Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Friedrich Nietzsche Um guia Introdutório Friedrich Nietzsche: um guia introdutório Vinicius Siqueira (Org.) Talvez não seja tão fácil ler Nietzsche. Talvez alguns iniciantes esbarrem em conceitos que ainda não conseguiram dominar. O objetivo deste e-book é juntar artigos introdutórios, comentários sobre conceitos de Nietzsche, e organizá-los para servir como um mini-manual. Este livro contém artigos de: Vinicius Siqueira (Colunas Tortas); Rafael Trindade (Razão Inadequada); São Paulo 2016 Sumário Prefácio ........................................................................................... 1 O que é a Genealogia em Nietzsche? ............................................. 3 Da genealogia em Nietzsche ....................................................... 3 Nietzsche – O que é um filósofo? .................................................... 9 A moral em Nietzsche: o castrado e o espírito livre ....................... 17 Nietzsche, moral dos fortes e moral dos fracos ......................... 17 Moral em Nietzsche: recusa do cristianismo .............................. 22 A hipótese da moral mínima ...................................................... 23 O niilismo em Nietzsche: decadência como um processo ............. 27 Niilismo, Nietzsche e a interpretação moral cristã ...................... 28 Niilismo e as categorias da razão .............................................. 30 Nietzsche – eterno retorno ............................................................ 33 Nietzsche – eterno retorno da diferença ........................................ 37 1 Nietzsche: um guia introdutório Prefácio Nietzsche é um dos autores mais lidos do mundo. É o filósofo mais popular do planeta, mais pesquisado em universidades e seus livros são best-sellers. Mas não é incrível como o livro mais vendido do alemão seja Assim Falou Zaratustra, sua obra mais hermética, mais difícil? Nietzsche vende, por isso é reimpresso e reeditado. Nietzsche é um campeão no mercado, afinal, foi criado um mito em torno do autor, como se ele fosse a fonte de toda sabedoria do mundo. De certa forma, faz parecer que o alemão é um terapeuta, um autor de autoajuda. Coisa mais errada não há. O objetivo deste e-book é apresentar alguns conceitos-chave da obra de Nietzsche. Aquilo que o leitor precisa aprender pelo menos. O que é genealogia, chave para entender a genealogia da moral? O que moral, chave para entender a obra citada agora? O que é niilismo? Vivem chamando Nietzsche de niilista, mas o que significa este termo na obra do autor? O que é eterno retorno? Acreditamos que este livreto poderá ajudar aqueles que querem começar os estudos sobre Nietzsche, e entendemos que o papel 2 Nietzsche: um guia introdutório deste livro não é grandioso: é só um tira-gosto, pois ainda é papel do leitor buscar pelo prato principal. 3 Nietzsche: um guia introdutório O que é a Genealogia em Nietzsche? Por Vinicius Siqueira A criação do procedimento genealógico, no pensamento nietzscheano, foi uma forma de conseguir unir a filosofia e a história sem cair em teleologias ou em um puro arquivamento de dados históricos. Nas tentativas de Nietzsche, tudo começou com a criação da distinção entre “História”, “Filosofia da história” e “Filosofia histórica”. Da genealogia em Nietzsche Essa distinção, citada acima, pode ser resumida da seguinte maneira, de acordo com as críticas de Nietzsche a cada uma dessas perspectivas: - A crítica da “História” é de sua concretização como uma disciplina científica. Para Nietzsche, quando se exige que a História seja “verdadeira” e que se encaixe nos padrões do método científico, se retira toda a ligação com a vida que ela formou em seu caminho e a primeira consequência disso é “que uma tal prática da história é inevitavelmente paralisante: nada permitindo mais selecionar entre os fatos verdadeiros aqueles que importam reter, o passado se torna o apeiron [infinito, ilimitado] sob o qual o presente se 4 Nietzsche: um guia introdutório encontra imerso”, argumenta Bertrand Binoche, professor da Universidade de Paris I. A segunda consequência é o nivelamento de todos os fatos históricos. Afinal, se todos os fatos verdadeiros são de igual importância, então qual seria a razão de preferir um a outro? “Admitindo que um deles se ocupe com Demócrito, está sempre em meus lábios a pergunta: mas por que justo Demócrito? Por que não Heráclito? Ou Filon? Ou Bacon? Ou Descartes? – e assim por diante, à vontade”, diz Nietzsche, citado por Binoche. “A história verdadeira é a história que acredita recusar todo juízo de valor, sem ver que acredita na verdade”, continua o autor alemão. - Já a “Filosofia da história” é criticada por suas características de dar sentido à história retrospectivamente. São as grandes teleologias, como a hegeliana que, por fim, encontra na história uma “forma acabada da teodiceia”, explica Binoche: “toda tentativa de ordenar a história a um sentido equivale, em consequência, a produzir uma ‘teologia embuçada’ ou ainda o que a quarta Extemporânea denuncia como uma ‘teodiceia cristã embuçada’. É exato que a filosofia da história justifica Deus, mas é precisamente por essa razão que é preciso colocá-la porta afora”. Por conta disso, o professor afirma que a filosofia da história é: 1) Extravagante por sua pretensão: como é possível seriamente se crer no ápice da história universal? 5 Nietzsche: um guia introdutório 2) Inconsequente: consciente do ridículo de sua tese, Hegel não ousa declarar o que, contudo, dela deduz-se necessariamente: “Aliás, ele teria mesmo de dizer que todas as coisas que viriam depois dele só devem ser avaliadas, propriamente, como a coda musical de um rondó da história universal ou, ainda mais propriamente, como supérfluas. Isso ele não disse (…)”; 3) Servil, na medida em que transforma o homem moderno num “adorador do processo”, num “idólatra do real” que curva a espinha diante dos fatos e se inclina diante de todo sucesso, já que a História é seu verdadeiro sujeito. Esses três pontos se diferem substancialmente da genealogia em Nietzsche, como será visto no decorrer do presente artigo. A segunda crítica é em sua democratização da história: ao formular leis para a história, se perde aquilo que vale a pena investigar, os grandes homens, indivíduos dignos que não fazem parte do povo, mas são pontos acima de qualquer linha média, “com efeito, a filosofia da história pretende formular leis da história; tais leis, porém, são concebíveis apenas se o historiador trabalha sobre massas, que fazem aparecer regularidades estatísticas”, explica Binochi. Trabalhar sobre massas é uma maneira de negar a vida e submeter o homem ao rebanho. 