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Serviço Público Federal 
Universidade Federal do Pará 
Centro de Filosofia e Ciências Humanas 
Departamento de Psicologia Experimental 
 
 
 
 
 
 
 
Subjetividade e Relações Comportamentais 
Emmanuel Zagury Tourinho 
 
 
 
Tese apresentada ao Departamento de 
Psicologia Experimental, Universidade 
Federal do Pará, como requisito para 
inscrição no Concurso Público para 
Professor Titular da Matéria Psicologia 
Geral e Experimental. 
 
 
 
 
 
Belém, Pará 
2006
 i 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico este trabalho à Simone, com muito amor.
 ii 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A elaboração deste trabalho foi apoiada de forma 
decisiva pelo Conselho Nacional de 
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq 
(Processos 305743/2004-0 e 470802/2004-9).
 iii 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ou se tem chuva e não se tem sol 
ou se tem sol e não se tem chuva! 
 
Ou se calça a luva e não se põe o anel, 
ou se põe o anel e não se calça a luva! 
 
Quem sobe nos ares não fica no chão, 
quem fica no chão não sobe nos ares. 
 
É uma grande pena que não se possa 
estar ao mesmo tempo em dois lugares! 
 
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, 
ou compro o doce e gasto o dinheiro. 
 
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . . 
e vivo escolhendo o dia inteiro! 
 
Não sei se brinco, não sei se estudo, 
se saio correndo ou fico tranqüilo. 
 
Mas não consegui entender ainda 
qual é melhor: se é isto ou aquilo. 
 
(Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo)
 iv 
Tourinho, E. Z. (2006). Subjetividade e Relações Comportamentais. Tese 
apresentada ao Departamento de Psicologia Experimental, Universidade 
Federal do Pará. Belém, Pará. 
 
 
 
RESUMO 
Fenômenos relativos à “subjetividade” humana têm sido abordados pela 
Psicologia desde sua origem como disciplina independente e representam, 
ainda hoje, um tema dos mais controversos no debate travado por diferentes 
escolas de pensamento psicológico. No presente trabalho, a “subjetividade” é 
entendida como conceito que sintetiza os modos como sentimentos, emoções 
e pensamentos são vividos em sociedades em estágio avançado do processo 
civilizador. Com o objetivo de prover um tratamento (comportamental) 
abrangente para o tema da subjetividade, alguns aspectos centrais dessa 
temática são discutidos à luz de duas referências principais. Uma primeira 
referência consiste das dicotomias psicológicas clássicas, que sintetizam a 
problematização moderna da chamada experiência subjetiva: as dicotomias 
público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno e físico-mental. A segunda 
referência consiste da proposição analítico-comportamental de interpretar os 
fenômenos psicológicos como relações comportamentais. No exame das 
dicotomias psicológicas clássicas são assinaladas algumas de suas raízes 
histórico-culturais e suas conexões com valores e práticas de uma cultura 
individualista. No desenvolvimento de uma interpretação analítico-
comportamental para a subjetividade são propostas direções para uma 
caracterização de sentimentos e pensamentos como relações comportamentais 
e explicadas como se elaboram nesse contexto as noções de individualidade, 
autonomia e autocontrole. O trabalho desenvolve a tese de que os conceitos de 
privado, subjetivo, interno e mental refletem a dificuldade em reconhecer 
dimensões da interdependência entre indivíduos na definição dos fenômenos 
psicológicos, o que pode ser superado com uma interpretação de sentimentos 
e pensamentos como relações comportamentais, desde que ponderados os 
modos como variáveis culturais dão uma conformação particular a esses 
fenômenos. Nesse percurso, sugere-se que uma interpretação analítico-
comportamental consistente para o problema depende menos da afirmação de 
um monismo físico e mais da apreciação de como se configuram, na cultura 
ocidental moderna, as relações comportamentais descritas como sentimentos e 
pensamentos. 
 
Palavras-chave: subjetividade, eventos privados, sentimentos, pensamento.
 v 
Tourinho, E. Z. (2006). Subjectivity and Behavioral Relations. Thesis presented 
to the Departamento de Psicologia Experimental, Universidade Federal do 
Pará. Belém, Pará. 
 
 
 
ABSTRACT 
 
Human “subjectivity” phenomena have been discussed in Psychology since its 
inception as an independent discipline, and still represent one of the most 
controversial themes in the debate promoted by different psychological 
systems. In the present work, “subjectivity” is treated as a concept that 
summarizes the ways feelings, emotions and thinking are experienced in highly 
civilized societies. The objective of the work is to provide a broad (behavioral) 
approach to the theme of subjectivity. Two main references are adopted in the 
discussion of some aspects that are central to the problem of subjectivity. The 
first reference is the set of classical psychological dichotomies, which largely 
summarize modern treatment of the so called subjective experience: the public-
private, objective-subjective, outer-inner, and physical-mental dichotomies. The 
second reference consists of the behavior-analytic proposition that we interpret 
psychological phenomena as behavioral relations. With respect to the classical 
psychological dichotomies, some of their historical-cultural roots are pointed 
out, as well as their relation to values and practices that are typical of 
individualist societies. In the development of a behavior-analytic interpretation to 
subjectivity, some directions are proposed in order to view feelings and thinking 
as behavioral relations. It is also explained how the notions of individuality, 
autonomy and self-control may be approached in the context of such theoretical 
perspective. The work develops the thesis according to which the concepts of 
private, subjective, inner and mental reflect a difficulty in recognizing 
interdependence among individuals, and that this may be overcome as we 
interpret feelings and thinking as behavioral relations, as long as we regard the 
ways cultural variables give in unique features to these phenomena. Along this 
reasoning, it is suggested that a consistent behavior-analytic interpretation to 
the problem requires not so much an assertion of physical monism, but more 
importantly requires a proper evaluation of the features found in behavioral 
relations described as feelings and thinking in modern western cultures. 
 
Key-words: subjectivity, private events, feelings, thinking. 
 vi 
SUMÁRIO 
 
RESUMO iv 
ABSTRACT v 
APRESENTAÇÃO viii 
INTRODUÇÃO 1 
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 7 
CAPÍTULO 1: RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O FLORESCIMENTO DAS 
DICOTOMIAS PSICOLÓGICAS CLÁSSICAS. 
14 
1.1. A Interdependência Humana em uma Sociedade 
Hierárquica. 
18 
1.2. Condições de Interdependência em uma 
Sociedade de Mercado. 
27 
1.3. A Emergência do Indivíduo e o Acobertamento das 
Relações de Interdependência. 
37 
1.4. Dimensões do Indivíduo e as Dicotomias 
Psicológicas Clássicas. 
58 
CAPÍTULO 2: DIMENSÕES DA ABORDAGEM ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL 
PARA O PROBLEMA DA SUBJETIVIDADE. 
94 
2.1. A Noção de Eventos Privados. 100 
2.2. Limites da Noção de Eventos Privados. 114 
2.3. “Eventos Privados” como Resposta Verbal. 123 
2.4. Relações Comportamentais e as Dicotomias 
Psicológicas Clássicas. 
145 
 vii 
CAPÍTULO 3: SUBJETIVIDADE, EVENTOS PRIVADOS E RELAÇÕES 
COMPORTAMENTAIS. 
160 
3.1. A Individualização. 161 
3.2. A Autonomia. 174 
3.3. O Autocontrole. 190 
3.4. Fugindo à Lógica das Dicotomias PsicológicasClássicas: Complexidade, Acessibilidade e 
Relevância de Relações Comportamentais. 
200 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 204 
REFERÊNCIAS 211 
 
 
 viii 
APRESENTAÇÃO 
 
 Emoções e pensamento são tratados em manuais de Psicologia (e.g., 
Huffman, Vernoy & Vernoy, 2003) como alguns dos processos psicológicos 
básicos (ao lado de aprendizagem, cognição, memória, percepção e outros), 
uma matéria que requer um tratamento específico de qualquer sistema 
explicativo abrangente na Psicologia. Como o conceito de emoções, o conceito 
de sentimentos é também empregado com freqüência na abordagem de 
fenômenos considerados afetivos. Ainda que muitas vezes sejam usados como 
sinônimos, sentimentos e emoções são em alguns sistemas diferenciados com 
base na existência (para os primeiros) de um componente lingüístico na 
afetividade. Emoções, sentimentos e pensamentos constituem o foco do 
presente trabalho. Eles serão abordados como fenômenos que em grande 
medida sintetizam o que tem sido denominado de subjetividade. A análise 
oferecida pode se estender a outros fenômenos ou conceitos correlatos, como 
cognição, sensação etc., embora não sejam examinadas particularidades 
desses outros fenômenos ou dos usos desses outros conceitos. Discutindo 
pensamentos, emoções e sentimentos, acreditamos ser possível oferecer um 
tratamento (comportamental) abrangente para o tema da subjetividade, objetivo 
deste trabalho. 
 Homens e mulheres de todas as culturas emocionam-se e refletem 
sobre o mundo a sua volta. Algumas emoções (e.g., medo, tristeza) são, 
inclusive, consideradas parte de nossa herança filogenética (cf. Ekman, 1993; 
Millenson, 1967/1975; Russell, 1991). Com o conceito de subjetividade, porém, 
 ix 
estaremos referindo o modo específico como emoções, sentimentos e 
pensamentos são experimentados na cultura ocidental moderna, um modo que 
tem sido referido como “privado” (cf. Elias, 1994) ou “privatizado” (cf. 
Figueiredo e Santi, 1997). É a configuração (discutida ao longo deste trabalho) 
que sentimentos, emoções e pensamentos adquirem na cultura ocidental 
moderna que dá origem aos conceitos de privado, subjetivo, interno e mental. E 
é essa mesma problemática que está na base da fundação da Psicologia como 
disciplina independente, primeiro um campo reflexivo, depois uma ciência e 
uma profissão de ajuda. 
 A subjetividade assim entendida será examinada ao longo do trabalho, a 
partir de duas referências. No Capítulo 1, são discutidos aspectos histórico-
culturais da experiência moderna de sentimentos e pensamentos, enfatizando-
se as condições sociais que estão na origem do que denominaremos aqui de 
dicotomias psicológicas clássicas (público-privado, objetivo-subjetivo, interno-
externo, físico-mental). Nos Capítulos 2 e 3, o trabalho focaliza a elaboração de 
uma interpretação para emoções, sentimentos e pensamentos, à luz dos 
princípios do sistema explicativo denominado Análise do Comportamento, que 
tem como referência principal a obra filosófica e científica de B. F. Skinner. 
 O trabalho pretende oferecer um tratamento analítico-comportamental 
abrangente para a subjetividade, em que emoções, sentimentos e pensamento 
são concebidos essencialmente como relações comportamentais. Essa 
elaboração conflita com noções e valores, próprios de uma cultura 
individualista, que encontram expressão nas dicotomias psicológicas clássicas. 
A perspectiva interpretativa relacional depende, por outro lado, de uma 
 x 
apropriação das informações que emergem de uma análise histórica daquelas 
dicotomias. Em suma, o trabalho desenvolve a tese de que os conceitos de 
privado, subjetivo, interno e mental refletem a dificuldade em reconhecer 
dimensões da interdependência entre indivíduos na definição dos fenômenos 
psicológicos, o que pode ser superado com uma interpretação de sentimentos, 
emoções e pensamentos como relações comportamentais, desde que 
ponderados os modos como variáveis culturais dão uma conformação 
particular a esses fenômenos. 
 1 
INTRODUÇÃO 
 
 Tema de alguns dos trabalhos mais notáveis de Skinner (e.g., 1945, 
1953/1965, 1963/1969, 1974/1993, 1968/2003), os eventos privados (conceito 
com o qual a subjetividade é tratada no sistema skinneriano) receberam pouca 
atenção da comunidade de analistas do comportamento até pelo menos a 
década de 90 do século XX. Alguma atenção mais sistemática passou a ser 
dada ao assunto apenas quando analistas do comportamento com atuação 
clínica afirmaram a necessidade de resgatar, nesse campo da prática 
psicológica, os princípios analítico-comportamentais e assinalaram que, na 
terapia verbal face a face, o assunto eventos privados é recorrente e demanda 
um tratamento mais avançado do que aquele delineado nos escritos de Skinner 
(cf. Anderson, Hawkins, Freeman & Scotti, 2000; Anderson, Hawkins & Scotti, 
1997; Banaco, 1999; Dougher, 1993a, 1993b, 1994, 2000; Dougher & 
Hackbert, 2000; Friman, S. C. Hayes & Wilson, 1998; Moore, 2000; Wilson & S. 
C. Hayes, 2000). 
 Skinner desenvolve dois argumentos principais ao tratar de eventos 
privados. Em uma direção, sustenta que o que é sentido não explica o 
comportamento publicamente observável, do que conclui (e.g., Skinner, 
1953/1965) que uma ciência do comportamento prescinde da referência a 
sentimentos e emoções para lidar de modos efetivos com o comportamento 
humano. Em uma outra direção, discute os processos verbais envolvidos na 
aquisição de repertórios autodescritivos de sentimentos, emoções e 
pensamentos e sustenta a tese (e.g., Skinner, 1945) de que, por dependerem 
de contingências sociais, esses repertórios são sempre imprecisos 
 2 
(novamente, uma razão para não considerá-los em sua ciência). Esse segundo 
argumento constitui o ponto de partida para análises alternativas (e.g., Friman 
& cols., 1998; Dougher & Hackbert, 2000; Tourinho, 1999b, no prelo) sobre o 
lugar dos eventos privados em uma ciência do comportamento. 
 Quando se consideram as autodescrições de sentimentos, emoções e 
pensamentos à luz de uma concepção funcional de linguagem, como aquelas 
formuladas por Skinner (1957/1992) e por Wittgenstein (1953/1988), têm-se 
que as autodescrições são, elas mesmas, parte do fenômeno da subjetividade. 
É com a linguagem que parcelas do que pode ser chamado de um ambiente 
interno (cf. Tourinho, 1999b) tornam-se diferenciadas, adquirem funções em 
relações comportamentais, ainda que dentro de limites e sob condições 
específicas (cf. Skinner, 1945, 1974/1993; Tourinho, 1994a, 1994b). De outro 
lado, as autodescrições podem adquirir, elas mesmas, funções em relações 
comportamentais diversas. À luz de análises mais recentes sobre eventos 
privados e sobre comportamento verbal (e.g. DeGrandpre, Bickel, & Higgins, 
1992; S. C. Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001), isso levará a uma 
rediscussão (e.g. Friman & cols., 1998) da idéia de que a eventos privados não 
são relevantes em uma análise funcional dos comportamentos publicamente 
observáveis. Mais importante, os “eventos privados” serão menos enfatizados 
como eventos discretos de inacessibilidade restrita e mais enfatizados como 
conceito que remete a relações complexas dos indivíduos com o mundo. 
 Alguns trabalhos sobre eventos privados, anteriores ao debate 
inaugurado pelos clínicos, já haviam colocado em discussão o status causal de 
eventos privados, mas a partir da noção de causação interna do 
 3 
comportamento (e.g. Flora, & Kestner, 1995; Overskeid, 1994; Stemmer, 1995; 
Zuriff, 1979). Não foram, portanto, eficientes para promover uma discussão da 
subjetividade sob um enfoque de relações comportamentais, ainda que alguns 
problemas que levantaram tenham ficado sem uma apreciação devida na 
literatura analítico-comportamental. Quandoanalistas clínicos do 
comportamento recolocaram o tema em discussão, o fizeram de um modo que 
enfatizou dimensões relacionais verbais dos fenômenos. 
 Um grande mérito dos trabalhos mais recentes sobre eventos privados 
consiste, assim, de sua capacidade para conformar o exame do assunto à 
lógica relacional que sustenta mais fundamentalmente o sistema explicativo 
analítico-comportamental como um sistema psicológico; a idéia de que os 
fenômenos que constituem o objeto de estudos da Psicologia definem-se como 
relações dos homens e mulheres (ou dos organismos1) com o mundo. No 
lugar, agora, de olhar para sentimentos, emoções e pensamentos como 
eventos discretos (sejam eles públicos ou privados), torna-se necessário 
examinar como relações complexas (operantes e respondentes – cf. Darwich & 
Tourinho, 2005) são estabelecidas e entrelaçadas, de tal modo que alguns 
eventos inacessíveis à observação pública direta delas tomam parte. 
Com a explicitação de aspectos das relações verbais (e.g., a 
possibilidade de formação de classes de estímulos equivalentes) que 
 
1
 Neste trabalho, não ignoramos que o projeto skinneriano tinha como objeto o comportamento 
dos organismos (humanos e infra-humanos). Entendemos, porém, que seu interesse principal 
era o comportamento humano (cf. Andery, 1990) e que é na espécie humana, apenas, que se 
encontram os fenômenos mais complexos relacionados à subjetividade (ver Capítulo 2, 
adiante). As análises aqui desenvolvidas são pautadas pelo interesse específico no 
comportamento humano e por isso deixará de ser assinalado (exceto em casos particulares) 
quando as argumentações desenvolvidas se aplicarem ao comportamento de outros 
organismos. 
 
 4 
conduzem a um novo exame da questão da subjetividade, a análise do 
comportamento alargou a perspectiva inaugurada por Skinner. A abordagem 
permanece, todavia, ainda no plano dos processos (nesse caso, verbais) 
básicos, à luz dos quais fenômenos comportamentais merecem ser analisados. 
Um analista do comportamento pode argumentar que, para além disso, a 
análise possível da subjetividade dirá respeito à história ambiental de cada um, 
à ontogênese, na qual se materializam as relações que vêm a definir a 
identidade de cada homem ou mulher. No presente trabalho, no entanto, 
propomos algo diverso. Argumentamos que uma abordagem analítico-
comportamental da subjetividade pode avançar a partir de uma consideração 
de contingências culturais que vêm a definir o fenômeno. 
Os componentes verbais das mais complexas relações comportamentais 
referidas como sentimentos, emoções e pensamentos são produtos de uma 
cultura que promove de modo mais abrangente padrões de relacionamento 
com o mundo físico e social, que definem a subjetividade e só existem quando 
essas contingências culturais estão em operação. Isto é, o problema da 
subjetividade (aquele reservado à Psicologia – cf. Figueiredo, 1991, 1992; 
Figueiredo & Santi, 1997) só passa a existir à luz de certas contingências 
culturais. O que tratamos como subjetividade são certas relações 
comportamentais cujas características distintivas precisam ser especificadas, e 
um caminho para isso consiste em examinar as contingências histórico-
culturais que as engendram. 
O ponto de vista defendido neste trabalho, portanto, é o de que uma 
compreensão mais abrangente da subjetividade na análise do comportamento 
 5 
requer uma apreciação de contingências que produzem sentimentos, emoções 
e pensamentos nas culturais ocidentais modernas e uma especificação dos 
tipos de relações que definem esses fenômenos. A questão da inacessibilidade 
à observação pública de certos estímulos e respostas (a base para a noção de 
eventos privados) não se perde com essa análise, mas nela encontra um 
contexto analítico mais amplo. 
 Diversos percursos investigativos poderiam ser seguidos para prover 
uma apreciação da subjetividade nos termos mencionados. Optamos aqui por 
examinar um conjunto de informações históricas, delas derivando uma 
interpretação para sentimentos, emoções e pensamentos enquanto fenômenos 
relacionais2. As categorias analíticas empregadas para esse fim serviram 
também para confrontar a perspectiva relacional da análise do comportamento 
com práticas ou discursos que parecem ignorar, ou pelo menos deslocar para 
um segundo plano, essa dimensão dos fenômenos psicológicos. 
Em sua formulação tradicional nas Psicologias, pensamentos, emoções 
e sentimentos são discutidos como ocorrências privadas, subjetivas, internas 
ou mentais, ocorrências do ou no indivíduo. A tese a ser desenvolvida inicia 
com uma afirmação de que a perspectiva individualista e subjetivista que esses 
conceitos veiculam é produto de contingências culturais que funcionam para 
obscurecer as relações (cada vez mais complexas) de interdependência entre 
homens e mulheres. Prossegue com a argumentação de que a referência 
 
2
 Sobre a opção de olhar para a história para compreender conceitos psicológicos, Skinner 
(1931/1961) fez algo parecido, ao se voltar para o conceito de reflexo. A decisão de recorrer a 
certas informações históricas neste trabalho não significa que a análise a ser apresentada é 
uma análise histórica, como a skinneriana, mas tem a mesma pretensão de lançar luz sobre 
problemas ainda insuficientemente formulados na Psicologia e na análise do comportamento. 
 
 6 
skinneriana à inacessibilidade de certos estímulos e respostas constitui um 
recurso insuficiente para explicar o conjunto de problemas que encontra 
expressão nas dicotomias público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno, 
físico-mental, requerendo uma formulação mais abrangente das relações 
comportamentais que definem sentimentos, emoções e pensamentos. Encerra 
com a proposição de que, à luz de um exame histórico das dicotomias 
psicológicas clássicas, é possível analisar de modos originais as noções de 
singularidade, autonomia e autocontrole e com isso favorecer uma 
interpretação analítico-comportamental mais abrangente e consistente da 
subjetividade. 
 
 7 
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 
 
 Trabalhos reflexivos estão na origem da constituição da Psicologia 
como disciplina independente, mas não raro são ignorados como uma 
dimensão importante desse campo de conhecimento (e.g., quando a Psicologia 
é definida apenas como uma ciência e profissão3). Em que pese sua 
precedência na história de constituição da Psicologia, nas abordagens 
comportamentais, em particular na análise do comportamento, a produção 
reflexiva recebeu atenção sistemática muito mais tardiamente do que os 
programas de investigação básica e aplicada. Como decorrência, não se 
encontram, na área reflexiva, ou conceitual, programas amplos de 
investigação, aos quais grupos diversos de pesquisadores se dediquem de 
forma integrada. Também não há, para essa produção, unidade metodológica 
ou soluções consagradas e compartilhadas com grande número de 
pesquisadores. Tudo isso, porém, é diferente de afirmar que a produção 
reflexiva, em análise do comportamento, prescinde de decisões de ordem 
metodológica. As que foram tomadas no presente estudo estão sumarizadas 
 
3
 Por vezes, a caracterização da Psicologia como “ciência e profissão” ignora esse fato: de que 
a disciplina psicológica é antes e originalmente uma disciplina reflexiva (em particular, sobre as 
condições – subjetivas - de realização do homem em diferentes domínios de sua vida), à qual 
apenas muito mais tardiamente se articulam programas de investigação científica e programas 
voltados à solução de problemas humanos (cf. Tourinho, Carvalho Neto & Neno, 2004).Em 
uma discussão do assunto Tourinho (2003) assinala que “a Psicologia se edifica como um 
campo de saber que envolve, simultaneamente: a) um esforço reflexivo sobre a natureza 
humana, seus problemas e suas possibilidades de realização em diferentes domínios da vida 
(social, material, intelectual, religioso etc.); b) uma investigação cientificamente orientada para 
a descoberta de regularidades dos fenômenos psicológicos (um modo de tentar apreender as 
novas experiências sob a forma de enunciados que incorporam os requisitos empírico-racionais 
da emergente ciência); c) uma profissão de ajuda, voltada para a solução de problemas 
humanos” (p. 35). 
 
 8 
nos parágrafos seguintes4. 
 
a) a definição do problema: 
O trabalho foi desenvolvido no contexto de um programa mais amplo de 
pesquisas conceituais e empíricas, voltado para a temática da subjetividade na 
Psicologia e seu tratamento no sistema explicativo analítico-comportamental. 
Vimos desenvolvendo esse programa, com a colaboração de pesquisadores 
formados e em formação (graduandos, mestrandos e doutorandos), sempre 
com a perspectiva de elaborar ou aperfeiçoar uma compreensão para 
sentimentos, emoções e pensamentos enquanto fenômenos relacionais. O 
presente estudo pretende avançar em relação aos resultados até aqui 
alcançados com esse programa de pesquisas. Trabalhos desenvolvidos no 
âmbito desse programa de pesquisas ocuparam-se das diferentes dimensões 
ou aspectos da noção skinneriana de eventos privados (Darwich & Tourinho, 
2005; Santos, 1998; Tourinho, 1995, 1997a, 1997b, 1997c, 1999a, 1999b, 
2005, no prelo; Tourinho, Teixeira & Maciel, 2000), suas articulações com 
temas no campo da aplicação clínica da análise do comportamento (Azevedo, 
2001; Cavalcante, 1999; Cavalcante & Tourinho, 1998; Maciel, 2004; 
Marchezini-Cunha, 2004; Martins, 1999; Martins & Tourinho, 2000; Medeiros, 
2001; Souza Filho, 2001; Tourinho, Cavalcante, Brandão & Maciel, 2001), suas 
conexões com elaborações no campo da epistemologia e da filosofia da 
linguagem (Tourinho, 1994a, 1994b; Tourinho & Neno, 2003) e sua 
contraposição a outros sistemas explicativos psicológicos (comportamentais ou 
 
4
 Algumas especificações aqui fornecidas apóiam-se na sistematização sugerida por Tourinho 
e Micheletto (2002). 
 
 9 
não) (Costa, 1999; Tourinho, 2004). À medida em que esses estudos foram se 
desenvolvendo, especialmente os estudos conceituais, um conjunto de 
informações históricas sobre a constituição da problemática da subjetividade 
no mundo moderno foi sendo colecionado e de algum modo incorporado à 
interpretação que se foi procurando refinar para o tema. A partir de um 
acúmulo mais sistemático desse tipo de informação, foi se mostrando possível 
estruturar uma abordagem analítico-comportamental para o tema tomando-se 
como referência o que designamos de dicotomias psicológicas clássicas 
(público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno, físico-mental). 
Há basicamente duas razões para que aquelas dicotomias tenham sido 
consideradas referências heurísticas para uma análise da subjetividade. 
Primeiro, o fato de que por meio delas é possível reconstituir de modo eficiente 
o processo de construção da subjetividade como problema para o mundo 
moderno, colocando em relevo aspectos centrais dessa problematização, nem 
sempre identificados quando nos atemos a uma ou outra alegação (filosófica 
ou psicológica) sobre a experiência subjetiva (filosofia e psicologia muitas 
vezes partem da problemática já constituída, atravessada por supostos que 
não são tomados eles próprios como objeto de necessária investigação). A 
segunda razão decorre de uma incursão preliminar na literatura histórica: uma 
suposição de que, à luz das informações produzidas pela análise histórica, 
seria possível alargar a interpretação analítico-comportamental para 
pensamentos, sentimentos e emoções, tornando-a, ao mesmo tempo, mais 
abrangente e consistente. Mais que uma razão, essa “suposição” passou a 
funcionar como uma hipótese, que, no entanto, requeria categorias analíticas 
 10 
que pudessem explicitar o curso de um exame produtivo do problema. 
As dimensões relacionais dos problemas psicológicos foram então 
assumidas como o ponto de partida e referência, tanto para a reconstrução 
histórica das dicotomias clássicas (isto é, para a sistematização das 
informações produzidas a partir da análise histórica), como para a apreciação 
das possíveis dimensões de uma interpretação analítico-comportamental para 
o tema da subjetividade. As dicotomias deveriam ser examinadas à luz do que 
veiculavam sobre as relações de interdependência entre homens e mulheres 
em contextos culturais específicos; a interpretação analítico-comportamental 
precisaria examinar de que modos esses contextos culturais que se destacam 
na análise histórica imprimem configurações específicas às relações 
consideradas representativas dos fenômenos relativos à subjetividade. 
 
b) a especificação das informações: 
 Dois conjuntos de informações tornaram-se essenciais para que a 
análise pretendida pudesse ser desenvolvida. De um lado, era necessário 
buscar nos textos históricos e sociológicos, nas referências que fazem ao tema 
da subjetividade, as informações sobre o que se passava no plano das 
relações interpessoais ao tempo em que se elaboravam as dicotomias 
clássicas, assim como suas conexões com práticas e valores culturais 
específicos. De outro, era necessário circunscrever as dimensões 
contempladas na análise comportamental do problema até o presente 
momento e identificar os instrumentos conceituais com os quais se poderia 
trabalhar para estender essa abordagem para nela incluir a referência aos 
 11 
problemas identificados a partir da análise histórica. 
 
c) a seleção das fontes: 
 O trabalho requereu o levantamento de dois conjuntos de produções, 
que poderiam prover as informações necessárias ao estudo: um primeiro 
conjunto de textos referia-se aos elementos que poderiam subsidiar a análise 
das dicotomias psicológicas clássicas; um segundo conjunto deveria tratar do 
sistema explicativo analítico-comportamental. 
 O primeiro conjunto de textos, com informações históricas, foi 
selecionado com base em dois critérios: a) análise do período de transição do 
feudalismo para o capitalismo (referido em textos de história da Psicologia – 
e.g., Figueiredo, 1991, 1992 - como o período de construção da subjetividade 
moderna); b) referências a mudanças nas “mentalidades”, concepção de 
homem, ou construção da cultura individualista. Não apenas trabalhos de 
historiadores proviam essas informações. Foram também selecionados para 
esse primeiro conjunto, textos de disciplinas como sociologia, economia, 
filosofia e política, que também traziam informações históricas relevantes para 
o problema focalizado. 
 O segundo conjunto de textos, com informações sobre o sistema 
explicativo-analítico comportamental foi selecionado com base em dois outros 
critérios: a) referências a eventos privados (o conceito com o qual Skinner 
examina a problemática da subjetividade; e b) referências a contingências 
próprias das culturas ocidentais modernas. O ponto de partida para essa 
seleção foi o conjunto da obra publicada de Skinner (cf. Andery, Micheletto & 
 12 
Sério, 2004) e a coleção de trabalhos publicados nos periódicos The Behavior 
Analyst e Behavior and Philosophy (destino principal da produção conceitual 
em análise do comportamento). Textos de outras fontes foram acessados a 
partir de um contato com essa primeira seleção. Uma familiaridade prévia com 
a literatura também importou na identificação de possíveis fontes de 
informação. 
 
d) o levantamento de informações:Do material selecionado foram destacados trechos ilustrativos de temas 
relacionados ao problema descrito. Esse levantamento poderia ter sido feito ao 
longo do exame de cada texto, mas efetivamente só aconteceu após uma 
apreciação geral da literatura que seria considerada. A partir disso, os trechos 
eram transcritos em arquivos que seriam depois aproveitados na construção 
das análises. 
 
e) o tratamento das informações: 
 Como em outros domínios, em um trabalho conceitual a análise não se 
realiza somente após a coleta de informações. O processo de coleta de 
informações já se dá pautado por uma suposição acerca de cursos de análise 
possíveis, identificados desde a construção do problema de pesquisa e leitura 
preliminar de uma dada literatura. Ainda assim, pode-se dizer que há um 
momento em que claramente trata-se menos de colecionar informações e mais 
de a elas conferir uma determinada inteligibilidade. 
Dois momentos principais sintetizam o processo analítico no presente 
 13 
estudo. Primeiro, a adoção da questão (do reconhecimento) das relações de 
interdependência entre homens e mulheres como eixo a partir do qual práticas 
e valores sociais seriam examinados no processo de tratamento das 
informações históricas, com as quais se pretendia enfocar as dicotomias 
clássicas. Segundo, a formulação dos temas da singularidade, autonomia e 
autocontrole como temas a partir dos quais o enfoque analítico-
comportamental para a subjetividade seria desenvolvido, a fim de incorporar 
possíveis contribuições derivadas do exame histórico das dicotomias clássicas. 
 
As decisões descritas definem e limitam o alcance da contribuição que o 
presente trabalho pode trazer para a análise do comportamento, ou, mais 
propriamente, para a construção de uma abordagem analítico-comportamental 
da subjetividade. Elas devem ser consideradas tanto pelo que promovem 
diretamente em termos de uma formulação conceitual, como pelas áreas de 
interlocução a que conduzem com outros saberes ou produções culturais. 
Pensadas desse modo, essas decisões revelam também o tipo de contribuição 
esperada: não apenas o desenvolvimento da interpretação analítico-
comportamental, mas também a sinalização de alguns possíveis caminhos 
para programas de pesquisa mais abrangentes sobre emoções, sentimentos e 
pensamentos. 
 
