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1FILOSOFIA Neste módulo, vamos estudar dois filósofos do final do século XVIII e início do XIX, Schopenhauer e Kierkegaard, que desenvolveram suas obras no contexto de uma Europa devastada pelas guerras napoleônicas. Desespero e angústia são marcas importantes desses filósofos; no entanto, ambos se negaram a se entregar facilmente ao sofrimento. Cada um deles, a seu próprio modo, buscou apresentar alternativas ao pessimismo e à percepção da vida como algo sem significado e sem sentido. 1. Arthur Schopenhauer: uma filosofia construída por meio de aforismos Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão, viveu à sombra de vários fantasmas: o do reconhe - cimento e o da fama, que só aconteceram 32 anos depois da publicação de sua principal obra, O mundo como vontade e representação; e o da aceitação, por parte da comunidade acadêmica, de que ele era superior a Hegel. Essa disputa com Hegel marcou a vida de Schopenhauer de forma profunda e intensa (e há dúvidas a respeito do quanto Hegel estava efetivamente preocupado com o seu suposto oponente). Os dois filósofos encontraram-se na Universidade de Berlim. Ali, Schopenhauer resolveu medir forças com Hegel, filósofo reconhecido como crítico e admirador de Kant. O que Schopenhauer desejava, na verdade, era ser reconhecido como o “verdadeiro intérprete” de Kant. A inveja e o ressentimento de Schopenhauer foram tamanhos que ele chegou a marcar suas aulas no mesmo horário em que Hegel ministrava seu curso de filosofia, com a intenção de disputar alunos e prestígio, iniciativa que só fez aumentar a sua raiva: sua sala continuava vazia, e a de Hegel, repleta de estudantes. Uma das principais características da obra de Schopenhauer é que as ideias são apresentadas sob a forma de aforismos. Determinado a superar os filósofos do romantismo alemão, Schopenhauer adotou o aforismo como marca de um pensamento livre de amarras expositivas e de complexidade conceitual. Esse estilo, quase artístico, acabou por influenciar gerações de filósofos, que viram no discurso aforístico uma maneira simples e atrativa de abordar temas complexos, até então apresentados segundo a tradição do pensamento lógico e sistemático de Hegel. 1FILOSOFIA Módulos 1 – A afirmação da vida e o existencialismo: Schopenhauer e Kierkegaard 2 – Nietzsche e a vontade 3 – A Escola de Frankfurt: Horkheimer, Habermas, Benjamin e Adorno 4 – A filosofia analítica: a questão da linguagem O pensador, de Auguste Rodin. 1 A afirmação da vida e o existencialismo: Schopenhauer e Kierkegaard Autora: Professora Ivy Judensnaider Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 1 2 FILOSOFIA Schopenhauer é lembrado como o filósofo da angústia e da desesperança. Essa perspectiva resulta da constatação de que, em sua obra, a angústia e o tédio são apresentados como elementos centrais da existência humana, na qual os momentos de felicidade são raros. No entanto, essa interpretação do pensamento de Schopenhauer é simplista demais. Em primeiro lugar, é importante observar que o mundo que se coloca diante do filósofo é conturbado e, efetivamente, repleto de sofrimento; é um mundo devastado pelas guerras napoleônicas que haviam deixado rastros de miséria e mutilação por toda a Europa. Até mesmo a Revolução Francesa resultara em desespero e terror. No entanto, Schopenhauer evita sucumbir ao desânimo e ao desalento; ao contrário, ele alerta para a necessidade de afirmar a vida e a disposição de vivê-la em plenitude, especialmente se essa afirmação e essa disposição forem materializadas sob a forma de uma sabedoria de vida (BARBOZA, 2002). Nesse sentido, podemos definir o pensamento de Schopenhauer como pendular, vale dizer, ele oscila continuamente entre pessimismo meta - físico e otimismo prático. Embora o mundo seja sofrimento no seu íntimo, o homem tem à sua disposição a possibilidade de uma felicidade, até onde é possível para seres tão carentes como nós. [...] Quer dizer, paradoxalmente, estamos diante de um livro de um metafísico pessimista que, todavia, não teme falar de uma felicidade alcançável (BARBOZA, 2002, p. XIII). Schopenhauer propõe fazer o balanço da vida por meio de