6 Nietzsche: um guia introdutório - A “Filosofia histórica” se concretiza como uma união sem subordinação da história com a filosofia. É aquilo que viria a ser chamado de genealogia, mais tarde. A filosofia histórica de opõe à filosofia metafísica, que é aquela que coloca os sentidos das coisas como se sempre tivessem existido, como o “belo”, “justo” e etc. Segundo esta filosofia, as coisas citadas são a-históricas e só é necessário descobrir seu verdadeiro significado. A filosofia histórica encontrou, primeiramente, na história dos sentimentos morais uma maneira de pensar o vir a ser sem divinizá- lo, sem colocá-lo em um pedestal – de procurarna história dos conceitos morais uma outra história mais interessante, que é a dos próprios sentimentos que os próprios julgamentos morais transformam. Segundo Binochi, “não se trata mais, portanto, do problema do valor da história, mas dos valores na história, estes transformando o próprio homem enquanto agregado de instintos”. No início de sua trajetória, a genealogia em Nietzsche (ainda não nomeada como tal) se apoia no utilitarismo inglês para realizar tal façanha: Nietzsche lança mão de um esquema perfeitamente identificável: na origem, a utilidade dita o valor, depois o hábito recobre a causa, deixando subsistir o efeito, ao qual é preciso, por conseguinte, 7 Nietzsche: um guia introdutório estabelecer, retrospectivamente, uma nova causa, completamente fictícia; é por isso que a história dos sentimentos não pode ser identificada com a dos conceitos que os designam posteriormente. Olhando de perto, a origem não desaparece, ela permanece, mas dissimulada pela segunda origem que se lhe sobrepõe a posteriori: ‘Tais ações, em que foi esquecido o motivo fundamental, o da utilidade, denominam-se então morais: não porque seriam realizadas por aqueles outros motivos, mas porque não são feitas em nome da utilidade consciente1 Mas sua perspectiva muda radicalmente em “Genealogia da moral”, quando a utilidade já não é tão importante, mas a potência toma conta da explicação, Para a genealogia da moral, em que, a propósito do castigo, encontra-se exposta a historicidade genealógica propriamente dita, segundo a qual toda coisa sempre se encontra já interpretada por uma vontade de potência que lhe confere seu valor e seu sentido até que outra vontade de potência se aposse dela e a recubra com um novo valor e um novo sentido, para além de qualquer ‘evolução’ e em total contingência.2 1 BINOCHE, Bertrand. Do valor da história à história dos valores. Cad. Nietzsche, São Paulo , v. 1, n. 34, p. 35-62, jun. 2014. 2 Do valor da história à história dos valores... 8 Nietzsche: um guia introdutório Quando se reduz “bem” ou “mal” à utilidade se mantém uma característica universal de seus valores. A metafísica permanece, apesar de sub-reptícia. Sem contar que pretender pela utilidade é também traçar uma história linear do desenvolvimento humano, como se tivesse uma direção já dada. Ainda por cima, a utilidade é sempre – naquela perspectiva – uma utilidade para o rebanho, para a massa. O novo procedimento precisava de um nome, que conseguisse expressar a noção da morte de Deus, portanto, da morte da “sucessão contingente de hegemonias provisórias” durante a história. Genealogia caiu como uma luva. Em resumo, para uma genealogia nitzscheana ser feita, é necessário perceber que não se trata de encontrar aquilo que é útil à comunidade ou aquilo que é “teleologicamente favorável à espécie”, explica Binochi. Se trata de entender que a utilidade está a serviço da vontade de potência e que, sendo assim, o “útil genealógico” é aquilo que permite que a potência se estenda indefinidamente, que os modos de existência que se impõe aos indivíduos são como são porque é somente desta forma que é possível avaliar o mundo e a si próprio, em função daquilo que pode estender a potência. 9 Nietzsche: um guia introdutório Nietzsche – O que é um filósofo? Por Rafael Trindade Desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de sua pessoa3 Nietzsche sabe filosofar com o martelo, mas também sabe dançar. Sua definição do filósofo é tão múltipla quanto as forças que nele habitavam. Há nele uma singularidade belíssima: a vida confunde-se com o pensamento. O simples fato de existir, se reflete em uma maneira de existir – eis a filosofia: quais são os valores que engendram uma vida? Como a saúde e a doença fazem de um corpo um filósofo? Num homem são as deficiências que filosofam, no outro, as riquezas e forças. O primeiro necessita da sua filosofia, seja como apoio, tranquilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; no segundo é apenas um formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos4 3 Nietzsche, A Gaia Ciência, Prólogo, §2. 4 Nietzsche, A Gaia Ciência, Prólogo, §2. 