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Serviço Público Federal Universidade Federal do Pará Centro de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Psicologia Experimental Subjetividade e Relações Comportamentais Emmanuel Zagury Tourinho Tese apresentada ao Departamento de Psicologia Experimental, Universidade Federal do Pará, como requisito para inscrição no Concurso Público para Professor Titular da Matéria Psicologia Geral e Experimental. Belém, Pará 2006 i Dedico este trabalho à Simone, com muito amor. ii A elaboração deste trabalho foi apoiada de forma decisiva pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq (Processos 305743/2004-0 e 470802/2004-9). iii Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . . e vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo. Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo. (Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo) iv Tourinho, E. Z. (2006). Subjetividade e Relações Comportamentais. Tese apresentada ao Departamento de Psicologia Experimental, Universidade Federal do Pará. Belém, Pará. RESUMO Fenômenos relativos à “subjetividade” humana têm sido abordados pela Psicologia desde sua origem como disciplina independente e representam, ainda hoje, um tema dos mais controversos no debate travado por diferentes escolas de pensamento psicológico. No presente trabalho, a “subjetividade” é entendida como conceito que sintetiza os modos como sentimentos, emoções e pensamentos são vividos em sociedades em estágio avançado do processo civilizador. Com o objetivo de prover um tratamento (comportamental) abrangente para o tema da subjetividade, alguns aspectos centrais dessa temática são discutidos à luz de duas referências principais. Uma primeira referência consiste das dicotomias psicológicas clássicas, que sintetizam a problematização moderna da chamada experiência subjetiva: as dicotomias público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno e físico-mental. A segunda referência consiste da proposição analítico-comportamental de interpretar os fenômenos psicológicos como relações comportamentais. No exame das dicotomias psicológicas clássicas são assinaladas algumas de suas raízes histórico-culturais e suas conexões com valores e práticas de uma cultura individualista. No desenvolvimento de uma interpretação analítico- comportamental para a subjetividade são propostas direções para uma caracterização de sentimentos e pensamentos como relações comportamentais e explicadas como se elaboram nesse contexto as noções de individualidade, autonomia e autocontrole. O trabalho desenvolve a tese de que os conceitos de privado, subjetivo, interno e mental refletem a dificuldade em reconhecer dimensões da interdependência entre indivíduos na definição dos fenômenos psicológicos, o que pode ser superado com uma interpretação de sentimentos e pensamentos como relações comportamentais, desde que ponderados os modos como variáveis culturais dão uma conformação particular a esses fenômenos. Nesse percurso, sugere-se que uma interpretação analítico- comportamental consistente para o problema depende menos da afirmação de um monismo físico e mais da apreciação de como se configuram, na cultura ocidental moderna, as relações comportamentais descritas como sentimentos e pensamentos. Palavras-chave: subjetividade, eventos privados, sentimentos, pensamento. v Tourinho, E. Z. (2006). Subjectivity and Behavioral Relations. Thesis presented to the Departamento de Psicologia Experimental, Universidade Federal do Pará. Belém, Pará. ABSTRACT Human “subjectivity” phenomena have been discussed in Psychology since its inception as an independent discipline, and still represent one of the most controversial themes in the debate promoted by different psychological systems. In the present work, “subjectivity” is treated as a concept that summarizes the ways feelings, emotions and thinking are experienced in highly civilized societies. The objective of the work is to provide a broad (behavioral) approach to the theme of subjectivity. Two main references are adopted in the discussion of some aspects that are central to the problem of subjectivity. The first reference is the set of classical psychological dichotomies, which largely summarize modern treatment of the so called subjective experience: the public- private, objective-subjective, outer-inner, and physical-mental dichotomies. The second reference consists of the behavior-analytic proposition that we interpret psychological phenomena as behavioral relations. With respect to the classical psychological dichotomies, some of their historical-cultural roots are pointed out, as well as their relation to values and practices that are typical of individualist societies. In the development of a behavior-analytic interpretation to subjectivity, some directions are proposed in order to view feelings and thinking as behavioral relations. It is also explained how the notions of individuality, autonomy and self-control may be approached in the context of such theoretical perspective. The work develops the thesis according to which the concepts of private, subjective, inner and mental reflect a difficulty in recognizing interdependence among individuals, and that this may be overcome as we interpret feelings and thinking as behavioral relations, as long as we regard the ways cultural variables give in unique features to these phenomena. Along this reasoning, it is suggested that a consistent behavior-analytic interpretation to the problem requires not so much an assertion of physical monism, but more importantly requires a proper evaluation of the features found in behavioral relations described as feelings and thinking in modern western cultures. Key-words: subjectivity, private events, feelings, thinking. vi SUMÁRIO RESUMO iv ABSTRACT v APRESENTAÇÃO viii INTRODUÇÃO 1 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 7 CAPÍTULO 1: RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O FLORESCIMENTO DAS DICOTOMIAS PSICOLÓGICAS CLÁSSICAS. 14 1.1. A Interdependência Humana em uma Sociedade Hierárquica. 18 1.2. Condições de Interdependência em uma Sociedade de Mercado. 27 1.3. A Emergência do Indivíduo e o Acobertamento das Relações de Interdependência. 37 1.4. Dimensões do Indivíduo e as Dicotomias Psicológicas Clássicas. 58 CAPÍTULO 2: DIMENSÕES DA ABORDAGEM ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL PARA O PROBLEMA DA SUBJETIVIDADE. 94 2.1. A Noção de Eventos Privados. 100 2.2. Limites da Noção de Eventos Privados. 114 2.3. “Eventos Privados” como Resposta Verbal. 123 2.4. Relações Comportamentais e as Dicotomias Psicológicas Clássicas. 145 vii CAPÍTULO 3: SUBJETIVIDADE, EVENTOS PRIVADOS E RELAÇÕES COMPORTAMENTAIS. 160 3.1. A Individualização. 161 3.2. A Autonomia. 174 3.3. O Autocontrole. 190 3.4. Fugindo à Lógica das Dicotomias PsicológicasClássicas: Complexidade, Acessibilidade e Relevância de Relações Comportamentais. 200 CONSIDERAÇÕES FINAIS 204 REFERÊNCIAS 211 viii APRESENTAÇÃO Emoções e pensamento são tratados em manuais de Psicologia (e.g., Huffman, Vernoy & Vernoy, 2003) como alguns dos processos psicológicos básicos (ao lado de aprendizagem, cognição, memória, percepção e outros), uma matéria que requer um tratamento específico de qualquer sistema explicativo abrangente na Psicologia. Como o conceito de emoções, o conceito de sentimentos é também empregado com freqüência na abordagem de fenômenos considerados afetivos. Ainda que muitas vezes sejam usados como sinônimos, sentimentos e emoções são em alguns sistemas diferenciados com base na existência (para os primeiros) de um componente lingüístico na afetividade. Emoções, sentimentos e pensamentos constituem o foco do presente trabalho. Eles serão abordados como fenômenos que em grande medida sintetizam o que tem sido denominado de subjetividade. A análise oferecida pode se estender a outros fenômenos ou conceitos correlatos, como cognição, sensação etc., embora não sejam examinadas particularidades desses outros fenômenos ou dos usos desses outros conceitos. Discutindo pensamentos, emoções e sentimentos, acreditamos ser possível oferecer um tratamento (comportamental) abrangente para o tema da subjetividade, objetivo deste trabalho. Homens e mulheres de todas as culturas emocionam-se e refletem sobre o mundo a sua volta. Algumas emoções (e.g., medo, tristeza) são, inclusive, consideradas parte de nossa herança filogenética (cf. Ekman, 1993; Millenson, 1967/1975; Russell, 1991). Com o conceito de subjetividade, porém, ix estaremos referindo o modo específico como emoções, sentimentos e pensamentos são experimentados na cultura ocidental moderna, um modo que tem sido referido como “privado” (cf. Elias, 1994) ou “privatizado” (cf. Figueiredo e Santi, 1997). É a configuração (discutida ao longo deste trabalho) que sentimentos, emoções e pensamentos adquirem na cultura ocidental moderna que dá origem aos conceitos de privado, subjetivo, interno e mental. E é essa mesma problemática que está na base da fundação da Psicologia como disciplina independente, primeiro um campo reflexivo, depois uma ciência e uma profissão de ajuda. A subjetividade assim entendida será examinada ao longo do trabalho, a partir de duas referências. No