 14 
CAPÍTULO 1 
RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O FLORESCIMENTO DAS DICOTOMIAS PSICOLÓGICAS 
CLÁSSICAS 
 
 Organismos humanos são capazes de interagir uns com os outros de 
modos complexos, impondo à realidade configurações sofisticadas, com graus 
variados de diferenciação e que afetam de maneiras importantes sua vida 
cotidiana. Transcendem, assim, as determinações de sua história filogenética 
em larga medida e de modos únicos. Suas realizações nas artes, nas técnicas 
e nas ciências atestam sua capacidade diferenciada e constituem alguns dos 
produtos mais salientes dos processos de criação e transformação da realidade 
em que vivem. O caráter social de tais produções dificilmente será negado por 
alguém que se debruce sobre o processo histórico que está na sua origem. 
Todavia, a interdependência entre os homens e mulheres de uma sociedade 
(mais ou menos complexa) constitui um fato que nem sempre se reflete nas 
crenças ou sistemas explicativos que essa mesma sociedade vem a construir 
sobre suas conquistas, ou sobre as capacidades humanas. E quando as 
condições de interdependência tornam-se menos evidentes, ou menos 
reconhecidas, estão criadas as condições para uma concepção de homem 
como ser autônomo, cujas ocorrências ou faculdades pessoais constituem o 
núcleo de sua existência e de suas realizações. 
 O conceito de indivíduo e a noção de autonomia em que está 
fundamentado, na contramão das evidências empíricas de interdependência, 
refletem uma auto-imagem do homem moderno como capaz de realizar-se à 
 15 
parte das relações com outros homens. São as virtudes e faculdades do ou no 
homem particular que começam a ser vistas como a base de suas realizações, 
quer materiais, espirituais, cognitivas, ou de qualquer outra ordem. Um 
exemplo clássico desse individualismo, que terá ampla repercussão no 
pensamento moderno, inclusive na fundação na disciplina psicológica, é 
encontrado no racionalismo cartesiano, de acordo com o qual a possibilidade 
de o homem chegar a juízos seguros acerca da realidade à sua volta é 
resultante não de processos de interlocução, do diálogo e do embate de idéias 
com outros homens, mas, ao contrário, de um exercício de uma faculdade 
pessoal, o pensamento racional, cujo emprego eficaz depende inclusive do 
desprendimento em relação às opiniões alheias: “é quase impossível que 
nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam, se tivéssemos o 
uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido 
guiados senão por ela” (Descartes, 1637/1979, p. 35). Não é de surpreender, 
portanto, que o próprio pensar seja suficiente, no sistema cartesiano, como 
prova da existência do indivíduo pensante (a res cogitans). Para Descartes 
(1596-1650), nenhuma obra será tão perfeita quanto aquela planejada e 
executada por um único homem, de acordo com o seu próprio julgamento, “não 
há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de 
diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou” (Descartes, p. 34). 
 No presente Capítulo, a problematização da subjetividade humana será 
discutida à luz da emergência e consolidação de uma cultura individualista, na 
qual a percepção dos laços de interdependência entre os homens dá lugar à 
auto-imagem de autonomia do indivíduo. Todavia, no lugar de simplesmente 
 16 
questionar essa auto-imagem, serão discutidas algumas condições que 
explicam sua elaboração e reprodução em sistemas de crenças (inclusive 
teorias psicológicas) e práticas sociais das culturas caracteristicamente 
individualistas. Em particular, serão discutidas certas mudanças importantes 
nas sociedades ocidentais com o advento de uma economia de mercado. Às 
transformações no plano das relações interpessoais e dos sistemas 
explicativos produzidos nesse contexto de mudanças serão relacionadas as 
dicotomias psicológicas clássicas: público/privado, interno/externo, 
físico/mental e objetivo/subjetivo. Pretendemos argumentar que o florescimento 
de uma cultura individualista, cujas práticas, valores e crenças tendem a 
obscurecer as dimensões interpessoais das realizações humanas, constitui o 
fundamento daquelas dicotomias. Isso implicará dizer que a caracterização de 
fenômenos psicológicos como privados, internos, mentais ou subjetivos 
representa um modo de desqualificar, ou remeter para segundo plano, as 
dimensões interpessoais daquelas realizações. Com o propósito de introduzir 
essa interpretação, serão assinalados alguns aspectos da vida em sociedade 
na Europa feudal que, se não promoviam de modo claro uma concepção de 
heteronomia ou interdependência dos homens, certamente não constituíam as 
condições necessárias para a formação de uma cultura individualista. Hunt e 
Sherman (1993) ilustram essas questões ao referirem aspectos da ética 
paternalista cristã, que exerceu forte papel na regulação da vida social feudal: 
no início do período feudal, a ética paternalista cristã estava 
profundamente encravada na cultura européia ocidental. A ganância, 
a avareza, o egoísmo, a ânsia de acumular riquezas, enfim, todas as 
 17 
motivações materialistas e individualistas eram severamente 
condenadas. O homem ganancioso e individualista era considerado 
a própria antítese do homem bom, preocupado com o bem-estar de 
todos os seus irmãos. Os homens prósperos tinham ao seu alcance 
a possibilidade de, coma riqueza e o poder de que dispunham, 
realizar um grande bem ou um grande mal: o pior dos males 
consistia em usar a riqueza exclusivamente para a sua 
autogratificação, ou como meio para acumular continuamente, em 
seu próprio proveito, maior quantidade de riquezas. Os homens ricos 
honrados eram os que tinham consciência de que a sua fortuna e o 
seu poder constituíam uma dádiva de Deus. Assim, sentiam-se 
moralmente obrigados a agir de modo paternalista, administrando 
seus negócios temporais com a finalidade de promover o bem-estar 
de seus semelhantes. (pp. 17-18) 
 Sobre a importância das mudanças econômicas para que os laços 
feudais se dissolvessem e a noção de autonomia emergisse, Duby (1990) 
assinala: 
 As marcas evidentes das conquistas de uma autonomia pessoal se 
multiplicam no decorrer do século XII, isto é, no momento em que se 
acelera a distensão da economia, em que o crescimento agrícola 
chega ao ponto, reanimando estradas, mercados, aldeias, de 
transportar pouco a pouco para a cidade todos os sistemas de 
controle e os fermentos de vitalidade, em que a moeda começa a 
desempenhar no mais cotidiano da vida um papel capital, em que 
 18 
por toda parte se difunde o uso da palavra ganhar ... Tal movimento, 
a mobilização das iniciativas e das riquezas suscitou a valorização 
progressiva da pessoa. (pp. 505-506) 
 Ao longo das próximas seções, alguns aspectos das mudanças do modo 
de vida feudal para uma sociedade de mercado serão brevemente discutidos, 
enfatizando-se o que representam do ponto de vista das relações interpessoais 
e dos modos como os homens passam a representar suas relações com o 
mundo físico e social. Essas informações são importantes para a análise 
desenvolvida neste trabalho tanto quanto possibilitam compreender o que está 
na origem da noção de que sentimentos e pensamentos são ocorrências do ou 
no indivíduo. Com isso, pretende-se argumentar que a idéia de que 
sentimentos e pensamentos são fenômenos mentais, internos, subjetivos ou 
privados decorre não de um compromisso com uma doutrina psicológica 
particular, mas da exposição a contingências sociais específicas, que podem 
inclusive explicar certos limites das soluções que se pretendem críticas de uma 
visão individualista de homem. A análise de contingências histórico-sociais 
(algumas delas, pelo menos) é inspirada nos trabalhos de Figueiredo (e.g., 
1991, 1992; Figueiredo e Santi, 1997) sobre a história da Psicologia, embora se 
desenvolva segundo categorias próprias (com ênfase nas conexões dessas 
contingências com uma economia de mercado, e nos conceitos resultantes sob 
a forma de dicotomias psicológicas). 
 
1.1. A Interdependência Humana em uma Sociedade Hierárquica. 
 Homens e mulheres nascem e se desenvolvem como membros de 
 19 
grupos sociais específicos, no interior dos quais encontram um modo de vida e 
participam, também, da construção de suas condições de sobrevivência e 
reprodução. Assim, ainda que as crianças revelem, ao nascer, certas 
competências para interagir com aspectos importantes de seu mundo (cf. 
Moura & Ribas, 2004; Oliva, 2004; Tourinho & Carvalho Neto, 2004), 
é apenas na sociedade que a criança pequena, com suas funções 
mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma 
num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres 
humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao 
mundo se transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que 
tem o caráter de um indivíduo e merece o nome de ser humano 
adulto. (Elias, 1994, p. 27) 
 Reconhecido o caráter sócio-cultural do desenvolvimento humano, é 
importante destacar algumas condições sob as quais homens e mulheres se 
desenvolvem em sociedades agrárias e hierárquicas como a sociedade feudal. 
Em primeiro lugar, é necessário observar que as funções das classes (clero, 
senhores e servos) que definem a estrutura dessa sociedade são vistas como 
complementares, em particular no sistema de crenças (o catolicismo) que 
constitui a principal fonte de legitimação dessas relações: uns rezam, outros 
protegem, outros produzem. Inexistindo um poder (central) impessoal que atue 
na regulação dessas relações, as obrigações são acompanhadas de 
solidariedades coletivas nos códigos e costumes de cada feudo. Ou seja, é no 
plano das relações imediatas dos homens uns com os outros que são 
construídas as condições concretas de sobrevivência da sociedade como um 
 20 
todo. 
Na Idade Média, como em muitas sociedades em que o Estado é 
fraco ou simbólico, a vida de cada particular depende de 
solidariedades coletivas ou de lideranças que desempenham um 
papel de protetor. Ninguém tem nada de seu – nem mesmo próprio 
corpo – que não esteja ameaçado ocasionalmente e cuja 
sobrevivência não seja assegurada pelo vínculo de dependência. 
(Ariès, 1991, p. 17) 
 É claro que a existência de laços de solidariedade em uma sociedade 
hierárquica não implica o acesso indistinto às condições materiais de 
sobrevivência, mas significa que as relações de poder, à luz da ética cristã e da 
autoridade da igreja, encontravam certos limites. 
Os homens que ocupam posições de poder e detêm a riqueza 
assemelham-se ao pai ou ao protetor da família. Tinham obrigações 
paternalistas para com os homens comuns, isto é, os pobres ou, 
prosseguindo com a nossa analogia, os filhos. Do homem comum, 
por sua vez, esperava-se que aceitasse seu lugar na sociedade e se 
submetesse, de bom grado, à liderança dos ricos e poderosos, da 
mesma maneira que um filho aceita a autoridade do pai. (Hunt & 
Sherman, 1993, p.15) 
 Em segundo lugar, tem grande importância o fato de que nessa 
sociedade a função social de homem ou mulher encontra-se, salvo exceções, 
pré-definida, de acordo com a sua origem, portanto não é matéria quer de 
reflexão pessoal, quer de dedicação e conquista ao longo da vida. 
 21 
A identidade social numa sociedade agrária, como a medieval, em 
que as relações políticas cristalizadas em direitos e deveres, em 
obrigações e lealdades consuetudinárias suportavam o peso de toda 
a reprodução social era totalmente, ou quase, pré-definida pela 
cultura em função de eventos biográficos, como o nascimento, a 
filiação e a idade, independentes do próprio indivíduo. (Figueiredo, 
1991, p. 20) 
 Nessas sociedades, como em sociedades menos complexas ainda hoje 
encontradas (onde o Estado – se existe formalmente - não chega com suas 
instituições, e a sobrevivência depende fortemente de uma atividade produtiva 
voltada para a subsistência do grupo), a função social de cada um, além de 
não depender de uma conquista pessoal, define-se basicamente pelo interesse 
coletivo. O que está na base desses laços é principalmente o vínculo material 
entre os membros do grupo, o fato de que a sobrevivência material está 
estritamente vinculada à sobrevivência do grupo de origem; a impossibilidade 
de produzir a própria sobrevivência à parte dessas relações. Sob tais 
condições, o que regula a vida cotidiana de homens e mulheres não são 
projetos pessoais de vida, mas demandas e interesses coletivos, contingências 
ligadas à sobrevivência e reprodução do grupo. 
Nas comunidades mais primitivas e unidas, o fator mais importante 
do controle do comportamento individual é a presença constante dos 
outros, o saber-se ligado a eles pela vida inteira e, não menos 
importante, o medo direto dos outros. A pessoa não tem 
oportunidade, necessidade, nem capacidade de ficar só. Os 
 22 
indivíduos mal sentem alguma oportunidade, desejo ou possibilidade 
de tomar decisões por si ou de conceber qualquer pensamento sem 
a constante referência ao grupo. Isso não significa que os membros 
desses grupos convivam harmoniosamente.É comum ocorrer o 
inverso. Significa apenas que – para usar o termo que 
convencionamos – eles pensam e agem primordialmente do ponto 
de vista do “nós”. A composição do indivíduo adapta-se ao constante 
convívio com os outros a quem o comportamento tem que ser 
ajustado. (Elias, 1994, p. 108) 
 A distinção indivíduo-sociedade, ou melhor, o conceito de indivíduo 
sequer faz sentido nessas sociedades, visto que o espaço para cultivar 
vocações, interesses e mesmo o gosto pessoais são muito restritos. Também 
são poucas e pouco diferenciadas as funções sociais, de modo que não 
constituem exatamente um caminho para a individualização. O 
compartilhamento do destino inicia com o compartilhamento da moradia e dos 
espaços de deslocamento, dos utensílios domésticos e dos instrumentos e 
rotinas de trabalho, dos jogos e das preces. O isolamento físico é objeto de 
desconfiança e sequer pode existir no interior do espaço doméstico. Loucos (os 
homens comuns) ou heróis (eremitas e cavaleiros errantes) são aqueles que se 
arriscam a andar sozinhos. Rezar, ler, cantar ou lavrar a terra são 
essencialmente atos coletivos, realizados no espaço socialmente 
compartilhado. Realizar-se materialmente, espiritualmente, cognitivamente ou 
ludicamente, tudo pertence, de um ponto de vista imediato, ao plano das 
relações interpessoais, de modo inescapável. Vida privada confunde-se com 
 23 
vida pública, no sentido de que o compartilhamento das diversas dimensões da 
existência varia com respeito à amplitude do universo social, porém nunca a 
ponto de confinar o homem à introspecção. Ainda que aos olhos do indivíduo 
moderno essa imagem cause estranheza, é assim que os historiadores 
descrevem a experiência de vida no mundo feudal. Discutindo a “emergência 
do indivíduo” Duby (1990) assinala: 
Proximidade, promiscuidade, por vezes multidão – na época feudal, 
o espaço, com efeito, jamais estava previsto, no interior das grandes 
moradas, para a solidão individual, senão no breve instante do 
trespasse, da grande passagem para o outro mundo ... na sociedade 
feudal, o espaço privado aparece, na realidade, desdobrado, 
constituído de duas áreas distintas: uma fixa, em torno do lar, 
murada; a outra deslocando-se no espaço público, não menos 
coerente, apresentando em seu seio as mesmas hierarquias, 
reunida pelos mesmos procedimentos de controle ... E se vida 
privada significa segredo, esse segredo, necessariamente partilhado 
por todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto; 
se vida privada significa independência, também essa 
independência era coletiva. (pp. 503-504) 
 Outra característica essencial da sociedade feudal, ainda encontrada 
em sociedades mais simples, consiste do fato de que os processos reflexivos e 
de tomada de decisão não apenas são coletivos, como muito menos 
freqüentes, pela simples razão de que são menos necessários, uma vez que há 
poucas alternativas a serem consideradas a cada momento da vida cotidiana. 
 24 
Os homens nessas sociedades não precisam ocupar-se a cada momento de 
decidir aonde ir, como ir, o que fazer, ou de que modo fazer. Mesmo com 
respeito ao horizonte de uma vida, há muito menos decisões a serem tomadas, 
poucas encruzilhadas, como menciona Elias (1994): 
Nas sociedades mais simples, há menos alternativas, menos 
oportunidades de escolha, menos conhecimento sobre as ligações 
entre os acontecimentos e, portanto, menos oportunidades passíveis 
de parecerem “perdidas”, quando vistas em retrospectiva. Nas mais 
simples de todas, é freqüente haver diante das pessoas um único 
caminho em linha reta desde a infância – um caminho para as 
mulheres e outro para os homens. Raras são as encruzilhadas; 
raramente alguém é colocado sozinho diante de uma decisão ... 
Vive-se um dia atrás do outro. A pessoa come, sente fome, dança, 
morre. Qualquer visão a longo prazo de algo que possa ocorrer em 
algum momento futuro é muito limitada, e o comportamento 
presciente é incompreensível e pouco desenvolvido. Igualmente 
incompreensível é a possibilidade de uma pessoa deixar de fazer 
algo que se sinta premida a fazer aqui e agora em nome de uma 
satisfação que talvez lhe venha dentro de uma semana ou um ano, 
ou sua possibilidade de fazer o que chamamos “trabalhar”. Por que 
haveria alguém de fazer um esforço muscular não referido às 
exigências urgentes do momento? (p. 110) 
 Ligados uns aos outros de modos inescapáveis e vivendo uma vida 
cotidiana baseada na realidade imediata, homens e mulheres no mundo feudal 
 25 
não estão expostos a condições que favoreçam a construção e dedicação a 
projetos baseados em uma referência pessoal. O “nós” vale mais do que o “eu” 
na definição de cada passo, de cada rotina, de cada projeto. Na religião, por 
exemplo, o isolamento é coisa para poucos privilegiados. Para o homem 
comum, chegar a Deus é matéria de participação em cerimônias coletivas e/ou 
de cumprimento de reverência ou solidariedade a outros (esse ponto será 
retomado adiante). 
Se o segredo não é possível, ele também não é necessário, pelo menos 
não como nas sociedades modernas. Emoções e sentimentos podem ser 
experimentados de modos mais espontâneos. O que essa espontaneidade 
significa ficará mais claro quando observarmos o que acontece quando ela não 
é mais aceitável. As conseqüências para cada um de os outros saberem o que 
sente não são tais que justifiquem uma preparação para evitar a 
espontaneidade. É por essa razão que crianças e adultos compartilham os 
momentos da vida cotidiana. Apenas com a transformação dessas relações, a 
criança será retirada do convívio com a família e será inventada a infância, com 
um estágio da vida para o adestramento para a convivência com o mundo 
adulto. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhece a infância, ou 
não tentava representá-la ... É mais provável que não houvesse lugar para a 
infância nesse mundo” (Ariès, 1981, p. 50)5. A reflexão, também, sendo 
predominantemente oral e coletiva (porque voltada para assuntos que são de 
 
5
 Ariès (1981) afirma também: “Na sociedade feudal, que tomamos como ponto de partida, o 
sentimento da infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem 
negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento de infância não significa o 
mesmo que a afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, 
essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Por essa 
razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou 
de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes” (p. 156). 
 
 26 
interesse imediato também para os outros) desenvolve-se ao conhecimento 
dos outros. 
Contingências sociais dessa ordem não promovem, ao contrário, inibem 
uma concepção individualizada do homem. Não se pode dizer que promovam 
uma percepção das relações de interdependência, uma vez que raramente o 
homem é levado a refletir sobre sua condição no mundo. Mas certamente não 
reservam lugar para a noção de autonomia. Será necessário ao indivíduo 
encontrar novas condições para a produção de sua realização nos diversos 
domínios da vida, em especial será necessário encontrar novas condições 
materiais de vida, para que um sentimento de autonomia possa ser cultivado. 
Essas condições passam a se concretizar com o advento de uma economia de 
mercado. A conquista da autonomia pessoal, uma marca notável da vida 
moderna, não se realizaria sem essas transformações. É necessário, porém, 
refletir sobre a natureza e o alcance dessa autonomia. Como se argumentará 
adiante, há de fato uma autonomiaconquistada, no sentido de o indivíduo nas 
sociedades modernas encontrar-se menos limitado pelas condições de vida 
encontradas ao nascimento, e menos dependente de suas relações familiares 
e sociais imediatas. Em contrapartida, os processos de interdependência no 
mundo moderno assumem formas muito mais complexas e sofisticadas, 
impondo muito mais exigências para a realização individual. Essas duas 
dimensões da conquista da autonomia individual (a multiplicação dos 
horizontes de vida e a maior complexidade da interdependência) explicam em 
larga medida as concepções de homem que vão se tornando dominantes na 
cultura, inclusive no campo da disciplina psicológica. 
 27 
 
1.2. Condições de Interdependência em uma Sociedade de Mercado. 
 A transição do feudalismo para o capitalismo é descrita por historiadores 
como um processo desencadeado pelo crescimento da produtividade agrícola 
na Europa ocidental, que se prolongou por vários séculos, e que assumiu 
características peculiares em diferentes contextos geográficos e sócio-políticos. 
Para fins da presente análise, interessará assinalar alguns aspectos do que as 
mudanças desencadeadas pela dissolução dos laços econômicos feudais 
representaram do ponto de vista das relações cotidianas de homens e 
mulheres uns com os outros. 
 Com desenvolvimento da técnica na produção agrícola e a 
intensificação da atividade comercial, a partir do século XI6, a produção até 
então voltada primariamente para a subsistência começa a dirigir-se a um 
mercado. O interesse na troca, na possibilidade de produzir para obter moeda, 
com a qual são adquiridos os bens para a própria sobrevivência (e mais do que 
isso) traz um impacto considerável sobre a atividade produtiva rural (note-se 
que até o século X a população na Europa ocidental vivia quase inteiramente 
em feudos e pequenas aldeias cf. Hunt & Sherman, 1993). A definição do que 
produzir, como produzir, que função desempenhar no processo produtivo, tudo 
passa a ser regulado por condições do mercado. Na medida em que interessa 
produzir aquilo que pode representar maiores chances de sucesso financeiro 
nas trocas econômicas, começa a haver espaço para vocações pessoais, 
 
6
 A expansão do comércio a partir do século XI deve-se em grande medida às cruzadas cristãs, 
mas, como assinalam Hunt e Sherman (1993), isso não significa que a motivação desse 
movimento tenha sido propriamente religiosa. 
 
 28 
preocupação com a efetividade produtiva dos membros do grupo e uma divisão 
crescente do trabalho. Isto é, avança, no interior dos grupos, a diferenciação 
das funções sociais. Rompidos os compromissos entre senhores e servos, seja 
pela introdução do trabalho assalariado em substituição às relações de 
vassalagem, seja pelo abandono de obrigações relativas à observância de uma 
estrutura social hierárquica, abrem-se os horizontes para a conquista de uma 
identidade social nova. O sucesso material ou econômico não é mais 
constrangido pela condição de origem, mas dependente de uma conquista 
pessoal. 
 Em uma outra esfera, as alternativas para dedicar-se à atividade 
comercial e a outras funções (especialmente financeiras e contábeis), assim 
como à produção de manufaturas, multiplicam os cursos de vida possíveis, por 
meio dos quais o conforto e o reconhecimento social podem ser conquistados. 
Isto é, multiplicam-se as funções sociais que cada um pode desempenhar, e as 
novas funções não mais impõem o atrelamento aos laços familiares de origem. 
É claro que muitas dessas novas funções e as riquezas que com elas se pode 
alcançar não estarão acessíveis a qualquer um. Por exemplo, as funções 
contábeis exigirão habilidades matemáticas e de leitura que poucos, 
freqüentemente clérigos, dispõem. Ainda assim, é notável que a vida do 
homem comum deixe de ser tão marcadamente definida por uma condição de 
subsistência e tão decisivamente dependente de sua permanência junto ao 
grupo de origem7. 
 
7
 Uma passagem de Sennett (1989) ilustra esse ponto, ainda que se referindo apenas a 
Londres e Paris e no século XVIII, um momento bem avançado do desenvolvimento do 
capitalismo: “Do ponto de vista social, o crescimento do comércio criou empregos nos setores 
financeiro, comercial e burocrático da cidade. Falar em “crescimento da burguesia” em 
 29 
 A intensificação do comércio dará origem ainda a uma condição 
geográfica de vida com grandes implicações para as relações interpessoais. As 
cidades, inicialmente pequenos centros de trocas, tornam-se um continente de 
homens e mulheres, desconhecidos em sua imensa maioria e freqüentemente 
dedicados a projetos de vida não compartilhados uns com os outros, ao 
contrário, muitas vezes conflitantes com os interesses uns dos outros. É 
incomparável com a “limitada e pacata vida feudal” a extensão do universo 
social em que está imerso o citadino e as exigências que lhe são impostas para 
uma vida bem sucedida social e economicamente. Especialmente a partir do 
século XVI, as cidades tornam-se notavelmente populosas. Londres, por 
exemplo, salta de 150 mil habitantes em 1595 para cinco milhões ainda no 
século XIX (Sennett, 1989, p. 70). Viver nas cidades é viver em um universo 
social no qual o comportamento de cada um está sujeito a regulações muito 
mais complexas, e que não se definem mais por códigos de obrigações e 
solidariedades definidas no plano de relações interpessoais específicas. 
No século XV, os locais onde se reuniam as feiras começavam a se 
transformar em prósperas cidades comerciais, cujos mercados 
funcionavam durante todo o ano. A atividade comercial desenvolvida 
por essas cidades era incompatível com as restrições impostas 
pelos costumes e tradições feudais. A maior parte das cidades 
conseguiu, após intensas lutas, libertar-se da tutela dos senhores 
 
qualquer das duas cidades é, pois, se referir a uma classe engajada em atividades de 
distribuição, e não na produção. Os jovens que vinham para a cidade encontravam trabalho 
nessas profissões mercantis e comerciais; na verdade, havia como que uma escassez de mão 
de obra, pois havia mais empregos que exigiam trabalhadores alfabetizados do que jovens que 
sabiam ler” (p. 79). 
 
 30 
feudais e da Igreja. Nos centros comerciais realizavam-se operações 
financeiras: de câmbio, de liquidação de dívidas e de crédito. 
Tornou-se corrente o uso das letras de câmbio e de outros 
instrumentos financeiros modernos. Uma nova legislação comercial 
foi elaborada pelos comerciantes dessas cidades. Ao contrário do 
direito consuetudinário e paternalista que vigorava nos feudos, a 
legislação comercial foi definida por um código preciso. Lançaram-se 
assim as bases da lei de contratos, dos papéis negociáveis, das 
representações comerciais, das vendas em leilão, enfim, de uma 
série de procedimentos característicos do capitalismo moderno. 
(Hunt & Sherman, 1993, pp.26-27) 
 Historicamente, a formação dos Estados nacionais, ao final da Idade 
Média, representou uma resposta a demandas crescentes de gerenciamento 
das relações interpessoais, em parte pelo alargamento do universo social de 
homens que se deslocavam da vida comunitária em seus grupos de origem, na 
direção de uma convivência com grupos numerosos e desconhecidos. A 
instituição social do Estado, porém, representa a resposta a um conjunto mais 
amplo de problemas do que o alargamento do universo social. A formação dos 
Estados nacionais cumprirá, entre outros, o papel de prover a sociedade de 
uma instituiçãoreguladora das relações interpessoais que tem, sobretudo, 
responsabilidades relacionadas à proteção e à garantia de cumprimento dos 
contratos, agora celebrados em caráter impessoal. São as garantias do Estado, 
também, que darão suporte ao descolamento do indivíduo de seu grupo de 
origem, em direção à conquista de sua (nova) identidade social. 
 31 
Um número cada vez maior de funções relativas à proteção e ao 
controle do indivíduo, previamente exercidas por pequenos grupos, 
como a tribo, a paróquia, o feudo, a guilda ou o Estado, vai sendo 
transferido para Estados altamente centralizados e cada vez mais 
urbanizados. À medida que essa transferência avança, as pessoas 
isoladas, uma vez adultas, deixam mais e mais para trás os grupos 
locais próximos, baseados na consangüinidade. A coesão dos 
grupos rompe-se à medida que perdem suas funções protetoras e 
de controle. E, nas sociedades estatais maiores, centralizadas e 
urbanizadas, o indivíduo tem que batalhar muito mais por si. A 
mobilidade das pessoas, no sentido espacial e social, aumenta. Seu 
envolvimento com a família, o grupo de parentesco, a comunidade 
local e outros grupos dessa natureza, antes inescapável pela vida 
inteira, vê-se reduzido. Eles têm menos necessidade de adaptar seu 
comportamento, metas e ideais à vida de tais grupos, ou de se 
identificar automaticamente com eles. Dependem menos deles no 
tocante à proteção física, ao sustento, ao emprego, à proteção de 
bens herdados ou adquiridos, ou à ajuda, orientação e tomada de 
decisão. Isso acontece, a princípio, em grupos limitados e especiais, 
mas se estende gradativamente ao longo dos séculos, a setores 
mais amplos da população, até mesmo nas áreas rurais. E, à 
medida que os indivíduos deixam para trás os grupos pré-estatais 
estreitamente aparentados, dentro de sociedades nacionais cada 
vez mais complexas, eles se descobrem diante de um número 
 32 
crescente de opções. Mas também têm de decidir muito mais por si. 
Não apenas podem como devem ser mais autônomos. Quanto a 
isso não têm opção. (Elias, 1994, p. 102) 
 Há vários aspectos da abordagem de Elias (1994) que merecem 
destaque neste ponto da apreciação do problema das relações interpessoais 
em sociedades de mercado. O primeiro deles diz respeito ao fato de que as 
relações de dependência entre os indivíduos se alteram, não na direção de 
uma autonomia absoluta, mas em direção a uma rede muito mais complexa de 
interdependência, daí a necessidade da instituição do Estado para fazer valer 
compromissos mútuos. Isso significará que o indivíduo, na vida cotidiana, de 
um lado, depende menos dos pequenos grupos sociais aos quais se encontra 
vinculado ao nascimento, e mais a redes complexas de relações com um 
universo social muito mais amplo. De outro, dada a extensão do universo social 
no qual está imerso e a complexidade das relações com os homens e mulheres 
que integram esse universo, não é principalmente de suas relações imediatas 
(com vizinhos, colegas de trabalho, parentes, amigos etc.) que depende o 
atendimento de grande parte de suas necessidades cotidianas (por exemplo, 
relativas a alimentação, locomoção, vestuário etc.) ou mesmo suas aspirações 
mais distantes ou de maiores “dimensões” (por exemplo, conquistar um 
emprego compatível com um trajeto longo de formação, alcançar uma situação 
econômica confortável e estável etc.). Para atender essas necessidades ou 
realizar essas aspirações, o indivíduo deverá interagir com complexos arranjos 
sociais e econômicos. O leite que o alimenta pela manhã estará disponível não 
por força de sua relação com familiares que ordenham animais domésticos dos 
 33 
quais também cuida, mas como resultado de um complexo sistema de relações 
econômicas, das quais participam desde um desconhecido operador de 
máquinas que confeccionam embalagens de papel e financistas responsáveis 
por operações de crédito a empresas de laticínios, até operários de empresas 
de conservação de estradas pelas quais transitam os caminhões que 
transportam a produção daquelas empresas, todos absolutamente 
desconhecidos e distantes das relações cotidianas ou imediatas dos indivíduos. 
 Um segundo aspecto a ser considerado é que a coesão encontrada em 
grupos familiares ou de afinidade, quando a sobrevivência de cada um 
depende direta e imediatamente das relações com os demais, inexiste se o 
indivíduo descola-se desse grupo em direção à realização de projetos pessoais 
de vida. Não se trata de abandonar um grupo, filiando-se a outro(s), mas de 
deixar para trás um tipo de interação social mais solidária e espontânea, em 
direção a relações muito mais complexas, onde a identidade de interesses é 
muito menos presente e onde o comportamento frente aos outros precisa ser 
calculado. Nas sociedades mais simples, o que promove a coesão não é uma 
“vocação” para a solidariedade, mas o fato de que as ameaças externas são 
constantes e a sobrevivência individual dependente das relações com grupos 
de convivência imediata. Nas sociedades mais complexas, nos Estados 
modernos, especialmente nas metrópoles, as condições materiais de 
sobrevivência tanto dependem menos dessas relações como exigem a 
dedicação do indivíduo a um projeto pessoal de vida. Quanto mais sensível a 
demandas dos outros, quanto menos concentrado em seus objetivos, projetos 
e horizontes de vida, menores as chances de “sucesso” material, medido 
 34 
principalmente pelo acúmulo de riquezas (daí seu menor envolvimento com a 
família de origem). Porém, se o indivíduo está menos disponível para as 
demandas alheias (porque não são necessariamente, ou na mesma medida, 
suas também), de outro lado ele também dependerá muito mais de si mesmo, 
no sentido de que poderá contar muito menos com o suporte de seu grupo 
social nas tarefas ou projetos cotidianos a que se dedica. 
 O terceiro ponto a ser destacado é o fato de que ao deslocar-se para 
um universo social de anônimos, a identidade individual deixa de ser aquela 
conferida no interior dos grupos familiares, passando a ser matéria de 
conquista que, dependendo do contexto, pode ser função de uma variedade de 
fatores, incluindo uma eficiente participação em “jogos” sociais, nos quais as 
“aparências” tornam-se fundamentais (cf. Sennett, 1989). Isso significa que se 
o indivíduo vê diante de si possibilidades de mobilidade social, também precisa 
responder a exigências crescentes de comportamento social. Não é sem razão 
que, a partir do século XVI, os códigos de etiqueta, ou “códigos de civilidade” 
tornam-se um tipo de literatura com ampla difusão e consumo na Europa 
ocidental (cf. Elias, 1939/1990b). Comportar-se adequadamente diante dos 
outros torna-se uma necessidade que para ser cumprida requer um longo 
aprendizado e disciplina constante. Desde um banal cumprimento, até as 
seqüências de comportamentos alimentares à mesa8, tudo se torna matéria de 
uma atenção cuidadosa, de comedimento, de autocontrole. 
 Por último, em uma sociedade de mercado, multiplicam-se as 
alternativas de ação a cada momento, assim como se multiplicam os sistemas 
 
8
 Acompanha esse refinamento o surgimento dos utensílios usados à mesa: a taça individual, o 
prato, os talheres, o guardanapo etc.. 
 