10 Nietzsche: um guia introdutório Nietzsche não quer saber de mundo das ideias, este ídolo quebrou- se há muito tempo. O filósofo alemão também não perde tempo subindo uma montanha com as tábuas que serão gravadas com as leis de deus, Deus está morto, resta este mundo e nós que o habitamos. Quem filosofa são os homens, e ela nasce da saúde ou da doença. Se no primeiro existe uma Vontade de Potência em constante atualização, no segundo encontramos um corpo enfermo, fraco, procurando em que se segurar. “Que virá a ser do pensamento mesmo que é submetido à pressão da doença?” (Nietzsche, A Gaia Ciência). De onde nascem as filosofias ascéticas? De onde nascem os ideais? Nietzsche responde isso em seu livro Genealogia da Moral: o homem doente vive a falta de sentido, não tem a capacidade de afirmar-se, não pode suportar a dor e cria mundos e planos onde procura descansar e se esconder. Todo idealismo, toda filosofia e religião até agora, todo platonismo disfarçado, todo desejo revolucionário de um mundo perfeito foi produto de um corpo cansado, esgotado, ávido por um paraíso perdido onde possa repousar. A filosofia nasce do corpo, em Nietzsche, filosofia e fisiologia se confundem. Temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo 11 Nietzsche: um guia introdutório sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós.5 Saber viver, enfrentar a dor, fazer do sofrimento ferramenta para superar-se. Se a vida é o prato do dia, a dor é seu tempero. O filósofo faz de seu corpo instrumento para afirmar valores e encontrar novos modos de vida. Nietzsche sofria de dores de cabeça horríveis que às vezes o deixavam de cama por dias. Ele era extremamente sensível ao clima e à culinária dos lugares por onde passava. Parte de sua vida foi dedicada à encontrar o melhor clima, os melhores pratos, os melhores livros, músicas. Aquilo que não o matou, o fortaleceu. “O veneno que faz morrer a natureza frágil é um fortificante para o forte – ele nem o chama de veneno” (Nietzsche, A Gaia Ciência). Ele soube fazer de sua dor o remédio para tornar-se mais forte, não o entorpecente para fugir do mundo e de si mesmo. Se o sofrimento é a condição de crescimento e criação de qualquer artista, porque não seria também do filósofo? Mas o fato de que hoje todos falem de coisas de que não podem ter qualquer experiência vale particularmente, e desgraçadamente, para os filósofos e os estados 5 Nietzsche, A Gaia Ciência. 12 Nietzsche: um guia introdutório filosóficos: – a pouquíssimos é dado conhecê-los, e todas as opiniões populares acerca deles estão erradas.6 Isso fez de Nietzsche um filósofo sem meias palavras. É de se esperar, então, que sua concepção de filósofo não seja das mais amistosas. Filos (amigo) e sofia (sabedoria) são interpretados por ele de uma perspectiva diferente. O filósofo, para Nietzsche, é aquele que carrega o martelo,e faz a sabedoria passar pelas mais duras provações. Que grande amigo da filosofia é este personagem cuja dureza e rispidez tira o melhor que tem de seu material de trabalho. O filósofo, com sua disciplina e rigidez, talvez até truculência, busca lapidar um diamante bruto, desinfetar a ferida purulenta. “Entendo o filósofo como um terrível corpo explosivo diante do qual tudo corre perigo”7. Para Nietzsche, a filosofia não deve ser o refúgio dos fracos. Filosofar está distante de rezar, pregar, salvar, cuidar… O filósofo é o contrário de um sacerdote e a filosofia não é uma casa onde os doentes descansam. Não há compaixão na filosofia! “Os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem ‘assim deve ser!’, eles determinam o ‘para onde?’ do ser humano”8. Ser filósofo é tornar 6 Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §213. 7 Nietzsche, Ecce homo, as Extemporâneas, §3. 8 Nietzsche, Além do Bem e do Mal. 13 Nietzsche: um guia introdutório sinônimo querer e criar, é dar vazão à Vontade de Potência. O filósofo cria valores, recicla, redispõe, reordena. Filosofar é comandar: “Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade é – vontade de poder. Existem hoje tais filósofos? Já existiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos? […]”9 A filosofia é a criação e transvaloração de valores. E para criar, os filósofos assumem diferentes perspectivas, trazem um novo olhar (aquele que só um homem sadio poderia trazer). O filósofo não sai do mundo para refletir, pelo contrário, se ele faz avaliações, seu dever é mergulhar no mundo. Sendo assim, o filósofo não poderia deixar de ser também um experimentador. Para ir além do bem e do mal, é preciso experimentar para além da moral. O pensador é como um alquimista, ele mistura afetos e forças. Fazer invenções, testar vidas, pensamentos, práticas. Aí faz-se a diferença entre o “trabalhador filosófico”, definido por Nietzsche como um pensador menor, e o “livre-pensador”, o filósofo legislador. Um, busca compreender para reproduzir e copiar, o outro compreende para inventar e criar em cima. “Filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a busca de tudo o 9 Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §211. 14 Nietzsche: um guia introdutório que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até agora baniu”10. Ir para além da moral, mas não se esconder, não fugir, não ter nojo. Nietzsche faz a negação da negação, ele vira o rosto para tudo que denigra este mundo. O filósofo não se isola, ele anda no mundo para exaltá-lo e conhecer seus inimigos. Talvez seja indispensável, na formação de um verdadeiro filósofo, ter passado alguma vez pelos estágios em que permanecem, em que têm de permanecer os seus servidores, os trabalhadores filosóficos; talvez ele próprio tenha que ter sido crítico, cético, dogmático e historiador, e além disso poeta, colecionador, viajante, decifrador de enigmas, moralista, vidente, “livre-pensador” e praticamente tudo, para cruzar todo o âmbito dos valores e sentimentos de valor humanos e poder observá-los com muitos olhos e consciências, desde a altura até a distância, da profundeza à altura, de um canto qualquer à amplidão. Mas tudo isso são apenas precondições de sua 10 Nietzsche, Ecce Homo. 15 Nietzsche: um guia introdutório tarefa: ela mesma requer algo mais – ela exige que ele crie valores.11 A tarefa do filósofo é então a de assumir uma postura nova, dar vazão à alegria criadora, à inspiração de artista e deixar-se levar pelo mar de forças que o farão viver e pensar como um juiz de si. A tarefa do filósofo é criar e ordenar valores. Mas como chegar tão alto? Como atingir os cumes do pensamento? Zaratustra ensina a dançar: somente aqueles com pés leves podem ir tão longe. Sim, a transvaloração de todos os valores implica em tornar tudo leve. Deixar todo peso, todo “Tu deves!”, é a tarefa do filósofo dançarino. É preciso ser muito leve, a fim de levar sua vontade de conhecimento a uma tal distância e como que acima de seu tempo, a fim de criar para si olhos que abarquem milênios e, além disso, um céu puro nesses olhos! É preciso haver se livrado de muita coisa que justamente a nós, europeus de hoje, oprime, inibe, detém, torna pesados.12 Aprender a dançar é aprender a ir além de si mesmo, criar valores, legislar, tornar-se senhor de si, sapatear em tudo que é pesado e lento. O verdadeiro dançarino é aquele que, apesar da dor dos pés 11 Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §211. 