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Língua Portugues na Educação 1 - Texto complementar 9 Língua, que bicho é esse

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Língua, que bicho é esse? 
Entrevista com Sírio Possenti – 03.06.2011 
 
Mais uma vez um livro didático causa polêmica. Em maio, a mídia reverberou, acriticamente, 
que o Ministério da Educação orientava os alunos “a falar errado”. A confusão não é recente: 
linguistas e normatistas têm querelas antigas. Quem está certo? Como fica o ensino da língua 
portuguesa diante do fato de que uns consideram errado o que outros consideram correto? 
Nesta entrevista, feita por e-mail, o professor do departamento de linguística da Unicamp 
esclarece algumas dúvidas sobre as diferenças entre a variação linguística e a gramática, 
explica como as línguas se organizam e provoca: “O que consolida o desconhecimento da 
norma culta é continuar fazendo o que se faz, considerar ‘errados’ os que só falam diferente, 
ensinar uma gramática precária”. 
 
Carta Fundamental: Em maio, a mídia condenou o livro Por Uma Vida Melhor, seus autores e 
o próprio ministério por admitirem o “português errado”, sob o pretexto de alertar para o 
“preconceito linguístico”. No seu entendimento, tal conclusão é correta? 
 
Sírio Possenti: O preconceito linguístico consistiria em discriminar alguém pelo fato de falar 
de maneira diferente. Pode acontecer em situações diversas. Por exemplo, não contratar um 
trabalhador pelo fato de ele ter um sotaque marcado – do interior paulista ou baiano, por 
exemplo – ou porque não usa variantes sintáticas cultas, mas apenas as populares (empregar 
concordâncias verbais ou nominais como “eles foi” ou “10 real”). Sendo bem conservador, 
diria que, em certos casos, uma decisão como essa seria mais compreensível do que em 
outros. Acho o fim do mundo que um contador ou um trabalhador braçal seja dispensado por 
tais critérios, mas compreenderia que uma empresa regional preferisse “relações-públicas” 
que se caracterizassem como “do lugar”. A questão pode ser diferente também na escola. Não 
se pode exigir nos primeiros anos de falantes oriundos de grupos populares que dominem 
formas de falar com as quais têm pouquíssimo contato e, principalmente, que dominem a 
escrita-padrão. Mas, se a escola for competente e os alunos tiverem interesse, deve-se exigir 
progressivamente o domínio do padrão. Uma pessoa pode ser vítima de preconceito também 
por razões “teóricas”. Por exemplo, ser considerada incapaz de pensar “direito” pelo fato de 
seguir outra gramática. Se isso fosse verdade, as pessoas só poderiam pensar em uma 
língua… Em resumo, o preconceito pode, sim, vitimar falantes “diferentes”. E os vitima todos 
os dias… 
 
CF: O que propõem os linguistas quando afirmam que não existe o “português mais certo ou 
mais errado”? 
 
SP: Os linguistas separam uma avaliação de fatos linguísticos considerando apenas as regras 
que regem qualquer variedade de qualquer língua e uma avaliação que a “sociedade” faz de 
cada uma dessas variedades. O exemplo do livro debatido é bom: considerando apenas os 
fatos, o que se ouve, verifica-se que formas como os livro e 10 real seguem uma regra, isto é, 
são construções regulares: esta gramática marca com o “s” de plural apenas o primeiro 
elemento- (se -forem três ou quatro, isso dependerá de quais eles são: os meus livro é bem 
mais provável do que os meu livro; mas meus livro verde é previsível). O linguista também 
sabe que há outra gramática do português, que segue outra regra: marca com “s” todos os 
elementos da sequência: os livros, os meus livros, meus livros verdes. Para um linguista, o 
conceito de certo e errado não tem sentido (seria como um botânico achar que uma planta está 
errada). Para ele, a questão é quais são as regras em cada caso. E ele pode comparar esses 
dados com os de outras línguas. Verificará, por exemplo, que o inglês segue uma regra 
diferente, marcando apenas o nome, não importa o lugar dele na sequência: the books ou the 
green and blue books (cuja “tradução” literal seria os verde e azul livros). Em nenhuma 
variedade do português se diz o ovos ou o livros. Mas o linguista também sabe que a 
sociedade em que se fala esta língua faz uma avaliação das diferentes formas. Considera 
algumas delas erradas (e até feias) e outras corretas. Ele tentará compreender a que se deve 
essa avaliação. Quase sempre há uma explicação ligada aos grupos sociais (capital, cidade 
importante culturalmente, sede da corte etc.) ou aos campos em que se fala ou escreve. A 
literatura aceita mais variedades do que a ciência. Os jornais aceitarão mais ou menos 
variedades, conforme se pretendam mais ou menos populares. As noções de certo e errado 
têm origem na sociedade, não na estrutura da língua. É certo o que uma comunidade 
considera certo. E essa avaliação muda historicamente. 
 
CF: É papel da escola ensinar as diferenças do discurso oral e do escrito? 
 