Capítulo 1, são discutidos aspectos histórico- culturais da experiência moderna de sentimentos e pensamentos, enfatizando- se as condições sociais que estão na origem do que denominaremos aqui de dicotomias psicológicas clássicas (público-privado, objetivo-subjetivo, interno- externo, físico-mental). Nos Capítulos 2 e 3, o trabalho focaliza a elaboração de uma interpretação para emoções, sentimentos e pensamentos, à luz dos princípios do sistema explicativo denominado Análise do Comportamento, que tem como referência principal a obra filosófica e científica de B. F. Skinner. O trabalho pretende oferecer um tratamento analítico-comportamental abrangente para a subjetividade, em que emoções, sentimentos e pensamento são concebidos essencialmente como relações comportamentais. Essa elaboração conflita com noções e valores, próprios de uma cultura individualista, que encontram expressão nas dicotomias psicológicas clássicas. A perspectiva interpretativa relacional depende, por outro lado, de uma x apropriação das informações que emergem de uma análise histórica daquelas dicotomias. Em suma, o trabalho desenvolve a tese de que os conceitos de privado, subjetivo, interno e mental refletem a dificuldade em reconhecer dimensões da interdependência entre indivíduos na definição dos fenômenos psicológicos, o que pode ser superado com uma interpretação de sentimentos, emoções e pensamentos como relações comportamentais, desde que ponderados os modos como variáveis culturais dão uma conformação particular a esses fenômenos. 1 INTRODUÇÃO Tema de alguns dos trabalhos mais notáveis de Skinner (e.g., 1945, 1953/1965, 1963/1969, 1974/1993, 1968/2003), os eventos privados (conceito com o qual a subjetividade é tratada no sistema skinneriano) receberam pouca atenção da comunidade de analistas do comportamento até pelo menos a década de 90 do século XX. Alguma atenção mais sistemática passou a ser dada ao assunto apenas quando analistas do comportamento com atuação clínica afirmaram a necessidade de resgatar, nesse campo da prática psicológica, os princípios analítico-comportamentais e assinalaram que, na terapia verbal face a face, o assunto eventos privados é recorrente e demanda um tratamento mais avançado do que aquele delineado nos escritos de Skinner (cf. Anderson, Hawkins, Freeman & Scotti, 2000; Anderson, Hawkins & Scotti, 1997; Banaco, 1999; Dougher, 1993a, 1993b, 1994, 2000; Dougher & Hackbert, 2000; Friman, S. C. Hayes & Wilson, 1998; Moore, 2000; Wilson & S. C. Hayes, 2000). Skinner desenvolve dois argumentos principais ao tratar de eventos privados. Em uma direção, sustenta que o que é sentido não explica o comportamento publicamente observável, do que conclui (e.g., Skinner, 1953/1965) que uma ciência do comportamento prescinde da referência a sentimentos e emoções para lidar de modos efetivos com o comportamento humano. Em uma outra direção, discute os processos verbais envolvidos na aquisição de repertórios autodescritivos de sentimentos, emoções e pensamentos e sustenta a tese (e.g., Skinner, 1945) de que, por dependerem de contingências sociais, esses repertórios são sempre imprecisos 2 (novamente, uma razão para não considerá-los em sua ciência). Esse segundo argumento constitui o ponto de partida para análises alternativas (e.g., Friman & cols., 1998; Dougher & Hackbert, 2000; Tourinho, 1999b, no prelo) sobre o lugar dos eventos privados em uma ciência do comportamento. Quando se consideram as autodescrições de sentimentos, emoções e pensamentos à luz de uma concepção funcional de linguagem, como aquelas formuladas por Skinner (1957/1992) e por Wittgenstein (1953/1988), têm-se que as autodescrições são, elas mesmas, parte do fenômeno da subjetividade. É com a linguagem que parcelas do que pode ser chamado de um ambiente interno (cf. Tourinho, 1999b) tornam-se diferenciadas, adquirem funções em relações comportamentais, ainda que dentro de limites e sob condições específicas (cf. Skinner, 1945, 1974/1993; Tourinho, 1994a, 1994b). De outro lado, as autodescrições podem adquirir, elas mesmas, funções em relações comportamentais diversas. À luz de análises mais recentes sobre eventos privados e sobre comportamento verbal (e.g. DeGrandpre, Bickel, & Higgins, 1992; S. C. Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001), isso levará a uma rediscussão (e.g. Friman & cols., 1998) da idéia de que a eventos privados não são relevantes em uma análise funcional dos comportamentos publicamente observáveis. Mais importante, os “eventos privados” serão menos enfatizados como eventos discretos de inacessibilidade restrita e mais enfatizados como conceito que remete a relações complexas dos indivíduos com o mundo. Alguns trabalhos sobre eventos privados, anteriores ao debate inaugurado pelos clínicos, já haviam colocado em discussão o status causal de eventos privados, mas a partir da noção de causação interna do 3 comportamento (e.g. Flora, & Kestner, 1995; Overskeid, 1994; Stemmer, 1995; Zuriff, 1979). Não foram, portanto, eficientes para promover uma discussão da subjetividade sob um enfoque de relações comportamentais, ainda que alguns problemas que levantaram tenham ficado sem uma apreciação devida na literatura analítico-comportamental. Quandoanalistas clínicos do comportamento recolocaram o tema em discussão, o fizeram de um modo que enfatizou dimensões relacionais verbais dos fenômenos. Um grande mérito dos trabalhos mais recentes sobre eventos privados consiste, assim, de sua capacidade para conformar o exame do assunto à lógica relacional que sustenta mais fundamentalmente o sistema explicativo analítico-comportamental como um sistema psicológico; a idéia de que os fenômenos que constituem o objeto de estudos da Psicologia definem-se como relações dos homens e mulheres (ou dos organismos1) com o mundo. No lugar, agora, de olhar para sentimentos, emoções e pensamentos como eventos discretos (sejam eles públicos ou privados), torna-se necessário examinar como relações complexas (operantes e respondentes – cf. Darwich & Tourinho, 2005) são estabelecidas e entrelaçadas, de tal modo que alguns eventos inacessíveis à observação pública direta delas tomam parte. Com a explicitação de aspectos das relações verbais (e.g., a possibilidade de formação de classes de estímulos equivalentes) que 1 Neste trabalho, não ignoramos que o projeto skinneriano tinha como objeto o comportamento dos organismos (humanos e infra-humanos). Entendemos, porém, que seu interesse principal era o comportamento humano (cf. Andery, 1990) e que é na espécie humana, apenas, que se encontram os fenômenos mais complexos relacionados à subjetividade (ver Capítulo 2, adiante). As análises aqui desenvolvidas são pautadas pelo interesse específico no comportamento humano e por isso deixará de ser assinalado (exceto em casos particulares) quando as argumentações desenvolvidas se aplicarem ao comportamento de outros organismos. 4 conduzem a um novo exame da questão da subjetividade, a análise do comportamento alargou a perspectiva inaugurada por Skinner. A abordagem permanece, todavia, ainda no plano dos processos (nesse caso, verbais) básicos, à luz dos quais fenômenos comportamentais merecem ser analisados. Um analista do comportamento pode argumentar que, para além disso, a análise possível da subjetividade dirá respeito à história ambiental de cada um, à ontogênese, na qual se materializam as relações que vêm a definir a identidade de cada homem ou mulher. No presente trabalho, no entanto, propomos algo diverso. Argumentamos que uma abordagem analítico- comportamental da subjetividade pode avançar a partir de uma consideração de contingências culturais que vêm a definir o fenômeno. Os componentes verbais das mais complexas relações comportamentais referidas como sentimentos, emoções e pensamentos são produtos de uma cultura que promove de modo mais abrangente padrões de relacionamento com o mundo físico e social, que definem a subjetividade e só existem quando essas contingências culturais estão em operação. Isto é, o problema da subjetividade (aquele reservado à Psicologia – cf. Figueiredo, 1991, 1992; Figueiredo & Santi, 1997) só passa a existir à luz de certas contingências culturais. O que tratamos como subjetividade são certas relações comportamentais cujas características distintivas precisam ser especificadas, e um caminho para isso consiste em examinar as contingências histórico- culturais que as engendram. O ponto de vista defendido neste trabalho, portanto, é o de que uma compreensão mais abrangente da subjetividade na análise do comportamento 5 requer uma apreciação de contingências que produzem sentimentos, emoções e pensamentos nas culturais ocidentais modernas e uma especificação dos tipos de relações que definem esses fenômenos. A questão da inacessibilidade à observação pública de certos estímulos e respostas (a base para a noção de eventos privados) não se perde com essa análise, mas nela encontra um contexto analítico mais amplo. Diversos percursos investigativos poderiam ser seguidos para prover uma apreciação da subjetividade nos termos mencionados. Optamos aqui por examinar um conjunto de informações históricas, delas derivando uma interpretação para sentimentos, emoções e pensamentos enquanto fenômenos relacionais2. As categorias analíticas empregadas para esse fim serviram também para confrontar a perspectiva relacional da análise do comportamento com práticas ou discursos que parecem ignorar, ou pelo menos deslocar para um segundo plano, essa dimensão dos fenômenos psicológicos. Em sua formulação tradicional nas Psicologias, pensamentos, emoções e sentimentos são discutidos como ocorrências privadas, subjetivas, internas ou mentais, ocorrências do ou no indivíduo. A tese a ser desenvolvida inicia com uma afirmação de que a perspectiva individualista e subjetivista que esses conceitos veiculam é produto de contingências culturais que funcionam para obscurecer as relações (cada vez mais complexas) de interdependência entre homens e mulheres. Prossegue com a argumentação de que a referência 2 Sobre a opção de olhar para a história para compreender conceitos psicológicos, Skinner (1931/1961) fez algo parecido, ao se voltar para o conceito de reflexo. A decisão de recorrer a certas informações históricas neste trabalho não significa que a análise a ser apresentada é uma análise histórica, como a skinneriana, mas tem a mesma pretensão de lançar luz sobre problemas ainda insuficientemente formulados na Psicologia e na análise do comportamento. 