12 Nietzsche, A Gaia Ciência, §380. 16 Nietzsche: um guia introdutório machucados, parece voar. Dor, superação e beleza. O sofrimento transforma-se em meio para descolar-se do chão. E que outro caminho haveria? Não queremos a preguiça do homem sedentário. Tornar-se leve, flexível, imbatível, escorregadio, nômade, impossível de emboscar. Criar o novo, experimentar, inverter valores, inventar novos modos de vida: eis o filósofo. Zaratustra disse que só acreditaria em um deus que soubesse dançar, ele estava certo; Nietzsche, por sua vez, só acreditaria em um filósofo que soubesse dançar, tal como ele sabia. “Eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejar ser, senão um bom dançarino”13. 13 Nietzsche, A Gaia Ciência, §381. 17 Nietzsche: um guia introdutório A moral em Nietzsche: o castrado e o espírito livre Por Vinicius Siqueira É impossível se referir à moral em Nietzsche sem citar a ligação necessária que o autor concebia entre este conceito, o socratismo e o cristianismo. Apesar de irmos em direção de entender o que é a moral em geral na formulação nietzscheana, é importante compreender a crítica concreta do autor alemão, que começa com a repulsa à Sócrates e Platão. Nietzsche, moral dos fortes e moral dos fracos Reconheci Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos da decomposição grega, como falsos gregos, como antigregos ("Nascimento da Tragédia" 1872). Aquele consensus sapientium - isto fui compreendendo cada vez melhor - não prova sequer minimamente que eles tinham razão quanto ao que concordavam. O consenso demonstra muito mais que eles mesmos, esses mais sábios, possuíam entre si algum acordo fisiológico para se colocar frente à vida da mesma maneira negativa - para precisar se colocar frente a ela desta forma14. 14 Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos. 18 Nietzsche: um guia introdutório O declínio, a decadência, como já explicado aqui, é o movimento do niilismo, que tem como arma chave a moral. O consenso representa exatamente o caminho para esta decadência. O interessante é entender aqui que havia um afastamento no pensamento socrático no ato de olhar para a vida e a analisar como um objeto exterior ao ser vivente. Sócrates emitia juízos de valor sobre a vida, ele a valorava como se pudesse estar fora dela. No entanto, os juízos de valor a respeito da vida não podem funcionar com esta autoridade que Sócrates lhes concedeu mediante seus diálogos. É simples: "o valor da vida não pode ser avaliado. Não por um vivente, pois ele é parte, mesmo objeto de litígio, e não um juiz; não por ummorto, por uma outra razão", diz Nietzsche no Crepúsculo dos Ídolos (CI). O que isso significa? Você é vida, não consegue se avaliar porque está avaliando segundo valores avaliativos que te constituem. Você é parte daquilo que tenta avaliar através de um falso distanciamento. Mas qual é a relevância desta conclusão? Nietzsche também afirma que "toda e qualquer posição naturalista na moral, isto é, toda e qualquer moral saudável, é dominada por um instinto de vida" no CI. O instinto de vida é o livre fluxo da potência, é a potência movida por forças ativas: a moral natural é a moral dos nobres, da potência e a moral dos fracos é a moral da repressão, da castração, da religião, do cristianismo. Ao mesmo tempo, 19 Nietzsche: um guia introdutório A moral antinatural, ou seja, quase todas as morais que foram até aqui ensinadas, honradas e pregadas, remete- se, de modo inverso, exatamente contra os instintos vitais. Ela é uma condenação ora secreta, ora tonitruante e insolente destes instintos. No que ela diz 'Deus observa os corações', ela diz Não aos desejos vitais mais baixos e mais elevados, tomando Deus como Inimigo da Vida... O santo, junto ao qual Deus sente prazer, é um castrado ideal... A vida chega ao fim, onde o "Reino de Deus" começa...15 A tentativa de avaliar a vida e decidir a maneira correta de vivê-la ou de enxerga-la é, por excelência, força reativa. Ou seja, tentativa de barrar a potência do outro, de minar a criatividade e de castrar o desejo. É a moral dos fracos, que depende do outro para existir. Até agora, conseguimos visualizar a moral em Nietzsche a partir da divisão da moral dos fortes (moral naturalista), reconhecida como o livre fluxo da potência, e a moral dos fracos (moral antinatural), vista como potência movida por forças reativas, que precisam da referência do outro (e precisam barrar a potência do outro) para existir. Mas o que é a moral em geral, em Nietzsche? Segundo Érico de Andrade Oliveira, no artigo A Crítica de Nietzsche à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima, a moral "não seria um 15 Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos. 20 Nietzsche: um guia introdutório capítulo da razão humana [como na visão kantiana], mas o ponto para o qual converge toda predicação da natureza do homem e de suas ações". A moral é como um todo que valora a vida e a constitui o homem, o coloca no mundo e o faz perceber o mundo e suas hierarquias de uma forma particular. A moral valora. É aqui que passamos a entender que "quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nós quando instauramos valores" (Nietzsche, CI). A moral é uma forma de lidar com a vida a partir da valoração do mundo, o dilema da moral dos fracos e da moral dos fortes é que a primeira tem valores morais como dados imutáveis, já a segunda os considera como criações instintivas, explosivas. E é exatamente isso que a Genealogia da Moral vai expor: a tendência dependente da moral dos fracos e a explosividade e dominação da moral dos fortes. A tentativa de avaliar a vida e decidir a maneira correta de vivê-la ou de enxerga-la