SP: É papel da escola, em algum momento, chamar a atenção para o fato de que há diferenças 
entre as diversas formas de falar e o que elas significam: pessoas urbanas não falam como as 
rurais, jovens não falam como idosos, mulheres não falam como homens. Um modo de 
apresentar-se como jovem é falar como um jovem. Outro, vestir-se como tal. Mas a escola 
não precisa ensinar algumas das formas de falar, porque as pessoas as aprendem ao natural. O 
que a escola precisa ensinar é fundamentalmente a escrita. O que ela faz pouco, a meu ver. 
Ensina-se de verdade a gramática da língua culta lendo e escrevendo, “corrigindo”. O livro 
que está na berlinda fala em adequação: escrever tem muito a ver com adequar a linguagem a 
cada tipo de texto. Num trabalho de biologia, não só se usa um léxico do campo, como o texto 
se estrutura de forma específica, que é diferente da de uma narração, de um convite, de uma 
propaganda. O padrão é uma exigência da sociedade, em muitos casos, e a escola deve incluir 
práticas que levam o aluno a escrever como se espera em cada campo. Mas, para fazer isso, 
não é necessário tachar outras maneiras de falar de erradas ou de feias. Aliás, esse 
comportamento, mais do que revelar preconceito, revela ignorância do que seja uma língua. 
 
CF: A maioria das pessoas entende a língua como a que a escola ensina ou a dos manuais do 
tipo “não erre mais”, que considera as variantes como erros. No caso da língua portuguesa, 
esse conceito se sustenta diante das mudanças pelas quais ela já passou? 
 
SP: Manuais do tipo “não erre mais” são úteis, especialmente se os que vão escrever têm as 
dúvidas corretas. O problema é que, para ter dúvidas, uma pessoa, precisa desenvolver uma 
intuição um pouco refinada, conhecer um pouco do assunto (eu não tenho nenhuma dúvida 
sobre energia nuclear e células pluripotentes; nem sobre tucanos, na verdade). Assim, esses 
manuais não podem ser os substitutos das gramáticas ou dos ensaios que relatam pesquisas. 
Seria como alguém achar que sabe botânica porque tem rúcula e cebolinha na horta. Conhecer 
só esses manuais leva os “defensores” da língua que chamam de culta a cometerem os 
mesmos “erros” que estão criticando. Alexandre Garcia começou um comentário quase irado 
sobre o livro em questão assim: “quando eu TAVA na escola…”. Ou seja, ele abonou o livro 
que estava criticando. Só que, provavelmente, ele acha que falou “estava”. 
 
CF: Quais são hoje os principais pontos de discordância em relação ao registro e à forma de 
a escola tratar essas duas línguas? 
 
SP: Acho que há alguma confusão, que não precisaria existir. Bastaria que se aceitasse que as 
línguas não são uniformes, o que é um fato notório. Bastaria às pessoas se ouvirem. Em 
seguida, que se aceitasse que as diversas formas de falar não são erradas, são apenas 
diferentes, como se fossem outras línguas. Depois, é preciso decidir o que fazer com esses 
fatos. Há duas coisas que parecem óbvias.Se quisermos uma escola mais bem-sucedida, não é 
necessário ensinar as formas populares orais aos alunos. Eles já as conhecem. Diante dessas 
variedades, a gente deveria aprender a se maravilhar, o que aconteceria se soubéssemos 
analisá-las, como se aprende a analisar plantas ou animais. Deve-se ensinar a -escrita-padrão 
da única forma que funciona: conseguir que o aluno produza um texto e, a partir dele, por 
mais precário que seja ou pareça, reescrever até que ele fique adequado, correto e, se possível, 
elegante. 
 
CF: Ao propor que ensinar que o modo como aprendizes e professores falam não é feio ou 
errado consolida-se o desconhecimento da norma culta? 
 
SP: O que consolida o desconhecimento da norma culta é continuar fazendo o que se faz: 
considerar “errados” os que só falam diferente, ensinar uma gramática precária. E fazer 
exercícios que não fazem sentido. O que ensina é ler e escrever analisando o que se lê e se 
escreve. É fácil. E é barato. 
 
CF: Afinal, deve-se ou não ensinar gramática na escola? 
 
SP: Depende de como se ensina. Ensinar só faz sentido para conhecer que tipo de “bichos” 
são as línguas, como elas se organizam de fato, e não como deveriam se organizar; isso é 
etiqueta. Em cada ano se poderia eleger um (ou alguns) tipo de estrutura e dar atenção 
privilegiada a ela. Os alunos deveriam aprender a coletar dados, classificar, encontrar 
regularidades. Pode-se estudar a gramática da fala da região em que a escola está. Os 
professores poderiam ser linguistas curiosos: levar em conta como se fala na região em que 
são professores – até para saber o que “falta” ensinar. Se é para ensinar gramática apenas para 
que a conclusão dos alunos seja que eles não sabem português, confundindo, aliás, língua e 
gramática, seria melhor nem incluir no currículo. 
 
 
 
 
 
In: Revista Carta Fundamental – versão online. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/carta-
fundamental/lingua-que-bicho-e-esse/. Acesso em agosto de 2012.

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