 35 
de crenças que orientam o homem na vida cotidiana. Não apenas os indivíduos 
podem dedicar-se a funções sociais cada vez mais diversificadas, como podem 
dedicar-se a atividades de lazer cada vez mais variadas, interagir com grupos 
diversos e variar sua rotina em inúmeras direções (o que vestir, como trabalhar, 
que percurso fazer etc.). As reformas religiosas, por seu turno, também 
instituem a diversidade da cristandade. Para nadana vida há um único (ou 
poucos) caminhos a seguir, muito menos uma única referência em que apoiar a 
ação. Os indivíduos, como conseqüência, podem (e precisam) decidir. Tomar 
decisões torna-se uma parte rotineira da vida. E os indivíduos devem tomar 
decisões por si mesmos, pois não estão disponíveis contextos de suporte 
social para as tomadas de decisão. Em parte, esse afrouxamento da 
determinação dos cursos de vida e dos comportamentos cotidianos, assim 
como a experiência de decidir como prática rotineira explicam uma auto-
imagem de autonomia do homem moderno. 
 Alguns dos aspectos mencionados até aqui serão retomados adiante, na 
apreciação das dicotomias psicológicas clássicas. Antes disso, porém, convém 
acrescentar algumas observações sobre a diversificação das funções sociais 
nas sociedades de mercado. Elias (1994) assinala que o processo de 
diferenciação e multiplicação das funções sociais tem uma história mais longa 
(alguns milênios) do que a transição do feudalismo para o capitalismo, mas 
também experimentou uma aceleração única nos últimos séculos: “O número 
de atividades especializadas ... elevou-se ao longo dos milênios, a princípio 
lentamente, mas agora em ritmo cada vez mais acelerado” (Elias, 1994, p. 
113). 
 36 
Com o processo de diferenciação crescente das funções sociais a 
produção das condições de sobrevivência dos grupos passou a depender de 
um número cada vez maior de atividades ou passos executados cada um por 
apenas alguns indivíduos. 
No decorrer do tempo, não apenas multiplicou-se o número de 
passos entre o primeiro e o último numa seqüência de ações, como 
também um número crescente de pessoas se fez necessário para 
executar esses passos. E, no decorrer desse processo, mais e mais 
pessoas viram-se numa crescente dependência umas das outras, 
interligadas como que por correntes invisíveis. Cada qual funcionava 
como um elo de ligação, um especialista em uma tarefa limitada. 
Cada qual era urdida em uma trama de ações em que um número 
cada vez maior de funções especiais, e de pessoas dotadas das 
capacidades para executá-las, se interpunha entre o primeiro passo 
em direção a uma meta social e a consecução dessa meta. (Elias, 
1994, pp. 111-112) 
A especialização em uma função particular, cada vez mais diferente de 
todas as funções desempenhadas pelos outros, torna muito mais complexa e 
menos visível a dependência de cada um em relação a todos os outros. De um 
ponto de vista imediato, o sucesso do indivíduo no exercício de uma função 
particular (especialmente sob a forma de uma contrapartida em moeda) 
descola-se do que acontece com todos os outros que estão próximos, 
exercendo outras funções. Além disso, a função com alto grau de 
especialização pode ser desempenhada sem o auxílio imediato dos outros. 
 37 
Essa especialização acentuada favorece, assim, uma auto-imagem de 
autonomia. Todavia, paradoxalmente, quanto mais especializado, mais 
dependente o indivíduo se torna de muitos outros indivíduos, posto que estará 
menos capacitado para uma parcela muito maior das atividades necessárias à 
produção das condições necessárias à sua sobrevivência. A complexidade 
dessas novas relações de interdependência contribui, porém, para torná-las de 
mais difícil percepção. A emergência do indivíduo resulta, assim, não de 
criações originais de homens e mulheres particulares, mas de uma 
transformação expressiva das relações interpessoais. 
Os avanços da individualização, como na Renascença, por exemplo, 
não foram conseqüência de uma súbita mutação de pessoas 
isoladas, ou da concepção fortuita de um número especialmente 
elevado de pessoas talentosas; foram eventos sociais, conseqüência 
de uma desarticulação de velhos grupos ou de uma mudança na 
posição social do artista-artesão, por exemplo. Em suma, foram 
conseqüência de uma reestruturação específica das relações 
humanas. (Elias, 1994, pp. 28-29) 
 
1.3. A Emergência do Indivíduo e o Acobertamento das Relações de 
Interdependência. 
 Quando dizemos que uma sociedade muda, isso significa que mudam 
certas práticas sociais em seu interior, assim como mudam os sistemas de 
crenças que justificam ou legitimam essas práticas. A transição para o 
capitalismo ilustra de modo singular os dois tipos de mudanças. Na presente 
 38 
seção, serão assinaladas algumas mudanças nos sistemas de crenças do 
mundo ocidental que foram cruciais para a consolidação de um novo padrão de 
relacionamento interpessoal e para o enraizamento da auto-imagem de 
autonomia. Apenas por uma questão de conveniência, os novos sistemas de 
crenças serão exemplificados com referências pontuais à organização sócio-
política e econômica, às concepções religiosas, ao pensamento filosófico 
acerca do conhecimento humano sobre a realidade e às prescrições para o 
comportamento social. Há diversos outros domínios (por exemplo, o das artes) 
nos quais vão se elaborando noções que também refletem uma concepção de 
homem como indivíduo. O que acontece em cada um desses domínios de 
reflexão influencia e é influenciado pelo que ocorre nos demais. É a cultura 
como um todo que sofre transformações em uma dada direção, impulsionada 
de modo fundamental pela mudança na base material da vida. 
 Com a desagregação da organização social e política feudal, rompidos 
os laços locais de obrigações de solidariedades que ligavam os homens no 
interior da hierarquia social, ao mesmo tempo em que se multiplicavam as 
funções sociais e interesses pessoais, os conflitos encontrariam terreno fértil 
para progredir, a ponto de comprometer a sobrevivência da sociedade como 
um todo, se no lugar daquelas tradições e costumes não se estabelecessem 
outros mecanismos de ajustamento e regulação das relações sociais. O 
surgimento e expansão dos Estados nacionais, com suas leis, com o 
monopólio da violência física e com o controle da atividade econômica e da 
circulação da moeda, cumpriria essa função. 
 A extensão da intervenção do Estado nas relações interpessoais, em 
 39 
particular nas relações econômicas, tornou-se objeto de disputa permanente 
entre classes sociais e entre agentes econômicos, cujos interesses conflitantes 
os mantêm em também permanente luta (cf. Hunt & Sherman, 1993). O 
liberalismo clássico, pelo menos a partir do século XVIII, com o processo de 
industrialização, tornou-se o pensamento econômico dominante no ocidente, 
deixando para trás a ética paternalista cristã medieval. Não era possível ao 
capitalismo estabelecer-se como modo de produção à luz da condenação 
religiosa à busca e acumulação de riquezas. Ao contrário, as motivações que 
impulsionam o homem para o enriquecimento passam a ser vistas como 
virtudes necessárias para o progresso econômico. O poder regulador das 
relações entre os homens, o Estado, não mais a Igreja, deve, no lugar de impor 
sanções à avareza e ao egoísmo, liberar os indivíduos para que busquem o 
sucesso econômico, ocupando-se de evitar que esse movimento conduza a 
uma “guerra de todos os homens contra todos os homens” (Hobbes, 
1651/1979, p. 77). O pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679), ainda no 
século XVII, pode ser considerado fundacional para toda a doutrina liberal. 
 Em seu Leviatã, Hobbes (1651/1979) argumenta que em seu estado 
natural todo homem deseja e busca sua satisfação pessoal, entrando em 
conflito com outros homens: “se dois homens desejam a mesma coisa, ao 
mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se 
inimigos” (p. 74). A competição, a desconfiança e a glória constituem as três 
principais causas dos conflitos. “A primeira leva os homens a atacar os outros 
tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; a terceira, a reputação” (p. 75).O conflito entre motivações e interesses pessoais é reconhecido, assim, como 
 40 
uma condição natural da vida humana. Uma vez que é da natureza humana 
buscar a satisfação pessoal, não se justifica condenar suas motivações ditas 
egoístas, sua avareza, ou busca de riquezas: “Os desejos e outras paixões do 
homem não são em si mesmos um pecado” (p. 76) – justamente o oposto do 
que pregava a ética paternalista cristã medieval. 
Para que o capitalismo se estabeleça como sistema econômico será 
necessário apoiar-se em um sistema de crenças que, no lugar de condenar o 
acúmulo de riquezas pessoais, considere virtuosas aquelas qualidades 
humanas antes vistas como pecaminosas. O individualismo, no modo como se 
elabora nos discursos sobre o Estado e a economia, cumprirá parcialmente 
esse papel. Se na idade média a “ganância, a avareza, o egoísmo, a ânsia de 
acumular riquezas, enfim, todas as motivações materialistas e individualistas 
eram severamente condenadas” (Hunt & Sherman, 1993, p.17), agora se trata 
de reconhecer sua legitimidade e mesmo sua necessidade para o 
desenvolvimento econômico. Em 1776, o individualismo liberal assumiu sua 
forma definitiva na Riqueza das Nações (A. Smith, 1776/1988) de Adam Smith 
(1723-1790), para quem as motivações egoístas também teriam uma função 
importante para o desenvolvimento do capitalismo e seriam adequadamente 
reguladas pela força oculta de um mercado livre (a “mão invisível” do mercado). 
Antes disso, um dos “pais da América”, Benjamin Franklin (1706-1790) já 
prescrevia que “tempo é dinheiro”, “crédito é dinheiro”, “o dinheiro pode gerar 
dinheiro” e “o bom pagador é dono da bolsa alheia” (Franklin, 1736, em Weber, 
1904-1905/2003). Max Weber (1864-1920), em sua A Ética Protestante e o 
Espírito do Capitalismo (Weber, 1904-1905/2003) remete-se aos escritos de 
 41 
Franklin como ilustrações puras do espírito do capitalismo: 
A peculiaridade dessa filosofia da avareza parece ser o ideal dos 
homens honestos, de crédito reconhecido e, acima de tudo, a idéia 
de dever que o indivíduo tem no sentido de aumentar o próprio 
capital, assumido como um fim em si mesmo. De fato, o que nos é 
aqui pregado não é apenas um meio de fazer a própria vida, mas 
uma ética peculiar. A infração de suas regras não é tratada como 
uma tolice, mas como um esquecimento do dever. Essa é a 
essência do exposto. Não se trata de mera astúcia de negócios, o 
que seria algo comum, mas de um ethos. E essa é a qualidade que 
nos interessa. (p. 48) 
Hobbes não via, como A. Smith (1776/1988), “virtudes” do mercado que 
seriam suficientes para regular a vida econômica na sociedade. Para ele, se 
em seu estado natural os homens, governados apenas por suas paixões e sua 
razão, travarão uma guerra de todos contra todos, em que a sobrevivência ou a 
segurança não estarão garantidas para ninguém9, uma outra solução para a 
paz precisa ser encontrada. Como única saída, o homem deve renunciar, em 
favor de uma fonte absoluta de poder comum, o Estado, a seu direito natural 
sobre todas as coisas10. Trata-se, assim, de uma lei da natureza que a 
 
9
 Hobbes (1651/1979) provoca o interlocutor que tende a reagir à sua caracterização do 
homem: “Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, 
ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres?” (p. 76). 
 
10
 Desse ponto de vista, há um conflito entre a visão de Hobbes (favorável a um Estado forte e 
centralizado) e o liberalismo clássico (que embora fundamentado na mesma concepção de 
homem postula menor intervenção do Estado nas relações econômicas). Para A. Smith 
(1776/1988), as funções dos governos estariam circunscritas a proteger o país contra invasões, 
proteger os cidadãos contra injustiças praticadas por outros cidadãos e construir e manter 
instituições públicas (importantes para a sociedade, mas que não seriam construídas por 
indivíduos particulares porque não atenderiam a lógica do lucro) (cf. Hunt & Sherman, 1993 p. 
 42 
renúncia à liberdade plena é necessária como a única medida capaz de 
restaurar a paz entre os homens: 
Que um homem concorde quando outros também o façam11, e na 
medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa 
de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, 
contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma 
liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. 
(Hobbes, 1651/1979, p. 79, itálico do original) 
Se o individualismo necessário ao desenvolvimento do capitalismo 
conflita com as prescrições do cristianismo medieval, uma outra referência 
religiosa será necessária como suporte ético para as novas relações 
econômicas. Com efeito, a multiplicação de perspectivas, típica do 
renascentismo, encontra uma das mais importantes expressões justamente no 
campo religioso, com a reforma protestante e a contra-reforma católica. Em 
ambos os casos, o outro se torna acessório, ainda que subsistam as 
cerimônias e práticas coletivas, no que há de mais fundamental para a ascese 
espiritual, visto que é no indivíduo que se realizam as condições de salvação. 
Ainda no final da idade média, 
no mesmo momento, enquanto a vida penetra o rosto das estátuas-
colunas, toma corpo, entre os sábios que meditam sobre o texto da 
Escritura, a idéia perturbadora de que a salvação não é alcançada 
 
66). 
 
11
 Note-se que, para Hobbes (1651/1979), apenas quando outros também abrem mão de seus 
direitos naturais a renúncia do indivíduo é justificada. Caso contrário, “equivaleria a oferecer-se 
como presa ... e não a dispor-se para a paz” (p. 79). 
 
 43 
apenas pela participação em ritos, numa passividade submissa, mas 
se “ganha” por uma transformação de si mesmo. É um convite à 
introspecção, à exploração da própria consciência, pois que a falta já 
não parece residir no ato, mas na intenção, pois se considera que 
ela se refugia na intimidade da alma. Para o interior do ser, em um 
espaço privado que não tem mais nada de comunitário, transportam-
se os procedimentos de regulação moral. Lava-se a mácula pela 
contrição, pelo desejo sobretudo de se renovar. (Duby, 1990, pp. 
506-507) 
 Na Idade Média, já se encontrava um padrão de comportamento 
religioso baseado no isolamento, no retiro, na busca interior da afirmação da fé. 
Todavia, esse não era o comportamento esperado do homem comum que, ao 
contrário, deveria evitar o isolamento (visto que afastado dos outros homens 
tornava-me mais vulnerável às tentações do mal) e voltar-se para as 
cerimônias e rituais públicos, no quais suas práticas religiosas estavam à vista 
de todos. Mesmo a confissão, a princípio um ato “excepcional e público” (Duby, 
1990, p. 524), só se instituiu como uma obrigação sob a forma de um ato 
“discreto, periódico e obrigatório” (Duby, p. 525) no IV Concílio de Latrão, em 
1215. O padrão de comportamento baseado no isolamento e na introspecção 
referido acima estava reservado ao clero e, mesmo nesse grupo, àqueles 
poucos que já haviam alcançado um estágio superior de afirmação da fé. 
 O anacoretismo, assim como inúmeros cuidados no interior dos 
mosteiros para limitar a comunicação ou contato dos religiosos uns com os 
outros, representava a tentativa do homem de Deus para alcançar aquele 
 44 
estágio superior de devoção. A Regra de São Bento (480-547), estabelecia o 
grau superior de perfeição a ser buscado pelo crente em Deus: 
Quem se afasta do mundo transforma sua vida num jogo de azar. 
Pode ganhar ou perder tudo. Acabaram-se os meios-termosda vida 
comum. Será Deus ou o Diabo; antes da contemplação, a tentação. 
O exemplo evangélico desses retiros é, com efeito, fornecido pelo 
episódio da Tentação no deserto ... Bento, em sua Regra, define as 
condições que os eremitas devem preencher: “Os que já não têm na 
vida regular um fervor de noviço e que, por um exercício prolongado 
no mosteiro, aprenderam a lutar contra o Demônio e se fizeram 
aguerridos graças ao apoio de seus irmãos. Então, bem exercitados, 
passam do batalhão fraternal ao combate singular do deserto. 
Sólidos agora sem o apoio de outros, bastam-se a si mesmos para 
combater, com a ajuda de Deus, unicamente com sua mão e seu 
braço, os vícios da carne e dos pensamentos”. (Dalarun, 1990, p.27) 
 Ao mesmo tempo em que a Regra definia aquela perfeição acessível 
apenas pelo respeito à “obrigação do silêncio, experiência de retiro” (Duby, 
1990, p. 508), também insistia no despreparo do homem comum para aquela 
provação: “Nosso Senhor Jesus Cristo advertiu seus discípulos que ainda não 
têm a confirmação do Espírito Santo nem o treinamento do combate espiritual 
dizendo: ‘Quanto a vós, permanecei na cidade até receberdes a virtude do 
alto’” (Chartres, em Dalarun, 1990, p. 28). Ainda, “O ditado popular resume 
rudemente essas belas palavras: ‘Para eremita jovem, diabo velho’” (Dalarun, 
1990, p. 28). 
 45 
 O que era reservado, no mundo medieval, àquela parcela do clero 
disposta a cumprir o estágio mais elevado de perfeição espiritual, penetra, com 
a Reforma protestante e a Contra-Reforma católica, no cotidiano do homem 
comum. Se, antes, chegar a Deus era matéria de uma dimensão da existência 
na qual havia sempre o outro, seja por meio de práticas com os outros (a 
participação nas cerimônias), para os outros (a caridade) ou pelos outros (as 
rezas nos mosteiros, como as boas ações dos monarcas alcançavam graças 
para o povo – cf. Duby, 1990), agora, encontra-se Deus no próprio íntimo – e 
apenas se houver a necessária disciplina para desligar-se do mundo físico e 
social externo. 
As novas formas de religião que se estabelecem nos séculos XVI e 
XVII ... desenvolvem uma devoção interior – sem excluir, muito pelo 
contrário, outras formas coletivas de vida paroquial -, o exame de 
consciência, sob a forma católica da confissão ou a puritana do 
diário íntimo. Entre os laicos, a oração cada vez mais assume a 
forma da meditação solitária num oratório privado ou simplesmente 
num canto do quarto, num móvel adaptado para esse fim, o 
genuflexório. (Ariès, 1991, p.10) 
 Weber (1904-1905/2003) observou tanto que o protestantismo tornou o 
ascetismo medieval uma atividade terrena, quanto a função que isso teve para 
instituir uma cultura propícia ao desenvolvimento do capitalismo moderno. A 
disciplina, a moderação no consumo e a valorização do trabalho constituíam a 
base da acumulação capitalista: “Um dos elementos fundamentais do espírito 
do capitalismo moderno, e não só dele, mas de toda a cultura moderna, é a 
 46 
conduta racional baseada na idéia de vocação, nascida ... do espírito do 
ascetismo cristão” (Weber, p. 134). Hunt & Sherman (1993) também assinalam 
que para a doutrina do protestantismo, “radicalmente diferente das doutrinas 
medievais, a melhor forma de o indivíduo satisfazer a Deus era exercer com 
zelo sua missão na terra. A diligência e a dedicação ao trabalho passaram a 
ser consideradas como grandes virtudes” (p. 49). Para a ética protestante, 
esse novo padrão de comportamento, que possibilitava a acumulação 
individual de riquezas, não apenas estava justificado aos olhos de Deus como 
realizava Seu desejo. Bastava ao indivíduo encontrar dentro de si a motivação 
divina: “O princípio básico do protestantismo, o fundamento das concepções 
religiosas que viriam a santificar as práticas econômicas da classe média, era a 
doutrina de que os homens se justificam não mais pelas obras e sim pela fé” 
(Hunt & Sherman, p. 48). Nesse caso, no lugar de prestar contas perante a 
Igreja católica e suas restrições éticas (e no lugar de comprar cartas de 
indulgência), bastaria ao homem comum certificar-se de que a fé era o motor 
das práticas que possibilitavam a acumulação. 
Todo homem devia escutar o que lhe dizia o coração para saber se 
seus atos eram motivados por intenções puras e pela fé em Deus. O 
homem era o juiz de si próprio. A confiança que essa doutrina 
individualista depositava na consciência pessoal de cada indivíduo 
despertou profundo interesse na nova classe média dos artesãos e 
pequenos negociantes. (Hunt & Sherman, 1993, p. 49) 
 Assim, o individualismo que floresceu no seio do protestantismo tanto 
libertou a emergente burguesia das obrigações com a instituição da Igreja 
 47 
católica, tornando direta a relação de cada um com Deus, como promoveu a 
justificação ética para suas práticas econômicas: “o protestantismo ... 
converteu em virtudes as motivações interesseiras e egoístas, estigmatizadas 
pela Igreja medieval (Hunt & Sherman, 1993, p. 48). 
 É importante salientar que a penetração da doutrina protestante no 
mundo capitalista moderno é tão expressiva que alcança mesmo aqueles (a 
classe trabalhadora) que teriam motivação política para combatê-la. O trabalho 
como valor supremo, contrariando as Escrituras, de acordo com as quais foi 
imposto como castigo ao homem pecador, avança sobre as relações 
econômicas de modo absoluto. A esse respeito, Paul Lafargue, um militante 
comunista, publicou, em 1880, um panfleto intitulado O Direito à Preguiça 
(Lafargue, 1880/1999)12, no qual faz uma crítica contundente a essa tradição: 
Uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações 
onde impera a civilização capitalista. Esta loucura tem como 
conseqüência as misérias individuais e sociais que, há dois séculos, 
torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor pelo trabalho, a 
paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das 
forças vitais do indivíduo e sua prole. Em vez de reagir contra essa 
aberração mental, os padres, economistas, moralistas 
sacrossantificaram o trabalho. Pessoas cegas e limitadas quiseram 
ser mais sábias que seu próprio Deus; pessoas fracas e 
desprezíveis quiseram reabilitar aquilo que seu próprio Deus havia 
 
12
 Segundo Chauí (1999), “o Direito à Preguiça teve um sucesso sem precedentes, comparável 
apenas ao Manifesto Comunista, tendo sido traduzido para o russo antes mesmo deste último” 
(p. 16). 
 
 48 
amaldiçoado. Eu, que não sou cristão, ecônomo ou moralista, no 
lugar do juízo que proferiram invoco o juízo do Deus delas; no lugar 
das pregações de sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, 
invoco as terríveis conseqüências do trabalho na sociedade 
capitalista. (Lafargue, 1880/1999, pp. 63-64) 
Os filantropos proclamavam benfeitores da humanidade aqueles 
que, enriquecendo-se sem nada fazer, davam trabalho aos pobres; 
era melhor semear a peste e envenenar as fontes do que erigir uma 
fábrica no meio de uma população rústica. Introduza-se aí o trabalho 
nas fábricas e adeus alegria, saúde, liberdade: adeus a tudo aquilo 
que faz a vida bela e digna de ser vivida. (Lafargue, p.77) 
Reagindo ao avanço do protestantismo, também na Contra-Reforma da 
Igreja católica serão encontrados os sinais do individualismo nascente, 
especialmente sob a forma de doutrinas de acordo com as quais também o 
homem comum deve buscar Deus no seu íntimo. Embora a Contra Reforma da 
Igreja católica tenha reiterado vários dos dogmas em que se apoiava desde o 
período feudal, o isolamento, a introspecção e a oração silenciosa avançaram 
no cotidiano de homens e mulheres como o caminho para a afirmação de sua 
fé. Dalarun (1990) assinala que“o ideal eremítico, nunca extinto, revigorou-se 
no limiar do ano 1000” (p. 25). Bem mais tarde, a clausura, o autoflagelo e a 
exposição do corpo a condições físicas adversas, como forma de adestrar a 
alma para o desligamento do mundo material tornam-se cada vez mais 
difundidas entre as ordens religiosas e entre os homens comuns. Apesar do 
fato de subsistirem (tanto no catolicismo como no protestantismo - cf. Lebrun, 
 49 
1991) e expandirem-se, as práticas coletivas agora parecem cumprir uma outra 
função. Não são mais suficientes para alcançar a salvação, como na Idade 
Média, quando chegar a Deus dependia de práticas que não podiam prescindir 
do outro. Diferente disso, chega-se a Deus (também) pelo que ocorre no 
íntimo, na alma; a participação nas cerimônias e demais rotinas coletivas da 
paróquia parece estar mais associada a dimensões sociais dos vínculos com a 
Igreja. O forte controle social exercido pela Igreja Católica na Idade Média não 
dará lugar a uma liberação das obrigações dos fiéis para com a instituição da 
Igreja (inclusive por isso, a confissão torna-se obrigatória no século XIII). Mas a 
difusão da devoção interior, favorecida também pela popularização da leitura, 
definitivamente muda os modos como os indivíduos católicos passam a 
compreender as possibilidades de realização no plano espiritual13. E a própria 
Inquisição terá que rever sua postura frente às heresias relacionadas às formas 
de devoções e submissão à Igreja, no que consiste em aspecto importante da 
Contra Reforma religiosa. 
O enfraquecimento político da Igreja Católica, assim como o 
desenvolvimento inicial da astronomia, especialmente com o trabalho de 
Galileu Galilei (1564-1642), que conferia um caráter científico a cursos de 
investigação que há muito já colocava sob suspeita a doutrina religiosa sobre o 
cosmo, de inspiração aristotélica (cf. Koyré 1986), desembocaram, a partir do 
renascimento, na restauração do debate filosófico laico sobre os temas 
humanos. Uma expressão inicial dessa mudança é encontrada no ceticismo do 
século XVI, de acordo com o qual, face à falência dos sistemas de pensamento 
 
13
 Ver, a propósito, a discussão que Figueiredo (1992) oferece da vida e das concepções 
religiosas de Santa Tereza Dávila (1515-1582). 
 50 
medievais, era necessário reconhecer a impossibilidade de o homem chegar a 
verdades definitivas acerca da realidade (ainda que, para alguns, o homem 
cético devesse conformar-se com a autoridade religiosa). 
Embora no renascentismo o individualismo epistemológico ainda não 
estivesse estabelecido, já ali temas individualistas invadiam o pensamento 
filosófico. Michel de Montaigne (1533-1592), um típico espírito da renascença e 
representante mais destacado do ceticismo do século XVI, provê em seus 
Ensaios (Montaige, 1588/2000) passagens muito ilustrativas da idéia de 
dissociação e inevitável conflito entre os interesses de indivíduos particulares. 
Sob o título de O lucro de um é prejuízo do outro afirma: 
O ateniense Dêmades condenou um homem de sua cidade que 
tinha por ofício vender as coisas necessárias para os enterros, sob a 
alegação de que exigia um lucro excessivo e esse lucro não lhe 
podia vir sem a morte de muitas pessoas. Tal julgamento parece 
estar mal pronunciado, na medida em que não se obtém benefício 
algum a não ser com prejuízo de outrem, e que dessa maneira seria 
preciso condenar toda espécie de ganho. 
O mercador só faz bem seus negócios por causa da devassidão dos 
jovens; o lavrador, pela carestia dos cereais; o arquiteto pela ruína 
das casas; os oficiais de justiça pelos processos e contendas dos 
homens; mesmo as honras e atividades dos ministros da religião 
provêm de nossa morte e de nossos vícios. Nenhum médico se 
alegra com a saúde mesmo de seus amigos, diz o antigo cômico 
grego, nem o soldado com a paz de sua cidade; e assim 
 51 
sucessivamente. E o que é pior: cada um sonde dentro de si mesmo, 
e descobrirá que a maioria de nossos desejos íntimos nascem e se 
alimentam às expensas de outrem. (pp.159-160) 
 É na reação ao ceticismo, porém, que no pensamento filosófico o 
indivíduo torna-se sujeito do conhecimento. No século XVII, tanto o empirismo 
de Bacon (1561-1626) quanto o racionalismo de Descartes (1596-1650) 
ocupar-se-ão da tarefa de estabelecer o caminho (científico) para um 
conhecimento seguro e verdadeiro, ao mesmo tempo em que útil para 
submeter a realidade às necessidades e interesses humanos (no que se 
articulam com as transformações econômicas de seu tempo). Seja recorrendo 
à experiência sensível sistemática e disciplinada (na versão empirista), ou ao 
uso metódico e regrado da razão (na vertente racionalista), o pensamento 
filosófico do século XVII trará para o plano do homem singular as condições 
para sua realização no domínio cognitivo da vida. O conhecimento seguro ou 
verdadeiro não será mais uma matéria de revelação divina, como na filosofia 
cristã medieval, mas também não será recolocado no domínio das relações dos 
homens e mulheres uns com os outros. O homem que é autônomo para chegar 
a Deus ou satisfazer suas necessidades materiais é também auto-
suficentemente dotado das faculdades ou condições necessárias para chegar à 
verdade. O debate filosófico estará centrado na natureza dessas condições 
pessoais, mas não no questionamento da autonomia individual. 
A imagem do indivíduo como ser inteiramente livre, independente, 
uma personalidade “fechada” que é “por dentro” inteiramente auto-
suficiente e separada de todos os demais, tem por trás de si uma 
 52 
longa tradição no desenvolvimento das sociedades européias. Na 
filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito 
epistemológico. Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo 
obtém o conhecimento do mundo “externo” de uma forma 
inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber seus 
conhecimentos de outros. ...A questão para os filósofos consiste 
meramente em saber se [o indivíduo] obtém esses conhecimentos 
de conexões causais aqui e agora, na base da sua experiência – se, 
em outras palavras, essas conexões são uma propriedade de fatos 
observáveis “fora dele” – ou se são alguma coisa radicada na 
natureza da razão humana e acrescentada “de dentro” do ser 
humano ao que nele entra vindo de “fora” através dos órgãos dos 
sentidos. (Elias, 1939/1990b, p.237) 
O individualismo epistemológico do século XVII será retomado na seção 
seguinte, ao discutirmos a dicotomia objetivo-subjetivo. Ele representa a 
incidência, no plano filosófico, de uma concepção de homem que no século 
XVII já se encontrava enraizada nas práticas e valores do mundo ocidental, 
sintetizada no conceito de indivíduo. Assim, o conceito de sujeito é a 
contrapartida epistemológica do conceito de indivíduo. Se falar em indivíduo 
significa pensar o homem à parte de suas relações com outros homens, 
submetendo as últimas a seus interesses pessoais, falar em sujeito significará 
pensar o homem à parte dos outros na sua tentativa de representar a realidade 
e à parte da realidade ela mesma, o homem capaz de distanciar-se 
intelectualmente da realidade e submetê-la a suas faculdades cognoscitivas e a 
 53 
seus interesses práticos. Assim, onde for possível questionar a auto-suficiência 
do indivíduo, será possível também questionar a autonomia do sujeito, daí 
Figueiredo (1991) referir-se à “emergência e ruína do indivíduo” e à 
“emergência e ruína do sujeito”. 
Como último aspecto a ser considerado nesta seção, serão abordados os 
modos como os homens, a partir do renascimento, passam a se ocupar do 
comportamento social, a refletir e elaborar códigos de conduta cada vez mais 
refinados, a serem observados quandona presença dos outros. 
Em todas as sociedades o comportamento social é objeto de atenção e 
prescrições. É variável, porém, a extensão com que esse tipo de 
comportamento é regulado, assim como o tipo de exigência que passa a 
atender. Na Idade Média, grande parte do comportamento social obedecia a 
prescrições de ordem religiosa. Essas prescrições, porém, freqüentemente 
ocupavam-se mais de dimensões éticas e morais das relações interpessoais. 
No cotidiano da vida doméstica, costumes muito simples prevaleciam. 
Provérbios curtos e simples, impessoais e transmitidos oralmente, informavam 
sobre o comportamento requerido, por exemplo, à mesa, principal circunstância 
de convívio social14. As prescrições desse período são menos numerosas e 
marcadas pela “simplicidade ou ingenuidade” (Elias, 1939/1990b, p. 76). Muitas 
vezes descrevem o padrão de comportamento da nobreza, ainda assim um 
padrão no qual “são menos restringidos os impulsos ou inclinações” (Elias, p. 
77), exemplo do que acontece em “sociedades em que as emoções são 
 
14
 Sobre o convívio à mesa na Idade Média, Elias (1939/1990b) assinala que “comer e beber 
nessa época ocupavam uma posição muito mais central na vida social do que hoje, quando 
propiciavam – com freqüência, embora nem sempre – o meio e a introdução às conversas e ao 
convívio” (p. 74). 
 
 54 
manifestadas mais violenta e diretamente” (Elias, p. 76). Constituem exemplos 
dessas prescrições: 
Algumas pessoas mordem o pão e, em seguida, grosseiramente, 
mergulham-no na travessa. Pessoas refinadas rejeitam essas 
maneiras rudes ... 
Muitas pessoas roem um osso e, depois, recolocam-no na travessa 
– e isto é uma falta grave ... 
O homem que limpa, pigarreando, a garganta quando come e o que 
se assoa na toalha da mesa são ambos mal-educados, isto te 
garanto. (Elias, 1939/1990b, p. 77) 
O processo de mudança desses hábitos é abordado por Elias 
(1939/1990b) como o processo civilizador, um processo de refinamento gradual 
dos costumes e comportamentos sociais em direção a um maior controle sobre 
as inclinações ou impulsos pessoais. Ainda que se trate de um processo que 
vem de longa data, “as proibições da sociedade medieval, mesmo nas cortes 
feudais, ainda não impõem quaisquer grandes restrições ao jogo de emoções. 
Comparando com eras posteriores, o controle social é suave” (Elias, p. 115). 
Ainda sobre a Idade Média, 
as pessoas que comiam juntas na maneira costumeira na Idade 
Média, pegando a carne com os dedos na mesma travessa, 
bebendo o vinho no mesmo cálice, tomando a sopa na mesma 
sopeira ou prato fundo ... essas pessoas tinham entre si relações 
diferentes das que hoje vivemos ... Suas emoções eram 
condicionadas a formas de relações e conduta que, em comparação 
 55 
com os atuais padrões de condicionamento, parecem-nos 
embaraçosas ou pelo menos sem atrativos. O que faltava nesse 
mundo courtois, ou no mínimo não havia sido desenvolvido no 
mesmo grau era a parede invisível das emoções que parece hoje se 
erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando. 
(Elias, 1939/1990b, p. 82) 
 Constitui evidência de mudanças acentuadas nesse domínio da vida 
cotidiana no ocidente uma nova modalidade de literatura, que a partir do século 
XVI se difunde intensamente: os tratados de civilidade. Segundo Elias 
(1939/1990b) a obra inaugural dessa literatura foi um tratado de civilidade (De 
Civilitate Morum Puerilium) publicado por Erasmo de Roterdã (1469-1536) em 
153015. Seguiram-se a esse texto inúmeros outros tratados de civilidade que 
atestam a centralidade que o problema do comportamento social foi adquirindo 
para a vida cotidiana e a direção das mudanças nos hábitos. Os tratados 
constituem obras individuais, trazem prescrições cada vez mais numerosas, 
descrevem a criação dos utensílios para a individualização do comportamento 
à mesa, revelam o cuidado cada vez maior com o controle das emoções e a 
ocultação das funções corporais. Constituem precursores dos modernos 
manuais de etiqueta e possibilitam a reconstituição do longo processo de 
refinamento de hábitos tão simples como assoar o nariz ou usar o garfo. A 
referência original para esses hábitos era o comportamento na corte, onde os 
códigos de conduta tinham funções específicas, freqüentemente relacionadas à 
 
15
 Ainda de acordo com Elias (1939/1990b), o Tratado de Erasmo foi mais popular do que seu 
Elogio à Loucura. O tratado “teve imediatamente uma imensa circulação, passando por 
sucessivas edições. Ainda durante a vida de Erasmo ... teve mais de 30 reedições. No 
conjunto, houve mais de 130 edições” (p. 68). 
 