uma curiosa comparação: de um lado, os prazeres usufruídos; do outro, os males evitados. A vida boa e sábia, dessa forma, é o que permite ao ser humano viver em um mundo que é quase um inferno. E, para uma vida boa e sábia, nada melhor do que a reflexão filosófica. Figura 1. Para Barboza (2002, p. XIV), "o que Schopenhauer entende por sabedoria está muito próximo da visão estoica do mundo, isto é, encarar as adversidades com serenidade. Eis a razão da crítica ao pessimismo exacerbado". Outro eixo importante do seu trabalho é a questão da representação. De forma curiosa (especial mente se considerarmos sua obsessão por Hegel), Schopenhauer defendeu que não se deve dar tanta importância ao que "representamos" na opinião do outro. Em outros termos, o ser humano deve evitar conduzir suas ações em função do que o olhar alheio determina. Como exemplo de atos tolos, e gerados pela insuportável necessidade de agradar a opinião de outros, Schopenhauer cita a prática do duelo: que coisa estúpida essa de, apenas por conta de uma ofensa externalizada, colocar a sua vida em risco ou tirar a vida alheia? Por qual motivo aquilo que parece aos outros deve valer mais do que o que pensamos a nosso próprio respeito? O mundo que vemos consiste em representação, meros fenômenos, como Kant muito bem o definiu. O que apoia essa representação, porém, não é, como em Kant, a realidade final do númeno, mas a Vontade universal. Essa Vontade é cega, perpassa todas as coisas e é sempre destituída de objetivo. Como o númeno de Kant, está além do espaço e do tempo e não possui causa. É isso que provoca toda a miséria e sofrimento do mundo, que só podem terminar com a morte. Nossa única esperança é nos libertarmos do poder dessa Vontade e da carga de individualidade e egoísmo atada a ela. Isso só pode ser obtido pela renúncia expressa na compaixão por nossos irmãos sofredores, pela abnegação da vontade tal como praticada pelos santos e eremitas de todas as raças e credos, e pela apreciação estética das obras de arte (que inclui a contemplação sem vontade) (STRATHERN, 1998, p. 10). Observação: A metafísica busca a compreensão daquilo que está além da experiência sensível. Assim, suas principais preocupações são a totalidade cósmica, a alma humana e o conhecimento da essência das coisas. Observação: O aforismo é uma espécie de ditado, ou sentença sintética, que apresenta uma regra ou princípio moral. Trata-se de um texto curto e breve, cujo conteúdo encerra uma reflexão filosófica. 2 FILOSOFIA IN G IM A G E /F O TO A R E N A Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 2 A vontade, assim, é a nossa experiência direta, uma força impessoal que funciona como motor de nossas vidas. O mundo, esse lugar inóspito e cruel, merece nosso repúdio; as artes, em particular, podem nos aliviar de uma existência de suplícios e de sofrimento. E, como estamos separados uns dos outros apenas na aparência, os sentimentos de compaixão e de amor podem construir uma realidade em que os seres humanos sejam solidários uns com os outros. Dessa forma, Schopenhauer realizou uma mudança radical com relação à tradição filosófica antecedente, pois ela colocou em segundo plano a primazia da razão como sendo a legisladora e o princípio ordenador do mundo. Desde os gregos antigos, a filosofia expressou grande confiança no poder da razão, depositando na racionalidade cósmica uma ordem inteligente que rege e conduz as leis naturais do universo. No entanto, contrariando este posicionamento, a filosofia schopenhaueriana se desenvolveu na reflexão acerca do irracional, isto é, ela parte da ideia de que o princípio de onde todas as coisas emanam, a Vontade, a coisa-em-si do mundo, não possui nenhum fundamento ou razão. Para Schopenhauer, a Vontade é uma força cega e dinâmica. [...]