6 skinneriana à inacessibilidade de certos estímulos e respostas constitui um recurso insuficiente para explicar o conjunto de problemas que encontra expressão nas dicotomias público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno, físico-mental, requerendo uma formulação mais abrangente das relações comportamentais que definem sentimentos, emoções e pensamentos. Encerra com a proposição de que, à luz de um exame histórico das dicotomias psicológicas clássicas, é possível analisar de modos originais as noções de singularidade, autonomia e autocontrole e com isso favorecer uma interpretação analítico-comportamental mais abrangente e consistente da subjetividade. 7 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS Trabalhos reflexivos estão na origem da constituição da Psicologia como disciplina independente, mas não raro são ignorados como uma dimensão importante desse campo de conhecimento (e.g., quando a Psicologia é definida apenas como uma ciência e profissão3). Em que pese sua precedência na história de constituição da Psicologia, nas abordagens comportamentais, em particular na análise do comportamento, a produção reflexiva recebeu atenção sistemática muito mais tardiamente do que os programas de investigação básica e aplicada. Como decorrência, não se encontram, na área reflexiva, ou conceitual, programas amplos de investigação, aos quais grupos diversos de pesquisadores se dediquem de forma integrada. Também não há, para essa produção, unidade metodológica ou soluções consagradas e compartilhadas com grande número de pesquisadores. Tudo isso, porém, é diferente de afirmar que a produção reflexiva, em análise do comportamento, prescinde de decisões de ordem metodológica. As que foram tomadas no presente estudo estão sumarizadas 3 Por vezes, a caracterização da Psicologia como “ciência e profissão” ignora esse fato: de que a disciplina psicológica é antes e originalmente uma disciplina reflexiva (em particular, sobre as condições – subjetivas - de realização do homem em diferentes domínios de sua vida), à qual apenas muito mais tardiamente se articulam programas de investigação científica e programas voltados à solução de problemas humanos (cf. Tourinho, Carvalho Neto & Neno, 2004).Em uma discussão do assunto Tourinho (2003) assinala que “a Psicologia se edifica como um campo de saber que envolve, simultaneamente: a) um esforço reflexivo sobre a natureza humana, seus problemas e suas possibilidades de realização em diferentes domínios da vida (social, material, intelectual, religioso etc.); b) uma investigação cientificamente orientada para a descoberta de regularidades dos fenômenos psicológicos (um modo de tentar apreender as novas experiências sob a forma de enunciados que incorporam os requisitos empírico-racionais da emergente ciência); c) uma profissão de ajuda, voltada para a solução de problemas humanos” (p. 35). 8 nos parágrafos seguintes4. a) a definição do problema: O trabalho foi desenvolvido no contexto de um programa mais amplo de pesquisas conceituais e empíricas, voltado para a temática da subjetividade na Psicologia e seu tratamento no sistema explicativo analítico-comportamental. Vimos desenvolvendo esse programa, com a colaboração de pesquisadores formados e em formação (graduandos, mestrandos e doutorandos), sempre com a perspectiva de elaborar ou aperfeiçoar uma compreensão para sentimentos, emoções e pensamentos enquanto fenômenos relacionais. O presente estudo pretende avançar em relação aos resultados até aqui alcançados com esse programa de pesquisas. Trabalhos desenvolvidos no âmbito desse programa de pesquisas ocuparam-se das diferentes dimensões ou aspectos da noção skinneriana de eventos privados (Darwich & Tourinho, 2005; Santos, 1998; Tourinho, 1995, 1997a, 1997b, 1997c, 1999a, 1999b, 2005, no prelo; Tourinho, Teixeira & Maciel, 2000), suas articulações com temas no campo da aplicação clínica da análise do comportamento (Azevedo, 2001; Cavalcante, 1999; Cavalcante & Tourinho, 1998; Maciel, 2004; Marchezini-Cunha, 2004; Martins, 1999; Martins & Tourinho, 2000; Medeiros, 2001; Souza Filho, 2001; Tourinho, Cavalcante, Brandão & Maciel, 2001), suas conexões com elaborações no campo da epistemologia e da filosofia da linguagem (Tourinho, 1994a, 1994b; Tourinho & Neno, 2003) e sua contraposição a outros sistemas explicativos psicológicos (comportamentais ou 4 Algumas especificações aqui fornecidas apóiam-se na sistematização sugerida por Tourinho e Micheletto (2002). 9 não) (Costa, 1999; Tourinho, 2004). À medida em que esses estudos foram se desenvolvendo, especialmente os estudos conceituais, um conjunto de informações históricas sobre a constituição da problemática da subjetividade no mundo moderno foi sendo colecionado e de algum modo incorporado à interpretação que se foi procurando refinar para o tema. A partir de um acúmulo mais sistemático desse tipo de informação, foi se mostrando possível estruturar uma abordagem analítico-comportamental para o tema tomando-se como referência o que designamos de dicotomias psicológicas clássicas (público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno, físico-mental). Há basicamente duas razões para que aquelas dicotomias tenham sido consideradas referências heurísticas para uma análise da subjetividade. Primeiro, o fato de que por meio delas é possível reconstituir de modo eficiente o processo de construção da subjetividade como problema para o mundo moderno, colocando em relevo aspectos centrais dessa problematização, nem sempre identificados quando nos atemos a uma ou outra alegação (filosófica ou psicológica) sobre a experiência subjetiva (filosofia e psicologia muitas vezes partem da problemática já constituída, atravessada por supostos que não são tomados eles próprios como objeto de necessária investigação). A segunda razão decorre de uma incursão preliminar na literatura histórica: uma suposição de que, à luz das informações produzidas pela análise histórica, seria possível alargar a interpretação analítico-comportamental para pensamentos, sentimentos e emoções, tornando-a, ao mesmo tempo, mais abrangente e consistente. Mais que uma razão, essa “suposição” passou a funcionar como uma hipótese, que, no entanto, requeria categorias analíticas 10 que pudessem explicitar o curso de um exame produtivo do problema. As dimensões relacionais dos problemas psicológicos foram então assumidas como o ponto de partida e referência, tanto para a reconstrução histórica das dicotomias clássicas (isto é, para a sistematização das informações produzidas a partir da análise histórica), como para a apreciação das possíveis dimensões de uma interpretação analítico-comportamental para o tema da subjetividade. As dicotomias deveriam ser examinadas à luz do que veiculavam sobre as relações de interdependência entre homens e mulheres em contextos culturais específicos; a interpretação analítico-comportamental precisaria examinar de que modos esses contextos culturais que se destacam na análise histórica imprimem configurações específicas às relações consideradas representativas dos fenômenos relativos à subjetividade. b) a especificação das informações: Dois conjuntos de informações tornaram-se essenciais para que a análise pretendida pudesse ser desenvolvida. De um lado, era necessário buscar nos textos históricos e sociológicos, nas referências que fazem ao tema da subjetividade, as informações sobre o que se passava no plano das relações interpessoais ao tempo em que se elaboravam as dicotomias clássicas, assim como suas conexões com práticas e valores culturais específicos. De outro, era necessário circunscrever as dimensões contempladas na análise comportamental do problema até o presente momento e identificar os instrumentos conceituais com os quais se poderia trabalhar para estender essa abordagem para nela incluir a referência aos 11 problemas identificados a partir da análise histórica. c) a seleção das fontes: O trabalho requereu o levantamento de dois conjuntos de produções, que poderiam prover as