 56 
observância de uma ordem hierárquica. 
 Com o advento de uma nova classe social, a burguesia, que detém 
poder econômico, mas não o status social da nobreza ou poder político desta e 
do clero, os hábitos da corte não apenas começam a ser reproduzidos pela 
classe burguesa, como daí se estendem a outros estratos sociais e passam em 
todas as classes por aquele processo de refinamento16. Segundo Elias 
(1939/1990b), “a burguesia é, por assim dizer, ‘acortesada’ e, a aristocracia, 
‘aburguesada’, ou, para ser mais preciso, a burguesia é influenciada pelo 
comportamento da corte e vice-versa” (p. 118). O refinamento revelado nos 
tratados de civilidade alcança o próprio discurso sobre os hábitos e costumes. 
Não apenas as funções corporais devem ser controladas quando frente aos 
outros, como também falar sobre isso precisa ser evitado, para evitar embaraço 
ou constrangimento. 
 A adoção de utensílios e o ritual de cuidados com as funções corporais 
tendem a sugerir ao homem do século XX que um refinamento nos hábitos foi 
motivado por questões de higiene, ou uma preocupação com a saúde 
(individual ou pública). Embora algumas prescrições se prestem a esse tipo de 
interpretação, um exame atento de qualquer manual contemporâneo de 
etiqueta revelará uma diversidade de prescrições que não apenas não 
encontram suporte nesse tipo de apelo como, muito freqüentemente, conflitam 
 
16
 “Há um círculo na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas 
para atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a 
condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o 
desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada vez mais 
amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos desenvolvidos em 
uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande lentidão, por toda a sociedade, e 
certamente não sem passarem nesse processo por algumas modificações” (Elias, 1939/1990b, 
p. 116). 
 
 57 
com recomendações mais saudáveis17. Já no século XVII, tratados de 
civilidade recomendavam reter gases intestinais ou suportar alimentos 
excessivamente quentes colocados na boca inadvertidamente, liberando os 
indivíduos das prescrições apenas em casos excepcionais ou quando 
estivessem sós (cf. Elias, 1939/1990b). Prescrições como não se servir da 
melhor parte de um prato, ou não mencionar as partes do corpo justificam-se 
não por qualquer noção de higiene, mas pela exigência de um controle cada 
vez maior sobre as emoções e uma restrição cada vez maior à espontaneidade 
da ação: “a mudança do comportamento à mesa é parte de uma transformação 
muito extensa por que passam os sentimentos e atitudes humanas” (Elias, 
1939/1990b, p. 124). 
 Elias (1939/1990b, 1994) desenvolve uma interpretação do processo de 
mudança civilizadora de acordo com a qual a complexificação da vida social 
em sociedades em que o Estado assume a mediaçãodos conflitos e a função 
de proteção é acompanhada de exigências cada vez maiores na direção da 
observação do próprio comportamento e controle da impulsividade. O 
refinamento dos hábitos tem, assim, mais a função de coordenação dos 
comportamentos dos indivíduos uns pelos outros. O autocontrole torna-se cada 
vez mais um requisito para movimentar-se (e realizar-se) na complexa rede de 
relações que define essas sociedades mais “civilizadas”. A extensão das 
prescrições para o comportamento social corresponde à extensão com que, ao 
 
17
 Elias (1939/1990b) também comenta esse aspecto: “[o expectador do século XX] acha, 
talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as mãos”, a adoção do garfo, as louças e 
talheres individuais, e todos os demais rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por 
‘razões higiênicas’. Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, 
esses costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século 
XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as pessoais impunham 
a si mesmas” (p. 122). 
 
 58 
passo que as funções sociais tornam-se cada vez mais diferenciadas, os 
comportamentos de cada um precisam tornar-se previsíveis para os demais; 
ao grau de exigência de coordenação do comportamento do indivíduo pelo 
comportamento dos outros. Para o indivíduo submetido a tais mecanismos de 
controle social, porém, os códigos de conduta podem ser assimilados 
simplesmente como descrições de padrões de comportamento que funcionam 
para promover sua adaptação e sucesso social. Podem, inclusive, parecer o 
que lhe confere autonomia frente aos outros, ainda que por vezes sejam vistos 
como aquilo que contraria sua “natureza” íntima. 
 
1.4. Dimensões do Indivíduo e as Dicotomias Psicológicas Clássicas. 
 As seções anteriores sumarizam algumas informações relevantes para 
uma compreensão da emergência e centralidade da noção de indivíduo, como 
auto-imagem do homem no ocidente moderno. À medida que essa auto-
imagem vai se estabelecendo, vai se tornando mais provável que certos 
fenômenos humanos sejam vistos como ocorrências pessoais ou internas, ou 
explicados pela referência a ocorrências desse tipo. Vai se tornando mais difícil 
compreender certas dimensões da vida do homem como relações com o 
mundo, com a natureza e com outros homens. É apenas à luz dessas 
transformações que se instituem as categorias de privado, subjetivo, interno e 
mental na análise dos fenômenos humanos, dando origem à disciplina 
psicológica (inicialmente, uma disciplina reflexiva sobre essas questões). 
 Nos parágrafos seguintes, as dicotomias psicológicas clássicas 
(público-privado, objetivo-subjetivo, interno-externo, físico-mental) serão 
 59 
abordadas de uma ótica particular, que tem por objetivo destacar como 
funcionam para deslocar a análise dos problemas humanos de uma dimensão 
relacional, para dimensões pessoais, individuais, isto é, como funcionam para 
reproduzir concepções e valores de uma cultura individualista. É importante 
esclarecer que ao fazer esse exame crítico não se está ignorando que 
ocorrências pessoais são constitutivas dos fenômenos de que a Psicologia se 
ocupa, mas apenas se estará questionando a suficiência da referência a 
ocorrências do ou no homem na abordagem daqueles fenômenos, ou a sua 
assimilação como objeto de estudo. Para além disso, a análise complementa 
as observações anteriores enquanto referência do caráter histórico-cultural da 
experiência moderna de individualidade. 
 
O público e o privado: 
 A existência de uma esfera da vida à parte do universo social no qual o 
homem produz cotidianamente sua sobrevivência constitui uma invenção 
datada no mundo ocidental. Mais especificamente, a separação nítida entre 
vida pública e vida privada institui-se com a dissolução do modo de vida feudal 
e o advento de uma sociedade de mercado. Duby (1990) faz referência ao 
“advento do indivíduo” ao abordar temas como a solidão e o anacoretismo na 
baixa Idade Média. Como já assinalado neste Capítulo, até bastante 
tardiamente na Idade Média as condições para o isolamento pessoal eram 
muito limitadas e o desejo de estar só visto com desconfiança (quando 
manifestado pelo homem comum, era um sinal de loucura, que justificava 
inclusive despojar o homem de seus pertences – cf. Duby). 
 60 
 O isolamento físico encontrava dois tipos de “barreira”. De um lado, a 
exposição da vida individual, representada pelo compartilhamento de todo 
espaço doméstico e pela imposição da presença do(s) outro(s). Na moradia, ou 
nos espaços de trabalho, lazer e reza, a arquitetura prevê sempre o 
deslocamento em grupos. Apenas no final da Idade Média a casa sofre 
processo acelerado de transformação, com a separação e especialização dos 
cômodos e a criação de espaços de comunicação (corredor, hall etc.) (cf. Ariès, 
1991). De outro lado, as práticas e valores sociais, que condicionavam a 
satisfação pessoal e mesmo o reconhecimento social a condições de 
compartilhamento da vida cotidiana com o círculo social imediato. O isolamento 
não é possível, mas também não faz sentido no contexto de vida do homem 
comum no mundo feudal. 
 A separação possível entre privado e público na sociedade feudal 
correspondia à distinção entre o espaço físico e social das grandes famílias 
unidas pela terra (no que o privado era simplesmente um público mais restrito) 
e o espaço físico e social para além desse universo (cf. Duby, 1990). “E se vida 
privada significava segredo, esse segredo, necessariamente partilhado por 
todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto; se vida privada 
significa independência, também essa independência era coletiva” (Duby, 
1990, p. 504). 
Os rituais ou práticas religiosas, como já assinalado, também não 
previam, pelo menos para o homem comum (e mesmo para noviços), o 
isolamento. Eram necessariamente realizados abertamente com os outros. O 
lazer era realizado na forma de jogos dos quais participavam homens e 
 61 
mulheres, adultos e crianças. As leituras eram coletivas e os próprios autores 
escreviam esperando que seus textos fossem ouvidos, não lidos 
silenciosamente: 
Até boa parte da Idade Média, os escritores supunham que seus 
leitores iriam escutar, em vez de simplesmente ver o texto, tal como 
eles pronunciavam em voz alta as palavras à medida que as 
compunham. Uma vez que, em termos comparativos, poucas 
pessoas sabiam ler, as leituras públicas eram comuns e os textos 
medievais repetidamente apelavam à audiência para que “prestasse 
ouvidos à história”. (Manguel, 1997, pp. 63-64)18 
 Segundo Ariès (1991), no final da Idade Média o homem encontrava-se 
“enquadrado em solidariedades coletivas, feudais e comunitárias” (p. 7), “há 
confusão entre privado e público” (p. 7), o que significa que “muitos atos da 
vida cotidiana ... se realizam e ainda por muito tempo se realizarão em público” 
(p. 7). Três fatos, porém, alteram substancialmente essa realidade. Primeiro, a 
formação e a ação dos Estados nacionais, interferindo sobre os processos 
sociais, assumindo funções antes desempenhadas pelos grupos ou 
comunidades locais. Segundo, o desenvolvimento da alfabetização e a difusão 
da leitura silenciosa, ainda que “o uso mais difundido da leitura silenciosa não 
[tenha eliminado] a leitura em voz alta, que durante muito tempo havia sido a 
única forma de ler” (Ariès, p. 10). Terceiro as novas formas de religião 
 
18
 Segundo Manguel (1997) “as palavras escritas, desde os tempos das primeiras tabuletas 
sumérias, destinavam-se a ser pronunciadas em voz alta, uma vez que os signostraziam 
implícito, como se fosse sua alma, um som particular” (p. 61). Também de acordo com 
Manguel, “ainda que se possam encontrar exemplos anteriores de leitura silenciosa, foi 
somente no século X que esse modo de ler se tornou usual no Ocidente” (p. 61). 
 
 62 
introduzidas pela Reforma e pela Contra-Reforma. O que todos esses fatos 
promovem é um afrouxamento dos vínculos com os grupos sociais (familiares, 
comunitários, religiosos) aos quais homens e mulheres estavam mais 
fortemente ligados. No lugar de uma convivência e compartilhamento da vida 
cotidiana, das aspirações, dos medos e dos projetos, com aqueles grupos, dos 
quais havia poucas chances de fuga, cada um encontrará agora as condições 
para ocupar-se de seus projetos pessoais em condições inéditas até então. 
 Se é verdade que o contrato social requerido para a instituição do 
Estado, como assinalado por Hobbes (1651/1979) implica necessariamente 
restrição à liberdade individual, é também verdade que esse debate só se 
instaura porque a liberdade individual constitui agora um valor e uma referência 
para muitas práticas sociais. Também é verdade que a instituição do Estado 
funciona para, ainda que dentro de limites, liberar cada um para dedicar-se aos 
seus projetos pessoais de vida. O indivíduo não experimenta mais nas suas 
relações imediatas e cotidianas a responsabilidade por solucionar os conflitos 
ou criar as condições para a sobrevivência de um grupo mais amplo (e sua 
própria sobrevivência, ligada à daqueles). Deslocando-se entre estranhos, 
pode ocupar-se de seus objetivos pessoais e aguardar que o Leviatã faça por 
todos o que antes todos deviam fazer por si mesmos19. Para usar a expressão 
de Elias (1994), a instituição do Estado é essencial para que o nós deixe de ser 
a referência a partir da qual cada um organiza sua vida cotidiana. Ainda hoje 
 
19
 Essa condição dá origem a uma surpreendente (para quem se acostumou a uma vida 
comunitária, ou a resquícios disso) indiferença face ao sofrimento, ou dificuldades alheias. A 
solidariedade, quando evocada, o é como exceção, em face de situações dramáticas (não 
diante de problemas “menores”, para os quais se pensa poder ainda aguardar pelo socorro do 
Estado). 
 
 63 
podemos contrastar essas duas experiências sociais, observando como se 
estruturam as relações econômicas, políticas, afetivas, religiosas etc. nas 
grandes metrópoles e como isso se dá em grupos sociais onde prevalece a 
vida simples e até onde o Estado não estendeu suas mãos20. 
 Com o processo de individualização, a vida pessoal organiza-se a partir 
de interesses, projetos, necessidades de homens e mulheres particulares, não 
necessariamente partilhados pelos que estão à sua volta. O segredo torna-se 
não apenas uma possibilidade, dadas as novas condições sociais e físicas que 
não mais constrangem o indivíduo à exposição permanente aos outros; torna-
se também uma necessidade, inclusive por força dos conflitos com os 
interesses dos outros. A vida privada passa a ser aquela esfera da vida 
cotidiana na qual um padrão espontâneo de ação subsiste, a intimidade é 
acolhida, sentimentos e pensamentos encontram lugar. O território da vida 
pública passa a ser um espaço de representação de papéis, de cumprimento 
de regras, de comedimento, de hábitos refinados e de comportamentos 
refletidos – o que no século XVIII tornará o teatro uma instituição educativa 
importante (cf. Sennett, 1989)21. Como apontado por Ariès (1991), a fronteira 
entre vida pública e vida privada não tem sido fixa ao longo dos anos. Pode-se 
dizer que nem é a mesma para diferentes sub-culturas, ou para um mesmo 
 
20
 Há também exemplos (inúmeros, no Brasil e alhures) de sociedades mais complexas, onde a 
vida individual se organiza a partir de condições próprias de uma economia de mercado e onde 
o Estado não chegou com suas instituições. Nesses casos, homens e mulheres encontram-se 
mais próximos da barbárie do que da vida civilizada (de um lado) ou comunitária (de outro). 
 
21
 Sennett (1989) observa também que no século XVIII as máscaras são abolidas nas 
representações teatrais, em parte porque deixam de ser necessárias, na medida em que os 
indivíduos (todos eles, em alguma medida, e os atores e atrizes, de modo especial) estão mais 
bem adestrados para o autocontrole e a representação, garantindo a expressão apenas de 
emoções próprias das personagens e ocultando emoções e inclinações pessoais. 
 
 64 
indivíduo ao longo de sua vida. Por vezes, o espaço privado resume-se ao 
núcleo familiar, outras vezes não ultrapassa o laço conjugal, muitas outras 
vezes significa o indivíduo fechado em si mesmo. 
 Figueiredo e Santi (1997) referem-se à “subjetividade privatizada” ao 
comentar esse modo (“privado” ou “interiorizado”) como emoções sentimentos, 
pensamentos, crenças etc. passam a ser vividos com a separação entre vida 
pública e vida privada. Figueiredo e Santi mencionam que esse modo 
“privatizado” de lidar com as emoções torna-se tão usual que nos parece 
natural; passa a ser difícil imaginar o que seria, por exemplo, um sentimento de 
felicidade experimentado de outra maneira. 
 Se dizemos que até certo momento da história do mundo ocidental 
civilizado não se encontrava propriamente um mundo privado, isso significa 
dizer que para os homens que viveram antes das transformações aqui citadas 
pensamentos, sentimentos, emoções não faziam parte de sua experiência de 
vida? Obviamente que sim. No entanto, esses fenômenos eram, como 
continuam sendo, relações com o mundo, incluindo outros homens e mulheres, 
sendo que num contexto de confusão entre público e privado o que ocorre 
pessoalmente a alguém não merece a atenção que desfruta num modo de vida 
“privatizado”. O pensar, o refletir sobre o mundo a sua volta, sobre os 
problemas do dia a dia, a pessoa amada, tudo acontece de forma pública, em 
voz alta, no diálogo com outros. Basta comparar o que acontece em sub-
culturas ainda hoje encontradas, onde a vida simples prevalece, as funções 
sociais são pouco diferenciadas e o convívio comunitário dá suporte para as 
relações cotidianas. Nesses grupos, o homem, ao deitar a cabeça no 
 65 
travesseiro para dormir, não procede privadamente ao exame de como 
despendeu seu dia, como enfrentou problemas, ou como poderia tê-lo feito. 
Muito menos planeja privadamente seu próximo dia (planejar a vida a longo 
prazo – por exemplo, o que será sua ocupação dez anos depois - chegar a ser 
uma idéia fora de lugar nesse contexto). Analogamente, as emoções e 
sentimentos são experimentados abertamente nas relações com os outros. 
Ficar feliz é agir de modo feliz no convívio com os outros. Quando essas 
relações com os outros vão se alterando é que os substantivos vão se tornando 
nossos conceitos-chave para abordar a vida subjetiva. No lugar do “pensar” 
(verbo transitivo direto e indireto), entra o “pensamento”, algo supostamente 
contido no sujeito que pensa. No lugar do aborrecer (idem), o aborrecimento, 
do amedrontar (idem), o medo, e assim por diante22. E já que estão contidos 
nesse mundo privado de cada um, é observando o que se passa no indivíduo 
que se encontrará o que é definidor do fenômeno. Observe-se, porém, que o 
que muda essencialmente com a separação entre vida pública e vida privada, 
com o fato de homens e mulheres buscarem “esconder” uns dos outros o que 
pensam e o que sentem, não é que sentimentos, pensamentos etc. deixam de 
pertencer ao domínio de suas relações com o mundo e com outros homens e 
mulheres, mas o modo (autocontrolado, como ensina Elias, 1939/1990b) como 
isso passa a acontecer. 
 A separação entre uma esfera da vida privadae uma esfera de vida 
pública significa, então, uma transformação em duas direções: de um lado, a 
 
22
 Essa substituição de verbos por substantivos constitui um dos exemplos do que (Ryle, 
1949/1984) denomina de erro de categoria, isto é “representar os fatos da vida mental como se 
pertencessem a um tipo ou categoria lógica (ou a um conjunto de tipos ou categorias) quando 
na verdade pertencem a outra” (Ryle, p. 16). 
 
 66 
separação entre o interesse pessoal e o interesse coletivo; de outro, um novo 
padrão de relacionamento interpessoal marcado pela representação, pelo 
autocontrole, pelo comedimento. Ariès (1991) interpreta esses dois aspectos 
como uma oposição entre “o homem de Estado e o particular” (p. 19), podemos 
dizer, entre o indivíduo e o cidadão; e uma diferenciação entre sociabilidade 
anônima e uma sociabilidade restrita, uma espontaneidade indiferenciada no 
trato social versus a espontaneidade resguardada para o espaço doméstico. 
Em qualquer circunstância, a construção do mundo privado corresponde à 
instituição de mudanças não no interior de indivíduos, mas no plano de suas 
relações com outros homens e mulheres. 
 
O objetivo e o subjetivo: 
 A dicotomia objetivo-subjetivo elabora-se na reflexão sobre a 
possibilidade de o homem conhecer ou representar a realidade de modo 
seguro. No século XVII, essa preocupação constitui uma reação ao ceticismo e 
uma tentativa de restaurar um fundamento filosófico para o conhecimento 
verdadeiro. O empirismo de Bacon e o racionalismo de Descartes assumirão 
como tarefa tanto explicitar por que sistemas de crença anteriores fracassaram, 
mostrando-se frágeis e dubitáveis, assim como estabelecer as condições sob 
as quais um conhecimento seguro, absolutamente verdadeiro, pode ser 
alcançado. Tanto no empirismo como no racionalismo essas condições dizem 
respeito a faculdades do indivíduo particular, não a processos sociais de 
construção do conhecimento. É a razão (racionalismo), enquanto faculdade da 
alma, ou a experiência sensível articulada (empirismo), que conduz ao 
 67 
conhecimento verdadeiro. No Discurso de Descartes (1637/1979), 
encontramos: 
notei certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e 
das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, depois de 
refletir bastante sobre elas, não poderíamos duvidar que não fossem 
exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo. 
(p. 51) 
 Já na versão de Bacon (1620/1979), quando o intelecto se move sem o 
suporte da experiência sensível cuidadosa, o erro é inevitável. 
Na verdade, os sentidos, por si mesmos, são algo débil e 
enganador, nem mesmo os instrumentos destinados a ampliá-los e 
aguçá-los são de grande valia. E toda verdadeira interpretação da 
natureza se cumpre com instâncias e experimentos oportunos e 
adequados, onde os sentidos julgam somente o experimento e o 
experimento julga a natureza e a própria coisa. (p. 26, Af. L) 
A melhor demonstração é de longe a experiência, desde que se 
atenha rigorosamente ao experimento. Se procuramos aplicá-la a 
outros fatos tidos por semelhantes, a não ser que se proceda de 
forma correta e metódica, é falaciosa. (pp. 38-39, Af. LXX) 
... quando a experiência proceder de acordo com leis seguras e de 
forma gradual e constante, poder-se-á esperar algo melhor da 
ciência. (p. 66, Af. C) 
 A elevação de uma capacidade humana a tribunal da verdade contrasta 
com a visão medieval acerca da prerrogativa da autoridade eclesiástica para 
 68 
estabelecer o que vale como explicação aceitável da realidade, sempre uma 
revelação Divina àqueles que estão no topo da hierarquia religiosa. Desse 
ponto de vista, a modernidade representa uma conquista importante. A regra 
cartesiana de “jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não 
conhecesse evidentemente como tal” (Descartes, 1637/1979, p. 37), isto é, “de 
nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão 
distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em 
dúvida” (Descartes, p. 37) constitui uma expressão máxima dessa mudança. 
No entanto, a reivindicação do racionalismo e do empirismo do século XVII não 
se faz sem o reconhecimento das limitações humanas a serem vencidas antes 
que o indivíduo possa buscar o conhecimento seguro. No pensamento 
cartesiano, esse problema aparece com a necessidade de tomar a dúvida 
como método, tendo o cuidado de afastar do intelecto tudo que antes foi 
admitido como verdadeiro sem passar pelo rigoroso inquérito da razão23. 
 Em Bacon (1620/1979), a desconfiança sobre as capacidades humanas 
encontra expressão na Doutrina dos Ídolos ou falsas noções: “o intelecto 
humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde 
se poder gerar a ciência que se quer” (p. 25, Af. XLIX). Esses obstáculos ao 
processo de construção de representações seguras da realidade abrangem 
tanto dimensões pessoais, do indivíduo singular (os ídolos da caverna, relativos 
à história pessoal de cada um), como aspectos da natureza humana (os ídolos 
 
23
 Diferente dos céticos, porém, Descartes (1637/1979) toma a dúvida como um método para 
chegar a verdades, não como um fim em si mesma: “Não que imitasse, para tanto, os céticos, 
que duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos; pois, ao contrário, todo o 
meu intuito tendia tão somente a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para 
encontrar a rocha ou a argila” (p. 44). 
 
 69 
da tribo, relativos a distorções da percepção e à tendência a formular leis 
gerais com base em uma experiência precária), as condições de interlocução 
(os ídolos do foro, relativos à imprecisão da correspondência entre linguagem e 
realidade24) e dimensões sociais/culturais (os ídolos do teatro, relativos a 
sistemas de crença dominantes em uma cultura). 
 Tanto para Descartes como para Bacon conhecer depende de 
obediência ao método (novamente o tema do autocontrole), o cumprimento de 
um conjunto de preceitos que inicia, em ambos os casos, com uma espécie de 
purificação do intelecto, seja pela dúvida, seja pelo afastamento dos ídolos ou 
falsas noções. 
No tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu 
crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a 
retirar-lhes essa confiança, a fim de substituí-las em seguida por 
outras melhores, ou então pelas mesmas, depois de tê-las ajustado 
ao nível da razão. E acreditei firmemente que, por este meio, lograria 
conduzir minha via muito melhor do que se a edificasse apenas 
sobre velhos fundamentos, e me apoiasse tão-somente sobre 
princípios de que me deixara persuadir em minha juventude, sem ter 
jamais examinado se eram verdadeiros. (Descartes, 1637/1979, p. 
35) 
Já falamos de todas as espécies de ídolos e de seus aparatos. Por 
decisão solene e inquebrantável todos devem ser abandonados e 
 
24
 Diz Bacon (1620/1979): “os Ídolos que se impõem ao intelecto através das palavras são de 
duas espécies. Ou são nomes de coisas que não existem ... ou são nomes de coisas que 
existem, mas confusos e mal determinados e abstraídos das coisas de forma temerária e 
inadequada” (p. 29 Af. LX). 
 
 70 
abjurados. O intelecto deve ser liberado e expurgado de todos eles, 
de tal modo que o acesso ao reino do homem, que repousa sobre as 
ciências, possa parecer-se ao acesso ao reino dos céus, ao qual não 
se permite entrar senão sob a figura de criança. (Bacon, 1620/1979, 
pp.37-38, Af. LXVIII, itálico acrescentado) 
 O que se passa com o sujeito do conhecimento é, assim, duplamente 
problematizado. De um lado, sãofaculdades ou capacidades individuais e 
subjetivas que conduzem a enunciados verdadeiros, acima da dúvida. De 
outro, é necessário, antes de fazer uso dessas faculdades, eliminar aquelas 
condições pessoais e subjetivas que constituem obstáculo à representação 
precisa da realidade. Ambos os temas, é importante notar, freqüentarão os 
livros de Psicologia científica a partir do final do século XIX. Os processos 
cognitivos ou de representação e as inclinações/distorções/hábitos pessoais 
não deixarão de ser temas clássicos para diferentes escolas do pensamento 
psicológico. 
O cartesianismo, ao postular que a razão é uma faculdade da alma, 
tornará central para a reflexão epistemológica o dualismo metafísico, que a 
partir de Locke (1632-1704) assume a forma da distinção corpo-mente, com 
ampla repercussão na Psicologia. Todavia, o que importa ressaltar neste ponto 
é outro aspecto do racionalismo de Descartes, compartilhado com Bacon: a 
noção de que o conhecimento verdadeiro é aquele que representa uma 
realidade independente do sujeito que conhece. Com isso, há uma terceira 
dimensão da problematização do que se passa com o indivíduo do 
conhecimento: a noção de um afastamento entre sujeito e objeto do 
 71 
conhecimento. A partir dessa elaboração, a verdade torna-se atributo de 
enunciados que representam apenas propriedades da realidade, nada 
contendo de qualidades do próprio sujeito que se dedica a conhecê-la. Na 
análise de Bacon (1620/1979) isso opõe as “antecipações da mente” 
(descrições da realidade pautadas mais pelos ídolos que ocupam o intelecto 
humano e menos por uma observação cuidadosa e sistemática) à 
“interpretação da natureza” (enunciados baseados na observação e 
experimentação planejadas, e limitados pelos fatos acumulados desse modo). 
Coincide com essa abordagem a distinção estabelecida por Galilei (1623/1987) 
entre qualidades primárias (propriedades dos fenômenos) e qualidades 
secundárias (sensações do sujeito)25. 
Com a observação do método, garante-se que os enunciados sobre a 
realidade constituam apenas interpretações da natureza, retratem apenas 
qualidades primárias dos fenômenos. Na análise de Descartes, quando isso 
ocorre, o caráter de clareza e distinção das idéias é tal que o intelecto não 
poderá deixar de reconhecê-las como verdadeiras. O método, desse ponto de 
vista, é o controle das inclinações, preferências, paixões pessoais, a fim de 
garantir que esses não invadam as representações do mundo, comprometendo 
 
25
 Galileu exemplifica esta diferenciação assinalando que o calor não constitui uma propriedade 
do fogo (qualidade primária), mas uma sensação do indivíduo (qualidade secundária): 
“havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas dos 
sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa 
senão nome fora de nós; afirmo que, [fui] levado a acreditar que o calor seja um fenômeno 
deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias 
que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, 
com determinadas figuras, movimentadas com velocidade enorme.... Mas que exista, além de 
figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade 
seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, 
deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo 
(Galilei, 1623/1987, p.121). 
 
 72 
sua validade. Por isso falar de método é falar de autocontrole. 
O conhecimento verdadeiro é objetivo no sentido de que retrata apenas o 
objeto do conhecimento, não o sujeito. E o mundo subjetivo torna-se o mundo 
do sujeito que conhece, que possibilita sua apreensão da realidade e que 
precisa ser controlado para assim proceder movido apenas pelas faculdades 
apropriadas. Há, portanto, nessas formulações não apenas um individualismo, 
conduzindo ao que Elias (1994) designa de uma concepção de homo 
philosophicus na reflexão epistemológica26, mas um subjetivismo baseado na 
noção de afastamento entre o ser que conhece e o mundo cognoscível. 
Compreender essa gênese da problematização da subjetividade é essencial 
para discutir o status que pode ser conferido aos enunciados modernos sobre 
as faculdades subjetivas. 
A concepção de um homo philosophicus no século XVII é compatível com 
tudo o que foi assinalado acima, acerca da emergência da noção de indivíduo e 
das condições sociais em que isso se deu. Há uma questão, porém, que 
precisa ser equacionada na análise que vincula a emergência do conceito do 
sujeito como contrapartida epistemológica do conceito de indivíduo: o fato de 
que o cartesianismo reedita em ampla medida o pensamento platônico, 
portanto uma concepção de sujeito formulada já na Antiguidade. 
 
26
 Há outras passagens clássicas do individualismo cartesiano, nas quais a crença na maior 
eficácia da ação individual são destacadas: “vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos 
por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos 
procuram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins .... 
assim pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis 
e que não apresentam quaisquer demonstrações, pois se compuseram e avolumaram pouco a 
pouco com opiniões de mui diversas pessoas, não se acham, de modo algum, tão próximas da 
verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode efetuar 
naturalmente com respeito às coisas que se lhe apresentam” (Descartes, 1637/1979, pp.34-
35). 
 
 73 
Platão (428 a.C.-347 a. C.) inaugurou a filosofia como literatura (cf. Colli, 
1988), ocupando-se da problemática do conhecimento já em uma perspectiva 
que poderia ser interpretada como individualista. Em um trabalho anterior 
(Tourinho, 1994b), foram assinaladas no pensamento platônico categorias 
centrais do que viria a caracterizar o pensamento filosófico do século XVII: 
Platão faz uma distinção entre o mundo sensível e o mundo 
inteligível. O mundo das sensações é o mundo das aparências, onde 
tudo flui e onde não se encontra a essência dos fenômenos. 
Limitados a suas experiências sensíveis, os homens podem apenas 
alcançar opiniões, instáveis, variadas e contraditórias. De outro lado, 
o mundo inteligível é o mundo da razão, da alma, através da qual se 
pode chegar às "idéias", sinônimo de verdade e de apreensão da 
essência das coisas. Ao contrário das opiniões, as idéias se afirmam 
como eternas e universais. Tem-se, aqui, tanto a afirmação 
categórica da distinção entre aparência e essência, quanto a 
atribuição do conhecimento da realidade a algo interior e íntimo, 
diverso das experiências sensíveis, isto é, à alma. (pp. 17-18) 
 Há dois conjuntos de informações a serem levados em conta na 
apreciação da antecipação platônica de concepções modernas do sujeito 
capaz de conhecer a realidade. Em primeiro lugar, as condições sociais sob as 
quais Platão escreve, em certos aspectos comparáveis ao clima social do 
renascimento. Em segundo lugar, o fato de que o platonismo não dominou a 
cultura ocidental ao longo da Idade Média. 
 Com respeito ao contexto social de elaboração do platonismo, é 
 74 
suficiente registrar que a razão grega, na sua origem, realiza-se apenas no 
campo da interlocução, do diálogo, do confronto de idéias e argumentos. Ela 
floresce no espaço público, como dimensão essencial da vida política nas 
cidades-Estado. 
é no plano político que a Razão, na Grécia, primeiramente se 
exprimiu, constituiu-se e formou-se. A experiênciasocial pôde 
tornar-se entre os gregos o objeto de uma reflexão positiva, porque 
se prestava, na cidade, a um debate público de argumentos. ... 
A razão grega é a que de maneira positiva, refletida, metódica, 
permite agir sobre os homens, não transformar a natureza. Dentro 
de seus limites com suas inovações, é filha da cidade. (Vernant, 
1989, pp. 94-95) 
 Na época em que Platão escreveu, a dialética já dava lugar à retórica. 
Enquanto a dialética constituía a forma original da racionalidade grega, em que 
o debate oral estabelecia a sustentabilidade de uma proposição, que não tinha 
permanência fora desse embate argumentativo (cf. Colli, 1988), na retórica, 
juízes externos ao embate estabeleciam a validade de discursos, que 
adquiriam autonomia em relação ao contexto de confrontação de idéias – uma 
condição essencial para a filosofia tornar-se um gênero literário. Inicialmente, 
com Platão, um gênero literário que tentava recuperar a essência da dialética, 
recorrendo à estrutura de diálogos (ainda que fosse uma imitação precária, 
posto que se tratava de diálogos pensados por um único indivíduo)27. 
 
27
 Colli (1988) observa que “Platão inventou o diálogo como literatura, como tipo particular de 
dialética escrita, de retórica escrita, que, num quadro narrativo, apresenta a um público 
indiferenciado os conteúdos de discussões imaginárias. As esse novo gênero literário, o próprio 
Platão chama pelo novo nome de ‘filosofia’. Depois de Platão, esta forma de escrita 
 75 
Platão escreve em um momento de decadência da democracia grega, 
quando a retórica assumia, sobretudo, a forma de uma preocupação estilística 
e persuasiva, em debates cujos oradores orientavam-se mais por interesses 
particulares do que por um compromisso com a justiça ou a verdade28. A 
condenação de Sócrates comprovava, para Platão a impossibilidade de 
chegar-se a juízos seguros sob aquelas condições. A verdade deveria pairar 
em outra dimensão das realizações possíveis do pensamento humano. 
Em suma o individualismo encontrado no platonismo se explica por um 
clima social no qual os processos de interlocução existentes foram 
desqualificados como caminho para a elaboração de enunciados seguros. Por 
outro lado, a razão de Platão não orientou o pensamento no mundo medieval 
porque ali novamente os homens foram submetidos à autoridade de uma 
instituição que se arrogava o direito de legislar sobre a validade de qualquer 
reivindicação a conhecimento. O platonismo, ou versões dele, ressurgem (no 
renascimento) apenas quando aquelas condições de submissão intelectual se 
 
permaneceria como algo adquirido, e ainda que o gênero literário do diálogo se transforme no 
gênero do tratado, mesmo assim continuará a chamar-se ‘filosofia’ à exposição escrita de 
temas abstratos e racionais eventualmente estendidos, após a confluência com a retórica, a 
conteúdos morais e políticos” (p. 92). Paradoxalmente, porém, Platão não acreditava que as 
coisas importantes pudessem ser escritas, ou que aquilo que um homem escreve contivesse o 
que havia de mais importante em seu pensamento: “Platão nega à escrita, em linhas gerais, a 
possibilidade de exprimir um pensamento sério, e diz literalmente: ‘nenhum homem de siso 
ousará confiar seus pensamentos filosóficos aos discursos e além do mais a discursos imóveis, 
como é o caso dos escritos com letras’. Ainda mais solenemente, reafirma um pouco adiante, 
recorrendo a uma citação homérica: “Justamente por isso toda pessoa séria evita escrever 
coisas sérias para não expô-las à malevolência e à incompreensão dos homens ...’” (p. 94). 
 