é, por excelência, força reativa. Ou seja, tentativa de barrar a potência do outro, de minar a criatividade e de castrar o desejo. É a moral dos fracos, que depende do outro para existir. Até agora, conseguimos visualizar a moral em Nietzsche a partir da divisão da moral dos fortes (moral naturalista), reconhecida como o livre fluxo da potência, e a moral dos fracos (moral antinatural), vista 21 Nietzsche: um guia introdutório como potência movida por forças reativas, que precisam da referência do outro (e precisam barrar a potência do outro) para existir. Mas o que é a moral em geral, em Nietzsche? Segundo Érico de Andrade Oliveira, no artigo A Crítica de Nietzsche à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima, a moral "não seria um capítulo da razão humana [como na visão kantiana], mas o ponto para o qual converge toda predicação da natureza do homem e de suas ações". A moral é como um todo que valora a vida e a constitui o homem, o coloca no mundo e o faz perceber o mundo e suas hierarquias de uma forma particular. A moral valora. É aqui que passamos a entender que "quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nós quando instauramos valores" (Nietzsche, CI). A moral é uma forma de lidar com a vida a partir da valoração do mundo, o dilema da moral dos fracos e da moral dos fortes é que a primeira tem valores morais como dados imutáveis, já a segunda os considera como criações instintivas, explosivas. E é exatamente isso que a Genealogia da Moral vai expor: a tendência dependente da moral do fracos e a explosividade e dominação da moral dos fortes. 22 Nietzsche: um guia introdutório Moral em Nietzsche: recusa do cristianismo Primeiramente, Nietzsche recusa o socratismo, 1) devido ao seu uso da dialética, que é o método dos perdedores, daqueles que não têm outra saída, afinal, a dialética obriga o forte a se justificar e a provar que não é um idiota (vide os diálogos de Sócrates) - os fortes não se justificam, não provam sua honra, eles simplesmente fazem e dominam. 2) devido ao afastamento da vida que ela promove: a separação do mundo tal como percebemos e do mundo ideal, assim como a separação do corpo e da alma promovem o niilismo negativo, a crença de que a vida de verdade está para além da vida como percebemos. Após essa primeira recusa, ele ataca a situação concreta da decadência exposta no parágrafo anterior (por meio de uma crítica ao cristianismo), Deus por conceito contrário e condenação da vida, é apenas um juízo de valor da vida. - De que vida? De que tipo de vida? - Mas eu já dei a resposta: da vida decadente, enfraquecida, cansada, condenada. A moral, tal como foi entendida até aqui - como por fim foi ainda formulada por Schopenhauer, como "negação da vontade de vida" -, é o próprio instinto da décadence que se 23 Nietzsche: um guia introdutório transforma em imperativo. Ela diz: "Pereça!" ela é o juízo dos que foram condenados...16 A vida termina onde o Reino de Deus começa. Isso porque o cristianismo é a incorporação da tese socrática de que a vida atual não é uma vida efetiva, é só uma aparência. A vida de verdade só existirá no paraíso, desta forma, é necessário viver tendo em vista a salvação. A hipótese da moral mínima Érico de Andrade Oliveira, em seu artigo já indicado acima, entende que a crítica de Nietzsche à moral Kantiana tem como núcleo a "a falta de discussão, por parte daquela moral, de um critério por meio do qual a produção e a legitimação de valores são realizadas". Os valores morais são como dados para esta proposta moral de Kant e, assim sendo, determinam um tipo de homem monolítico. A moral em Nietzsche, quando vista sob o ponto de vista da moral mínima, desligada da metafísica e inserida na efetividade, ou seja, ligada à situação concreta da multiplicidade de valores e de pessoas, assim como, que percebe a multiplicidade do indivíduo fora do rebanho, é uma moral que preserva condições mínimas para a 16 Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos. 24 Nietzsche: um guia introdutório possibilidade de valorarmos a vida deacordo com as diversas perspectivas de o que seria o humano. A crítica à Kant é também uma crítica à religião (e, por fim, à Sócrates), As exigências feitas por Kant para que uma moral fosse inscrita num patamar de universalidade, e portanto fosse legítima, coincidem, para Nietzsche, com os preceitos de uma religião que guarda uma prévia compreensão da natureza do homem e tenta, com um controle total das paixões, homogeneizar os homens. A individualidade é diluída no meio do rebanho17. E, citando o próprio Nietzsche em Além do Bem e do Mal, argumenta Érico, Nessa perspectiva, a exigência kantiana para atribuir o predicado de moral a uma ação configura-se como um pacto tácito com a tradição cristã que eleva o instinto de sobrevivência ao patamar moral. Escreve Nietzsche: “[...] é tempo, finalmente, de substituir a pergunta kantiana, ‘como são possíveis os juízos sintéticos a priori?’ com esta outra: “por que é necessária a crença em tais juízos?” e de compreender que semelhantes juízos devem ser tidos por verdadeiros para a conservação dos 17 Oliveira, A.O. A Crítica de Nietzsche à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima. 25 Nietzsche: um guia introdutório seres de nossa espécie; mas isso não impede que “eles também poderiam falsos!”18. Pensando numa separação kantiana entre moral e direito: a moral está na esfera da autonomia, uma definição/motivação interna (e uma ação interna) em busca de um fim (que é desinteressado); já o direito está na esfera da heteronomia, da coação/motivação externa e da verificação. É assim que o imperativo kantiano é exposto da seguinte maneira: Imperativo categórico (moral): Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal. (na Crítica da Razão Prática); Imperativo jurídico: Age externamente de tal maneira que o uso do livre arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos, Age externamente de tal maneira que o uso do livre arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos. (no Fundamentos de uma Metafísica dos Costumes). A diferença entre os dois imperativos está