informações necessárias ao estudo: um primeiro conjunto de textos referia-se aos elementos que poderiam subsidiar a análise das dicotomias psicológicas clássicas; um segundo conjunto deveria tratar do sistema explicativo analítico-comportamental. O primeiro conjunto de textos, com informações históricas, foi selecionado com base em dois critérios: a) análise do período de transição do feudalismo para o capitalismo (referido em textos de história da Psicologia – e.g., Figueiredo, 1991, 1992 - como o período de construção da subjetividade moderna); b) referências a mudanças nas “mentalidades”, concepção de homem, ou construção da cultura individualista. Não apenas trabalhos de historiadores proviam essas informações. Foram também selecionados para esse primeiro conjunto, textos de disciplinas como sociologia, economia, filosofia e política, que também traziam informações históricas relevantes para o problema focalizado. O segundo conjunto de textos, com informações sobre o sistema explicativo-analítico comportamental foi selecionado com base em dois outros critérios: a) referências a eventos privados (o conceito com o qual Skinner examina a problemática da subjetividade; e b) referências a contingências próprias das culturas ocidentais modernas. O ponto de partida para essa seleção foi o conjunto da obra publicada de Skinner (cf. Andery, Micheletto & 12 Sério, 2004) e a coleção de trabalhos publicados nos periódicos The Behavior Analyst e Behavior and Philosophy (destino principal da produção conceitual em análise do comportamento). Textos de outras fontes foram acessados a partir de um contato com essa primeira seleção. Uma familiaridade prévia com a literatura também importou na identificação de possíveis fontes de informação. d) o levantamento de informações:Do material selecionado foram destacados trechos ilustrativos de temas relacionados ao problema descrito. Esse levantamento poderia ter sido feito ao longo do exame de cada texto, mas efetivamente só aconteceu após uma apreciação geral da literatura que seria considerada. A partir disso, os trechos eram transcritos em arquivos que seriam depois aproveitados na construção das análises. e) o tratamento das informações: Como em outros domínios, em um trabalho conceitual a análise não se realiza somente após a coleta de informações. O processo de coleta de informações já se dá pautado por uma suposição acerca de cursos de análise possíveis, identificados desde a construção do problema de pesquisa e leitura preliminar de uma dada literatura. Ainda assim, pode-se dizer que há um momento em que claramente trata-se menos de colecionar informações e mais de a elas conferir uma determinada inteligibilidade. Dois momentos principais sintetizam o processo analítico no presente 13 estudo. Primeiro, a adoção da questão (do reconhecimento) das relações de interdependência entre homens e mulheres como eixo a partir do qual práticas e valores sociais seriam examinados no processo de tratamento das informações históricas, com as quais se pretendia enfocar as dicotomias clássicas. Segundo, a formulação dos temas da singularidade, autonomia e autocontrole como temas a partir dos quais o enfoque analítico- comportamental para a subjetividade seria desenvolvido, a fim de incorporar possíveis contribuições derivadas do exame histórico das dicotomias clássicas. As decisões descritas definem e limitam o alcance da contribuição que o presente trabalho pode trazer para a análise do comportamento, ou, mais propriamente, para a construção de uma abordagem analítico-comportamental da subjetividade. Elas devem ser consideradas tanto pelo que promovem diretamente em termos de uma formulação conceitual, como pelas áreas de interlocução a que conduzem com outros saberes ou produções culturais. Pensadas desse modo, essas decisões revelam também o tipo de contribuição esperada: não apenas o desenvolvimento da interpretação analítico- comportamental, mas também a sinalização de alguns possíveis caminhos para programas de pesquisa mais abrangentes sobre emoções, sentimentos e pensamentos. 14 CAPÍTULO 1 RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O FLORESCIMENTO DAS DICOTOMIAS PSICOLÓGICAS CLÁSSICAS Organismos humanos são capazes de interagir uns com os outros de modos complexos, impondo à realidade configurações sofisticadas, com graus variados de diferenciação e que afetam de maneiras importantes sua vida cotidiana. Transcendem, assim, as determinações de sua história filogenética em larga medida e de modos únicos. Suas realizações nas artes, nas técnicas e nas ciências atestam sua capacidade diferenciada e constituem alguns dos produtos mais salientes dos processos de criação e transformação da realidade em que vivem. O caráter social de tais produções dificilmente será negado por alguém que se debruce sobre o processo histórico que está na sua origem. Todavia, a interdependência entre os homens e mulheres de uma sociedade (mais ou menos complexa) constitui um fato que nem sempre se reflete nas crenças ou sistemas explicativos que essa mesma sociedade vem a construir sobre suas conquistas, ou sobre as capacidades humanas. E quando as condições de interdependência tornam-se menos evidentes, ou menos reconhecidas, estão criadas as condições para uma concepção de homem como ser autônomo, cujas ocorrências ou faculdades pessoais constituem o núcleo de sua existência e de suas realizações. O conceito de indivíduo e a noção de autonomia em que está fundamentado, na contramão das evidências empíricas de interdependência, refletem uma auto-imagem do homem moderno como capaz de realizar-se à 15 parte das relações com outros homens. São as virtudes e faculdades do ou no homem particular que começam a ser vistas como a base de suas realizações, quer materiais, espirituais, cognitivas, ou de qualquer outra ordem. Um exemplo clássico desse individualismo, que terá ampla repercussão no pensamento moderno, inclusive na fundação na disciplina psicológica, é encontrado no racionalismo cartesiano, de acordo com o qual a possibilidade de o homem chegar a juízos seguros acerca da realidade à sua volta é resultante não de processos de interlocução, do diálogo e do embate de idéias com outros homens, mas, ao contrário, de um exercício de uma faculdade pessoal, o pensamento racional, cujo emprego eficaz depende inclusive do desprendimento em relação às opiniões alheias: “é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam, se tivéssemos o uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela” (Descartes, 1637/1979, p. 35). Não é de surpreender, portanto, que o próprio pensar seja suficiente, no sistema cartesiano, como prova da existência do indivíduo pensante (a res cogitans). Para Descartes (1596-1650), nenhuma obra será tão perfeita quanto aquela planejada e executada por um único homem, de acordo com o seu próprio julgamento, “não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou” (Descartes, p. 34). No presente Capítulo, a problematização da subjetividade humana será discutida à luz da emergência e consolidação de uma cultura individualista, na qual a percepção dos laços de interdependência entre os homens dá lugar à auto-imagem de autonomia do indivíduo. Todavia, no lugar de simplesmente 16 questionar essa auto-imagem, serão discutidas algumas condições que explicam sua elaboração e reprodução em sistemas de crenças (inclusive teorias psicológicas) e práticas sociais das culturas caracteristicamente individualistas. Em particular, serão discutidas certas mudanças importantes nas sociedades ocidentais com o advento de uma economia de mercado. Às transformações no plano das relações interpessoais e dos sistemas explicativos produzidos nesse contexto de mudanças serão relacionadas as dicotomias psicológicas clássicas: público/privado, interno/externo, físico/mental e objetivo/subjetivo. Pretendemos argumentar que o florescimento de uma cultura individualista, cujas práticas, valores e crenças tendem a obscurecer as dimensões interpessoais das realizações humanas, constitui o fundamento daquelas dicotomias. Isso implicará dizer que a caracterização de fenômenos psicológicos como privados, internos, mentais ou subjetivos representa um modo de desqualificar, ou remeter para segundo plano, as dimensões interpessoais daquelas realizações. Com o propósito de introduzir essa interpretação, serão assinalados alguns aspectos da vida em sociedade na Europa feudal que, se não promoviam de modo claro uma concepção de heteronomia ou interdependência dos homens, certamente não constituíam as condições necessárias para a formação de uma cultura individualista. Hunt e Sherman (1993) ilustram essas questões ao referirem aspectos da ética paternalista cristã, que exerceu forte papel na regulação da vida social feudal: no início do período feudal, a ética paternalista cristã estava profundamente encravada na cultura européia ocidental. A ganância, a avareza, o egoísmo, a ânsia de acumular riquezas, enfim, todas as 17 motivações materialistas e individualistas eram severamente condenadas. O homem ganancioso e individualista era considerado a própria antítese do homem bom, preocupado com o bem-estar de todos os seus irmãos. Os homens prósperos tinham ao seu alcance a possibilidade de, coma riqueza