28
 Para Platão, “a democracia direta favorece ... a demagogia, isto é, a arte de incensar a 
opinião pública por meio do talento oratório; também favorece a tirania, pois há o perigo de que 
um homem seduza e canalize a opinião pública em seu proveito para, em seguida, subjugá-la. 
A crítica platônica à democracia origina-se, fundamentalmente, de sua ‘reflexão sobre a 
linguagem’. Para Platão, a linguagem é eivada de armadilhas, sortilégios e perigos. A multidão, 
maravilhada pela palavra de um orador, pode, em conseqüência, votar cegamente contra o 
interesse público. É por isso que os sofistas, que ensinam a arte de seduzir e de persuadir por 
meio das palavras, constituem um alvo permanente para Platão” (Piettre, 1989, p. 23). 
 
 76 
alteram, dando novamente lugar ao homem comum para refletir sobre o mundo 
a sua volta e julgar o que tem valor como descrição desse mundo. No momento 
em que isso acontece, novamente, não há espaços políticos de debate público 
genuíno. Cada um, agora, deve encontrar a verdade em si mesmo, ou com 
suas próprias faculdades. 
A filosofia que se segue à inauguração do fundacionalismo moderno, com 
Descartes e Bacon, não acompanha a crença ingênua na experiência 
purificada, ou na suficiência de uma intuição racional. Mas certas categorias 
analíticas formuladas no século XVII repercutirão amplamente no pensamento 
filosófico posterior. Os empiristas (especialmente Hume – 1711-1776) insistirão 
na noção de que toda idéia tem uma origem na experiência sensível, cujo 
produto é processado por uma mente que dela produz cópias e as associa de 
modos que nos levam aos enunciados científicos. Kant (1724-1804) admitirá a 
impossibilidade de a mente representar a realidade de modos independentes 
da experiência humana, mas isso para ele significa que as condições de 
objetividade do conhecimento residem no próprio homem, em suas 
capacidades subjetivas universais e a priori, com as quais é afetado 
sensorialmente pelo mundo e que conferem inteligibilidade aos objetos de sua 
experiência: 
que a legislação suprema da natureza deve estar em nós mesmos, 
isto é, em nosso entendimento, e que não devemos buscar as leis 
gerais da natureza na própria natureza por meio da experiência, 
mas, ao contrário, devemos derivar a natureza, em sua regularidade 
universal, unicamente das condições de possibilidade da 
 77 
experiência inerentes à nossa sensibilidade e ao nosso 
entendimento. ... O entendimento não cria suas leis (a priori) a partir 
da natureza; mas as prescreve à mesma. (Kant, 1783/1980, p. 53) 
 Há muitos refinamentos nos sistemas mencionados nesta seção e 
muitos desdobramentos de suas proposições sobre a natureza e alcance do 
conhecimento humano, ambos não discutidos em razão dos objetivos deste 
trabalho. Também merece registro o fato de que em muitos outros sistemas do 
pensamento moderno a dimensão interpessoal dos processos de construção e 
validação de enunciados sobre a realidade física e social são revalorizados. O 
individualismo epistemológico será objeto de muitas diferentes críticas, 
especialmente ao longo do século XX, em diferentes vertentes do pensamento 
filosófico e político (cf. Bernstein, 1983), o que, porém, não repercutiu na 
Psicologia sob a forma de um abandono amplo das categorias de análise 
formuladas no pensamento do século XVII. 
Por último, assim como a dicotomia público-privado expressa 
principalmente o que se passa no plano das relações interpessoais, a 
dicotomia objetivo-subjetivo sintetiza os modos como o homem passa a ver sua 
relação com a realidade enquanto objeto de conhecimento: uma relação 
baseada nas funções ou papéis de qualidades ou faculdades pessoais e que 
requer distanciamento e autocontrole para que a realização nesse domínio seja 
possível. O pensar, refletir e julgar, fenômenos psicológicos abordados 
centralmente na definição do mundo subjetivo nesse contexto, constituem 
faculdades essenciais do sujeito singular. 
 
 78O físico e o mental: 
 A idéia de que o homem é constituído por uma substância física, 
corpórea, e outra imaterial, transcendental ou mental, não se origina com o 
pensamento religioso cristão, embora tenha se propagado na cultura ocidental 
com a difusão de idéias religiosas a esse respeito ao longo da Idade Média. 
O dualismo não é um dado originário do pensamento mais antigo 
[judaico-cristão] que, pelo contrário, tende a afirmar a unidade do 
real e do homem em particular. Ele é fruto de formas mais 
elaboradas de conhecimento, desenvolvidas sobretudo no âmbito da 
filosofia grega e penetrado posteriormente na teologia. (Massimi, 
1986, p.10) 
 Massimi (1986) argumenta que o monismo antropológico dos primeiros 
padres da Igreja deu lugar ao dualismo a partir de uma assimilação das 
categorias filosóficas do pensamento platônico na doutrina religiosa. Segundo 
Massimi, 
as idéias de preeminência da alma e de sua autonomia do corpo, da 
imortalidade da alma e da identificação entre alma e vida, estão 
relacionadas, nas suas origens, à investigação filosófica e à 
necessidade de fundamentar a objetividade do conhecimento 
humano de seu instrumento principal, a razão. É portanto no alvo da 
filosofia grega, e sobretudo do platonismo, que nasce a categoria de 
alma, enquanto substância, e a raiz do dualismo. De fato, o dualismo 
é um efeito inevitável do surgir de uma nova forma de pensamento 
analítico e auto-reflexivo. É uma criação epistemológica, antes de 
 79 
ser uma afirmação ontológica. Todo o problema, a nosso ver, está 
na medida em que procura-se transformar uma dimensão 
epistemológica em realidade ontológica. (p. 22) 
 Retomando as colocações anteriores acerca do contexto em que Platão 
desenvolve sua doutrina sobre a razão como faculdade de uma alma que pré-
existe ao nascimento do homem, é importante observar que há uma motivação 
essencial para essa suposição: a desqualificação dos processos de 
interlocução como meios pelos quais o homem pode chegar a enunciados 
verdadeiros. Se dimensões interpessoais da existência humana não estão 
qualificadas para conduzir cada um a juízos seguros, tais juízos ou não são 
possíveis (a posição do cético), ou vêm de outra fonte. Na filosofia cristã 
medieval, essa outra fonte era Deus, que de acordo com sua vontade e 
decisão dava ao homem a chance de contemplar idéias verdadeiras. Em 
Platão, porém, essa outra fonte estava encerrada no próprio homem que busca 
o conhecimento. 
 Voltando-se ao homem singular como fonte do conhecimento seguro, 
podemos alternativamente atribuir à sua estrutura e funções corporais as 
capacidades cognoscitivas. No entanto, essa não será a opção platônica, visto 
que o dado disponível sobre o que o corpo informa sobre o mundo sugere que 
as percepções humanas são responsáveis por grande parte de nossos 
equívocos ao buscar representar a realidade; propiciam-nos, no máximo, 
opiniões. Há, portanto, em Platão, uma desqualificação também do corpo. 
Piettre (1989) explica esse aspecto da doutrina platônica: 
As idéias ou essências são percebidas unicamente pela inteligência, 
 80 
dispensando o recurso à experiência sensível, isto é, ao testemunho 
dos sentidos. Por outro lado, as opiniões, múltiplas e contraditórias, 
devem sua imprecisão e mobilidade ao testemunho dos sentidos 
sobre os quais elas se apóiam. (pp. 24-25) 
Portanto, os sentidos constituem obstáculos ao conhecimento da 
verdadeira realidade. Eles retêm a alma no estágio das opiniões 
parciais e precárias, fazendo com que se tome por verdadeiro o que 
nada mais é do que a aparência fragmentária e fugitiva da 
verdadeira realidade. (p. 25) 
O que caracteriza principalmente as realidades inteligíveis ou as 
idéias é sua estabilidade, sua eternidade: seu ser. E o que 
caracteriza principalmente as realidades sensíveis é sua mobilidade, 
seu aparecimento e desaparecimento, seu nascimento e sua morte, 
enfim, sua condição de vir a ser. (p. 26) 
Segundo Ribes (2004), também em Aristóteles encontramos o dualismo 
corpo-alma, porém não como substâncias independentes. Nessa visão, a 
religião forjou o dualismo de substâncias, que alcançou sua formulação 
definitiva com Descartes: 
Em contraposição ao argumento de Aristóteles, de acordo com o 
qual a alma não era um corpo, mas algo do corpo, a alma tornou-se 
uma substância separada. Na concepção aristotélica, a alma não 
existia sem um corpo, mas a alma não era em si mesma um corpo. 
Ela sempre existia em um tipo particular de corpo. Na tradição 
judaico-cristã, a alma tornou-se uma entidade separada de qualquer 
 81 
corpo. A alma tornou-se o sujeito, no lugar de um predicado e a ela 
foram atribuídas funções similares àquelas dos corpos: de ser uma 
substância, mover-se por si mesma e ser afetada por outros corpos. 
Santo Augustinho e Santo Anselmo foram decisivos na formulação 
final de uma teoria da alma, que a convertia em uma entidade que 
governa e sofre, ao mesmo tempo, as ações de um universo restrito 
de corpos: os corpos humanos. Em seu Discurso do Método ..., de 
1637, Descartes forneceu os argumentos racionais que formalizaram 
a divisão do homem em duas substâncias, a alma (razão) e a 
matéria (o corpo). Essa divisão separou as ações humanas de seus 
raciocínios. O comportamento tornou-se puramente a ação 
mecânica e a alma tornou-se uma mente cognitiva. (Ribes, 2004, p. 
56) 
Se no aristotelismo a independência de duas substâncias, corpo e alma, 
não está assim formulada, o mesmo não pode ser dito do platonismo, que 
claramente postulava a preeminência da alma. E, de fato, Platão constituiu a 
principal referência filosófica para a doutrina de Santo Augustinho, na qual se 
encontra a versão religiosa do dualismo de substâncias (cf. Jaeger, 1989). 
Chega-se, assim, a um aspecto fundamental do dualismo metafísico. Ele 
está assentado não em um compromisso inicial com a transcendência, mas em 
uma desqualificação dos processos intersubjetivos (sociais) e sensoriais 
(individuais) como fonte segura de conhecimento. Isto é, uma vez que os 
processos de interlocução podem promover a aceitação de idéias falsas, e uma 
vez que nenhuma referência ao corpo humano será suficiente para explicar a 
 82 
identificação (ou reconhecimento, para Platão) de idéias verdadeiras, ao 
contrário, conduzem a opiniões provisórias e conflitantes, então torna-se 
logicamente necessário supor a existência de uma dimensão humana, 
individual, não corpórea, imaterial, como a morada do pensamento racional, 
com o qual se chega às idéias verdadeiras. O dualismo é, assim, uma 
conseqüência inevitável do individualismo associado à desqualificação do 
corpo. 
 O outro aspecto fundamental dessa compreensão do dualismo é que a 
oposição corpo-mente tira de evidência o passo anterior de desqualificar o 
plano das relações interpessoais como domínio das capacidades humanas 
cognoscitivas. Com isso, pode-se pensar que o debate reside em saber se há 
apenas uma ou duas naturezas humanas. Se o homem é só corpo, ou corpo e 
alma, ou corpo e mente. Se podemos explicar suas realizações referindo 
apenas o que se passa em seu corpo, ou se precisamos supor a existência de 
uma mente. Do ponto de vista da análise aqui desenvolvida, o essencial vem 
antes: se podemos ou não explicar as realizações humanas como realizações 
dos homens nas relações uns com os outros; ou o que nos leva a abordar 
essas realizações não mais como realizações sociais, mas como realizações 
pessoais/individuais. Se consideramos que se trata de realizações pessoais, o 
dualismo será praticamente inevitável. Soluções reducionistas organicistas, 
como discursos que apoiados nas neurociências invocam para o cérebro as 
capacidades cognoscitivas,permanecem no campo do individualismo, 
regulados por um desconhecimento do que se passa no plano interpessoal 
como essencial para a definição dos fenômenos psicológicos. Aliás, se 
 83 
estiverem corretos, uma Psicologia deixa de ser necessária. 
 Em favor da tese de que a categoria do mental está antes apoiada na 
desqualificação da interlocução e do corpo, convém observar que a definição 
do mundo mental é invariavelmente negativa. Isto é, quando se indaga sobre a 
mente, o que se obtém como resposta são referências ao que a mente faz, 
suas capacidades. Por exemplo, “a mente é a instância responsável pela 
cognição”. Quando se insiste em saber o que é essa instância responsável pela 
cognição o que se obtém é uma descrição do que ela não é. Locke (1690/1978) 
pode aqui servir de exemplo sobre como tergiversar sobre o tema. 
Não me ocuparei agora com o exame físico da mente; nem me 
inquietarei em examinar no que consiste sua essência; nem por 
quais movimentos de nossos espíritos, ou alterações de nossos 
corpos, chegamos a ter alguma sensação mediante nossos órgãos, 
ou quaisquer idéias em nossos entendimentos; e, se, em sua 
formação, algumas daquelas idéias, ou todas dependem ou não da 
matéria. (p. 140) 
 Talvez esse modo de apresentar o conceito de mente revele uma 
distinção importante em relação a Platão. A desqualificação do espaço de 
interlocução se dá menos pelo reconhecimento desse espaço e atribuição a ele 
dos vícios dos julgamentos humanos, e mais pela dificuldade em identificar as 
dimensões intersubjetivas do pensamento humano, possivelmente porque as 
relações nesse domínio são demasiadamente complexas para serem 
discernidas facilmente, ou mesmo conceitualmente formuladas com as 
categorias disponíveis inicialmente. Afinal, no mundo contemporâneo, não são 
 84 
em assembléias públicas que as reivindicações a conhecimento e à verdade 
são confrontadas e deliberadas. Os processos por meio dos quais 
comunidades amplas participam da construção de um enunciado e a eles 
conferem um valor de verdade envolvem muito mais etapas, atores e 
mecanismos de aferição das qualidades dos enunciados. Será mais fácil supor, 
sob essas condições, que os julgamentos sob os quais podemos apoiar nossa 
relação com o mundo em segurança (e com certeza) são obras de mentes 
individuais. 
 
O interno e o externo: 
 A postulação de uma noção de interioridade também pode ser entendida 
à luz das variáveis culturais examinadas neste Capítulo. Todavia, aqui 
começamos com um paradoxo: se é possível considerar certas ocorrências 
humanas como internas, é logicamente difícil operar com a dicotomia interno-
externo, pois o que seriam dimensões do indivíduo externas a ele? Ainda que 
concordemos que o pensar é interno, o que é externo? O andar, por exemplo? 
 As análises de Elias (1939/1990b, 1994) mais uma vez podem lançar 
luz sobre a questão de modos muito importantes. Elias (1939/1990b) 
argumenta que com o processo civilizador a concepção de homem que se 
torna dominante é a do homo clausus, o homem fechado em si mesmo: 
 A concepção de indivíduo como homo clausus, um pequeno mundo 
em si mesmo que, em última análise, existe inteiramente 
independente do grande mundo externo, determina a imagem do 
homem em geral. Todo outro ser humano é igualmente visto como 
 85 
“homo clausus”. Seu núcleo, seu ser, seu verdadeiro eu aparecem 
igualmente como algo nele que está separado por uma parede 
invisível de tudo o que é externo, incluindo todos os demais seres 
humanos. 
A natureza dessa parede em si, porém, quase nunca é examinada e 
nunca é devidamente explicada. Será o corpo o vaso que contém 
fechado em si o ser verdadeiro? Será a pele a fronteira entre o 
“interno” e o “externo”? O que, no homem, é a cápsula e o que é o 
conteúdo? A experiência do “interno” e do “externo” parecem tão 
auto-evidentes que essas questões raramente são colocadas; 
aparentemente não requerem exame ulterior. O indivíduo se satisfaz 
com a metáfora espacial de “interno” e “externo”, mas não faz 
nenhuma tentativa séria de localizar o “interior” no espaço. (Elias, 
1939/1990b, p. 238) 
 O que permite a Elias (1939/1990b) conferir alguma inteligibilidade à 
auto-imagem do homo clausus e à experiência de interioridade são suas 
incursões na história dos costumes e na literatura da civilidade. A partir dessas 
fontes, Elias chama atenção para o fato de que o padrão de comportamento 
que passa a ser exigido nas relações interpessoais em sociedades complexas 
é tal que requer um treino de observação do próprio comportamento e a 
vigilância permanente sobre os “impulsos emocionais”. Em outras palavras, a 
civilidade requer autocontrole; a impulsividade funciona contra o indivíduo. Em 
todas as sociedades, o controle da impulsividade é requerido, mas em 
sociedades mais simples o limite é dado externamente, são os outros que 
 86 
impedem que o homem vá além do que é tolerável socialmente. Nas 
sociedades mais complexas, o controle deve ser exercido pelo próprio 
indivíduo. A coação externa funciona para treinar o indivíduo a observar a si 
mesmo e agir de modos contidos. 
A transformação de compulsão externa interpessoal em compulsão 
interna individual, que agora continua a aumentar, leva a uma 
situação em que muitos impulsos afetivos não podem ser mais 
vivenciados tão espontaneamente como antes. Os autocontroles 
individuais autônomos criados dessa maneira na vida social, tais 
como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse 
momento se interpõem mais severamente do que nunca entre os 
impulsos espontâneos e emocionais, por um lado, e os músculos do 
esqueleto, por outro, impedindo mais eficazmente os primeiros de 
comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação) sem a permissão 
desses mecanismos de controle. (Elias, 1939/1990b, pp.245-246) 
 As práticas de autocontrole socialmente produzidas voltam-se, portanto, 
às reações emocionais, que representariam padrões mais espontâneos de 
ação. São essas práticas que garantirão um padrão representacional de 
comportamento social, o cumprimento de papéis, ou o comportamento 
esperado e previsto pela sociedade e do qual a sociedade depende para evitar 
que os conflitos se resolvam pela imposição da vontade particular de alguns. 
Elias (1939/1990b) avança um pouco na interpretação das razões pelas quais 
essa experiência de autocontrole favorece uma noção de interioridade: 
Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da 
 87 
personalidade individual subjacente à experiência de si mesmo do 
homo clausus. Se perguntamos ... o que realmente deu origem a 
esse conceito de indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo, 
separado de tudo o que existe fora dele, e o que a cápsula e o 
encapsulado realmente significam em termos humanos, podemos 
agora ver a direção em que deve ser procurada a resposta. O 
controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, 
característico dessa mudança civilizadora, juntamente com o 
aumento de compulsões internas que mais implacavelmente do que 
antes impedem que todos os impulsos espontâneos se manifestem 
direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos 
de controle – são o que é experimentado como a cápsula, a parede 
invisível que separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo 
externo”, ou, em diferentes versões, o sujeito de cognição de seu 
objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo” da “sociedade”. O que está 
encapsulado são os impulsos instintivos e emocionais, aos quais é 
negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na 
autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não 
raro, como o verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. Aexpressão “o homem interior” é uma metáfora conveniente, mas que 
induz em erro. (Elias, 1939/1990b, pp. 246-247) 
 A noção de interioridade seria, assim, produzida quando o indivíduo 
experimenta uma espécie de “contenção” das emoções, impedindo que se 
manifestem por seu aparelho motor. Podemos, porém, formular isso de outro 
 88 
modo: o indivíduo aprende (a) a não responder emocionalmente em certas 
condições sociais ou a responder de modos concorrentes ou incompatíveis 
com uma resposta emocional com alguma probabilidade de ser emitida (por 
exemplo, aprende a sorrir e dizer “Sim, senhor” quando um superior diz que 
sua opinião está errada, no lugar de dizer-lhe impropérios) e/ou aprende (b) a 
responder emocionalmente com reduzida participação do aparelho motor (por 
exemplo, aprende a manifestar sua satisfação com um sorriso discreto, ou seu 
medo de um inseto saindo vagarosamente do ambiente). Como para isso o 
indivíduo precisa observar o próprio corpo, aprender quando respostas motoras 
são evocadas como parte de uma emoção, e adestrar-se para evitar ou reduzir 
esse componente motor, parece-lhe apropriada a metáfora de algo contido em 
si mesmo (como se esse “eu” fosse apenas um receptáculo – a pele, talvez, 
como limite - e não incluísse tudo nele contido). Trata-se, porém, de uma 
metáfora, e disso é bom não esquecer. Afinal, é o indivíduo como um todo que 
“sente uma felicidade” “fica apavorado”, e não uma parte sua que possa abrigar 
outros conteúdos. 
Há boa razão para dizer que o cérebro humano se localiza dentro do 
crânio e o coração dentro da caixa torácica. Nestes casos, podemos 
distinguir claramente o continente do conteúdo, o que se localiza 
dentro de paredes e o que fica fora, e em que consistem as paredes 
divisórias. Mas se as mesmas figuras de retórica forem aplicadas a 
estruturas de personalidade, elas se tornam impróprias. A relação 
entre controle de instintos e impulsos instintivos, para mencionar 
apenas um exemplo, não é uma relação espacial. O primeiro não 
 89 
tem a forma de um vaso que contenha o segundo. Há escolas de 
pensamento que consideram os mecanismos de controle, a 
consciência ou razão, como mais importantes, e há outras que 
atribuem maior importância aos impulsos instintivos ou emocionais. 
Mas se não estamos dispostos a discutir sobre valores, se limitamos 
nossos esforços à investigação do que existe, descobrimos que não 
há aspecto estrutural no homem que justifique chamar uma coisa de 
núcleo do homem, e outra de casca. Rigorosamente falando, todo 
complexo de tensões, tais como sentimentos e pensamentos, ou 
comportamento espontâneo e controlado, consiste de atividades 
humanas. Se em vez dos habituais conceitos-substância, como 
“sentimentos” e “razão”, usarmos conceitos de atividade, fica mais 
fácil compreender que, embora a imagem de “externo” e “interno”, de 
casca de um receptáculo contendo algo dentro, seja aplicável a 
aspectos físicos do ser humano, ela não pode ser aplicada à 
estrutura da personalidade, ao ser humano vivo como um todo. 
Neste nível, nada há que lembre um continente – nada que possa 
justificar metáforas como a que fala do “interno” de um ser humano. 
A intuição da existência de uma parede, de alguma coisa “dentro” do 
homem separando-o do mundo “externo”, por mais genuína que 
possa ser como intuição, não corresponde a nenhuma coisa no 
homem que tenha o caráter de uma real parede. (Elias, 1939/1990b, 
p. 247) 
 90 
 A análise de Elias (1939/1990b), ao mesmo tempo em que confere 
inteligibilidade à noção do homo clausus, sugere as contingências sociais que 
explicam por que alguém estará inclinado a admitir que suas emoções e 
sentimentos são ocorrências internas, é a mesma análise que revela a 
inadequação da metáfora enquanto descrição de fatos (psicológicos) reais. E 
as vinculações dessa metáfora com a noção de indivíduo instituída no 
renascimento são também assinaladas: 
a modificação nos estilos de vida social impôs uma crescente 
restrição aos sentimentos, uma necessidade maior de observar e 
pensar antes de agir, tanto com respeito aos objetos físicos quanto 
em relação aos seres humanos. Isso deu mais valor e ênfase à 
consciência de si mesmo como um indivíduo desligado de todas as 
outras pessoas e coisas. O desprendimento no ato de observar os 
outros e se observar consolidou-se numa atitude permanente e, 
assim cristalizado, gerou no observador uma idéia de si como um 
ser desprendido, desligado, que existia independentemente de todos 
os demais. Esse ato de desprendimento ao observar e pensar 
condensou-se na idéia de um desprendimento universal do 
indivíduo; e a função da experiência, do pensar e observar, passível 
de ser percebida de um nível superior de autoconsciência como uma 
função da totalidade do ser humano, apresentou-se pela primeira 
vez, sob a forma reificada, como um componente do ser humano 
semelhante ao coração, ao estômago ou ao cérebro, uma espécie 
de substância insubstancial no ser humano, enquanto o ato de 
 91 
pensar se condensou na idéia de uma “inteligência”, uma “razão” ou, 
no linguajar antiquado, um “espírito”. (Elias, 1994, p. 91) 
A idéia de indivíduos decidindo, agindo, e “existindo” com absoluta 
independência um do outro é um produto artificial do homem, 
característico de um dado estágio do desenvolvimento de sua 
autopercepção. Depende parcialmente de uma confusão de ideais e 
fatos e, até certo ponto, da materialização de mecanismos de 
autocontrole individuais – da separação dos impulsos emocionais 
individuais frente ao aparelho motor, do controle direto sobre os 
movimentos corporais e as ações. 
Esta autopercepção em termos do próprio isolamento, da parede 
invisível que separa o ser “interior” de todas as pessoas e coisas 
“externas”, tem para grande número de pessoas na era moderna a 
mesma força imediata que a convicção de que o sol girava em torno 
de uma terra situada no centro do cosmos possuía na Idade Média. 
Tal como antes a visão geocêntrica do universo físico, a imagem 
egocêntrica do universo social certamente poderá ser vencida por 
uma visão mais realista, embora emocionalmente menos atraente. 
(Elias, 1939/1990b, p. 248) 
 A abordagem de Elias (1939/1990b) possibilita também compreender 
por que certas vertentes da psicologia como profissão de ajuda se ocuparão 
dos efeitos somáticos desse novo padrão de relacionamento interpessoal em 
seus aspectos “psicológicos” de evitação de ativação do aparelho motor. As 
“Psicologias Corporais” encontram lugar na cultura como resposta para essa 
 92 
dimensão dos problemas psicológicos, o que parece confirmar ao leigo que sua 
problemática psicológica é de fato relativa a um mundo interno e, como tal, 
relativa à sua individualidade ou singularidade29. Em uma direção oposta, Elias 
sugere que a noção de homo clausus seja substituída por uma concepção de 
homem como parte permanente de redes de interdependência com outros 
homens e mulheres. 
A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída 
aqui pela de “personalidade aberta”, que possui um maior ou menor 
grau (mas nunca absoluto ou total) de autonomia face a de outras 
pessoas e que, na realidade, durante toda a vida é 
fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente 
delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que 
os liga. Elas formam o nexo do que é aqui chamado configuração, 
ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e 
dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou menos 
dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde 
através da aprendizagem social, da educação, socialização e 
necessidades recíprocas socialmente geradas, elasexistem, 
poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como pluralidades, apenas 
como configurações. Este o motivo por que ... não é particularmente 
frutífero conceber os homens à imagem do homem individual. Muito 
mais apropriado será conjecturar a imagem de numerosas pessoas 
 
29
 A relação da noção de interioridade com o controle da impulsividade provavelmente explica 
por que tendemos a reservar a categoria de “interno” para sentimentos e emoções, enquanto 
mais provavelmente referimos o pensamento ou a reflexão como “mentais”. 
 
 93 
interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou 
sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista 
básico, desaparece a cisão na visão tradicional do homem. O 
conceito de configuração foi introduzido exatamente porque 
expressa mais clara e inequivocamente o que chamamos de 
“sociedade” que os atuais instrumentos conceituais da sociologia, 
não sendo nem uma abstração de atributos de indivíduos que 
existem sem sociedade, nem um “sistema” ou “totalidade” para além 
dos indivíduos, mas a rede de interdependências por eles formada. 
(Elias, 1939/1990b, p. 249) 
 A noção de interno, assim, faz tão pouco sentido enquanto categoria 
analítica para a abordagem dos fenômenos psicológicos como as categorias de 
“privado”, “subjetivo” ou “mental”. Uma ciência do comportamento que busque 
prover um enfoque relacional para aqueles fenômenos terá como desafio 
elaborar a crítica dessas referências. Todavia, as informações aqui discutidas 
mostram claramente que a caracterização de emoções, sentimentos e 
pensamentos como privados, internos, subjetivos ou mentais não decorre de 
um desconhecimento, de uma preferência, ou de um compromisso ideológico, 
mas de complexas determinações sociais, históricas e culturais. É necessário 
olhar com atenção para essas determinações, se for para identificar com maior 
clareza o que podem ser caminhos consistentes para a interpretação e 
investigação dos problemas reservados por essa mesma cultura a uma 
disciplina psicológica. 
 
 94 
CAPÍTULO 2 
DIMENSÕES DA ABORDAGEM ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL PARA O PROBLEMA DA 
SUBJETIVIDADE 
 
 A análise desenvolvida no Capítulo 1 indica que há boas razões 
histórico-sociais para pensarmos que sentimentos, emoções e pensamentos 
são ocorrências do ou no indivíduo. Há também fatores relativos à constituição 
humana que favorecem aquela visão. Como todo fenômeno humano é sempre 
um fenômeno que envolve o organismo humano, há sempre a possibilidade de 
nos referirmos a dimensões orgânicas como evidência da interioridade dos 
sentimentos e pensamentos. Uma vez tendo aprendido a observar o próprio 
corpo de modos particulares30, qualquer um será capaz de relatar a certeza de 
interioridade de seus sentimentos. Se, além disso, não puder ver com clareza 
como se liga aos outros homens e mulheres como parte dessa experiência, 
estarão dadas as condições fundamentais para que a noção de interioridade 
seja bastante persuasiva. 
 Ao contrapor ao individualismo e subjetivismo modernos uma 
interpretação comportamental para a subjetividade, assinalando o caráter 
relacional de pensamentos e sentimentos humanos, este trabalho seguirá um 
percurso dividido em duas etapas. Neste Capítulo, serão discutidas algumas 
dimensões de uma interpretação comportamental para aqueles fenômenos e 
 
30
 A observação rotineira do próprio corpo não emergiu como prática apenas no mundo 
ocidental moderno. Nas culturas orientais, práticas semelhantes foram desenvolvidas, embora 
com certas variações e outras funções na vida cotidiana. À primeira vista, nas culturas orientais 
a observação do próprio corpo e mesmo exercícios de autocontrole são praticados visando 
uma espécie de equilíbrio corporal que se relaciona a uma concepção de transcendência; em 
outros contextos, são um requisito para a reprodução da hierarquia social. Em qualquer dos 
casos, trata-se de uma experiência bem diversa daquela descrita no Capítulo 1. 
 
 95 
seus possíveis desdobramentos na análise das dicotomias psicológicas 
clássicas. No Capítulo 3, serão examinadas as possíveis articulações dessa 
interpretação com uma análise dos temas ressaltados no Capítulo 1 como 
centrais no processo de construção da noção de indivíduo (singularidade, 
autonomia e autocontrole do indivíduo). 
 Algumas palavras iniciais acerca da perspectiva comportamental de 
abordagem para os temas da Psicologia são necessárias, com o fim de 
demarcar o universo filosófico e conceitual com o qual estaremos trabalhando. 
A Psicologia Comportamental foi inaugurada com o manifesto de Watson 
(1913/1994) no início do século XX, uma iniciativa que buscava conferir à 
disciplina o mesmo estatuto de cientificidade então desfrutado pelas ciências 
naturais. A proposta de Watson assentava-se especialmente na postulação do 
comportamento como objeto de estudos e da observação e experimentação 
como métodos. Desde então, diferentes versões dessa abordagem foram 
formuladas, vários sistemas explicativos foram desenvolvidos, definidos como 
behavioristas basicamente porque elegem o comportamento como objeto. A 
diversidade e mesmo conflito entre fundamentos (filosóficos e metodológicos) e 
proposições encontradas nesses diferentes sistemas torna necessário explicitar 
adicionalmente a referência teórico-metodológica com a qual se está 
trabalhando, quando se pretende falar acerca do ponto de vista 
comportamental com respeito a algum conjunto de problemas examinados pela 
Psicologia. 
 No presente trabalho, a análise do comportamento constitui a referência 
básica para a discussão da problemática da subjetividade. Embora em sua 
 96 
origem fortemente inspirada pelo trabalho de Watson, a análise do 
comportamento constitui uma abordagem mais identificada com o programa de 
pesquisas e a produção intelectual de B. F. Skinner (1904-1990) e seus 
colaboradores. Será com os instrumentos conceituais e o conhecimento 
empírico acumulados pelos analistas do comportamento que as questões 
relativas à subjetividade serão predominantemente discutidas neste e no 
próximo Capítulo. 
 Ao referir a análise do comportamento, estamos considerando o sistema 
amplo de conhecimento e de práticas profissionais desenvolvidos a partir da 
obra de Skinner e seguidores. Isso inclui o que tem sido designado como 
behaviorismo radical - ou contextualista31 (a vertente reflexiva e filosófica da 
análise do comportamento), a análise experimental do comportamento (a 
investigação científica de processos comportamentais básicos), a análise do 
comportamento aplicada (a investigação aplicada dos princípios 
comportamentais) e as práticas profissionais de analistas do comportamento. O 
sistema analítico-comportamental é, assim, entendido como esse conjunto de 
produções, que são interdependentes. Pode, também, ser pensado como 
conjuntos de produções que variam, aproximando-se mais ou menos de uma 
daquelas direções. Esse modo de caracterização tem prevalecido, nos últimos 
anos, na explicitação da natureza e alcance da análise do comportamento (cf. 
 
31
 Skinner (e.g., 1963/1969) refere-se ao componente filosófico de seu sistema explicativo 
como behaviorismo radical. O termo é considerado inadequado por alguns autores (e.g., Drash, 
1988; S. C. Hayes & L. J. Hayes, 1992). A alternativa mais freqüentemente referida na literatura 
analítico-comportamental é “behaviorismo contextualista” (cf. S. C. Hayes & L. J. Hayes), 
sugerido por razões de coerência epistemológica. No entanto, prevalece ainda entre os 
analistas do comportamento a designação “behaviorismoradical”. 
 
