Equality of the in vivo and in vitro oxygen-binding capacity of haemoglobin in patients with severe respiratory disease". Br J Anaesth 53 (12): 1325– 8. van Kessel et al. "2.4 Proteins - Natural Polyamides." Chemistry 12. Toronto: Nelson, 2003. 122. Print. Steinberg 2001, p. 95 Rang, H.P.; Dale M.M., Ritter J.M., Moore P.K. (2003). Pharmacology, Fifth Edition. Elsevier. ISBN 0443072027. Hemoglobin Variants". Lab Tests Online. American Association for Clinical Chemistry. 2007-11-10. Newton DA, Rao KM, Dluhy RA, Baatz JE. (2006). Hemoglobin is expressed by alveolar epithelial cells. J Biol Chem. 281(9):5668-76. PMID 16407281 Nishi H, Inagi R, Kato H, Tanemoto M, Kojima I, Son D, Fujita T, Nangaku M. (2008). Hemoglobin is expressed by mesangial cells and reduces oxidant stress. J Am Soc Nephrol. 19(8):1500-8. PMID 18448584 Boh, Larry (2001). 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