. Noutras palavras, a Vontade é entendida como um princípiometafísico, sem finalidade ou objetivo, uma força volitiva e insaciável, que se firma nas diversas camadas da natureza e da existência em geral (NASCIMENTO, 2015, p. 2). Em vez de fazer a apologia do desespero, Schopenhauer propõe que os jovens busquem evitar a dor; a felicidade e o prazer completo são impossíveis de serem alcançados, e uma vida sábia resulta do reconhecimento de que não há muito o que se esperar do mundo. A inútil busca pela felicidade é substituída pela alegria que pode ser encontrada nas pequenas coisas. A distinção entre opinião alheia e valor próprio é o eixo de uma das obras de Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria da vida. Assim, o ser humano detém três diferentes tipos de bens: tudo o que possui em termos de valores e características pessoais; tudo o que possui em termos materiais; e tudo o que representa para os outros. Aristóteles (Ética a Nicômaco, I. 8) dividiu os bens da vida humana em três classes: aqueles que vêm de fora, aqueles da alma e aqueles do corpo. Preservando dessa divisão somente o número três, observo que as diferenças fundamentais na sina dos homens podem ser reduzidas a três classes distintas: (1) O que um homem é, ou seja, sua persona - lidade no sentido mais amplo. Isso inclui saúde, força, beleza, temperamento, caráter moral, inteligência e educação. (2) O que um homem tem, ou seja, propriedades e posses em todos os sentidos. (3) O que um homem representa; sabemos que por meio dessa expressão entende-se o que um homem é aos olhos dos demais e, portanto, como é representado por esses. Consiste, assim, na opinião desses ao seu respeito, e pode ser dividida em honra, posição e glória. Observação: Para Kant, a experiência é fundamental para a construção do conhecimento; no entanto, é a mente humana que torna a experiência possível. Nosso conhecimento sobre a realidade é limitado, já que a mente humana não é capaz de conhecer a coisa em si, na sua totalidade (o númeno). Somos apenas capazes de conhecer o que nossa mente consegue apreender da realidade, o fenômeno, que nada mais é do que uma representação da realidade. 3FILOSOFIA Sugerimos que você assista dois filmes que, de certa forma, tangenciam as ideias de Schopenhauer. O primeiro é Os Duelistas (1977), filme dirigido por Ridley Scott e protagonizado por Keith Carradine e Harvey Keitel. Por causa de uma troca de ofensas, dois soldados franceses tornam-se inimigos, ameaçando-se e enfrentando-se em duelos ao longo de quinze anos. O filme trata dos exageros e absurdos que são cometidos em nome da honra. O segundo filme é Blade Runner (1982), também dirigido por Ridley Scott e protagonizado por Harrison Ford e Rutger Hauer. Uma das obras cinemato - gráficas mais icônicas da década de 1980, o filme narra as aventuras de um caçador de androides fugitivos que lutam pelos direitos de uma existência humana (ou pelo reconhecimento de que suas existências são tão especiais quanto as dos seres humanos). Afinal, se eles são percebidos pelos outros como humanos, por que então eles devem ser considerados escravos ou inferiores? Uma das questões que o filme deixa em aberto diz respeito ao caçador que, melancolicamente, coloca em dúvida a sua própria condição: ele é humano ou é apenas um androide que se imagina humano? ?? Saiba mais Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 3 As diferenças a serem consideradas em relação à primeira classe são aquelas que a própria natureza estabeleceu entre os homens. Disso pode-se inferir que sua influência sobre a felicidade ou infelicidade da humanidade será muito mais fundamental e radical que aquela abarcada pelas outras duas classes, que são apenas o efeito de decisões e resoluções humanas. Comparados com vantagens pessoais genuínas, como uma grande mente ou um grande coração, todos os privilégios de posição, nascimento, mesmo um nascimento nobre, riqueza e assim por diante, não passam de reis de teatro em comparação com reis na vida real. [...] E é óbvio que o elemento principal no bem-estar de um indivíduo — de fato, de todo o seu modo de existir — é aquilo que o constitui, que ocorre dentro dele próprio. Pois isso constitui a fonte imediata de sua satisfação ou insatisfação íntima, que resulta de todo o seu sentir, desejar e pensar. Por outro lado, tudo que o cerca exerce somente uma influência indireta; por esse motivo, os mesmos eventos ou circunstâncias afetam diferentemente cada um de nós; e até com ambientes exatamente iguais, cada qual vive em seu próprio mundo. Pois um homem apenas preocupa-se diretamente com suas