e o poder de que dispunham, realizar um grande bem ou um grande mal: o pior dos males consistia em usar a riqueza exclusivamente para a sua autogratificação, ou como meio para acumular continuamente, em seu próprio proveito, maior quantidade de riquezas. Os homens ricos honrados eram os que tinham consciência de que a sua fortuna e o seu poder constituíam uma dádiva de Deus. Assim, sentiam-se moralmente obrigados a agir de modo paternalista, administrando seus negócios temporais com a finalidade de promover o bem-estar de seus semelhantes. (pp. 17-18) Sobre a importância das mudanças econômicas para que os laços feudais se dissolvessem e a noção de autonomia emergisse, Duby (1990) assinala: As marcas evidentes das conquistas de uma autonomia pessoal se multiplicam no decorrer do século XII, isto é, no momento em que se acelera a distensão da economia, em que o crescimento agrícola chega ao ponto, reanimando estradas, mercados, aldeias, de transportar pouco a pouco para a cidade todos os sistemas de controle e os fermentos de vitalidade, em que a moeda começa a desempenhar no mais cotidiano da vida um papel capital, em que 18 por toda parte se difunde o uso da palavra ganhar ... Tal movimento, a mobilização das iniciativas e das riquezas suscitou a valorização progressiva da pessoa. (pp. 505-506) Ao longo das próximas seções, alguns aspectos das mudanças do modo de vida feudal para uma sociedade de mercado serão brevemente discutidos, enfatizando-se o que representam do ponto de vista das relações interpessoais e dos modos como os homens passam a representar suas relações com o mundo físico e social. Essas informações são importantes para a análise desenvolvida neste trabalho tanto quanto possibilitam compreender o que está na origem da noção de que sentimentos e pensamentos são ocorrências do ou no indivíduo. Com isso, pretende-se argumentar que a idéia de que sentimentos e pensamentos são fenômenos mentais, internos, subjetivos ou privados decorre não de um compromisso com uma doutrina psicológica particular, mas da exposição a contingências sociais específicas, que podem inclusive explicar certos limites das soluções que se pretendem críticas de uma visão individualista de homem. A análise de contingências histórico-sociais (algumas delas, pelo menos) é inspirada nos trabalhos de Figueiredo (e.g., 1991, 1992; Figueiredo e Santi, 1997) sobre a história da Psicologia, embora se desenvolva segundo categorias próprias (com ênfase nas conexões dessas contingências com uma economia de mercado, e nos conceitos resultantes sob a forma de dicotomias psicológicas). 1.1. A Interdependência Humana em uma Sociedade Hierárquica. Homens e mulheres nascem e se desenvolvem como membros de 19 grupos sociais específicos, no interior dos quais encontram um modo de vida e participam, também, da construção de suas condições de sobrevivência e reprodução. Assim, ainda que as crianças revelem, ao nascer, certas competências para interagir com aspectos importantes de seu mundo (cf. Moura & Ribas, 2004; Oliva, 2004; Tourinho & Carvalho Neto, 2004), é apenas na sociedade que a criança pequena, com suas funções mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao mundo se transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que tem o caráter de um indivíduo e merece o nome de ser humano adulto. (Elias, 1994, p. 27) Reconhecido o caráter sócio-cultural do desenvolvimento humano, é importante destacar algumas condições sob as quais homens e mulheres se desenvolvem em sociedades agrárias e hierárquicas como a sociedade feudal. Em primeiro lugar, é necessário observar que as funções das classes (clero, senhores e servos) que definem a estrutura dessa sociedade são vistas como complementares, em particular no sistema de crenças (o catolicismo) que constitui a principal fonte de legitimação dessas relações: uns rezam, outros protegem, outros produzem. Inexistindo um poder (central) impessoal que atue na regulação dessas relações, as obrigações são acompanhadas de solidariedades coletivas nos códigos e costumes de cada feudo. Ou seja, é no plano das relações imediatas dos homens uns com os outros que são construídas as condições concretas de sobrevivência da sociedade como um 20 todo. Na Idade Média, como em muitas sociedades em que o Estado é fraco ou simbólico, a vida de cada particular depende de solidariedades coletivas ou de lideranças que desempenham um papel de protetor. Ninguém tem nada de seu – nem mesmo próprio corpo – que não esteja ameaçado ocasionalmente e cuja sobrevivência não seja assegurada pelo vínculo de dependência. (Ariès, 1991, p. 17) É claro que a existência de laços de solidariedade em uma sociedade hierárquica não implica o acesso indistinto às condições materiais de sobrevivência, mas significa que as relações de poder, à luz da ética cristã e da autoridade da igreja, encontravam certos limites. Os homens que ocupam posições de poder e detêm a riqueza assemelham-se ao pai ou ao protetor da família. Tinham obrigações paternalistas para com os homens comuns, isto é, os pobres ou, prosseguindo com a nossa analogia, os filhos. Do homem comum, por sua vez, esperava-se que aceitasse seu lugar na sociedade e se submetesse, de bom grado, à liderança dos ricos e poderosos, da mesma maneira que um filho aceita a autoridade do pai. (Hunt & Sherman, 1993, p.15) Em segundo lugar, tem grande importância o fato de que nessa sociedade a função social de homem ou mulher encontra-se, salvo exceções, pré-definida, de acordo com a sua origem, portanto não é matéria quer de reflexão pessoal, quer de dedicação e conquista ao longo da vida. 21 A identidade social numa sociedade agrária, como a medieval, em que as relações políticas cristalizadas em direitos e deveres, em obrigações e lealdades consuetudinárias suportavam o peso de toda a reprodução social era totalmente, ou quase, pré-definida pela cultura em função de eventos biográficos, como o nascimento, a filiação e a idade, independentes do próprio indivíduo. (Figueiredo, 1991, p. 20) Nessas sociedades, como em sociedades menos complexas ainda hoje encontradas (onde o Estado – se existe formalmente - não chega com suas instituições, e a sobrevivência depende fortemente de uma atividade produtiva voltada para a subsistência do grupo), a função social de cada um, além de não depender de uma conquista pessoal, define-se basicamente pelo interesse coletivo. O que está na base desses laços é principalmente o vínculo material entre os membros do grupo, o fato de que a sobrevivência material está estritamente vinculada à sobrevivência do grupo de origem; a impossibilidade de produzir a própria sobrevivência à parte dessas relações. Sob tais condições, o que regula a vida cotidiana de homens e mulheres não são projetos pessoais de vida, mas demandas e interesses coletivos, contingências ligadas à sobrevivência e reprodução do grupo. Nas comunidades mais primitivas e unidas, o fator mais importante do controle do comportamento individual é a presença constante dos outros, o saber-se ligado a eles pela vida inteira e, não menos importante, o medo direto dos outros. A pessoa não tem oportunidade, necessidade, nem capacidade de ficar só. Os 22 indivíduos mal sentem alguma oportunidade, desejo ou possibilidade de tomar decisões por si ou de conceber qualquer pensamento sem a constante referência ao grupo. Isso não significa que os membros desses grupos convivam harmoniosamente.É comum ocorrer o inverso. Significa apenas que – para usar o termo que convencionamos – eles pensam e agem primordialmente do ponto de vista do “nós”. A composição do indivíduo adapta-se ao constante convívio com os outros a quem o comportamento tem que ser ajustado. (Elias, 1994, p. 108) A distinção indivíduo-sociedade, ou melhor, o conceito de indivíduo sequer faz sentido nessas sociedades, visto que o espaço para cultivar vocações, interesses e mesmo o gosto pessoais são muito restritos. Também são poucas e pouco diferenciadas as funções sociais, de modo que não constituem exatamente um caminho para a individualização. O compartilhamento do destino inicia com o compartilhamento da moradia e dos espaços de deslocamento, dos utensílios domésticos e dos instrumentos e rotinas de trabalho, dos jogos e das preces. O isolamento físico é objeto de desconfiança e sequer pode existir no interior do espaço doméstico. Loucos (os homens comuns) ou heróis (eremitas e cavaleiros errantes) são aqueles que se arriscam a andar sozinhos. Rezar, ler, cantar ou lavrar a terra são essencialmente atos coletivos, realizados no espaço socialmente compartilhado. Realizar-se materialmente, espiritualmente, cognitivamente ou ludicamente, tudo pertence, de um ponto de vista imediato, ao plano das relações interpessoais, de modo inescapável. Vida privada confunde-se com 23 vida pública, no sentido de que o compartilhamento das diversas dimensões da existência varia com respeito à amplitude do universo social, porém nunca a ponto de confinar o homem à introspecção. Ainda que aos olhos do indivíduo moderno essa imagem cause estranheza, é assim que os historiadores descrevem a experiência de vida no mundo feudal. Discutindo a “emergência do indivíduo” Duby (1990) assinala: Proximidade, promiscuidade, por vezes multidão – na época feudal, o espaço, com efeito, jamais estava previsto, no interior das grandes moradas, para a solidão individual, senão no breve instante do trespasse, da grande passagem para o outro mundo ... na sociedade feudal, o espaço privado aparece, na realidade, desdobrado, constituído de duas áreas distintas: uma fixa, em torno do lar, murada; a outra deslocando-se no espaço público, não menos coerente, apresentando em seu seio as mesmas hierarquias, reunida pelos mesmos procedimentos de controle ... E se vida privada significa segredo, esse segredo, necessariamente partilhado por todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto; se vida privada significa independência, também essa independência era coletiva. (pp. 503-504) Outra característica essencial da sociedade feudal, ainda encontrada em sociedades mais simples, consiste do fato de que os processos reflexivos e de tomada de decisão não apenas são coletivos, como muito menos freqüentes, pela simples razão de que são menos necessários, uma vez que há poucas alternativas a serem consideradas a cada momento da vida cotidiana. 