situada na diferença entre liberdade interna e liberdade externa. Enquanto o imperativo categórico precisa de um compromisso com a transcendência da moral como natureza ontológico do homem, o imperativo jurídico é 18 Oliveira, A.O. A Crítica de Nietzsche à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima. 26 Nietzsche: um guia introdutório verificável, pode ter como avalista, os próprios homens ou a lei, como indica Oliveira. Desta forma, a solução pautada no imperativo para garantir a multiplicidade das perspectivas morais, sem a anulação dos interesses dos indivíduos, estaria fundada nos seguintes imperativos: Imperativo categórico: age de tal modo que teu interesse (motivo de tua ação) possa ser preservado. Imperativo jurídico: age de tal modo que tua ação nunca se torne um valor absoluto. Essa é, segundo Oliveira, a única maneira de garantir que nenhum valor seja universalizado e que haja condições mínimas para a da multiplicidade das perspectivas. É o jeito da moral em Nietzsche conseguir aproveitar a filosofia kantiana para preservar aquilo que ela nega: a potência criativa dentro de sua esfera tão brutalizada pela decadência. 27 Nietzsche: um guia introdutório O niilismo em Nietzsche: decadência como um processo Por Vinicius Siqueira O niilismo em Nietzsche é um conceito chave que precisa ser discutido. Não é algo misterioso, mas também se diferencia daquilo que entende-se comumente pelo termo. Quando se fala de niilismo, é comum entender que se trata da negação de quaisquer valores. Nietzsche leva o termo para um caminho diferente, se referindo a ele como uma negação da vida. O que é a vida? A vida é dominação, violência, afirmação de si, é exercício da força, é se desligar do rebanho e se individualizar, é enfrentar o mundo de peito aberto e não se enganar com falsas crenças, é amar o mundo do jeito que ele é. O niilista, desta forma, é aquele que acredita em valores que não se confirmam na realidade, que não têm fundamento metafísico absoluto, é quem deixa de viver o agora em favor de uma suposta vida futura (num paraíso cristão ou numa sociedade ideal anarquista). O niilismo em Nietzsche não é uma escolha, mas é um processo. É uma situação em que nos encontramos não porque simplesmente escolhemos individualmente, mas porque fazemos parte de um processo que atravessa a história. Segundo Giacoia Junior, o niilismo 28 Nietzsche: um guia introdutório pode ser visto de duas maneiras nas obras de Nietzsche: como resultante da interpretação moral-cristã ou como resultante da crença nas categorias da razão. Niilismo, Nietzsche e a interpretação moral cristã Nietzsche entende que o fundamento niilista da nossa civilização ocidental não nasce com o cristianismo, mas tem bases anteriores, no entanto o cristianismo precisa ser interpretado como “potência civilizatória do mundo moderno, que sistematiza e universaliza as condições de conservação e reprodução do ascetismo platônico”. Ou seja, o que importa no cristianismo é sua estrutura religiosa – é sua forma de iludir e fazer crer naquilo que não é vida, no nada (é promover a vontade de nada) e sua força em promover este processo civilizatório anti-natural. No texto “Niilismo europeu”, o autor realiza uma pequena reflexão sobre a interpretação moral-cristã: Quais são as vantagens que oferece a hipótese moral cristã? 1. ela conferia ao homem um valor absoluto, em oposição à sua pequenez e à sua natureza fortuita no fluxo do devir e do desaparecer; 29 Nietzsche: um guia introdutório 2. ela servia aos advogados de Deus, na medida em que franqueava ao mundo, apesar do sofrimento e do mal, um caráter de perfeição, — aí incluída esta “liberdade” — o mal parecia pleno de sentido; 3. ela coloca no homem um saber que assenta em valores absolutos e lhe traz assim um conhecimento adequado sobre o que, precisamente, é o mais importante, ela impedia que o homem se desprezasse enquanto homem, que ele tomasse partido contra a vida, que ele desistisse do conhecimento: ela era um meio de sobrevivência: — no todo: a moral era o grande remédio contra o niilismo prático e teórico19. A interpretação moral-cristã estabelece um lugar para o homem dentro do devir e retira toda sua pequenez, sua fragilidade. Seu corpo decrépito é trocado por uma alma imortal. Esse objetivo precisa de uma noção que dê valor de verdade para sua trajetória, então o autor alemão continua: Mas, dentre as forças que a moral desenvolveu, estava a veracidade: esta se volta finalmente contra a moral, descobre a sua teleologia, a sua perspectiva interessada — e eis que a visão desta tendência inveterada para a mentira, da qual se desiste de se livrar, age justamente como um estimulante. Para o niilismo. Constatamos agora a presença em nós de necessidades implantadas 19 Friedrich Nietzsche. O Niilismo Europeu. 30 Nietzsche: um guia introdutório pela longa interpretação moral, e que nos aparecem também como necessidades do não-verdadeiro: por outro lado, é a elas que parece estar ligado o valor graças ao qual suportamos viver. Este antagonismo — não avaliar o que conhecemos, não mais tero direito de avaliar as mentiras nas quais gostamos de nos embalar — desencadeia um processo de dissolução20. A mentira se transforma no estimulante que nos faz agir. Em nossa força de viver. Vale dizer que o caminho da superação do cristianismo está justamente neste ponto: a crença na verdade nos obriga a evitar a mentira, nos colocando de frente com a crença religiosa. A “veracidade” que Nietzsche se utiliza acima é o “imperativo pela verdade” – esta força é, em seu fim, a auto-supressão da estrutura religiosa. A exigência daquilo que a estrutura religiosa possibilitou exigir mas que não pode atender. Niilismo e as categorias da razão Para Nietzsche, a crença nas categorias da razão nos faz acreditar num mundo que precisa ser visto por meio de falsas referências. Segundo Giacoia Junior, “Nietzsche tematiza três formas do niilismo,considerado como “estado psicológico”, ou seja, como conteúdo da consciência reflexiva. Em cada um deles, trata-se 20 Friedrich Nietzsche. O Niilismo Europeu. 