próprias ideias, sentimentos e volições; o mundo exterior somente pode influenciá-lo na medida em que traz vida a esses. O mundo em que cada qual vive depende principalmente de sua própria inter - pretação desse e, assim, mostra-se diferente - mente a homens diferentes; para um é pobre, insípido e monótono, para outro é rico, interessante e importante. Por exemplo, apesar de muitos invejarem os acontecimentos interes - santes que ocorreram ao longo da vida de um homem, deveriam, em vez disso, invejar seu dom de interpretação que imbuiu tais eventos com a significância que exibem enquanto os descreve. O mesmo evento que parece interessante ao homem de gênio seria somente uma cena monótona e fugidia do mundo corriqueiro quando concebida pela mente superficial de um homem comum (SCHOPENHAUER, 2002, p. 3-9). 2. Søren Kierkegaard Representante do existencialismo, o dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855) refletiu sobre o indivíduo e sua existência. Diante de uma Europa destroçada pela guerra, o desespero precisava de um discurso que o explicasse e o justificasse: a filosofia existencialista cumpriu com esse papel no século XIX e Kierkegaard tinha o perfil ideal para a sua elaboração: criado de forma intransigente e autoritária pelo seu pai, atormentado pela ideia de pecado e pelos conflitos religiosos daquele período, frustrado com o fato de não conseguir concretizar uma relação amorosa com Regine Olsen, a quem conhecera quando ela era ainda uma criança, e mergulhado em dúvidas e incertezas, ninguém melhor do que ele para tentar responder a questões que outros filósofos haviam desistido de solucionar. Na verdade, Kierkegaard retomou uma questão que havia sido deixada de lado: o que era a existência, afinal? A filosofia há muito desistira de tentar responder a essa pergunta, já que entendia ser impossível alcançar uma explicação. Qual era a utilidade de questionar-se a respeito do significado da vida e do sentido da existência? No século XVII, Descartes propusera uma solução no seu cogito. Cogito ergo sum, quer dizer, penso logo existo. Pode-se duvidar de tudo, menos de que estamos pensando. Se eu penso em algo, eu existo. Todo o restante pode ser apenas fruto de ilusões ou erros, exceto o fato de eu pensar. Hegel, no início do século XIX, havia retomado a questão da existência: era real tudo o que era racional e tudo que era racional era real. Realidade e razão justificavam-se e explicavam-se. No entanto, a pergunta sobre o significado da existência ainda continuava sem resposta. Profundamente impactado pela dialética hegeliana, Kierkegaard procurou oferecer uma explicação para o sentido da existência. Sua relação com as ideias de Hegel era, aliás, marcada pela dialética: Kierkegaard amava Hegel e, ao mesmo tempo, odiava Hegel. Como outros filósofos que haviam sido influenciados pelas ideias de Hegel, o que Kierkegaard mais queria era conseguir superar o mestre tão admirado. A dialética também alcançaria a relação de Kierkegaard com sua própria obra. Vários dos seus textos foram publicados sob pseudônimos que Kierkegaard fazia questão de sinalizar que eram falsos. Escondendo-se, mas revelando-se, o filósofo entrou em contato com Observação: A dialética hegeliana parte de uma tese que, por sua vez, gera o seu contrário, a antítese. A síntese é o resultado do encontro entre tese e antítese e, na sequência, ela se transforma em tese. Um exemplo pode ser a seguinte ideia. O Ser (a existência) é a tese. O Nada é aantítese da tese. A síntese, encontro entre tese e antítese, é o devir, o vir-a-ser, o que ainda não é, mas que poderá ser, quando a mudança e a transformação agirem sobre as coisas provisórias e transitórias. 