24 Os homens nessas sociedades não precisam ocupar-se a cada momento de decidir aonde ir, como ir, o que fazer, ou de que modo fazer. Mesmo com respeito ao horizonte de uma vida, há muito menos decisões a serem tomadas, poucas encruzilhadas, como menciona Elias (1994): Nas sociedades mais simples, há menos alternativas, menos oportunidades de escolha, menos conhecimento sobre as ligações entre os acontecimentos e, portanto, menos oportunidades passíveis de parecerem “perdidas”, quando vistas em retrospectiva. Nas mais simples de todas, é freqüente haver diante das pessoas um único caminho em linha reta desde a infância – um caminho para as mulheres e outro para os homens. Raras são as encruzilhadas; raramente alguém é colocado sozinho diante de uma decisão ... Vive-se um dia atrás do outro. A pessoa come, sente fome, dança, morre. Qualquer visão a longo prazo de algo que possa ocorrer em algum momento futuro é muito limitada, e o comportamento presciente é incompreensível e pouco desenvolvido. Igualmente incompreensível é a possibilidade de uma pessoa deixar de fazer algo que se sinta premida a fazer aqui e agora em nome de uma satisfação que talvez lhe venha dentro de uma semana ou um ano, ou sua possibilidade de fazer o que chamamos “trabalhar”. Por que haveria alguém de fazer um esforço muscular não referido às exigências urgentes do momento? (p. 110) Ligados uns aos outros de modos inescapáveis e vivendo uma vida cotidiana baseada na realidade imediata, homens e mulheres no mundo feudal 25 não estão expostos a condições que favoreçam a construção e dedicação a projetos baseados em uma referência pessoal. O “nós” vale mais do que o “eu” na definição de cada passo, de cada rotina, de cada projeto. Na religião, por exemplo, o isolamento é coisa para poucos privilegiados. Para o homem comum, chegar a Deus é matéria de participação em cerimônias coletivas e/ou de cumprimento de reverência ou solidariedade a outros (esse ponto será retomado adiante). Se o segredo não é possível, ele também não é necessário, pelo menos não como nas sociedades modernas. Emoções e sentimentos podem ser experimentados de modos mais espontâneos. O que essa espontaneidade significa ficará mais claro quando observarmos o que acontece quando ela não é mais aceitável. As conseqüências para cada um de os outros saberem o que sente não são tais que justifiquem uma preparação para evitar a espontaneidade. É por essa razão que crianças e adultos compartilham os momentos da vida cotidiana. Apenas com a transformação dessas relações, a criança será retirada do convívio com a família e será inventada a infância, com um estágio da vida para o adestramento para a convivência com o mundo adulto. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhece a infância, ou não tentava representá-la ... É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (Ariès, 1981, p. 50)5. A reflexão, também, sendo predominantemente oral e coletiva (porque voltada para assuntos que são de 5 Ariès (1981) afirma também: “Na sociedade feudal, que tomamos como ponto de partida, o sentimento da infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento de infância não significa o mesmo que a afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes” (p. 156). 26 interesse imediato também para os outros) desenvolve-se ao conhecimento dos outros. Contingências sociais dessa ordem não promovem, ao contrário, inibem uma concepção individualizada do homem. Não se pode dizer que promovam uma percepção das relações de interdependência, uma vez que raramente o homem é levado a refletir sobre sua condição no mundo. Mas certamente não reservam lugar para a noção de autonomia. Será necessário ao indivíduo encontrar novas condições para a produção de sua realização nos diversos domínios da vida, em especial será necessário encontrar novas condições materiais de vida, para que um sentimento de autonomia possa ser cultivado. Essas condições passam a se concretizar com o advento de uma economia de mercado. A conquista da autonomia pessoal, uma marca notável da vida moderna, não se realizaria sem essas transformações. É necessário, porém, refletir sobre a natureza e o alcance dessa autonomia. Como se argumentará adiante, há de fato uma autonomiaconquistada, no sentido de o indivíduo nas sociedades modernas encontrar-se menos limitado pelas condições de vida encontradas ao nascimento, e menos dependente de suas relações familiares e sociais imediatas. Em contrapartida, os processos de interdependência no mundo moderno assumem formas muito mais complexas e sofisticadas, impondo muito mais exigências para a realização individual. Essas duas dimensões da conquista da autonomia individual (a multiplicação dos horizontes de vida e a maior complexidade da interdependência) explicam em larga medida as concepções de homem que vão se tornando dominantes na cultura, inclusive no campo da disciplina psicológica. 27 1.2. Condições de Interdependência em uma Sociedade de Mercado. A transição do feudalismo para o capitalismo é descrita por historiadores como um processo desencadeado pelo crescimento da produtividade agrícola na Europa ocidental, que se prolongou por vários séculos, e que assumiu características peculiares em diferentes contextos geográficos e sócio-políticos. Para fins da presente análise, interessará assinalar alguns aspectos do que as mudanças desencadeadas pela dissolução dos laços econômicos feudais representaram do ponto de vista das relações cotidianas de homens e mulheres uns com os outros. Com desenvolvimento da técnica na produção agrícola e a intensificação da atividade comercial, a partir do século XI6, a produção até então voltada primariamente para a subsistência começa a dirigir-se a um mercado. O interesse na troca, na possibilidade de produzir para obter moeda, com a qual são adquiridos os bens para a própria sobrevivência (e mais do que isso) traz um impacto considerável sobre a atividade produtiva rural (note-se que até o século X a população na Europa ocidental vivia quase inteiramente em feudos e pequenas aldeias cf. Hunt & Sherman, 1993). A definição do que produzir, como produzir, que função desempenhar no processo produtivo, tudo passa a ser regulado por condições do mercado. Na medida em que interessa produzir aquilo que pode representar maiores chances de sucesso financeiro nas trocas econômicas, começa a haver espaço para vocações pessoais, 6 A expansão do comércio a partir do século XI deve-se em grande medida às cruzadas cristãs, mas, como assinalam Hunt e Sherman (1993), isso não significa que a motivação desse movimento tenha sido propriamente religiosa. 28 preocupação com a efetividade produtiva dos membros do grupo e uma divisão crescente do trabalho. Isto é, avança, no interior dos grupos, a diferenciação das funções sociais. Rompidos os compromissos entre senhores e servos, seja pela introdução do trabalho assalariado em substituição às relações de vassalagem, seja pelo abandono de obrigações relativas à observância de uma estrutura social hierárquica, abrem-se os horizontes para a conquista de uma identidade social nova. O sucesso material ou econômico não é mais constrangido pela condição de origem, mas dependente de uma conquista pessoal. Em uma outra esfera, as alternativas para dedicar-se à atividade comercial e a outras funções (especialmente financeiras e contábeis), assim como à produção de manufaturas, multiplicam os cursos de vida possíveis, por meio dos quais o conforto e o reconhecimento social podem ser conquistados. Isto é, multiplicam-se as funções sociais que cada um pode desempenhar, e as novas funções não mais impõem o atrelamento aos laços familiares de origem. É claro que muitas dessas novas funções e as riquezas que com elas se pode alcançar não estarão acessíveis a qualquer um. Por exemplo, as funções contábeis exigirão habilidades matemáticas e de leitura que poucos, freqüentemente clérigos, dispõem. Ainda assim, é notável que a vida do homem comum deixe de ser tão marcadamente definida por uma condição de subsistência e tão decisivamente dependente de sua permanência junto ao grupo de origem7. 