31 Nietzsche: um guia introdutório sempre de uma categoria da razão, que dá apoio a uma interpretação do vir-a-ser e do valor da existência humana na corrente do devir”. Segundo o comentarista (Giacoia Junior), “O primeiro desses estados de autoconsciência do niilismo é analisado por Nietzsche na perspectiva da categoria do “sentido”, ou finalidade. Para suportar a existência, o homem tem necessidade de interpretar o vir-a-ser como dotado de um sentido […] O niilismo ocorre, então, nessa primeira forma, com a descoberta de que não existe nenhum alvo no e para o devir, que o acontecer do mundo e da história não são processos que se desenvolvem em vista de um fim a ser alcançado, ao qual estaria ligado o seu sentido e valor. Desse modo, o desalento sobre a pretensa finalidade é causa do niilismo, enquanto sentimento de vazio, de um frustrador ‘foi tudo em vão'”. Ele continua, “A segunda forma do niilismo como estado psicológico é presidida pela categoria de “totalidade” – enquanto suporte de uma interpretação global do vir-a-ser. A representação de uma unidade, de uma organização e sistematização globais conectaria a multiplicidade caótica dos seres individuais, contingentes e efêmeros, a uma totalidade integrada e orgânica – a um todo racional, de infinito valor (panteísmo, monismo, etc.), promovendo a reconciliação entre a finitude aleatória e o infinito necessário”. 32 Nietzsche: um guia introdutório Já a terceira forma surge a partir das duas primeiras, como uma situação de negação de sua validade por não compreenderem o mundo “verdadeiro”. “E com isso, a terceira forma do niilismo surge como consciência da mendacidade do mundo metafísico, e como descrença na categoria de verdade – com a descoberta de que o vir- a-ser é a única realidade – uma realidade, contudo, que não conseguimos suportar. Balanço final: desprezamos o resultado que alcançamos pelo conhecimento, ao mesmo tempo que não nos é mais lícito valorizar aquilo em que gostaríamos de continuar a crer”, revela o comentarista. Essas três formas de niilismo em Nietzsche (quando tomando as categorias da razão como referência) representam a impossibilidade de continuar com as interpretações baseadas nas categorias de sentido, totalidade e ser. Acredita-se que há um sentido, quando não há; acredita-se que há uma totalidade, quando não há; e acredita-se que, por nada ser de fato uma verdade (ou seja, por não haver sentido e nem totalidade), não há mais como viver a vida senão a partir de um movimento autodestrutivo de niilismo passivo, de aceitar o mundo sem valores e viver de forma covarde, ou seja, sem criar, somente aceitando. Sabemos que o “ser” não pode ser acreditado, mas não sabemos como viver sem a presença do “ser”, precisamos, então, entender que a única saída é criar. 33 Nietzsche: um guia introdutório Nietzsche – eterno retorno Por Rafael Trindade O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!’. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela21. 21 Friedrich Nietzsche, Gaia Ciência, 341. 34 Nietzsche: um guia introdutório O Eterno Retorno talvez seja um dos pensamentos mais conhecidos e importantes de Nietzsche. Procurando encontrar alternativas para fugir do niilismo decorrente da morte de Deus, o pensador alemão invoca a ideia do Eterno Retorno como possibilidade de aceitar e afirmar a vida. O importante não é pensá-lo como uma hipótese cosmológica, mas sim como um desafio ético, um pensamento seletivo. Você viveria sua vida mais uma vez e outra, e assim eternamente? Se fosse condenado a viver a mesma existência infinitas vezes, e nada além disso, como se sentiria? O Eterno Retorno é o niilismo usado como ferramenta contra ele próprio. Este pensamento é um teste que só os fortes podem suportar, um pensamento que seleciona as forças ativas. Caso se ame a vida e a frua autenticamente, a ideia do Eterno Retorno é uma bênção. Mas caso se esteja esperando pela próxima, guiando sua existência por uma pós-vida, amaldiçoando esta, neste caso, o pensamento de tudo voltar eternamente seria encarado como uma maldição. Aqueles que ainda podem nadar, abrem seu caminho em meio ao mar caótico das forças e chegam em terras desconhecidas, mas o mais pesado dos pesos faz naufragar os escravos da moral. Para Nietzsche, este pensamento supera todas as religiões e metafísicas porque mantém o centro de gravidade ética no real, não se busca por justificativas além-mundo para valorizar esta existência, ela se justifica por si mesma. O sem-sentido é uma operação seletiva. 35 Nietzsche: um guia introdutório Mas a seleção é bem diferente da platônica. Aqui a ideia é destruir em nós o que não pode ser salvo e voltar a criar o que possui a capacidade de criar. O martelo de Nietzsche serve para destruir e construir. Ele libera as forças corrompidas pelo ideal. O Eterno Retorno seleciona porque dilacera quando passivamente interpretado e leva ao êxtase quando ativamente interpretado. Com a morte de Deus, o mundo perde todos os parâmetros transcendentes em que se guiava. Não temos mais certo e errado, bem e mal como valores que alguma divindade nos revelaria, tudo passa a ser determinado pelo homem, construído e destruído exclusivamente porele. O Eterno Retorno é o niilismo mais selvagem que assusta aqueles que buscam um sentido. Ele abre dois caminhos: um onde a exaustão se esgota por si mesma; outro onde a abundância se supera: se separa e se expande. Pois bem, se a vida não tem sentido fora da própria vida, se não há valores transcendentes, então não há nenhum sentido na vida fora dela mesma, e não há uma entidade para julgar nossas ações. O Eterno Retorno coage o indivíduo a dar sentido por si mesmo. Ele se torna criador de valores, operando uma transvaloração de todos os valores. Esta capacidade de criar e ser juiz é o que justificará sua existência. Ele precisa escolher e criar pensando “viveria isso eternamente?”, “se tudo retorna, que forças justificam seu retorno?”. 