4 FILOSOFIA Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 4 outros pensadores alemães que, como ele, tentavam libertar-se da sombra de Hegel. Kierkegaard, no entanto, acreditava ter condições de se sair bem dessa tarefa. O que os outros não haviam ainda compreendido era que O sistema filosófico de Hegel e, de fato, todos os sistemas filosóficos eram agora coisa do passado. Um sistema construído sobre princípios racionais (como qualquer sistema devia ser) só descrevia os aspectos racionais do mundo. Kierkegaard compreendera — e experimentara plenamente — o fato de que a subjetividade não era racional (STRATHERN, 1999, p. 23). Kierkegaard trouxe à tona um dilema extremamente simples e que, de certa forma, explicava a existência e dava sentido à vida. Para ele, havia duas maneiras de viver a vida: a estética e a ética. Cabia a cada ser humano fazer sua escolha, escolha essa que resultava em consequências sobre as quais cabiam responsabilidades. Os que preferiam a estética, viviam para o seu próprio prazer. Kierkegaard, no entanto, fazia uma ressalva. Num nível básico, o indivíduo que vive a vida estética não tem o controle da sua existência. Ele vive o momento, levado pelo prazer. Sua vida pode ser contraditória, carente de estabilidade e certeza. Mesmo num nível mais calculado, a vida estética continua sendo “experimental”. Sentimos certo prazer apenas enquanto ela exerce apelo sobre nós. A inadequação do ponto de vista estético é fundamental. Porque ele se apoia no mundo externo. Ele “espera tudo de fora”. Dessa forma, é passivo e carente de liberdade. Apoia-se em coisas que estão, em última instância, além do controle da sua vontade — como o poder, as posses ou mesmo a amizade. É contingente, dependente do “acidental”. Não há nada “necessário” nele. Se compreendermos essas coisas, veremos a inadequação última da existência estética. Quando um indivíduo que vive a vida estética reflete sobre sua existência, logo percebe que lhe faltam certeza e significado (STRATHERN, 1999, p. 25). Esta renúncia à liberdade, este colocar-se como um mero joguete do destino, este é o caminho que leva certamente ao desespero. Assim, o que Kierkegaard pretende é oferecer uma alternativa ao desespero. "A solução que lhe deu foi igualmente radical. A única resposta é assumir a posse integral da própria existência e aceitar responsabilidade por ela" (STRATHERN, 1999, p. 27). Não à toa, essa perspectiva existencialista influenciaria enormemente os filósofos de uma Europa que, no século XX, viveria em constante estado de guerra. Ao contrário de uma vida estética, Kierkegaard oferece a chance de o indivíduo fazer uma opção, uma opção ética. Ali onde o indivíduo estético meramente aceita-se tal como é, o indivíduo ético procurar conhecer e mudar a si mesmo por escolha própria. Será guiado nisso pelo seu autoconhe cimento e sua vontade — não de aceitar o que descobre, mas de tentar melhorar isso (STRATHERN, 1999, p. 28). Enquanto o indivíduo estético está preocupado com o mundo exterior, o indivíduo ético busca tornar-se melhor e alcançar uma vida mais elevada em termos de padrões éticos. E a transição do mundo estético para o ético ocorre de forma natural, já que, automaticamente, o ser humano é capaz de reconhecer o que é superior. De acordo com a lógica dialética, estética e ética fazem gerar uma síntese que, para Kierkegaard é a religião. A religião transcende o ético; na verdade, para que o ser humano alcance o estágio mais elevado de superioridade moral, ele deve transcender seus princípios éticos em favor de um propósito maior. Como exemplo dessa transição, Kierkegaard relembra o sacrifício de Isaac imposto por Deus a Abrão. Para testar sua fé, Deus ordena a Abraão que mate o filho Isaac. Esse ato só pode ser visto como eticamente errado — mas a verdadeira fé (exigência do estágio religioso) envolve o propósito divino, que rejeita e suplanta toda demanda meramente ética. Abraão se dispõe a seguir a ordem de Deus, independente da repugnância que possa sentir por semelhante ato. Nisso está levando uma vida no nível religioso, que é superior à vida ética porque tem fé na divindade da qual o ético se origina (STRATHERN, 1999, p. 30). Figura 2. Para Kierkegaard, “cada indivíduo é, em certa medida, o criador do seu próprio mundo. E cria seu mundo em função dos valores que tem” (STRATHERN, 1999, p. 34). Observação: A filosofia de Kierkegaard exerceu uma profunda influência no desenvolvimento da psicologia, em particular a freudiana. A liberdade, antes de ser uma questão filosófica, está associada à atitude mental que determina nossos padrões psicológicos. 