7 Uma passagem de Sennett (1989) ilustra esse ponto, ainda que se referindo apenas a Londres e Paris e no século XVIII, um momento bem avançado do desenvolvimento do capitalismo: “Do ponto de vista social, o crescimento do comércio criou empregos nos setores financeiro, comercial e burocrático da cidade. Falar em “crescimento da burguesia” em 29 A intensificação do comércio dará origem ainda a uma condição geográfica de vida com grandes implicações para as relações interpessoais. As cidades, inicialmente pequenos centros de trocas, tornam-se um continente de homens e mulheres, desconhecidos em sua imensa maioria e freqüentemente dedicados a projetos de vida não compartilhados uns com os outros, ao contrário, muitas vezes conflitantes com os interesses uns dos outros. É incomparável com a “limitada e pacata vida feudal” a extensão do universo social em que está imerso o citadino e as exigências que lhe são impostas para uma vida bem sucedida social e economicamente. Especialmente a partir do século XVI, as cidades tornam-se notavelmente populosas. Londres, por exemplo, salta de 150 mil habitantes em 1595 para cinco milhões ainda no século XIX (Sennett, 1989, p. 70). Viver nas cidades é viver em um universo social no qual o comportamento de cada um está sujeito a regulações muito mais complexas, e que não se definem mais por códigos de obrigações e solidariedades definidas no plano de relações interpessoais específicas. No século XV, os locais onde se reuniam as feiras começavam a se transformar em prósperas cidades comerciais, cujos mercados funcionavam durante todo o ano. A atividade comercial desenvolvida por essas cidades era incompatível com as restrições impostas pelos costumes e tradições feudais. A maior parte das cidades conseguiu, após intensas lutas, libertar-se da tutela dos senhores qualquer das duas cidades é, pois, se referir a uma classe engajada em atividades de distribuição, e não na produção. Os jovens que vinham para a cidade encontravam trabalho nessas profissões mercantis e comerciais; na verdade, havia como que uma escassez de mão de obra, pois havia mais empregos que exigiam trabalhadores alfabetizados do que jovens que sabiam ler” (p. 79). 30 feudais e da Igreja. Nos centros comerciais realizavam-se operações financeiras: de câmbio, de liquidação de dívidas e de crédito. Tornou-se corrente o uso das letras de câmbio e de outros instrumentos financeiros modernos. Uma nova legislação comercial foi elaborada pelos comerciantes dessas cidades. Ao contrário do direito consuetudinário e paternalista que vigorava nos feudos, a legislação comercial foi definida por um código preciso. Lançaram-se assim as bases da lei de contratos, dos papéis negociáveis, das representações comerciais, das vendas em leilão, enfim, de uma série de procedimentos característicos do capitalismo moderno. (Hunt & Sherman, 1993, pp.26-27) Historicamente, a formação dos Estados nacionais, ao final da Idade Média, representou uma resposta a demandas crescentes de gerenciamento das relações interpessoais, em parte pelo alargamento do universo social de homens que se deslocavam da vida comunitária em seus grupos de origem, na direção de uma convivência com grupos numerosos e desconhecidos. A instituição social do Estado, porém, representa a resposta a um conjunto mais amplo de problemas do que o alargamento do universo social. A formação dos Estados nacionais cumprirá, entre outros, o papel de prover a sociedade de uma instituiçãoreguladora das relações interpessoais que tem, sobretudo, responsabilidades relacionadas à proteção e à garantia de cumprimento dos contratos, agora celebrados em caráter impessoal. São as garantias do Estado, também, que darão suporte ao descolamento do indivíduo de seu grupo de origem, em direção à conquista de sua (nova) identidade social. 31 Um número cada vez maior de funções relativas à proteção e ao controle do indivíduo, previamente exercidas por pequenos grupos, como a tribo, a paróquia, o feudo, a guilda ou o Estado, vai sendo transferido para Estados altamente centralizados e cada vez mais urbanizados. À medida que essa transferência avança, as pessoas isoladas, uma vez adultas, deixam mais e mais para trás os grupos locais próximos, baseados na consangüinidade. A coesão dos grupos rompe-se à medida que perdem suas funções protetoras e de controle. E, nas sociedades estatais maiores, centralizadas e urbanizadas, o indivíduo tem que batalhar muito mais por si. A mobilidade das pessoas, no sentido espacial e social, aumenta. Seu envolvimento com a família, o grupo de parentesco, a comunidade local e outros grupos dessa natureza, antes inescapável pela vida inteira, vê-se reduzido. Eles têm menos necessidade de adaptar seu comportamento, metas e ideais à vida de tais grupos, ou de se identificar automaticamente com eles. Dependem menos deles no tocante à proteção física, ao sustento, ao emprego, à proteção de bens herdados ou adquiridos, ou à ajuda, orientação e tomada de decisão. Isso acontece, a princípio, em grupos limitados e especiais, mas se estende gradativamente ao longo dos séculos, a setores mais amplos da população, até mesmo nas áreas rurais. E, à medida que os indivíduos deixam para trás os grupos pré-estatais estreitamente aparentados, dentro de sociedades nacionais cada vez mais complexas, eles se descobrem diante de um número 32 crescente de opções. Mas também têm de decidir muito mais por si. Não apenas podem como devem ser mais autônomos. Quanto a isso não têm opção. (Elias, 1994, p. 102) Há vários aspectos da abordagem de Elias (1994) que merecem destaque neste ponto da apreciação do problema das relações interpessoais em sociedades de mercado. O primeiro deles diz respeito ao fato de que as relações de dependência entre os indivíduos se alteram, não na direção de uma autonomia absoluta, mas em direção a uma rede muito mais complexa de interdependência, daí a necessidade da instituição do Estado para fazer valer compromissos mútuos. Isso significará que o indivíduo, na vida cotidiana, de um lado, depende menos dos pequenos grupos sociais aos quais se encontra vinculado ao nascimento, e mais a redes complexas de relações com um universo social muito mais amplo. De outro, dada a extensão do universo social no qual está imerso e a complexidade das relações com os homens e mulheres que integram esse universo, não é principalmente de suas relações imediatas (com vizinhos, colegas de trabalho, parentes, amigos etc.) que depende o atendimento de grande parte de suas necessidades cotidianas (por exemplo, relativas a alimentação, locomoção, vestuário etc.) ou mesmo suas aspirações mais distantes ou de maiores “dimensões” (por exemplo, conquistar um emprego compatível com um trajeto longo de formação, alcançar uma situação econômica confortável e estável etc.). Para atender essas necessidades ou realizar essas aspirações, o indivíduo deverá interagir com complexos arranjos sociais e econômicos. O leite que o alimenta pela manhã estará disponível não por força de sua relação com familiares que ordenham animais domésticos dos 33 quais também cuida, mas como resultado de um complexo sistema de relações econômicas, das quais participam desde um desconhecido operador de máquinas que confeccionam embalagens de papel e financistas responsáveis por operações de crédito a empresas de laticínios, até operários de empresas de conservação de estradas pelas quais transitam os caminhões que transportam a produção daquelas empresas, todos absolutamente desconhecidos e distantes das relações cotidianas ou imediatas dos indivíduos. Um segundo aspecto a ser considerado é que a coesão encontrada em grupos familiares ou de afinidade, quando a sobrevivência de cada um depende direta e imediatamente das relações com os demais, inexiste se o indivíduo descola-se desse grupo em direção à realização de projetos pessoais de vida. Não se trata de abandonar um grupo, filiando-se a outro(s), mas de deixar para trás um tipo de interação social mais solidária e espontânea, em direção a relações muito mais complexas, onde a identidade de interesses é muito menos presente e onde o comportamento frente aos outros precisa ser calculado. Nas sociedades mais simples, o que promove a coesão não é uma “vocação” para a solidariedade, mas o fato de que as ameaças externas são constantes e a sobrevivência individual dependente das relações com grupos de convivência imediata. Nas sociedades mais complexas, nos Estados modernos, especialmente nas metrópoles, as condições materiais de sobrevivência tanto dependem menos dessas relações como exigem a dedicação do indivíduo a um projeto pessoal de vida. Quanto mais sensível a demandas dos outros, quanto menos concentrado em seus objetivos, projetos e horizontes de vida, menores as chances de “sucesso” material, medido 34 principalmente pelo acúmulo de riquezas (daí seu menor envolvimento com a família de origem). Porém, se o indivíduo está menos disponível para as demandas alheias (porque não são necessariamente, ou na mesma medida, suas também), de outro lado ele também dependerá muito mais de si mesmo, no sentido de que poderá contar muito menos com o suporte de seu grupo social nas tarefas ou projetos cotidianos a que se dedica. O terceiro ponto a ser destacado é o fato de que ao deslocar-se para um universo social de