 97 
Hawkins & Anderson, 2002; Moore & Cooper, 2003; Tourinho; 2003)32. Na 
síntese de Hawkins e Anderson (2002), 
podemos … identificar pelo menos quatro papéis que um analista do 
comportamento pode desempenhar: analista conceitual do 
comportamento, analista básico do comportamento, analista 
aplicado do comportamento e praticante analítico-comportamental. 
Qualquer analista do comportamento pode se engajar em qualquer 
um (ou mais) desses papéis em diferentes momentos e poucos 
analistas do comportamento se engajam em todos. Talvez mais 
importante do que isso, ... cada um desses quatro papéis é uma 
parte extremamente valiosa da análise do comportamento e cada 
um merece respeito total e igual. (p. 119) 
 O comportamento dos organismos é assumido como objeto de estudos 
da análise do comportamento. No entanto, desde a primeira incursão 
skinneriana no conceito de reflexo (Skinner, 1931/1961), por comportamento 
entende-se a relação do organismo com mundo a sua volta. 
A análise do comportamento pretende ocupar o lugar da Psicologia 
porque entende que fenômenos psicológicos são fenômenos 
comportamentais. O conceito de comportamento, porém, é 
empregado por analistas do comportamento para abordar relações. 
Ele não designa o que um organismo faz, mas uma relação entre um 
organismo e o mundo à sua volta. Por essa razão, às vezes prefere-
 
32
 Esse tipo de caracterização da análise do comportamento reflete de modo amplo a tentativa 
em edificar-se como resposta ao conjunto variado de problemas reservados pela cultura à 
disciplina psicológica (cf. Tourinho, 2003). 
 
 98 
se falar de relações comportamentais. Assim, a proposta é a de 
interpretar os fenômenos psicológicos como fenômenos relacionais, 
em outras palavras, fenômenos que dizem respeito às relações dos 
organismos com o seu ambiente físico e social (especialmente o 
ambiente social, no caso do comportamento humano). (Tourinho, 
2003, p. 37)33 
 Relações comportamentais constituem, portanto, o objeto de estudos da 
análise do comportamento. Os termos dessas relações (respostas e estímulos) 
definem-se mutuamente, não existem independentemente. Em um trecho de 
sua discussão sobre o caráter contextualista da concepção analítico-
comportamental dos fenômenos psicológicos, Morris (1988) assinala esse 
ponto afirmando que “na visão analítico-comportamental, o ambiente 
comportamental (psicológico) desenvolve-se em interação mútua, recíproca, 
com o organismo comportamental (psicológico)” (p. 302). 
 É importante, também, registrar que muito do que será aqui 
desenvolvido usufrui da interlocução com outra escola do pensamento 
comportamental na Psicologia, o interbehaviorismo, sustentado especialmente 
na obra de J. R. Kantor (1888-1984). Essa interlocução é possível em razão do 
fato de que a análise do comportamento e interbehaviorismo compartilham 
muitos pontos de vista (filosóficos e teóricos) sobre as feições que a Psicologia 
deve assumir como ciência do comportamento. Uma expressiva literatura tem 
assinalado a compatibilidade e mesmo a possível complementaridade entre os 
 
33
 Essa perspectiva relacional implicará conferir menor importância à topografia 
comportamental, no que a análise do comportamento distancia-se do fisicalismo encontrado em 
outras vertentes da Psicologia comportamental (cf. L. D. Smith, 1989). 
 
 99 
dois sistemas (e.g., Fuller, 1973; Marr, 1984; Moore, 1987; Morris, 1984; 
Morris, Higgins & Bickel, 1982; Tourinho, 2004)34, embora ainda sejam restritas 
as iniciativas na direção de uma integração maior da produção nos dois 
domínios35. O trabalho de Kantor é especialmente importante para dirigir a 
atenção do analista do comportamento para as implicações de uma 
compreensão do responder do organismo como o responder do organismo 
como um todo36, para as implicações da distinção entre objeto estímulo e 
função de estímulo, topografia de resposta e função de resposta. As 
contribuições de Kantor são também notáveis na discussão de temas 
relacionados à subjetividade, em particular sua rejeição da dicotomia interno-
externo e sua abordagem da observabilidade enquanto dimensão interpessoal 
dos fenômenos psicológicos (cf. Tourinho). 
 Por último, cumpre ressaltar que se Skinner constitui a principal 
referência para o exame que se segue sobre a temática da subjetividade, não 
se pode dizer que as proposições aqui contidas são, em sua totalidade, 
skinnerianas. Elas são em grande medida fundamentadas ou inspiradas nos 
escritos de Skinner e de outros analistas do comportamento (assim como de 
interbehavioristas), mas pretendem introduzir uma perspectiva original de 
 
34
 Morris (1984), por exemplo, assinala que “a psicologia intercomportamental é bastante 
explícita e sofisticada acerca de supostos metateóricos. Estes precisam ser integrados com as 
contribuições empíricas e conceituais do behaviorismo radical, para aumentar a aceitabilidade 
de uma ciência natural do comportamento” (p. 202). Há, de outro lado, notáveis divergências 
entre os dois sistemas (cf. L. J. Hayes, 1994; Kantor, 1970; Morris, 1984). 
 
35
 No período de 1945 a 1947 Skinner foi docente do Departamento de Psicologia na Indiana 
University, a convite de Kantor. Os frutos da convivência dos dois ainda estão por ser 
adequadamente apreciados (cf. Fuller, 1973). 
 
36
 Sobre esse aspecto, L. J. Hayes (1994), discutindo as contribuições de Kantor, ressalta: “Não 
são os olhos que vêem, os ouvidos que ouvem, as pernas que caminham, ou o cérebro que 
pensa – é o organismo como um todo que se engaja nesses atos” (p.151). 
 
 100 
análise a esse corpo de conhecimento, compatível com princípios analítico-
comportamentais. Trata-se, assim, de uma abordagem diferente de outros 
estudos que se ocuparam essencialmente de reconstruir o pensamento 
skinneriano (e.g., Moore, 1981), ou de nele identificar certos limites (e.g. 
Tourinho, 1995). Também deve ser notado que o tema pode ser tratado a partir 
de uma variedade de aspectos, alguns deles desenvolvidos em estudos 
anteriores (Tourinho, 1994a, 1994b, 1995, 1997a, 1997b, 1997c, 1999a, 1999b, 
2004, no prelo; Tourinho & cols., 2000). Na presente discussão, serão 
focalizadas apenas algumas dimensões da abordagem analítico-
comportamental para a subjetividade (eventualmente articulando colocações 
pontuais de trabalhos anteriores), que possibilitam retomar o problema das 
dicotomias psicológicas clássicas e a elas contrapor uma perspectiva relacional 
de análise. 
 
2.1. A Noção de Eventos Privados. 
 A abordagem que Skinner provê para a temática da subjetividade segue 
dois cursos, a princípio complementares, mas que em um sentido particular, a 
ser discutido adiante, tornam-se conflitantes: de um lado, o reconhecimento de 
que há uma particularidade a ser levada em conta quando se discutem esses 
fenômenos: o caráter privado de certos estímulos e certas respostas, o que os 
torna inacessíveis a uma observação pública direta; de outro lado, uma 
discussão das implicações do caráter funcional do comportamento verbal para 
a análise da linguagem da experiência privada. Esses dois temas serão 
discutidos a seguir, buscando-se caracterizar o alcance das proposições 
 101 
skinnerianas. 
 Skinner (e.g., 1945, 1953/1965, 1963/1969, 1938/1991, 1974/1993) 
enfatiza em sua discussão sobre os “termos psicológicos” o equívoco da 
suposição de existência de um mundo mental. Grande parte de sua 
argumentação ocupa-se da rejeição dessa categoria, considerando-se que (a) 
inexistem evidências desse mundo e (b) a postulação de sua existência não 
aumentaa capacidade de previsão e controle do fenômeno comportamental; 
ao contrário, desvia a atenção do pesquisador das variáveis relevantes. A 
oposição sistemática ao conceito de mente tem possibilitado uma visão de 
acordo com a qual behaviorismo e mentalismo constituem em essência 
projetos concorrentes na Psicologia do século XX (cf. Uttal, 2000), o que 
constitui uma caracterização parcialmente correta (considerando-se a 
diversidade de behaviorismos e as críticas de algumas dessas vertentes ao 
mentalismo). Todavia, em Skinner, o anti-mentalismo constitui apenas um 
aspecto de uma proposição mais ampla de recusar explicações do 
comportamento do organismo que apelam a ocorrências do próprio organismo. 
Para além do mentalismo, encontra-se em Skinner uma crítica a toda sorte de 
explicação internalista, aí incluídas as explicações que apelam à 
(neuro)fisiologia do comportamento (cf. Tourinho, 1999a). Em O 
Comportamento dos Organismos, Skinner (1938/1991) já afirmava: 
Eu já mencionei (no Capítulo Um) a visão primitiva e ainda não 
totalmente vencida de que os fenômenos do comportamento são 
essencialmente caóticos, mas que eles podem ser reduzidos a um 
tipo de ordem através da demonstração de que eles dependem de 
 102 
um sistema determinante fundamentalmente interno. Essa é a visão 
que muito naturalmente apresenta a si mesma como uma alternativa 
materialista às concepções psíquicas ou mentalistas do 
comportamento. O tipo de homúnculo neural que é postulado como 
a força controladora carrega uma inequívoca semelhança com o 
homúnculo espiritual ou mental dos velhos sistemas, e suas funções 
da mesma forma introduzem um tipo de ordem hipotética ao mundo 
desordenado. (Skinner, p. 418) 
 Em textos posteriores (e.g. Skinner, 1953/1965, 1990 – cf. Tourinho, 
1999a), reaparece o tema das causas neurais ou fisiológicas como explicações 
que também interditam o projeto de uma ciência do comportamento37. O anti-
mentalismo, portanto, não sintetiza inteiramente (ou corretamente) o tipo de 
causalidade a que Skinner se opõe38. 
 Embora dotados de uma mesma natureza física, certos eventos que são 
constitutivos do objeto da Psicologia, estímulos e respostas, diferenciam-se por 
uma inacessibilidade à observação pública direta; são, então, designados de 
eventos privados: “um evento privado pode distinguir-se por sua acessibilidade 
limitada, mas até onde sabemos não por qualquer estrutura ou natureza 
especial” (Skinner, 1953/1965, p. 257). A categoria de eventos privados inclui, 
assim, estímulos gerados pelo próprio corpo do indivíduo, que o afetam de 
modos únicos, e respostas emitidas “em escala tão reduzida” (Skinner, 
 
37
 Trata-se, nesse caso, de um tipo de crítica antecipado e largamente desenvolvido por Kantor 
(1922, 1923, 1947) desde a década de 20 do século XX. 
 
38
 A este respeito, ver a extensa análise de Carvalho Neto (2001) acerca do anti-mentalismo no 
pensamento skinneriano. 
 
 103 
1953/1965, p. 263) que não podem ser observadas pelos outros. Em princípio, 
essa proposição significará que o que diferencia o pensar39 é o fato de se tratar 
de uma resposta encoberta, e o que diferencia um sentimento de felicidade é o 
fato de que o indivíduo pode estar respondendo a uma estimulação privada. 
Esse, porém, é apenas um ponto de partida do que pode vir a ser uma 
explicação comportamental ampla para a problemática de sentimentos e 
pensamentos. 
 Em um trabalho recente (Tourinho, no prelo), observamos que a base 
dessa inobservabilidade de certos estímulos e respostas, isto é, o que torna 
certos estímulos e certas respostas inobserváveis, não chega a merecer uma 
apreciação detalhada na obra de Skinner. Dentre os demais analistas do 
comportamento, isso leva a um debate inconcluso sobre o assunto. Em linhas 
gerais, a questão que se coloca é: podemos tratar como estímulos privados 
quaisquer eventos (e.g., acontecimentos passados) com função de estímulos, 
inacessíveis à observação pública direta, e como respostas encobertas 
quaisquer respostas (e.g., votar secretamente) igualmente inacessíveis à 
observação pública direta? Se respondemos afirmativamente, deixamos de 
explicitar por que a cultura considera o pensar uma resposta qualitativamente 
diferente do andar, ou do votar secretamente, que não pode ser observado 
porque há uma barreira física. Deixamos de responder por que o individuo em 
nossa cultura considera “sentir uma felicidade” (responder ao estímulo privado 
 
39
 Skinner preferirá sempre falar do “pensar” (thinking) como resposta, no lugar de falar de 
“pensamento” (thought) como conteúdo ou posse individual. Termos equivalentes serão usados 
para outros fenômenos (sonhar no lugar de sonhos, lembrar no lugar de memória, alucinar no 
lugar de alucinação etc.). Sobre o caso específico do pensar, Andery e Sério (2003) provêem 
uma análise mais detalhada. Uma interpretação para o sonhar baseada em Skinner é 
apresentada por F. M. Silva (2000). 
 
 104 
constitutivo da “felicidade”) algo pessoal, único e especialmente importante, 
mas não considera o relatar seu dia anterior como um fenômeno com as 
mesmas propriedades. É importante lembrar que Skinner introduz o conceito 
de eventos privados em um texto (Skinner, 1945) dedicado a discutir os 
“termos psicológicos”. Trabalhar com uma interpretação genérica para o 
conceito de “eventos privados” não parece a melhor solução simplesmente 
porque com isso continuaríamos devendo uma explicação para a 
especificidade dos fenômenos considerados “subjetivos”. 
Se respondemos negativamente à interpretação genérica para o 
conceito de eventos privados, precisamos ainda esclarecer o que confere a 
respostas e estímulos um tipo específico de inobservabilidade. Esse tipo de 
especificação é possível a partir de algumas proposições de Skinner e de 
Kantor. 
Com respeito aos estímulos privados, a análise de Skinner (e.g., 
1974/1993) inicia com o reconhecimento de que existe um tipo de introspecção, 
uma espécie de observação pelo indivíduo do que acontece com sua 
“interioridade”. No entanto, o que é observado é simplesmente o próprio corpo, 
não um mundo imaterial qualquer. Esse argumento, por um lado, afasta 
novamente o dualismo mente-corpo; por outro, conduz a uma identificação 
problemática do mundo privado com um mundo interno: 
Uma pequena parte do universo está contida dentro [sic] da pele de 
cada um de nós. Não há nenhuma razão para que ela tenha um 
status físico especial em virtude de se situar nesses limites e nós 
 105 
eventualmente teremos uma explicação completa dela [fornecida] 
pela anatomia e pela fisiologia. (Skinner, 1974/1993, p. 24) 
 Sem entrar na discussão da inconsistência encontrada na definição do 
privado como interno, já abordada em outros trabalhos (e.g., Tourinho, 
1997a)40, o importante a salientar é que o mundo privado diz respeito à 
estimulação gerada pelo próprio corpo. Skinner (1974/1993) explicita esse 
ponto de vista destacando que chamamos de privados aqueles estímulos 
gerados pelo próprio corpo e que não podem afetar outras pessoas do mesmo 
modo como afetam o próprio indivíduo. Ou seja, estímulos privados 
corresponderiam a estímulos interoceptivos e proprioceptivos. Estímulos 
exteroceptivos (e.g., visuais) gerados pelo próprio corpo não cairiam na mesma 
categoria, uma vez que podem afetar os outros do mesmo modo como afetam 
o próprio indivíduo. A título de exemplo, considerem-se duas condições que 
podem controlar uma resposta (auto)descritiva de sentir-se envergonhado, 
ambas provocadas pela alteração na circulação sangüínea na face: a alteração 
da temperatura da face e a alteração na cor daface. Ambos podem constituir 
estímulos (se adquirirem essa função) gerados pelo corpo do indivíduo, o 
aquecimento da face um estímulo interoceptivo, a ruborização um estímulo 
exteroceptivo. O que Skinner salienta é que aquela alteração corporal poderá 
afetar outros sob a forma de estimulação exteroceptiva, mas nunca como 
estimulação interoceptiva. Qualquer um poderá emitir a resposta verbal 
“vergonha” sob controle da ruborização da face do indivíduo (estímulo 
 
40
 Observe-se apenas que a caracterização é inconsistente não apenas porque respostas não 
podem ser internas ou externas ao organismo, mas também porque alguns estímulos gerados 
pelo próprio corpo (e.g., a estimulação interoceptiva gerada por um corte na pele) não estão 
exatamente “dentro” do indivíduo. 
 
 106 
exteroceptivo gerado pelo corpo do indivíduo “envergonhado”), mas apenas o 
próprio indivíduo poderá emitir a mesma resposta sob controle da estimulação 
na temperatura (estímulo interoceptivo)41. A forma de contato constitui, 
portanto, uma característica essencial da estimulação privada que se articula 
com a problemática dos sentimentos, embora esse contato diferenciado do 
indivíduo não signifique um acesso ou conhecimento privilegiado (cf. Tourinho 
& cols., 2000). 
 Passando para a análise das respostas encobertas, temos um tipo de 
inobservabilidade gerada não por barreiras físicas (como quando alguém vota 
secretamente, ou digita uma senha bancária em um aparato especial), mas por 
propriedades formais e/ou relacionais das respostas (Tourinho, no prelo). 
 Skinner (1953/1965) refere uma “escala reduzida” das respostas 
encobertas, sem especificar que propriedades estão presentes em escala 
reduzida nessas respostas. Também faz referência (cf. Skinner, 1957/1992) a 
uma “ordem decrescente de energia” ao discutir o responder verbal encoberto, 
uma idéia que é muito interessante, na medida em que sugere variações 
maiores das respostas verbais do que simplesmente abertas e encobertas 
(adiante, esse aspecto será discutido). Um aspecto também muito importante 
da abordagem de Skinner é que ela atribui a contingências sociais a forma 
aberta ou encoberta das respostas (cf. Skinner, 1953/1965, 1974/1993, 
1968/2003). Isto é, aprendemos qualquer repertório sempre na forma aberta e 
respondemos abertamente ou encobertamente dependendo das contingências 
 
41
 Em várias ocasiões Skinner (e.g. 1945) menciona que a invasão por instrumentos não 
resolve este problema, pois neste caso os outros responderão sob controle das medidas dos 
instrumentos (estímulos exteroceptivos) enquanto o indivíduo poderá permanecer respondendo 
sob controle de estímulos interoceptivos. 
 
 107 
sociais a somos expostos. Assim, não há respostas naturalmente, nem 
definitivamente, abertas ou encobertas. 
 Tourinho (no prelo) articula as proposições de Skinner à abordagem de 
Kantor (cf. Kantor & N. W. Smith, 1975), de acordo com a qual todo responder, 
sendo o responder do organismo como um todo, envolve a participação de 
todos os sistemas orgânicos. Seguindo a argumentação de Kantor, a 
observabilidade de uma resposta varia como função tanto do grau de 
participação do aparelho motor na sua emissão (propriedade formal ou 
estrutural da resposta), quanto da familiaridade entre observador e observado 
(cf. L. J. Hayes, 1994; Kantor & N. W. Smith, 1975; Observer, 1973, 1981)42. 
Registre-se já aqui que a restrição na ativação do aparelho motor, mencionada 
por Kantor na análise do caráter “inaparente” de certas respostas, é a mesma 
referida por Elias (e.g., 1939/1990b) na discussão do autocontrole. Esse 
aspecto será discutido no Capítulo seguinte. 
Acompanhando Donahoe e Palmer (1994), pode-se dizer que a 
observabilidade varia também como função dos instrumentos do observador43, 
sendo possível falar em um continuum de observabilidade. Tourinho (no prelo) 
acrescenta a essas fontes de variabilidade o treino de observação do 
 
42
 L. J. Hayes (1994) afirma que, de acordo com Kantor, as respostas são mais ou menos sutis 
e “a sutileza não é uma característica formal do evento em questão. Isto é, a sutileza não é 
uma propriedade de um evento particular, à parte de uma história insuficiente do observador 
com respeito ao mesmo. Quanto maior a história de interação de uma pessoa com eventos 
sutis, mais óbvios eles se tornam, pois, falando psicologicamente, os eventos observados são 
nada mais do que os loci de funções de resposta para os observadores” (p. 160). 
 
43
 Segundo Donahoe e Palmer (1994), “a observabilidade de uma resposta não é determinada 
por sua intensidade ou magnitude, mas pelas características ou instrumentos do observador ... 
Devemos evitar a tentação de pensar no comportamento encoberto como um tipo de 
comportamento, com propriedades essencialmente diferentes do comportamento aberto. Em 
vez disso, todo comportamento localiza-se em um continuum de observabilidade” (p. 275). 
 
 108 
observador. Quanto mais adestrado para observar o responder dos organismos 
e, em especial, as relações entre esse responder e contingências ambientais, 
mais capacitado se está para identificar respostas que, aos olhos dos outros, 
ou na relação com os outros, são encobertas. 
 De acordo com a presente análise, não apenas propriedades formais 
(e.g., Skinner, 1953/1965), nem somente dimensões relacionais (Donahoe & 
Palmer, 1994) definem a observabilidade de respostas. A proposição de 
Donahoe e Palmer, no sentido de operar com a noção de um continuum de 
observabilidade é aqui adotada, porém admitindo-se que os intervalos desse 
continuum variam como função de propriedades formais e relacionais das 
respostas. 
 A noção de um continuum de observabilidade de respostas, embora não 
discutida por Skinner, é inteiramente compatível com sua argumentação acerca 
de uma “ordem descendente de energia” (Skinner, 1957/1992, p. 438) na 
análise da variação do comportamento verbal. Como assinalado por Tourinho 
(no prelo), é também compatível com certas proposições de Watson 
(1930/1970) acerca do pensar, quando este refere estágios de ativação da 
musculatura vocal. Essa observabilidade variável, como assinalado por Skinner 
(1953/1965, 1974/1993, 1968/2003) é dependente de contingências sociais. 
 Embora mencione que certas respostas são emitidas de forma 
encoberta devido a um controle de estímulos fraco, ou por conveniência, 
Skinner (1957/1992) salienta que a “evitação da punição” (p. 436) contingente à 
forma aberta da resposta constitui uma razão mais importante para a emissão 
encoberta de respostas verbais. Esse aspecto é especialmente importante 
 109 
porque aqui podemos começar a fazer uma segunda ligação com a 
problemática do autocontrole. Esse tema será retomado apenas no próximo 
Capítulo, mas é importante registrar desde já que o modo como a sociedade 
opera para promover respostas encobertas inclui (de modo preponderante) a 
disposição desse tipo de contingência (a punição contingente à forma aberta da 
resposta). Se examinarmos as circunstâncias em que isso ocorre, veremos que 
o indivíduo responder de forma aberta produz não apenas conseqüências para 
si mesmo (o próprio estímulo auditivo gerado pela resposta verbal vocal 
constitui um poderoso reforço para a resposta)44, como também uma 
estimulação auditiva para os outros, que pode ter diferentes funções. Quando 
essa estimulação tem uma função aversiva para o outro, será mais provável 
que seja punida. Em outras palavras, pode haver no responder aberto um 
conflito entre as conseqüências para o próprio indivíduo e as conseqüências 
para o grupo. 
 Passando para a questão dasrelações entre linguagem e privacidade, 
desde a primeira proposição do conceito de eventos privados, Skinner (1945) 
estende sua análise na direção de examinar os processos verbais 
possivelmente envolvidos quando alguém fala de si mesmo, sob controle de 
estímulos privados. Sua análise em muito se aproxima da abordagem oferecida 
por Wittgenstein (1953/1988) acerca da impossibilidade de uma linguagem 
privada45. O ponto de partida consiste em indagar como é possível que um 
 
44
 Nessa abordagem, estamos sempre considerando o comportamento verbal vocal, por suas 
implicações para a análise do pensar. 
 
45
 Vários trabalhos assinalam as similaridades (e, em alguns casos, também diferenças) entre 
as abordagens de Skinner e de Wittgenstein para a linguagem (e.g., Bloor, 1987; Costall, 1980; 
Day, 1969; Lampreia, 1992; Tourinho, 1994b; Waller, 1977). 
 110 
indivíduo responda verbalmente sob controle de um estímulo ao qual só ele 
próprio tem acesso, quando esse responder depende, para ser adquirido e 
mantido, de contingências dispostas por uma sociedade. 
 A análise funcional desenvolvida por Skinner (1957/1992) para o 
comportamento verbal, já delineada em 1945 (Skinner, 1945), postula que o 
responder verbal é parte de uma relação operante da qual também participam 
conseqüências mediadas socialmente (com um aspecto diferenciador de outros 
comportamentos sociais de humanos e infra-humanos, nos quais também 
podemos encontrar uma mediação social: a reciprocidade de papéis entre 
falantes e ouvintes)46. Assim, um indivíduo aprende a dizer “maçã” diante de 
uma fruta quando uma comunidade verbal reforça diferencialmente essa 
resposta na presença daquele estímulo. Nesse caso, temos um operante 
verbal do tipo tato, no qual “uma resposta de uma dada forma é evocada (ou 
pelo menos fortalecida) por um objeto ou evento particular, ou por uma 
propriedade de um objeto ou evento particular” (Skinner, 1957/1992, pp. 81-
82). Outros operantes verbais descritos por Skinner não serão aqui discutidos 
em razão dos objetivos específicos deste trabalho. Mas é importante ressaltar 
que, diante de conceitos, psicológicos ou de outra ordem, o que a análise 
skinneriana recomenda é que não sejam tratados como rótulos de coisas ou 
essências, mas como de fato se apresentam, isto é, como respostas verbais. 
 
46
 Catania (1998) esclarece a peculiaridade da mediação social no comportamento verbal: as 
contingências sociais tornam-se recíprocas muito cedo: a criança aprende tanto a perguntar 
quanto a responder e a dizer ‘obrigado’ assim como ‘de nada’. Assim, em alguns aspectos, 
todas as culturas verbais são sociedades de reforço mútuo” (p. 262). Adiante, Catania 
acrescenta: “O comportamento verbal envolve tanto o comportamento do ouvinte, que é 
modelado pelos seus efeitos sobre o comportamento do falante, quanto o comportamento do 
falante que é modelado pelos seus efeitos sobre o ouvinte. Tais reciprocidades definem o 
comportamento verbal” (p. 262). 
 
 111 
Enquanto respostas verbais, devem ser analisados identificando-se as 
contingências (sociais) das quais são função. No lugar de especular acerca de 
uma ontologia da vida mental, portanto, a análise de Skinner recomenda 
indagar sobre as contingências das quais nossos conceitos, como respostas 
verbais, são função (cf. Moore, 2001; Leigland, 2003). 
 Uma concepção funcional da linguagem é encontrada também em 
Wittgenstein (1953/1988), para quem a linguagem constitui uma forma de ação 
humana no mundo, baseada em convenções socialmente definidas. Como tal, 
suas relações com a realidade não são de representação; ao contrário, a 
linguagem define a realidade, no sentido de que quando participamos de certos 
“jogos de linguagem”, quando usamos certos conceitos de modos eficientes em 
certos contextos, estamos configurando uma parcela da realidade a um tipo 
particular de experiência com ela, estamos tornando-a diferenciada de modos 
específicos, que não nos aproximam ou distanciam de nenhuma essência, mas 
nos permitem interagir de modos que atendem certas necessidades. Lampreia 
(1992) sintetiza esse ponto de vista assinalando que Wittgenstein 
procurou combater a visão tradicional segundo a qual as palavras 
representam, ou substituem uma referência e as sentenças 
descrevem um estado de coisas. Mas isto não significa que ele 
negue que as palavras possam ser usadas para representar uma 
referência e que as sentenças possam ser usadas para descrever 
um estado de coisas. O que está em questão é o que determina a 
representação e a descrição. Para Wittgenstein, não é a referência, 
mas todos os pressupostos envolvidos na prática de usar palavras e 
 112 
sentenças. A ‘representação’ já se dá em um contexto que é 
lingüístico e que envolve uma ‘mitologia’ e as crenças de 
determinada cultura. E são essa mitologia e essas crenças que, em 
última análise, determinam o significado das representações. Ou 
seja, não é a realidade que se impõe à linguagem, mas, ao contrário, 
é a linguagem que se impõe à realidade e determina a forma como 
ela será representada. Diferentes mitologias e crenças irão levar a 
diferentes representações da realidade, logo irão constituir diferentes 
realidades. (p. 281) 
 Voltando à análise de Skinner, a comunidade verbal é quem dispõe 
contingências que podem promover a instalação de respostas autodescritivas 
de emoções. Segundo Skinner (1945), nesses casos, a comunidade baseia sua 
ação reforçadora em estímulos públicos correlacionados com os estímulos 
privados. Para o indivíduo, porém, a resposta pode vir a ficar sob controle dos 
estímulos privados, ainda que disso resulte uma “imprecisão” das respostas 
autodescritivas. Tanto a suposição skinneriana de que a comunidade verbal 
“infere” o que acontece no mundo privado, quanto sua insistência no caráter 
“impreciso” das respostas autodescritivas de sentimentos e emoções 
constituem aspectos polêmicos da análise skinneriana, discutido em outros 
trabalhos (e.g., Bloor, 1987; Tourinho, 1994a, 1994b). Como o próprio Skinner 
(1945) assinala, as contingências sociais continuam operando na manutenção 
de nosso repertório verbal, isto é, nossas autodescrições permanecem sob 
controle de contingências socialmente dispostas (incluindo o controle de 
estímulos em que o reforçamento diferencial está baseado) mesmo após 
 113 
adquirirmos esse repertório. “O indivíduo adquire a linguagem da sociedade, 
mas a ação reforçadora da comunidade verbal continua a desempenhar um 
papel importante na manutenção das relações específicas entre respostas e 
estímulos, que são essenciais ao funcionamento apropriado do comportamento 
verbal” (Skinner, p. 272). Se aprendemos a atribuir “sono”, “alegria” ou 
“angústia” sob controle de certas respostas abertas, dos outros e de nós 
mesmos, nossas autodescrições desse tipo continuarão sob controle de 
contingências baseadas nesses eventos públicos, caso contrário, deixam de 
ser funcionais nas interações com os outros. 
 Uma apreciação mais recente de como podemos consistentemente 
interpretar os conceitos mentais à luz da teoria skinneriana do comportamento 
verbal e das contribuições da filosofia de Wittgenstein é oferecida por Ribes 
(2004): 
Os conceitos mentais são aprendidos como palavras e expressões 
usadas e aplicadas corretamente em circunstâncias e situações 
específicas. O aprendizado de descrições ou identificação de 
estados mentais e intenções na primeira pessoa acontece do 
mesmo modo que o aprendizado da identificação desses estados 
em segundas e terceiras pessoas: usando e aplicando o conceito 
corretamente. Aprendemos a reconhecer a circunstânciana qual um 
conceito tem significado ajustando-nos aos critérios, 
comportamentais e situacionais, sob os quais o conceito é usado 
apropriadamente. O conceito é aprendido falando e comportando-se 
de uma maneira particular, não por meio de um processo elaborado 
 114 
de discriminação de propriedades físicas ostensivas, internas ou 
externas, de si mesmo ou de outros, e construindo com base nisso a 
identificação, nomeação, ou descrição do estado mental ou intenção 
(ou tateando estímulos privados sob controle da comunidade verbal). 
Os conceitos mentais estão profundamente ligados à linguagem. 
(Ribes, 2004, pp. 65-66) 
 
2.2. Limites da Noção de Eventos Privados. 
 Na presente seção, pretende-se desenvolver a idéia de que a distinção 
público-privado, central para a elaboração skinneriana acerca dos “termos 
psicológicos”, pode funcionar para reproduzir a lógica dualista que está na 
origem da definição do objeto da Psicologia (cf. Ribes, 1982; Tourinho, 1995), 
ou, de modo diverso, pode funcionar para conferir inteligibilidade para aspectos 
importantes da experiência de interioridade e sugerir caminhos para uma 
abordagem científica (não dualista) da experiência subjetiva em geral. Em 
outras palavras, as idéias de contato diferenciado do indivíduo com certos 
estímulos e de restrição na observabilidade de certos estímulos e certas 
respostas podem ser preservadas como recursos importantes para uma 
compreensão científica de sentimentos e pensamentos, sem necessariamente 
conduzir-nos a uma visão dualista dos fenômenos humanos. 
 Já foi assinalado acima que a idéia skinneriana de imprecisão das 
respostas verbais autodescritivas de emoções é problemática porque parte da 
noção de uma (im)possível (ou supostamente desejável) correspondência entre 
linguagem e subjetividade. Apesar disso, é importante salientar que um 
 115 
aspecto distintivo da análise de Skinner consiste de chamar atenção para o fato 
de que nossas respostas verbais47, sob certos arranjos de contingências (por 
exemplo, quando incluem contingências que promovem auto-observação e 
autocontrole), podem ficar parcialmente sob controle de estímulos gerados pelo 
próprio corpo (em particular, estímulos interoceptivos e proprioceptivos)48. Ao 
longo de sua obra, Skinner assinalou que isso acontecia tendo por base uma 
correlação entre estímulos públicos (aos quais a comunidade verbal tem 
acesso) e estímulos privados (aos quais apenas o próprio indivíduo tem acesso 
direto). Mais recentemente, foi demonstrado empiricamente que condições 
anátomo-fisiológicas podem adquirir função de estímulo discriminativo 
(interoceptivo) enquanto membros de classes de estímulos equivalentes das 
quais participam também estímulos públicos (cf. DeGrandpre, Bickel & Higgins, 
1992)49. Do ponto de vista da análise que vimos desenvolvendo, esse aspecto 
do tratamento que Skinner provê para a relação entre privacidade e linguagem 
é bastante relevante quando considerado à parte do discurso da imprecisão. 
Isto é, não se trata de afirmar que a descrição de uma angústia, por exemplo, é 
mais ou menos precisa, correspondendo mais ou menos precisamente a uma 
condição anátomo-fisiológica particular, mas de destacar que a resposta verbal 
 
47 Sobre outras possíveis funções de estímulos privados (eliciadora, reforçadora, ou 
discriminativa para respostas não verbais), ver Tourinho (no prelo). 
 