5FILOSOFIA IN G IM A G E /F O TO A R E N A Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 5 Cada indivíduo constrói seu próprio mundo, por meio do exercício da vontade. Vemos o que queremos ver, e vemos de acordo com valores que escolhemos e que nos fazem ser o que somos. Essas escolhas são arriscadas: não há como termos certeza de que são as melhores. A vida que vivemos, e a consciência que dela temos, são precárias. Se é verdade que nossa vida pode terminar a qualquer momento, também é verdade que, a cada instante, nos é possível modificá-la por meio de escolhas. 6 FILOSOFIA � Sentimos que toda satisfação de nossos desejos advinda do mundo assemelha-se à esmola que mantém hoje o mendigo vivo, porém prolonga amanhã a sua fome. A resignação, ao contrário, assemelha-se à fortuna herdada: livra o herdeiro para sempre de todas as preocupações. (A. Schopenhauer. Aforismo para a sabedoria da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2005.) O trecho destaca uma ideia remanescente de uma tradição filosófica ocidental, segundo a qual a felicidade se mostra indissociavelmente ligada à a) consagração de relacionamentos afetivos. b) administração da independência interior. c) fugacidade do conhecimento empírico. d) liberdade de expressão religiosa. e) busca de prazeres efêmeros. RESOLUÇÃO: Para Schopenhauer, a Vontade é materializada no interior do indivíduo, como força motriz da vida. Aquilo que é externo, inclusive a opinião alheia, não pode reger a vida ou as decisões de alguém. Assim, a independência interior é condição para uma vida que, embora não possa alcançar a felicidade suprema, pode ser aproveitada e proporcionar prazer ao homem. Resposta: B. � (Concurso de Provas e Títulos, com modificações) – A angústia é uma experiência cujo manejo é objeto frequente de intervenção do psicólogo hospitalar. Kierkegaard preocupa-se em mostrar como a existência está centrada na angústia e como a partir dela se desdobram outras experiências que levam o indivíduo ao reconhecimento de si mesmo. Em relação à angústia, verifique as afirmações a seguir: I. A possibilidade de fazer escolhas marca o ser humano, trazendo-lhe angústia e sofrimento. II. A angústia dá ao ser humano a percepção de sua própria finitude e da impossibilidade de alcançar a perfeição e a completude. III. A angústia resulta de o ser humano perceber que pode fazer escolhas que podem ser ou não bem-sucedidas. Está correto o que se afirma em: a) I, apenas. b) II e III, apenas. c) III, apenas. d) I e III, apenas. e) I, II e III. RESOLUÇÃO: O ser humano é livre para realizar as escolhas que quiser, mas deve assumir as consequências resultantes das escolhas feitas. A escolha requer, necessariamente, a renúncia de uma das alternativas possíveis, e essa é a principal fonte de angústia do ser humano. Mais: por se saber imperfeito, e desde que se afastou da divina perfeição em função do pecado original, o ser humano sabe que não há como escapar da possibilidade de fracasso. Escolher envolve risco, e esse é um fato intransponível. Resposta: E. Exercícios Propostos Referências Textuais ABRÃO, B. S. (Org.). História da filosofia. São Paulo:Nova Cultural, 1999. BARBOZA, J. Prefácio. In SHOPENHAUER, A. Aforismos para a sabedoria da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2002. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2002. NASCIMENTO, I. S. A metafísica da vontade em Schopenhauer. Revista Lampejo, Fortaleza, v. 1, n.° 8, p. 1-15, 2015. Disponível em: <http://revistalampejo.org/edicoes/edicao-8/01%20Artigo%20-%20A%20Metafisica%20da%20Vontade.pdf>. Acesso em: 7 set. 2018. SCHOPENHAUER, A. Aforismos para a sabedoria da vida. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2002. STRATHERN, P. Schopenhauer em 90 minutos. Tradução de Maria Helena Geordane. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. _________ . Kierkegaard em 90 minutos. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. Audiovisuais Blade Runner. Dir. Ridley Scott. Estados Unidos/Hong Kong: The Ladd Company, Shaw Brothers e Blade Runner Partnership, 1982. 117 minutos. Os Duelistas. Dir. Ridley Scott. Estados Unidos: Paramount, 1977. 100 minutos. Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 6
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