anônimos, a identidade individual deixa de ser aquela conferida no interior dos grupos familiares, passando a ser matéria de conquista que, dependendo do contexto, pode ser função de uma variedade de fatores, incluindo uma eficiente participação em “jogos” sociais, nos quais as “aparências” tornam-se fundamentais (cf. Sennett, 1989). Isso significa que se o indivíduo vê diante de si possibilidades de mobilidade social, também precisa responder a exigências crescentes de comportamento social. Não é sem razão que, a partir do século XVI, os códigos de etiqueta, ou “códigos de civilidade” tornam-se um tipo de literatura com ampla difusão e consumo na Europa ocidental (cf. Elias, 1939/1990b). Comportar-se adequadamente diante dos outros torna-se uma necessidade que para ser cumprida requer um longo aprendizado e disciplina constante. Desde um banal cumprimento, até as seqüências de comportamentos alimentares à mesa8, tudo se torna matéria de uma atenção cuidadosa, de comedimento, de autocontrole. Por último, em uma sociedade de mercado, multiplicam-se as alternativas de ação a cada momento, assim como se multiplicam os sistemas 8 Acompanha esse refinamento o surgimento dos utensílios usados à mesa: a taça individual, o prato, os talheres, o guardanapo etc.. 35 de crenças que orientam o homem na vida cotidiana. Não apenas os indivíduos podem dedicar-se a funções sociais cada vez mais diversificadas, como podem dedicar-se a atividades de lazer cada vez mais variadas, interagir com grupos diversos e variar sua rotina em inúmeras direções (o que vestir, como trabalhar, que percurso fazer etc.). As reformas religiosas, por seu turno, também instituem a diversidade da cristandade. Para nadana vida há um único (ou poucos) caminhos a seguir, muito menos uma única referência em que apoiar a ação. Os indivíduos, como conseqüência, podem (e precisam) decidir. Tomar decisões torna-se uma parte rotineira da vida. E os indivíduos devem tomar decisões por si mesmos, pois não estão disponíveis contextos de suporte social para as tomadas de decisão. Em parte, esse afrouxamento da determinação dos cursos de vida e dos comportamentos cotidianos, assim como a experiência de decidir como prática rotineira explicam uma auto- imagem de autonomia do homem moderno. Alguns dos aspectos mencionados até aqui serão retomados adiante, na apreciação das dicotomias psicológicas clássicas. Antes disso, porém, convém acrescentar algumas observações sobre a diversificação das funções sociais nas sociedades de mercado. Elias (1994) assinala que o processo de diferenciação e multiplicação das funções sociais tem uma história mais longa (alguns milênios) do que a transição do feudalismo para o capitalismo, mas também experimentou uma aceleração única nos últimos séculos: “O número de atividades especializadas ... elevou-se ao longo dos milênios, a princípio lentamente, mas agora em ritmo cada vez mais acelerado” (Elias, 1994, p. 113). 36 Com o processo de diferenciação crescente das funções sociais a produção das condições de sobrevivência dos grupos passou a depender de um número cada vez maior de atividades ou passos executados cada um por apenas alguns indivíduos. No decorrer do tempo, não apenas multiplicou-se o número de passos entre o primeiro e o último numa seqüência de ações, como também um número crescente de pessoas se fez necessário para executar esses passos. E, no decorrer desse processo, mais e mais pessoas viram-se numa crescente dependência umas das outras, interligadas como que por correntes invisíveis. Cada qual funcionava como um elo de ligação, um especialista em uma tarefa limitada. Cada qual era urdida em uma trama de ações em que um número cada vez maior de funções especiais, e de pessoas dotadas das capacidades para executá-las, se interpunha entre o primeiro passo em direção a uma meta social e a consecução dessa meta. (Elias, 1994, pp. 111-112) A especialização em uma função particular, cada vez mais diferente de todas as funções desempenhadas pelos outros, torna muito mais complexa e menos visível a dependência de cada um em relação a todos os outros. De um ponto de vista imediato, o sucesso do indivíduo no exercício de uma função particular (especialmente sob a forma de uma contrapartida em moeda) descola-se do que acontece com todos os outros que estão próximos, exercendo outras funções. Além disso, a função com alto grau de especialização pode ser desempenhada sem o auxílio imediato dos outros. 37 Essa especialização acentuada favorece, assim, uma auto-imagem de autonomia. Todavia, paradoxalmente, quanto mais especializado, mais dependente o indivíduo se torna de muitos outros indivíduos, posto que estará menos capacitado para uma parcela muito maior das atividades necessárias à produção das condições necessárias à sua sobrevivência. A complexidade dessas novas relações de interdependência contribui, porém, para torná-las de mais difícil percepção. A emergência do indivíduo resulta, assim, não de criações originais de homens e mulheres particulares, mas de uma transformação expressiva das relações interpessoais. Os avanços da individualização, como na Renascença, por exemplo, não foram conseqüência de uma súbita mutação de pessoas isoladas, ou da concepção fortuita de um número especialmente elevado de pessoas talentosas; foram eventos sociais, conseqüência de uma desarticulação de velhos grupos ou de uma mudança na posição social do artista-artesão, por exemplo. Em suma, foram conseqüência de uma reestruturação específica das relações humanas. (Elias, 1994, pp. 28-29) 1.3. A Emergência do Indivíduo e o Acobertamento das Relações de Interdependência. Quando dizemos que uma sociedade muda, isso significa que mudam certas práticas sociais em seu interior, assim como mudam os sistemas de crenças que justificam ou legitimam essas práticas. A transição para o capitalismo ilustra de modo singular os dois tipos de mudanças. Na presente 38 seção, serão assinaladas algumas mudanças nos sistemas de crenças do mundo ocidental que foram cruciais para a consolidação de um novo padrão de relacionamento interpessoal e para o enraizamento da auto-imagem de autonomia. Apenas por uma questão de conveniência, os novos sistemas de crenças serão exemplificados com referências pontuais à organização sócio- política e econômica, às concepções religiosas, ao pensamento filosófico acerca do conhecimento humano sobre a realidade e às prescrições para o comportamento social. Há diversos outros domínios (por exemplo, o das artes) nos quais vão se elaborando noções que também refletem uma concepção de homem como indivíduo. O que acontece em cada um desses domínios de reflexão influencia e é influenciado pelo que ocorre nos demais. É a cultura como um todo que sofre transformações em uma dada direção, impulsionada de modo fundamental pela mudança na base material da vida. Com a desagregação da organização social e política feudal, rompidos os laços locais de obrigações de solidariedades que ligavam os homens no interior da hierarquia social, ao mesmo tempo em que se multiplicavam as funções sociais e interesses pessoais, os conflitos encontrariam terreno fértil para progredir, a ponto de comprometer a sobrevivência da sociedade como um todo, se no lugar daquelas tradições e costumes não se estabelecessem outros mecanismos de ajustamento e regulação das relações sociais. O surgimento e expansão dos Estados nacionais, com suas leis, com o monopólio da violência física e com o controle da atividade econômica e da circulação da moeda, cumpriria essa função. A extensão da intervenção do Estado nas relações interpessoais, em 39 particular nas relações econômicas, tornou-se objeto de disputa permanente entre classes sociais e entre agentes econômicos, cujos interesses conflitantes os mantêm em também permanente luta (cf. Hunt & Sherman, 1993). O liberalismo clássico, pelo menos a partir do século XVIII, com o processo de industrialização, tornou-se o pensamento econômico dominante no ocidente, deixando para trás a ética paternalista cristã medieval. Não era possível ao capitalismo estabelecer-se como modo de produção à luz da condenação religiosa à busca e acumulação de riquezas. Ao contrário, as motivações que impulsionam o homem para o enriquecimento passam a ser vistas como virtudes necessárias para o progresso econômico. O poder regulador das relações entre os homens, o Estado, não mais a Igreja, deve, no lugar de impor sanções à avareza e ao egoísmo, liberar os indivíduos para que busquem o sucesso econômico, ocupando-se de evitar que esse movimento conduza a uma “guerra de todos os homens contra todos os homens” (Hobbes, 1651/1979, p. 77). O pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679), ainda no século XVII, pode ser considerado fundacional para toda a doutrina liberal. Em seu Leviatã, Hobbes (1651/1979) argumenta que em seu estado natural todo homem deseja e busca sua satisfação pessoal, entrando em conflito com outros homens: “se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos” (p. 74). A competição, a desconfiança e a glória constituem as três principais causas dos conflitos. “A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; a terceira, a reputação” (p. 75).
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