48
 Para uma apreciação crítica do alcance dessa possibilidade, ver Tourinho (no prelo). 
 
49
 Observe-se que a afirmação da equivalência entre estímulos públicos e privados está aqui 
circunscrita às condições sob as quais a análise do comportamento tem investigado a 
equivalência de estímulos (cf. DeGrandpre, Bickel & Higgins, 1992). Em particular, deve ser 
notado que embora equivalentes, estímulos públicos podem adquirir funções discriminativas 
para respostas verbais à parte de qualquer relação com estímulos privados, ao passo que 
estímulos privados dependem das relações (correlações ou relações de equivalência) para 
adquirir as mesmas funções (cf. Tourinho, no prelo). 
 
 116 
“estou angustiado”, pode ficar sob controle de estímulos privados equivalentes 
ou correlacionados com estímulos públicos (sejam eles quais forem, e sejam 
eles variáveis ou não dentro de um certo arranjo – cf. Tourinho, no prelo). 
Moore (2001) observa como esse componente da explicação skinneriana a 
diferencia de outras perspectivas interpretativas: 
a análise do comportamento concorda com a análise conceitual e 
com Wittgenstein que o comportamento verbal não pode originar-se 
sob controle de estímulos privados. De fato, admitir isso seria uma 
marca do dualismo. No entanto, a análise do comportamento 
argumenta que o comportamento verbal pode originar-se sob 
controle de circunstâncias públicas e o controle pode então 
transferir-se para estímulos privados, de modo que em instâncias 
específicas o comportamento verbal em questão pode vir a ser 
ocasionado por estímulos privados. Mas a distinção entre público e 
privado na análise do comportamento é na realidade não uma 
distinção ontológica entre físico e mental. No lugar disso, é uma 
distinção de acesso. (p. 177, itálico do original) 
 É necessário, porém, ir além da colocação de Moore (2001) salientando 
as implicações das condições sob as quais a “transferência” do controle de 
estímulos (de eventos públicos para eventos privados) acontece. Em segundo 
lugar, é necessário definir o exato lugar da noção de privado, a partir do 
reconhecimento de que respostas verbais podem ficar parcialmente sob 
controle de estímulos privados. 
 117 
 Tendo em vista o funcionamento da linguagem, isto é, a dependência do 
comportamento verbal relativa a contingências sociais, o controle de respostas 
verbais por estímulos privados não se descola das contingências baseadas em 
estímulos públicos (isto é não passa a independer destes) apenas porque 
ocasionalmente a resposta é emitida sob controle de estímulos privados 
relacionados. A transferência de controle de estímulos a que Moore (2001) se 
refere não é absoluta, muito menos definitiva. O controle eventual de respostas 
verbais por estímulos privados só é possível porque o repertório verbal é 
mantido por reforço intermitente, este sempre baseado em estímulos públicos. 
Disso resulta que nossos conceitos de emoções e sentimentos não descrevem 
e não podem descrever ocorrências essencialmente privadas. Olhando de 
outro modo, significa que os conceitos de que dispomos descrevem eventos ou 
fenômenos sempre dotados de dimensões públicas. 
 A análise de Skinner, porém, mostra-nos que também pode ser um 
equívoco tomar os conceitos emocionais como descritivos apenas de conjuntos 
de classes de eventos públicos50. Isto é, quando um indivíduo diz que está 
angustiado, não apenas está descrevendo conjuntos amplos de ação, ou a 
probabilidade de agir publicamente de modos específicos frente a certos 
estímulos. Ele pode estar tateando uma condição corporal associada àquelas 
ocorrências. Em outras palavras, Skinner está atento para aspectos da 
experiência de sentimentos e emoções no mundo moderno que a diferenciam 
de outros contextos sócio-culturais. Se é verdade que em culturas não 
 
50
 A abordagem skinneriana diferencia-se, por exemplo, do behaviorismo molar de Rachlin (cf. 
Baum, 1994) e do behaviorismo lingüístico de Ryle (cf. Ryle, 1949/1984), para os quais os 
conceitos emocionais não descrevem ocorrências discretas, mas constituem rótulos para 
conjuntos de diferentes classes de comportamentos (cf. Holth, 2001). 
 
 118 
individualistas os conceitos emocionais são “empregados” sempre sobcontrole 
de conjuntos de eventos todos públicos, também é verdade que em uma 
cultura que promove permanentemente a auto-observação e o autocontrole 
esses conceitos existem sob a forma de respostas verbais parcialmente sob 
controle de estímulos gerados pelo próprio corpo (e que, quando afetam os 
outros, a estimulação é de outro tipo). 
 Passando para as respostas encobertas, sendo originalmente função de 
contingências baseadas na forma aberta, deve-se notar que são sempre 
instâncias de respostas adquiridas e mantidas sob controle de contingências 
públicas. Isto é, quando um indivíduo pensa51 (ou emite encobertamente a 
resposta verbal) “o dia hoje está chuvoso”, esse pensar constitui uma instância 
de uma resposta verbal adquirida e mantida sob controle de um reforçamento 
diferencial provido pela comunidade verbal quando a resposta é emitida na 
forma aberta. Assim, uma resposta encoberta tem sempre e necessariamente 
dimensões públicas, independentemente do quanto varie em termos daquelas 
propriedades (formais e relacionais) discutidas na seção anterior, que a tornam 
mais ou menos facilmente identificável por terceiros. 
 Com as observações anteriores, pode-se argumentar que a noção de 
privado é relevante para salientar certas propriedades do controle de estímulos 
em respostas verbais descritivas de emoções e sentimentos e certas 
propriedades de algumas respostas (em geral, aquelas que qualificamos como 
 
51
 Os conceitos de “pensar” e de “pensamento” constituem respostas verbais sob controle de 
eventos ou fenômenos muito diversos (e.g., como em “Eles pensam que nos enganam”, “José 
está pensando em escrever um livro”, “Pensando bem, é melhor aguardar a chuva passar”, 
“Pense bem antes de tomar uma decisão” etc.). Todavia, a discussão que vem sendo 
apresentada focaliza apenas o pensar enquanto resposta verbal encoberta (como em L. J. 
Hayes, 1994), em razão do interesse particular desse fenômeno para a discussão da 
subjetividade/privacidade. 
 
 119 
“cognitivas” ou “mentais”52) em uma sociedade individualista. Por outro lado, 
isso é diferente de postular que faz sentido categorizar os eventos que são 
relevantes para uma análise psicológica, ou comportamental, como públicos ou 
privados. Quando fazemos isso, podemos dizer que introduzimos uma 
dicotomia que, embora não expresse um dualismo metafísico (cf. Skinner, 
1945), reproduz a lógica dualista sobre a qual a Psicologia foi fundada. 
Conforme assinalado no Capítulo 1, a distinção público-privado, pensada no 
plano das relações dos homens e mulheres uns com os outros, dos modos 
como passam a ser organizar politicamente (o conflito indivíduo/Estado) e a se 
relacionar socialmente (a distinção sociabilidade anônima/sociabilidade 
restrita), significa não uma problematização (ou cisão) do indivíduo/sujeito, mas 
um modo de enfocar dimensões das relações interpessoais. Ao transportá-la 
para o domínio psicológico de análise, tendemos a tomá-las como igualmente 
apropriadas enquanto expressão de dimensões dos termos que constituem as 
unidades de análise de nosso objeto de estudos (no caso, dimensões dos 
estímulos e das respostas)53 e com isso passamos a operar com a mesma 
lógica dualista subjacente ao cartesianismo (cf. Ribes, 1982). 
 Uma primeira razão para rejeitar a dicotomia público-privado consiste do 
fato de que comportamentos (enquanto relações) não são fenômenos públicos 
ou privados, mas fenômenos de maior complexidade dos quais podem 
participar estímulos públicos e respostas encobertas. Para além disso, 
 
52
 Como apontado antes, exatamente por força de contingências que estão na origem desses 
conceitos, tendemos a chamar de internos os sentimentos e emoções e de mentais as 
atividades intelectuais. Menos freqüentemente chamamos de internas as atividades cognitivas, 
e menos ainda tendemos a chamar de mentais os sentimentos e emoções. 
 
53
 Ou seja, há uma diferença substancial entre o que significam os conceitos de público e de 
privado na Sociologia e na Psicologia, um tema ainda por ser analisado de modo aprofundado. 
 
 120 
estímulos e respostas não são eventos que podem ser categorizados como 
públicos ou privados. São eventos que variam ao longo de um continuum de 
observabilidade, e por força não apenas de suas propriedades formais, mas 
também do contexto interpessoal em que acontecem. Ou seja, observabilidade 
ou inobservabilidade não constituem propriedades absolutas de estímulos e 
respostas; são pólos de um continuum ao longo do qual variam certos eventos 
em contextos de relações. 
Na seção anterior discutiu-se mais claramente a noção de um continuum 
de observabilidade de respostas, mas não se especificou em que medida o 
mesmo raciocínio poderia ser empregado na discussão de estímulos. A lógica, 
no entanto, é a mesma. Estímulos não são simplesmente eventos, mas 
eventos com certas funções no contexto de relações comportamentais. No 
caso específico dos conceitos psicológicos54, argumentou-se anteriormente que 
nossas respostas verbais autodescritivas de emoções são emitidas sob 
controle de eventos públicos apenas, ou sob controle de eventos públicos e 
privados. Assim, também no caso dessas relações comportamentais verbais, 
não há simplesmente um evento controlando a resposta, mas arranjos de 
eventos. Esses arranjos podem variar quanto à observabilidade, dependendo 
do grau de participação de eventos públicos e eventos privados. Isso permitiria 
falar também em um continuum de observabilidade dos arranjos de estímulos 
que controlam respostas autodescritivas de emoções e sentimentos. É claro 
 
54
 A presente análise de estímulos privados tem enfocado apenas as circunstâncias nas quais 
condições do próprio indivíduo adquirem funções discriminativas para respostas verbais em 
razão de que são essas as circunstâncias que importam para uma análise dos conceitos 
psicológicos. Como afirma Skinner (1945), “o único problema que uma ciência do 
comportamento pode resolver em conexão com o subjetivismo é no campo verbal. Como 
podemos explicar o comportamento de falar sobre eventos mentais?” (p. 294). 
 
 121 
que esse raciocínio pode ser questionado, salientando-se que há estímulos 
privados específicos, mas nesse caso não se trata do arranjo de eventos que 
controla qualquer resposta autodescritiva de emoções e sentimentos, isto é, 
estaremos referindo um evento qualquer à parte das relações que constituem 
nosso objeto de análise. 
Em suma, se a noção de privado ou (in)observabilidade é relevante para 
uma compreensão ampla da problemática de sentimentos e emoções no 
mundo moderno, a categorização de estímulos e respostas como 
simplesmente públicos ou privados é desnecessária e introduz uma lógica que 
pode comprometer a compreensão desses fenômenos. O pensar (como o 
imaginar, o sonhar etc.) é uma relação do homem com o mundo, que não cabe 
no rótulo de público ou privado. Mesmo o pensar enquanto resposta (termo 
daquela relação) não pode ser estritamente privado (sempre terá dimensões 
públicas). Alegrar-se, entristecer-se, angustiar-se etc. também não são eventos 
discretos que possam ser definidos como públicos ou privados, mas relações 
comportamentais. 
A favor de Skinner, nesse debate, deve contar o fato de que sua 
abordagem inicial para a questão da privacidade representou um passo adiante 
na construção de uma referência comportamental para o tratamento do 
assunto, afastando o dualismo metafísico da Psicologia mentalista e o 
fisicalismo dos behavioristas metodológicos (cf. Skinner, 1945; Tourinho, 1995). 
Os termos iniciais de sua elaboração sobre eventos privados, porém, nãosofreram grandes alterações em trabalhos posteriores. Além disso, sua rejeição 
da categoria de mental serve apenas para afastar o dualismo metafísico, mas 
 122 
não funciona para instituir uma perspectiva totalmente consistente de análise. 
Sua afirmação de que “a minha dor de dentes é tão física quanto a minha 
máquina de escrever, embora não seja pública” (Skinner, 1945, p. 294) pode 
funcionar como uma armadilha se for interpretada em sentido estrito. Dor de 
dentes não é o tipo de fenômeno que se defina por propriedades físicas, 
portanto assinalar que há propriedades físicas aí envolvidas serve apenas para 
que não seja tratado como fenômeno imaterial, mas não para indicar como 
pode ser consistentemente tratado. 
 Uma segunda razão para afirmar que a dicotomia público-privado traz 
problemas para uma análise comportamental de sentimentos e emoções 
consiste do fato de que o conceito de privado formulado genericamente como a 
propriedade distintiva de certas instâncias de sentimentos e pensamentos leva 
a uma diversidade de definições não coincidentes. Essa variedade de 
definições para eventos privados é notória e pode ser aqui ilustrada. Baum 
(1994) sustenta que “eventos privados são eventos que nunca podem ser 
relatados por mais de uma pessoa, não importando quantas outras pessoas 
estejam presentes” (p. 30). De acordo com essa definição, eventos privados 
são eventos que não podem ser tateados por outros, no que o aspecto verbal 
torna-se central para a definição. Anderson e cols. (1997) afirmam que eventos 
privados são “respostas privadas e os efeitos de estímulo dessas respostas na 
pessoa que está respondendo” (p. 158). De acordo com esse ponto de vista, o 
responder encoberto é que é central para a definição de eventos privados. 
Anderson e cols. acrescentam haver “quatro classes” (p. 161)55 de eventos 
 
55
 O título da seção do artigo em que essa expressão aparece é “Tipos de Eventos Privados” 
(cf.Anderson & cols., 1997, p. 161). 
 123 
privados: “emoções (afeto, sentimentos), pensamentos, percepções (visuais ou 
outras imagens) e estimulação interoceptiva e proprioceptiva” (p. 161). As 
emoções, admitidas como uma classe de eventos privados, são adiante 
definidas como “uma resposta ou um conjunto de respostas ... Essas respostas 
podem incluir comportamentos respondentes ... e podem incluir 
comportamentos operantes” (p. 161). Moore (2000) oferece uma outra 
definição: alguns fenômenos privados são condições sentidas do corpo (e.g., 
por exemplo, dores, sentimentos e emoções), enquanto outros são formas 
encobertas de comportamento (o pensar, resolver problema, lembrar e 
imaginar)” (p. 48). Na elaboração de Moore, os eventos privados são condições 
corporais que adquiriram funções de estímulo e respostas encobertas. Todas 
essas definições são de algum modo consistentes com as proposições de 
Skinner, mas isso também significa que “eventos privados” é uma resposta 
verbal emitida por analistas do comportamento sob o controle de conjuntos 
variados de eventos. Trata-se, portanto, ela mesma, de uma resposta verbal, 
para usar o termo de Skinner, “imprecisa”. 
 A seção seguinte discute essa noção de “evento privado” como resposta 
verbal, buscando delinear uma abordagem de caráter analítico-comportamental 
para os problemas da subjetividade. A partir desse ponto, deve ser notado que 
o conceito de privacidade será empregado na referência a fenômenos com 
diferentes graus de complexidade, dos quais participam eventos com diferentes 
graus de observabilidade, não eventos estritamente privados. 
 
2.3. “Eventos Privados” como Resposta Verbal. 
 124 
 Esta seção está parcialmente baseada em uma análise desenvolvida em 
Tourinho (no prelo), a ela acrescentando alguns desdobramentos e 
refinamentos, na direção de enfatizar o enfoque relacional da análise do 
comportamento e suas conexões com o campo da privacidade. A proposição 
central daquele trabalho é a de que quando analistas do comportamento falam 
de eventos privados (como nas definições apresentadas na seção anterior) 
estão se voltando para (ou estão sob controle de) conjuntos diferentes de 
problemas, ou aspectos não necessariamente coincidentes de um mesmo 
conjunto de problemas. A análise foi bastante motivada por uma proposição de 
Friman e cols. (1998), de acordo com a qual há circunstâncias em que as 
respostas verbais autodescritivas de emoções funcionam não apenas como 
tatos, mas também adquirem funções de determinantes do comportamento 
público, o que contrariaria uma alegação skinneriana de que esses fenômenos 
não estão dotados de funções causais. 
 Uma das dificuldades encontradas nesse debate sobre o possível status 
causal de sentimentos e emoções, que conflita à primeira vista com um 
enfoque que toma o comportamento como relação do organismo como um todo 
com eventos externos a ele, reside no fato de que sentimentos e emoções são 
eles mesmos respostas verbais emitidas sob controle de fenômenos diversos. 
Em geral, quando Skinner (e.g., 1963/1969, 1989, 1974/1993) alega que 
sentimentos não causam respostas públicas sua referência é ao que “é 
sentido” ou “introspectivamente observado”, isto é, as condições anátomo-
fisiológicas que em um dado momento são o resultado da história genética e 
ambiental do indivíduo. Essas condições de fato não causam o responder 
 125 
público (embora possam controlar discriminativamente – nos limites discutidos 
acima – respostas autodescritivas e, em algumas circunstâncias, possam 
funcionar como operações estabelecedoras, isto é, condições que alteram 
momentaneamente a sensibilidade do organismo a certas contingências de 
reforçamento). Todavia, quando Friman e cols. (1998) argumentam que é 
necessário analisar de modo diferente as emoções, estão partindo da noção de 
que as autodescrições são elas mesmas parte do fenômeno discutido como 
emocional e assinalando que uma vez que essas autodescrições participam de 
outras relações e entram no controle de comportamentos futuros dos 
indivíduos, não é possível simplesmente dizer que não possuem um status 
causal. Um trecho de Friman e cols. ilustra o ponto de afastamento em relação 
à análise de Skinner. 
Uma pessoa com transtorno de pânico não evita simplesmente 
locais públicos; ele ou ela evita todo um conjunto de 
comportamentos privados associados com aqueles lugares. A 
alegação de Skinner de que a emoção e o comportamento aberto 
são controlados pelos mesmos eventos está, portanto, incorreta, ou 
pelo menos incompleta. Um entendimento mais completo requer 
uma análise das complexas contingências verbais que estão 
envolvidas na disposição humana para categorizar eventos 
arbitrários (e.g., um coração agitado) como emoções negativas e 
responder de modo correspondente (“Estou em pânico, tenho que 
sair”). Uma análise das contingências diretas poderia revelar a base 
para a esquiva de uma pessoa de lugares públicos, mas não explica 
 126 
prontamente a esquiva de seus pensamentos e sentimentos sobre 
esses lugares. (p. 149) 
 O modelo proposto por Tourinho (no prelo) para a análise de problemas 
desse tipo, e correlatos, parte do suposto de que enquanto fenômenos 
psicológicos ou comportamentais, sentimentos e emoções podem ser 
abordados apenas como relações. Condições anátomo-fisiológicas, ainda que 
participem de fenômenos comportamentais (afinal, trata-se de comportamento 
de organismos) não definem esses fenômenos (cf. Tourinho & cols., 2000) e 
em certas circunstâncias analíticas podem inclusive ser ignoradas (cf. Reese, 
1996a, 1996b). Portanto, ao indagar se o responder (público ou privado) pode 
ou não ser determinado por emoções e sentimentos, o que podemos estar 
examinandoé (a) que relações definem uma emoção ou sentimento específico 
e (b) como essas relações variam com respeito ao grau de complexidade e se 
entrelaçam com outras relações comportamentais. 
 Um sentimento específico, por exemplo, a inveja, enquanto relação 
comportamental pode envolver um responder com os seguintes componentes: 
a) controle discriminativo pela presença de outro indivíduo (o “invejado”), 
notícias sobre o invejado, objetos do invejado etc.; b) classes de respostas 
verbais (por exemplo, descrever negativamente o invejado, ou criticar suas 
qualidades, fazer intrigas envolvendo o nome do invejado etc.) e não verbais 
(por exemplo, tentativas de imitar o invejado, de eliminar atributos ou 
propriedades do invejado); c) sensibilidade a aspectos do ambiente físico e 
social do invejado e, ao mesmo tempo, a descrições negativas do invejado por 
outros, enquanto estímulos reforçadores. Outras relações com o mesmo ou 
 127 
diferentes graus de complexidade podem constituir a inveja para um segundo 
indivíduo. Por exemplo, pode incluir uma autodescrição do tipo “Eu sou melhor 
do que fulano”, sob controle daquela relação56. Pode também incluir a mesma 
autodescrição parcialmente sob controle de uma condição corporal associada. 
A presença do invejado pode adquirir funções eliciadores em relações 
respondentes57 etc.. 
 O grau variável de complexidade dos fenômenos comportamentais, 
especialmente humanos, pode ser examinado tendo-se como referência as 
relações que os definem e os entrelaçamentos dessas relações. Em Tourinho 
(no prelo) propõe-se que o modo causal de seleção por conseqüências, 
formulado por Skinner (e.g., 1981, 1990) provê uma referência produtiva para a 
análise do problema. De acordo com Skinner, o comportamento humano é o 
produto conjunto de contingências filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Um 
fenômeno comportamental humano, na análise desenvolvida em Tourinho (no 
prelo) pode incluir relações produzidas em um ou mais desses níveis e isso 
poderia ser tomado como uma referência da complexidade do fenômeno. Para 
explicitar esse ponto de vista, Tourinho recupera a abordagem de Donahoe e 
Palmer (1994), segundo a qual “a complexidade é o resultado cumulativo de 
 
56
 Paradoxalmente, um indivíduo que exiba o padrão descrito será considerado invejoso pelos 
outros, mas sua inveja dificilmente incluirá a autodescrição “Eu invejo fulano”. Em 
contrapartida, quando um indivíduo afirma “Eu invejo fulano”, essa resposta “funciona” nas 
relações interpessoais como sinal de respeito ou admiração pelo outro, não como evidência de 
inveja enquanto o fenômeno descrito acima. Isso acontece, para usar uma expressão de 
Wittgenstein (1953/1988), como resultado da gramática da palavra “inveja”, que serve a 
diferentes usos. No exemplo citado, estamos focalizando apenas um uso particular do conceito. 
Em temos comportamentais, isso significa que “invejar” (como o “pensar”, ilustrado 
anteriormente) constitui uma topografia de resposta verbal que pode participar de relações 
comportamentais diversas. 
 
57
 Em Darwich e Tourinho (2005), explica-se como relações respondentes e operantes podem 
entrelaçar-se em fenômenos emocionais. 
 
 128 
processos seletivos repetidos” (p. 22). 
As ciências históricas explicam a complexidade como resultado do 
processo em três etapas, de variação, seleção e retenção ... Ciclos 
repetidos desse processo em três etapas são suficientes para 
produzir a complexidade organizada no mundo biológico e – 
sustentamos – também no mundo comportamental. (Donahoe & 
Palmer, 1994, p. 18) 
 Na noção de complexidade sugerida por Tourinho (no prelo), tanto a 
repetição dos processos seletivos, como o nível em que se dão (filogênese, 
ontogênese e cultura) constituem referências importantes. Tourinho sugere um 
continuum de complexidade dos fenômenos comportamentais humanos 
baseado nesse modelo. De acordo com essa proposta um fenômeno será tão 
ou mais complexo do que outro dependendo de incluir relações resultantes de 
um ou mais níveis de determinação. A noção de complexidade está aqui 
associada a uma idéia de inclusividade. Fenômenos mais complexos são 
aqueles que incluem relações produzidas por um nível adicional de 
determinação. Uma representação gráfica possível dessa idéia é apresentada 
na Figura 1, a seguir. Observe-se que (a) fenômenos em um nível superior de 
complexidade incluem relações dos níveis anteriores e (b) o continuum não tem 
apenas três segmentos, correspondentes aos três níveis de variação e seleção, 
mas sugere que mesmo nos limites de um mesmo nível os fenômenos podem 
variar em complexidade (dependendo das relações envolvidas e do 
entrelaçamento dessas relações). 
 
 129 
 
 
 
 
 
Figura 1: Complexidade de fenômenos comportamentais à luz do modo causal de seleção por 
conseqüências. 
 
 Um continuum assim definido poderia ser útil na análise da privacidade 
e teria as seguintes feições: 
Proponho que a complexidade dos fenômenos comportamentais 
humanos relacionados à privacidade pode ser tratada como função 
de processos seletivos repetidos, envolvendo a participação de 
variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Proponho que um 
continuum de complexidade pode ser derivado dessa perspectiva. 
Em uma extremidade desse continuum, os fenômenos 
comportamentais estariam limitados a relações filogenéticas, o que 
inclui respostas sob o controle de eventos que adquiriram função de 
estímulo na história filogenética do homem. É claro que esse é um 
zero ideal do continuum, uma vez que nenhuma relação real pode 
ser interpretada como resultante apenas da filogênese. Mas algumas 
respostas humanas, como o sugar o seio, ou o mover-se em direção 
à voz da mãe, pelo bebê, estão claramente mais próximas dessa 
extremidade do continuum. 
−−−− ←←←← Complexidade de Fenômenos Comportamentais →→→→ ++++ 
Filogênese 
Cultura 
Ontogênese 
 130 
Na outra extremidade do continuum, temos fenômenos 
comportamentais constituídos por relações (entrelaçadas), 
resultantes de variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais. A 
maior complexidade resulta aqui não apenas de processos seletivos 
repetidos, mas também dos tipos de variáveis envolvidas no 
controle, especialmente a participação de contingências verbais que 
tornam possíveis novas relações (entrelaçadas). Esse é o caso, por 
exemplo, quando a raiva de alguém se define não apenas por 
respostas reflexas de glândulas e músculos lisos, mas também por 
um conjunto de relações que incluem uma alta taxa de respostas 
agressivas em direção a um agente controlador (cf. Skinner, 
1953/1965, p. 362), respostas de auto-observação, respostas 
autodescritivas e outras respostas controladas por autodescrições, 
todas presumivelmente estabelecidas por contingências operantes 
anteriores. Nesse caso, um termo de uma relação (um estímulo ou 
uma resposta) pode adquirir uma função de estímulo para outras 
respostas. A resposta de agressividade de uma pessoa pode ser um 
estímulo discriminativo para respostas autodescritivas, que por seu 
turno podem controlar discriminativamente outras respostas em 
direção ao agente controlador ou a estímulos relacionados. 
(Tourinho, no prelo, pp. 22-23) 
 Embora possamos dizer que emoções e sentimentos têm uma base 
filogenética, a história ambiental de um indivíduo produzirá um conjunto de 
relações entrelaçadas que vão muito além daquela determinação. Quando 
 131 
essa história inclui contingências culturais, um grau muito maior de 
complexidade é introduzido em razão do fato de que a linguagem dá origem a 
funções de estímulo derivadas (S. C. Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001), 
istoé, com a linguagem introduzimos muitas novas relações como constitutivas 
de um fenômeno. Um indivíduo que se comporta de determinados modos em 
certos contextos e sensível (ou não) a certas conseqüências pode ser 
considerado por outros “depressivo” ou não, independentemente de se 
autodescrever desse modo. Todavia, quando aprende a dizer-se um indivíduo 
depressivo, dependendo das contingências culturais a que tiver sido exposto, 
pode estar aprendendo mais do que isso. Pode aprender, também, que sujeitos 
deprimidos são um fracasso social, têm dificuldades para cumprir funções 
profissionais, não são bem sucedidos afetivamente etc.. Essas descrições 
entram no controle de uma ampla gama de outros comportamentos e muito 
mais relações (e muito mais complexas) passam a ser constitutivas de sua 
depressão. 
 Um raciocínio semelhante pode ser desenvolvido para qualquer emoção 
ou sentimento, incluindo aqueles para os quais identificamos mais claramente 
um componente filogenético. O que chamamos de medo, por exemplo, inclui 
conjuntos muito variados (em extensão e complexidade) de relações 
comportamentais. (Em outras palavras o “medo”, como “eventos privados” e 
como todos os conceitos emocionais, pode ser entendido como uma resposta 
verbal emitida em uma dada cultura sob controle de conjuntos variados de 
fenômenos, por isso afirmações genéricas sobre o medo podem sempre ser 
questionadas a luz de instâncias às quais não se aplicam). Dizemos que 
 132 
crianças têm medo de ficar sozinhas, que Cebolinha tem medo de Mônica e 
que jornalistas têm medo de políticos (ou que políticos têm medo de jornalistas, 
dependendo do caso). Em cada situação, estamos diante de um fenômeno 
com determinado grau de complexidade. A noção de inclusividade é importante 
para assinalar que fenômenos mais complexos diferem tanto quanto incluem 
relações adicionais. O medo mais complexo, no qual se identificam relações 
produzidas por um nível cultural de determinação, não se limita a isso; inclui 
relações produzidas nos níveis filogenético e ontogenético de determinação (o 
que tem implicações importantes para a identificação do alcance da 
intervenção verbal ou não verbal em Psicologia). Questões dessa ordem estão 
mais extensamente discutidas em Tourinho (no prelo). Nos parágrafos 
seguintes, são sugeridos alguns desdobramentos dessa abordagem, não 
contemplados naquele trabalho. 
 
As relações entre linguagem e sentimentos. 
 Em uma discussão do tema da subjetividade à luz do modo causal de 
seleção por conseqüências, Andery (1997) assinala que “sem o terceiro nível 
de seleção por conseqüências é impossível, por assim dizer, discutir-se a 
construção da subjetividade” (p. 206). Essa afirmação deriva do que foi 
discutido acima acerca da necessidade de exposição do indivíduo às práticas 
de uma comunidade verbal para que seu mundo “interno” seja construído (na 
verdade, para que seu próprio corpo adquira certas funções para suas 
respostas verbais). Assim, os conceitos emocionais não descrevem algo que 
existe antes e independentemente do comportamento verbal; ao contrário, com 
 133 
a aquisição do comportamento verbal é que as emoções, enquanto fenômenos 
experimentados pelo indivíduo na relação consigo mesmo, isto é, as emoções 
enquanto fenômenos que incluem o responder verbal sob controle do próprio 
corpo, passam a existir. Essa é a subjetividade de que falamos quando nos 
referimos aos conceitos psicológicos. 
 Uma objeção pode ser levantada à proposição da dependência da 
subjetividade em relação à linguagem, assinalando-se que nossos conceitos 
emocionais, como apontado antes, são usados mesmo em circunstâncias em 
que o fenômeno emocional apresenta um grau inferior de complexidade, em 
particular, em circunstâncias nas quais não há um componente verbal. Que 
isso acontece pode ser verificado quando atribuímos sentimentos e emoções a 
crianças pré-verbais. Por exemplo, vemos uma criança ser afastada dos pais e 
chorar e atribuímos tristeza a ela. Esse fato pode servir ao argumento de que o 
sentimento existe independentemente da linguagem. Mesmo de animais infra-
humanos poderia ser dito que ficam alegres, tristes, aborrecidos, saudosos 
etc.. 
 Todavia, somos nós, seres verbais, que atribuímos tristeza à criança 
pré-verbal ou a animais infra-humanos. Para a própria criança, o “estar triste” 
enquanto resposta verbal não existe como parte de sua tristeza. Assim, diante 
da indagação acerca da possibilidade de humanos pré-verbais (ou infra-
humanos) “possuírem” uma subjetividade, não é possível responder apenas 
afirmativamente ou negativamente. Depende do que estiver sendo indagado. 
Se a questão é saber se podemos encontrar em pré-verbais aquelas relações 
mais simples, produtos da filogênese e da ontogênese, constitutivas de 
 134 
emoções e sentimentos, a resposta é afirmativa58. Se a questão for saber se há 
identidade entre essas relações e as relações que definem sentimentos e 
pensamentos para indivíduos verbais de sociedades que promovem auto-
observação e autocontrole, a resposta obviamente é negativa. Quanto às 
conseqüências de se comparar os dois graus de complexidade desses 
fenômenos, dependerá dos objetivos analíticos do pesquisador. 
 Em suma, o componente verbal, quando existe, não simplesmente 
descreve a emoção, ele é parte da emoção. Essa emoção que inclui relações 
verbais produzidas pelo terceiro nível de determinação do comportamento só 
existe para humanos verbais e, mais do que isso, para humanos verbais 
expostos a determinadas contingências culturais. A cultura que produziu a 
noção de subjetividade é a mesma que promove essas autodescrições e, por 
isso também, justifica-se a compreensão de que o conceito de subjetividade 
está ligado a esse grau mais avançado de complexidade de emoções e 
sentimentos. 
 
A variabilidade de emoções e sentimentos entre culturas. 
 Pesquisas transculturais têm demonstrado que certos sentimentos 
variam como função de contextos culturais. Em uma outra direção, há trabalhos 
postulando que certas emoções são universais, produtos da seleção 
filogenética. Ambas as posições serão ilustradas a seguir, sem a menção às 
 
58
 Como assinalado antes, a noção de um continuum baseado no modo causal de seleção por 
conseqüências não significa que se trata de um continuum com apenas três segmentos. Por 
exemplo, mesmo um sentimento limitado por relações ontogenéticas e filogenéticas pode ter 
diferentes graus de complexidade, no sentido de que pode envolver mais ou menos relações, 
entrelaçadas ou não. 
 