36 Nietzsche: um guia introdutório A ideia de que tudo pode retornar exatamente igual nos torna infinitamente responsáveis por nossas escolhas e atitudes. Como seremos obrigados a vivê-las infinitas vezes, precisamos fazer o melhor possível, aqui e agora. Precisamos viver de modo que repetir tudo outra vez seja uma bênção! A vida não tem sentido? Ótimo! Melhor assim! Já imaginaram como seria se o mundo já estivesse justificado por um decreto divino? Já estivesse tudo decidido por algum ser superior? Por qualquer entidade que seja? Que tédio! Isso sim seria um terrível fardo! Não haveria sentido em criar nada. A moral, a religião, protegeram até agora a vida do sem-sentido, mas o Eterno Retorno é capaz de liberar as forças e diferenciar. Este é o papel do pensamento seletivo, acelerar a decadência nos permite ver quais forças devem se salvar e quais devem ser aniquiladas. Portanto, o maior de todos os pesos é também o maior de todos os presentes: se tudo retorna, a vida não tem sentido! Nós damos sentido a nossas vidas, como um artista que dá sentido a sua obra. Que bênção! Temos a chance, esta sim nos parece divina, de sermos responsáveis por nossa própria criação. Nietzsche abriu a possibilidade de nos tornamos artistas! Esculpindo-nos como nossa própria obra de arte; dançando a música da vida, não pelo que acontece depois que ela termina, mas pelo prazer do ritmo e da melodia. 37 Nietzsche: um guia introdutório Nietzsche – eterno retorno da diferença Por Rafael Trindade A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado22. Tornar leve o maior dos pesos! É isso que pretendemos com este texto. O Eterno Retorno é um conceito de Nietzsche muito lido e comentado nesta página, Deleuze, grande leitor e intérprete do filósofo alemão, ocupou-se deste pensamento quando desenvolveu o conceito Eterno Retorno da Diferença. interpretação radical de uma ideia já um tanto quanto forte. E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes”23. Sim! Esta é a aposta nietzschiana, você suportaria o pensamento do Eterno Retorno? A forma homem é capaz de afirmar o retorno de sua vida pequena e miserável? Conseguiríamos afirmar o retorno de tudo exatamente igual? “Tudo na mesma sequência e ordem – e assim 22 Friedrich Nietzsche, Ecce homo. 23 Nietzsche, A Gaia Ciência, §341. 38 Nietzsche: um guia introdutório também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante“. Não, o homem não suportaria o Eterno Retorno, ele não abençoaria o demônio que lhe dissesse isso; na verdade, ele “se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou“. O homem não consegue afirmar a existência com força o bastante para suportar o pensamento do Eterno Retorno; sua vida é muito fraca, ele pensa no porvir, no bem da humanidade, no progresso, no retorno de Cristo… “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟ é um pensamento extremamente pesado para o homem. Por isso, o cerne da questão é quando Nietzsche escreve: “ou você já experimentou um instante imenso?“. Sim! Quando a Vontade de Potência afirma a si mesma, ela cria! A Potência é sempre força de criação, produção do novo, produção de diferença! O homem está preso na repetição de sua vida medíocre, sente o peso da existência, sente suas forças se esvaírem. O Além-do- Homem é capaz de afirmar a existência porque sua força de afirmação é a de criação de novos valores! Nada é igual porque quando ele afirma ele o faz criando! A própria essência de seu ser é sua capacidade de diferenciar-se. O homem pequeno julga, tem medo, se esconde, pede tutela; já o Além-do-Homem está acima do 39 Nietzsche: um guia introdutório bem e do mal, só ele é capaz de afirmar o Eterno Retorno, porque para ele, o que retorna é a diferença, não o mesmo. É no pensamento do Eterno Retorno onde tudo se decide, onde os fortes se separam dos fracos, onde se diz Sim ou Não à vida e à existência. Ele é a chave para quebrar o niilismo! Por que o Eterno Retorno da Diferença separa os fortes dos fracos? Porque ele faz a seleção das forças. Você suporta o Eterno Retorno? Então você consegue afirmar a diferença que existe na própria afirmação! O niilista vence a si próprio, de reativo torna-se ativo. O peso do Eterno Retorno quebra o homem, o transforma em algo capaz de criar momentos imensos, onde o que se afirma é a própria afirmação de sua Vontade de Potência. O processo se dá em dois momentos. São duas afirmações: Pensamento Seletivo: acabar com os meio quereres, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟. Afirmar aquilo que se quer, aquilo que se faz e aquilo que passou, “transformar todo foi em assim eu quis”24. Ser Seletivo: o Eterno Retorno da Diferença é uma roda (devir) que gira rápido. O movimento centrífugo elimina aqueles que não conseguem manter-se. O que gira são as 24 Friedrich Nietsche, Assim Falou Zaratustra. 40 Nietzsche: um guia introdutório próprias forças que se afirmam, as forças se afirmam no devir, somente aquele forte o bastante é capaz de suportar. “Só volta a afirmação, só volta aquilo que pode ser afirmado, só a alegria volta. Tudo o que pode ser negado, tudo o que é negação, é expulso pelo próprio movimento do Eterno Retorno”25. Por isso trata-se de uma dupla afirmação: do devir, e da própria afirmação do devir. É um problema ético, aquele que consegue afirmar-se é aquele que dá à Vontade de Potência livre curso. Suas forças não estão quebradas, seus joelhos não estão dobrados. A Vontade de Potência sabe que a própria afirmação já é afirmar a diferença, isto porque a Vontade de Potência é a força de criação e diferenciação. Por isso torna-se leve e aprende a dançar. O homem ativo sabe que o que retorna é a diferença, e mais, ele quer fazer retornar a diferença, está ansioso por isso, operando mortes e criações! O movimento de diferenciação é a própria marca do seu ser, ele se diz através da diferença. O pensamento do Eterno Retorno destrói o homem cansado e o leva à ação, para dar livre curso à sua Vontade Criadora. O niilismo é vencido por si mesmo. 25 Deleuze, Nietzsche, p. 32 41 Nietzsche: um guia introdutório Tudo se torna leve, tudo dança, tudo acompanha o fluxo de produção infinita. Não há nada mais leve que o Eterno Retorno da Diferença, mas “o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida,para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?“. Por Colunas Tortas.
Compartilhar