 135 
diversas e sofisticadas teorias encontradas em uma literatura de Psicologia das 
emoções (em razão dos objetivos específicos deste trabalho), mas sugerindo-
se que podem ser compreendidas à luz do continuum de complexidade 
apresentado anteriormente. 
 Segundo Mesquita e Walker (2003), a idéia de determinação filogenética 
dos sentimentos e emoções tem prevalecido, inclusive em grande parte dos 
estudos transculturais, enquanto “os aspectos socioculturais das emoções têm 
sido amplamente ignorados, pelo menos na psicologia” (p. 778). Quando os 
aspectos socioculturais são levados em conta, pode-se tanto enfocar os modos 
específicos como sentimentos universais são experimentados em uma dada 
cultura, quanto buscar identificar sentimentos que são próprios de um universo 
cultural. Exemplo do primeiro tipo de estudo é encontrado na seguinte 
descrição de Mesquita e Walker: 
modelos culturais da Ásia oriental ... enfatizam a harmonia relacional 
e favorecem que os indivíduos ocupem seu lugar apropriado. Esses 
modelos culturais desencorajam os indivíduos quanto a ocuparem 
muito espaço na relação, tantofigurativamente quanto literalmente. 
Assim, o comportamento expansivo, tal como a atividade somática 
geral, é um sinal de que o indivíduo está tomando mais do que o seu 
espaço apropriado ... 
há indicação de que a expressão de felicidade, um outro 
comportamento expansivo, também é raro em culturas que atribuem 
uma ênfase à harmonia nas relações. As expressões de felicidade 
são vistas como potencialmente disruptivas porque podem 
 136 
contrastar dolorosamente com o estado emocional dos outros ..., ou 
porque podem ser vistas como indicando a plausibilidade de um 
indivíduo estar desafiando as obrigações sociais e fugindo de 
responsabilidades. (p. 786)59 
 Russell (1991) aborda alguns achados de estudos do segundo tipo, que 
focalizam emoções que são específicas de certos contextos culturais. Russell 
considera que as evidências colecionadas a esse respeito demandam uma 
análise mais cuidadosa e especula que as diferentes emoções podem ser 
apenas a “ponta do iceberg” de processos mais amplos, envolvendo a 
diversidade de sistemas de crenças sobre “a mente, o self, a sociedade, a 
natureza e assim por diante” (p. 445). Em seu trabalho, oferece alguns 
exemplos de conceitos emocionais próprios de certas culturas. 
Um exemplo da Alemanha é a palavra Schadenfreude, que significa 
o prazer derivado do desprazer de outro. Uma outra palavra é Angst: 
Waiter Lowrie (1944) traduziu o livro de Kierkegaard Der 
BegriffAngst sob o título de O Conceito de Pavor, mas afirmou que 
“o próprio título desse livro revela um lacuna séria em nossa língua: 
não temos uma palavra que traduza adequadamente Angst” (p. ix). 
Um exemplo da língua japonêsa é itoshii, que se refere a ansiar pela 
 
59
 Observe-se que aqui temos um exemplo de como, em um contexto cultural diferente daquele 
encontrado na sociedade ocidental moderna, um tipo de auto-observação e autocontrole 
emergem com funções distintas (nesse caso, preservar a harmonia no interior dos grupos 
sociais, o que possivelmente se relaciona com a questão de respeito à hierarquia mencionada 
no Capítulo 1 – funções que são relevantes nesse contexto, independentemente da extensão 
do universo social e do grau de complexidade das relações de interdependência dos membros 
do grupo). Em contraste, no mundo ocidental moderno, a auto-observação e o autocontrole 
emergem com a valorização do indivíduo (não do grupo) e com a complexificação das relações 
de interdependência, cumprindo funções ligadas à necessária previsibilidade do 
comportamento de cada um e à harmonização de indivíduos ocupados com uma variedade 
cada vez maior de funções sociais. 
 
 137 
pessoa amada ausente60. Uma outra palavra é ijirashii, que se refere 
a um sentimento associado com a visão de alguém louvável 
superando um obstáculo. ... Eu ouvi de uma mulher árabe sobre seu 
deleite ao aprender a palavra em inglês frustration [frustração], pois 
sua língua nativa não tinha nenhuma palavra para aquele 
sentimento. (Russell, 1991, p. 426, itálico do original) 
A pesquisa que focaliza uma possível base filogenética das emoções tem 
resultado na apresentação de listas variadas (em número e em itens) de 
“emoções básicas”. Em uma de apresentação abrangente de sua história de 
pesquisas nessa área, Ekman (1993) assinala que “expressões [faciais] 
universais distintivas têm sido identificadas para raiva, medo, repulsa, tristeza e 
alegria61. Sobre a determinação filogenética dessas emoções, Ekman afirma 
que 
o que distingue as emoções de outros fenômenos psicológicos é que 
nossa avaliação de um evento atual é influenciada por um passado 
ancestral. Não é simplesmente a nossa história ontogenética, mas a 
nossa história filogenética que faz com que uma emoção seja mais 
prontamente suscitada em uma circunstância do que em outra, e 
 
60
 Provavelmente um conceito similar a “saudade”. 
 
61
 Grande parte da investigação de Ekman baseia-se no estudo de expressões faciais. Todavia, 
Ekman (1993) assinala que é possível haver emoção sem a contrapartida da expressão facial, 
o que é importante para a idéia aqui discutida de que sob práticas sociais que promovem o 
autocontrole as respostas emocionais podem ter outra topografia. Diz Ekman: “Há evidência de 
que as pessoas podem não demonstrar mudança na atividade facial visível, embora relatem 
sentir emoções e manifestem mudanças na atividade do sistema nervoso autonômico ... A 
existência dessas pessoas contradiz a proposta de Tomkins (1963) de que a atividade facial 
sempre é parte de uma emoção, mesmo quando seu aparecimento é inibido” (p. 388). 
 
 138 
ainda assim a ontogenia tem um efeito enorme. (p. 389)62 
Na literatura da análise do comportamento são também encontradas 
referências a emoções “primárias” (cf. Banaco, 1999; Millenson, 1967/1975), 
definidas em termos de relações comportamentais. Millenson menciona três 
emoções primárias, ansiedade, elação e raiva, como resultantes de 
emparelhamentos pavlovianos, com efeitos sobre o comportamento operante. 
Em uma abordagem semelhante, Banaco propõe um sistema de coordenadas 
baseado na apresentação ou remoção de reforçadores positivos ou negativos. 
As emoções resultantes poderiam ser então interpretadas como mais ou 
menos diferenciadas de acordo com a ação de contingências ontogenéticas. 
 Mesmo quando as emoções são abordadas como produtos 
filogenéticos, encontra-se um reconhecimento da determinação cultural de 
certos aspectos que definem como são “experienciadas”. Por exemplo, Ekman 
(1999/2004) sugere que existem emoções básicas, distintas umas das outras e 
resultantes de processos evolutivos, portanto compartilhadas por indivíduos de 
diferentes culturas. Mas também reconhece que “a capacidade de representar 
a experiência emocional em palavras muda em muitos aspectos a experiência 
emocional” (Ekman, 1999/2004, p. 8). Com uma posição semelhante, Solomom 
(2002) assinala que “a questão das emoções básicas deveria ser entendida e 
abordada de maneira a capturar a riqueza e variedade da existência humana” 
(p. 143). 
 
62
 A idéia de que há emoções básicas, que fazem parte do equipamento genético dos homens, 
parece ser pelo menos tão antiga quanto o século I a.C.. Russell (1991) revela que em uma 
enciclopédia chinesa desse tempo (que compilava documentos de períodos anteriores) 
encontra-se: “O que são os sentimentos dos homens? Eles são alegria, raiva, tristeza, medo, 
amor, repulsa e afeição. Esses sete sentimentos pertencem aos homens sem que os 
aprendam” (Chai & Chai, 1885, em Russell, p. 426). 
 
 139 
 Usando novamente o modo causal de seleção por conseqüências como 
recurso conceitual para conferir inteligibilidade ao conjunto variado de 
evidências sobre emoções e sentimentos, podemos sugerir que há emoções 
(relações) selecionadas filogeneticamente (as básicas ou primárias, 
independentemente de quantas e quais forem) e que estas constituem a base a 
partir da qual diferentes culturas constroem diferentes universos de 
sentimentos e emoções (novas relações). Cada novo sentimento significa um 
tipo de diferenciação adicional introduzido por uma cultura, com base em 
variações ou dimensões específicas (e.g., o controle de estímulos específico, a 
freqüência, magnitude da resposta etc.) das configurações que as emoções 
básicas podem assumir em diferentes contextos de vida de homens e 
mulheres63. Em um contexto teórico bastante diverso da análise do 
comportamento, Ratner (2000) apresenta uma abordagem para a questão da 
base biológica das emoções que é compatível com essa idéia de diferenciação 
cultural da experiência emocional: 
A evidência apresentadaacima indica que as funções biológicas que 
medeiam os fenômenos psicológicos são integradas com funções 
culturais-psicológicas. A integração acontece porque a biologia se 
adapta às atividades culturais. As funções biológicas são o material 
bruto que é moldado pelas atividades culturais. A biologia é 
 
63
 Um comentário de Russell (1991) ilustra como uma maior diversidade de conceitos 
emocionais representa uma maior diferenciação de uma classe de fenômenos: “algumas 
línguas não distinguem claramente o que o inglês trata como categorias emocionais separadas 
de um nível básico. Left (1973, p. 301) assinalou que em algumas línguas africanas uma 
memsa palavra abrange o que distinguiríamos como raiva e tristeza” (p. 430). Outros exemplos 
similares são encontrados nesse mesmo trabalho. 
 
 140 
indispensável para a Psicologia e para a cultura. No entanto, ela não 
determina seu conteúdo específico. (p. 33) 
 Ratner (2000) constrói uma teoria explicativa de emoções também 
baseada na atividade humana. Embora a apresente como uma teoria da 
atividade, há um caráter relacional evidente na sua explicação. 
A ênfase em atividades como base das emoções produz a descrição 
e a explicação mais vívidas das emoções porque as conecta à 
riqueza vibrante da vida real. Ela relaciona as emoções às 
mudanças dinâmicas que estão acontecendo na economia mundial, 
aos tipos de governo e sistemas legais nos quais as pessoas vivem, 
à maneira como a assistência à saúde é provida, às mudanças nas 
relações familiares e nos sistemas educacionais nos quais as 
crianças crescem, à arte que é produzida e à mídia à qual as 
pessoas são expostas, às inovações e artefatos tecnológicos 
espetaculares e à infra-estrutura física em mudança nas cidades. 
Ignorar a atividade conduz a ignorar muitos aspectos culturais 
específicos das emoções. Conduz também a explicações 
incompletas das características, formação e função das emoções. 
(p. 34) 
 Em suma, variáveis culturais produzem sentimentos diversos, mas 
limitados por um aparato produzido filogeneticamente. Alguns sentimentos 
podem ser mais o produto dessas variáveis culturais e outros podem estar mais 
próximos daquela base filogenética. Desse modo, um sentimento será mais 
diferenciado entre culturas quanto mais se apresentar como relações 
 141 
produzidas por variáveis culturais específicas. Em outra direção, algumas 
emoções, referidas como emoções básicas (cf. Ekman, 1999/2004), serão 
menos variáveis entre culturas, na medida em que se apresentem apenas (ou 
predominantemente) como relações produzidas por variáveis seletivas 
filogenéticas. Dessa perspectiva, sentimentos e emoções variam ao longo do 
mesmo continuum de complexidade descrito anteriormente, localizando-se em 
diferentes pontos desse continuum, dependendo do quanto dele participam 
relações produzidas filogeneticamente, ontogeneticamente ou culturalmente. 
 
As diferenças entre emoções e sentimentos. 
 Os conceitos de emoções e sentimentos são freqüentemente usados 
como sinônimos, tanto na linguagem ordinária quanto na literatura psicológica. 
Algumas abordagens científicas, porém, evidenciam um interesse em empregar 
esses conceitos para diferenciar certos conjuntos de fenômenos. A linguagem 
então aparece como o aspecto característico do que é possível diferenciar e, 
nesse caso, o continuum de causalidade delineado neste estudo pode ser útil 
para a análise. Isto é, nas diferenciações disponíveis, o conceito de emoção 
pode ser empregado para designar relações comportamentais relacionadas à 
afetividade produzidas por variáveis filogenéticas e ontogenéticas, enquanto 
sentimentos seriam aquelas relações produzidas por variáveis culturais (a partir 
das emoções). 
 Essa alternativa de interpretação seria consistente com certas alegações 
no campo da fisiologia, de acordo com as quais emoções são “estados 
corporais” (se considerarmos que estão se referindo a respostas fisiológicas 
 142 
em certas emoções) e sentimentos são “sensações conscientes”, cada tipo de 
fenômeno “mediado por circuitos neuronais distintos no cérebro” (Iversen, 
Kupfermann & Kandel, 2000, p. 982). Seria parcialmente consistente ainda com 
a argumentação de Ekman (1999/2004) de acordo com a qual, em certo 
sentido, todas as emoções são básicas, mas distintas de “outros fenômenos 
afetivos” (embora ainda seja necessário examinar se nesse conceito de 
emoção se incluiriam também componentes ontogenéticos). Também para 
alguns sistemas explicativos em Psicologia, não comportamentais, a distinção 
parece relevante. Dér (2004) assinala que para Wallon 
a afetividade é um conceito amplo que, além de envolver um 
componente orgânico, corporal, motor e plástico, que é a emoção, 
apresenta também um componente cognitivo, representacional, que 
são os sentimentos e a paixão. O primeiro componente a se 
diferenciar é a emoção, que assume o comando do desenvolvimento 
logo nos primeiros meses de vida; posteriormente, diferenciam-se os 
sentimentos e, logo a seguir, a paixão. (p. 61). 
 Não está claro que para a análise do comportamento uma tal 
diferenciação seja recomendada ou produtiva, sobretudo se considerarmos que 
o modelo de seleção por conseqüências possibilita, com mais economia 
conceitual, uma apreciação mais abrangente das diversas configurações 
(relacionais) que (o que denominamos na linguagem coloquial como) 
sentimentos e emoções podem adquirir para indivíduos em contato com 
diferentes sistemas culturais. Assim, a referência a esse problema no contexto 
da presente discussão tem apenas a função de mostrar que quando uma 
 143 
diferenciação entre sentimentos e emoções é buscada por outros sistemas 
explicativos, o resultado a que chegam baseia-se em dimensões relacionais 
dos fenômenos, contempladas no modelo interpretativo aqui apresentado. 
 
O status da fisiologia na definição de sentimentos e emoções. 
 Toda relação comportamental implica uma ação do organismo como um 
todo (embora não se limite a isso, pois dela também participam variáveis 
ambientais), portanto envolvendo todos os seus sistemas orgânicos (cf. Kantor, 
1922, 1923; Kantor & N. W. Smith, 1975). Porém, certos componentes 
fisiológicos de uma resposta podem ser ou não especialmente relevantes para 
sua definição. Por exemplo, eventos fisiológicos podem ser críticos (Kantor 
diria “mais proeminentes”) quando o indivíduo saliva, mas não terão o mesmo 
papel para a (definição de uma) resposta de abrir uma porta. Dizer que o 
evento é “crítico” em um caso, mas não no outro, significa que pode ter ou não 
uma função específica no fenômeno comportamental sob exame, e variar 
menos (na resposta de salivar) ou mais (na resposta de abrir a porta) entre 
indivíduos. 
 Um ciência do comportamento deve evitar visões reducionistas de seu 
objeto, mas precisa explicar o status da base fisiológica do comportamento. No 
caso de emoções e sentimentos, os componentes fisiológicos serão mais ou 
menos relevantes (ou “críticos”), dependendo do ponto do nosso continuum em 
que o fenômeno se localiza. 
 As emoções básicas, produtos de variáveis seletivas filogenéticas, 
apresentarão uma componente fisiológico mais semelhante entre os indivíduos 
 144 
e a referência a esse componente pode ter alguma relevância para a definição 
da resposta (a resposta pode ser mais tipicamente uma resposta fisiológica). 
Fenômenos comportamentais (inclusive relativos à privacidade) mais 
complexos, em contrapartida, revelarão uma variabilidade fisiológica muito 
maior. Friman e cols. (1998) abordaram esse ponto na análise da ansiedade e 
o argumento ali desenvolvido (de acordo com o qual a fisiologia da ansiedade é 
a mesma de muitasoutras relações comportamentais)64 aplica-se a muitas 
outras instâncias de sentimentos. Amor, paixão, felicidade e outros sentimentos 
positivos, por exemplo, podem diferenciar-se com respeito às relações 
comportamentais envolvidas, mas compartilhar componentes fisiológicos 
específicos65. A identificação desse componente será, portanto, de pouca ou 
nenhuma utilidade para uma identificação do sentimento presente num dado 
momento. 
 Resumindo, quanto mais complexo um sentimento, mais variável e 
menos importante sua fisiologia para uma defição do fenômeno. E à medida 
em que a fisiologia se mostra mais variável e menos relevante como 
propriedade definidora de um fenômeno relativo à privacidade, é a análise 
comportamental, não a fisiológica, que produzirá uma compreensão do 
 
64
 Friman e cols. (1998) exemplificam: “uma definição comum de ansiedade é a reatividade 
fisiológica a eventos com resultados incertos, porém potencialmente aversivos. Atravessar uma 
rua sem carros e ser subitamente tomado por um responder fisiológico de alta intensidade 
(e.g., batimento cardíaco, respiração, transpiração e pressão arterial elevados) é considerado 
uma instância de ansiedade ... Atravessar a mesma rua e quase ser batido por um carro produz 
a mesma fisiologia, mas não constitui uma instância de ansiedade. Isso seria uma instância de 
medo” (p. 138). 
 
65
 Saindo um pouco do foco em sentimentos e emoções, é relevante registrar que há 
semelhanças na atividade neurofisiológica quando são emitidas respostas que diferem quanto 
à presença ou ausência de certos estímulos controladores. Por exemplo, o ver e o imaginar 
parecem ser emitidos com o mesmo tipo de atividade neural (cf. Donahoe & Palmer, 1994). 
Com isso, “a interpretação do imaginar não parece requerer a postulação de quaisquer 
processos biocomportamentais que sejam únicos do imaginar” (Donahoe & Palmer, p. 256). 
 
 145 
fenômeno. É também a intervenção comportamental, não a intervenção 
fisiológica, que será requerida para solucionar problemas relacionados àquele 
fenômeno. 
 
2.4. Relações Comportamentais e as Dicotomias Psicológicas Clássicas. 
 A abordagem para a subjetividade delineada nas seções anteriores, na 
medida em que trata os problemas relacionados a sentimentos e pensamentos 
como problemas no campo das relações do indivíduo com contingências de 
seu mundo físico e social (especialmente o último), conflita com as categorias 
analíticas encerradas nas dicotomias psicológicas clássicas. Na presente 
seção, serão discutidos alguns aspectos desse conflito. 
 Como assinalado no Capítulo 1, as dicotomias psicológicas surgem 
como expressão de uma visão de homem particular (própria do individualismo). 
É nesse terreno que começam as dificuldades para conciliar aqueles conceitos 
com o sistema explicativo analítico-comportamental. Para este último, o homem 
não é um ser autônomo, que por força de suas faculdades ou qualidades é 
capaz de submeter o mundo a seus interesses. Diferente disso, as 
competências (e.g., cognitivas, profissionais, artísticas etc.) do homem 
definem-se apenas nas relações com outros homens (uma discussão do 
problema da autonomia é apresentada no Capítulo 3, adiante). Com respeito a 
isso, há grande proximidade entre o ponto de vista analítico-comportamental e 
a abordagem oferecida por Elias (e.g., 1939/1990b, 1994). No lugar de 
indivíduos, a análise do comportamento também vê homens e mulheres 
relacionando-se com o mundo físico e uns com os outros, e identifica nessas 
 146 
relações a descrição/explicação possível para os temas de que a Psicologia se 
ocupa. 
Uma análise científica do comportamento despoja o homem 
autônomo e transfere o controle que se tem dito que ele exerce 
sobre o ambiente. O indivíduo pode então ser visto como 
particularmente vulnerável. Ele será a partir de então controlado pelo 
mundo a sua volta e em grande parte por outros homens. (Skinner, 
1971/2002, p. 205) 
 Na análise do comportamento, as relações do homem com o mundo são 
examinadas enquanto relações funcionais, produzidas por variáveis 
filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Variáveis culturais, por seu turno, 
modelam o comportamento individual, e são selecionadas ao fazerem isso, por 
seu efeito para o grupo e não para o indivíduo particular (esse aspecto também 
será discutido no Capítulo 3, adiante). A partir disso, é necessário olhar para o 
responder humano como parte de um sistema mais complexo do que 
simplesmente o que representam enquanto ação do indivíduo. É necessário 
examinar sua função no contexto de relações que podem ser mais ou menos 
complexas (em geral, muito complexas – especialmente mais complexas do 
que é possível investigar experimentalmente). Mesmo quando um indivíduo 
formula isoladamente um enunciado sobre uma parcela qualquer da realidade, 
um Robinson Crusoé qualquer, que explique a cor de seus sapatos ou o trajeto 
dos astros, esse fenômeno será inteligível apenas à luz de sua história 
ambiental. Onde há linguagem (e só com ela o Robinson Crusoé pode formular 
 147 
qualquer descrição da realidade) há mediação social66, há relações específicas 
com parcelas da realidade que se tornaram diferenciadas para o homem por 
força de sua exposição a ambientes sociais sofisticados. 
 Certas relações comportamentais verbais são produzidas por ambientes 
sociais que promovem a auto-observação e um responder diferenciado sob 
controle de condições corporais. Algumas vezes, condições corporais que se 
relacionam de modos especiais com sentimentos e emoções (em alguns casos, 
alterações fisiológicas eliciadoras de respostas motoras, ou condições 
estabelecedoras). As funções adquiridas pelas condições corporais sob tais 
contingências são únicas, mas também inteligíveis apenas como parte de 
arranjos complexos de contingências. Do mesmo modo que a complexidade 
das relações de interdependência dificulta a percepção das ligações com os 
outros homens e mulheres (cf. Elias, 1994), a complexidade das contingências 
que promovem uma diferenciação das condições corporais em relações 
emocionais favorece uma visão da emoção como ocorrência do ou no 
indivíduo. Nos dois casos, a ciência funciona para contrariar o “conhecimento” 
imediato, em particular, funciona para contrariar concepções confortáveis e 
sedutoras baseadas no que o leigo é capaz de discriminar acerca de suas 
relações com o mundo, mostrando-as como descrições precárias (de um ponto 
de vista da instrumentalidade científica) de fenômenos que só se tornam 
 
66
 Apesar de ter afirmado, em 1945 (Skinner, 1945), que o que importa para o Robinson Crusoé 
não é se ele concorda com alguém, mas se consegue lidar de modos efetivos com a realidade, 
Skinner (1971/2002) reconhece que Crusoé tem “débitos com a sociedade” (p. 123), pois se 
tivesse chegado à ilha em que viveu isolado ainda bebê, sua história “teria sido diferente” (p. 
124). 
 
 148 
inteligíveis quando unidades mais amplas e medidas mais sofisticadas são 
empregadas para a análise. 
Algumas considerações adicionais podem ser feitas acerca dos 
problemas aqui examinados, considerando cada uma das dicotomias 
psicológicas clássicas. 
 
A dicotomia público-privado. 
 Há uma diferença fundamental entre a separação público-privado na 
Sociologia (assim como na Economia, na Política etc.) e na Psicologia. Na 
Sociologia, a separação expressa o afastamento dos homens uns dos outros, 
seja do ponto de vista do compartilhamento de funções e obrigações, seja do 
ponto de vista da sociabilidade. Nesse contexto, porém, o privado nem sempre 
está limitado pelo universo individual (pode alcançar o núcleo familiar,ou 
outras relações) e nunca conduz a um inquérito metafísico67. Na Psicologia, a 
separação público-privado não apenas funciona para postular-se um 
isolamento individual, isto é, para elevar o indivíduo particular a unidade de 
análise, como freqüentemente mostra-se associada a um subjetivismo, ou 
dualismo metafísico. Esta observação é importante para que se entenda que a 
afirmação da separação público-privado em outros contextos analíticos não 
fundamenta a adoção dessa referência na Psicologia com as feições 
assinaladas. 
 Skinner (e.g., 1945) encontra na dicotomia público-privado uma saída 
para evitar o dualismo metafísico, ao mesmo tempo em que garante que 
 
67
 Provavelmente por essa razão a distinção público-privado não conduz, na Sociologia, a um 
debate tão extenso ou freqüente quanto na Psicologia. 
 
 149 
enquanto ciência do comportamento a disciplina psicológica continuaria a 
voltar-se para seus problemas originais (relacionados à subjetividade). Para 
Skinner, é muito importante o fato de que a distinção público-privado é uma 
distinção de fronteiras, não de natureza. A (in)observabilidade (pública e direta) 
passa, assim, a ser a dimensão que torna diferenciados os fenômenos 
relativos à subjetividade, o que justifica que recebam um tratamento 
diferenciado. 
 Em sua discussão do privado como inacessível à observação pública, 
Skinner (e.g. 1945) faz referência a estímulos e respostas. Isto é, são certos 
estímulos e certas respostas que por razões discutidas anteriormente mostram-
se inacessíveis à observação pública direta, ao passo que podem assumir 
certas funções em relações comportamentais. A partir desse reconhecimento, 
porém, vamos encontrar em Skinner (e.g., 1974/1993) e em outros analistas do 
comportamento (e.g., Anderson e cols., 1997) referências a fenômenos 
comportamentais mais complexos, que na realidade se definem como relações, 
e ainda assim são descritos como eventos privados. Esse vem a ser um 
aspecto problemático dos usos do conceito de eventos privados na análise do 
comportamento. Se, por um lado, é verdade que estímulos e respostas podem 
ser inacessíveis à observação pública direta, por outro, estímulos e respostas 
existem enquanto tal apenas no contexto de relações, que necessariamente 
têm dimensões públicas. Os eventos da subjetividade, sentimentos e 
pensamentos, em particular, enquanto relações comportamentais não são 
propriamente públicos, nem privados. São relações das quais podem participar 
(sob certas condições) eventos inacessíveis à observação pública direta, mas 
 150 
das quais também participam eventos observáveis. Sendo essa uma conclusão 
derivada do próprio sistema explicativo da análise do comportamento, temos 
que essa abordagem psicológica provê alguns instrumentos conceituais para a 
superação, na Psicologia, da categoria de privado como descritiva de 
instâncias de seu objeto de estudos, ao mesmo tempo em que equacionam o 
problema da (in)observabilidade de certos termos das relações 
comportamentais. 
 Também a partir de Skinner (1945), analistas do comportamento 
tenderão a classificar termos de relações comportamentais como públicos ou 
privados. A mesma ciência, servindo-se da interlocução com outros sistemas 
explicativos pode postular que não é bem assim. Primeiro, a observabilidade de 
certos termos das relações comportamentais não constitui simplesmente uma 
propriedade intrínseca a esses eventos, mas é uma propriedade dependente 
da relação observador-observado. Segundo, a propriedade de observabilidade 
de estímulos (considerando-se o que controla autodescrições de emoções e 
sentimentos) e respostas varia ao longo de um continuum, como função de 
aspectos formais e relacionais. 
 Pode-se questionar (e.g., Ribes, 1982) se há sentido em valorizar a 
observabilidade restrita de certos estímulos e certas respostas, quando esse 
tipo de restrição pode ser encontrado na análise de uma infinidade de relações 
comportamentais não conectadas com o tema da subjetividade. É bom lembrar, 
no entanto, que para a cultura ocidental moderna a inobservabilidade de 
estímulos e respostas constitui um problema de interesse especial apenas 
quando conectada com a problemática do autocontrole e é isso que justificará 
 151 
uma atenção especial às instâncias de inobservabilidade relacionadas com a 
subjetividade ou privacidade. 
 A noção de privado assim formulada, é importante ressaltar, não se 
conecta com as noções de mental, de interno, ou de subjetivo. A noção de 
privado, não sendo um rótulo para o fenômeno comportamental ou psicológico, 
apenas sinaliza que sob certas contingências a observabilidade de um termo 
da relação comportamental poderá ser restrita - não naturalmente ou 
irremediavelmente restrita, mas circunstancialmente restrita. As contingências 
sob as quais isso acontece são contingências culturais que precisam ainda ser 
identificadas de modos mais precisos. Os estudos históricos e sociológicos 
oferecem uma direção para essa investigação, o processo de individualização 
no mundo moderno. Como assinalado anteriormente, essa observabilidade 
restrita pode também emergir sob outras contingências culturais, mas talvez de 
um modo que não dá origem à investigação e teorização psicológicas. 
 
A dicotomia objetivo-subjetivo. 
 A idéia de separação entre um mundo objetivo e um mundo subjetivo 
está assentada em uma visão representacional da linguagem, duramente 
criticada ao longo do século XX, especialmente a partir do trabalho de 
Wittgenstein (1953/1988). A adoção de uma concepção funcional da 
linguagem, como na análise do comportamento, conduz necessariamente a 
uma dissolução desse dualismo, uma vez que implica considerar que todas as 
descrições (de pensamentos e sentimentos, ou da realidade física que cerca os 
indivíduos) são função da exposição a parcelas do universo, sob controle de 
 152 
certas contingências do reforço que tornam essas parcelas mais ou menos 
diferenciadas, ou diferenciadas quanto a uns ou outros aspectos. 
 Para Skinner, uma vez que todo responder verbal é função de 
contingências de reforço, enunciados científicos sobre a realidade não são 
mais objetivos do que descrições concorrentes (poéticas, literárias, ou 
jornalísticas), não estão mais próximas de uma essência ou propriedade 
fundamental da realidade. Diferenciam-se apenas porque são mais eficientes 
em promover a previsão e controle dos fenômenos68. 
É um erro ... dizer que o mundo descrito pela ciência é, de alguma 
forma, mais próximo "do que realmente existe", mas também é um 
erro dizer que a experiência pessoal do artista, compositor, ou poeta 
está mais próxima "do que realmente existe". Todo comportamento é 
determinado, direta ou indiretamente, por conseqüências, e os 
comportamentos de ambos, o cientista e o não cientista, são 
modelados pelo que realmente existe, mas de maneiras diferentes. 
(Skinner, 1974/1993, pp. 140-141) 
 De outro lado, conceitos emocionais não descrevem um mundo 
“subjetivo”, próprio do sujeito, à parte da realidade compartilhada por todos. 
Novamente, onde há linguagem, há uma base pública para todas as 
 
68
 É verdade que a noção de método, inaugurada no século XVII, subsiste na ciência moderna 
e implica seguir um conjunto de regras de modo a evitar que características pessoais interfiram 
negativamente na produção de conhecimento. Há porém, duas observações a fazer. Primeiro, 
as características “pessoais” não são tão pessoais assim, mas apenas não compartilhadas por 
todos os membros de uma dada comunidade (o que é pessoal é uma história ambiental, não 
algo contido no sujeito). Segundo, háuma distância entre afirmar que as contingências sociais 
responsáveis pelo fazer científico funcionam para limitar a interferência de inclinações pessoais 
e supor que a descrição científica descreve uma realidade independente. Ela descreverá 
sempre uma realidade enquanto objeto investigado sob controle das práticas de uma 
comunidade verbal. 
 
 153 
descrições. 
 Os processos verbais envolvidos nos modos como em sociedades 
complexas as descrições sobre a realidade (inclusive a realidade “psicológica”) 
são construídas e validadas são os mesmos encontrados em sociedades mais 
simples, porém as relações entre os indivíduos são muito mais complexas 
devido à extensão (muito maior) do universo social que participa desses 
processos e os modos (diferentes do debate face a face) como isso acontece. 
É mais fácil, sob as novas condições, considerar que as descrições a que se 
chega resultam do pensamento ou da reflexão pessoal (desse mundo particular 
do sujeito) e/ou do controle de outros aspectos da vida “subjetiva”, mas a 
postulação de faculdades pessoais aqui meramente substitui o que não pode 
ser especificado por ser muito complexo. 
 
A dicotomia físico-mental 
 Um passo importante para a postulação da categoria de mental consiste, 
como assinalado antes, em tratar fenômenos relacionais como ocorrências 
individuais. Uma vez instituída essa lógica, o debate acerca da natureza (física 
ou mental) daquelas ocorrências reproduzirá o dualismo. Quando indagamos 
se podemos atribuir uma natureza física a certo evento, estamos admitindo que 
se trata de evento com respeito ao qual faz sentido indagar acerca de suas 
dimensões físicas, e com respeito ao qual negar essa dimensão física significa 
considerá-lo dotado de uma natureza especial. Por essa razão, no lugar de 
afirmar, como Skinner (1945) que uma dor de dentes tem dimensões físicas, 
será mais produtivo afirmar que dor de dente não é uma ocorrência do ou no 
 154 
indivíduo, mas uma relação do indivíduo com o mundo na qual certas 
condições corporais adquirem uma função. A dor, sendo ela própria um 
responder sob controle de estímulos (públicos e privados), não é física ou 
mental, embora dela participe um organismo (portanto, um ser dotado de 
dimensões físicas, assim como químicas, elétricas etc.). 
 Assim, a superação do dualismo físico-mental depende menos de uma 
afirmação da existência de dimensões físicas nos fenômenos humanos, e mais 
da afirmação do caráter relacional desses fenômenos. Essa perspectiva pode 
usufruir das proposições analítico-comportamentais tanto quanto essas 
proposições instituem uma lógica relacional de análise dos fenômenos 
humanos. Isso acontece quando no lugar de substâncias (como “pensamento”) 
analisamos atividades humanas (como o “pensar”) e as relacionamos a 
contingências de reforço, e quando destacamos que mesmo na ausência de 
outros, o responder verbal é mediado socialmente, isto é, constitui um 
fenômeno dependente de contingências sociais. 
 Uma vez abandonado o individualismo, o mentalismo torna-se 
desnecessário. Se a capacidade de homens e mulheres refletirem criticamente 
acerca do mundo a sua volta, coletarem evidências empíricas de relações entre 
eventos e contrastarem-nas com descrições possíveis da realidade, 
sistematizarem descrições abrangentes e econômicas de classes de 
fenômenos, se todas as capacidades desse tipo forem consideradas 
capacidades que requerem e se realizam no plano das relações uns com os 
outros, a questão de uma natureza mental da capacidade reflexiva deixa de ser 
colocada. 
 155 
 Para que a lógica relacional seja persuasiva na Psicologia, será 
necessário nela acomodar o reconhecimento de uma especificidade dos 
fenômenos considerados relacionados à subjetividade. Isso é feito quando se 
destaca a observabilidade restrita de certos estímulos e certas respostas; os 
primeiros (estímulos), em razão de se tratar de condições corporais que 
adquirem uma função para o responder de um indivíduo, que não podem 
adquirir para o responder de terceiros; as últimas (respostas), em razão de 
dimensões estruturais (grau de participação do aparelho motor) e relacionais 
(história de interação observador-observado, instrumentos e treino de 
observação do observador) que as tornam menos evidentes do que respostas 
tipicamente motoras. 
 Provavelmente será necessário que um combate anterior seja vencido, 
antes que a lógica relacional seja aceita, no lugar da lógica individualista e 
subjetivista que sustenta a crença em um mundo mental, isto é, será 
necessário vencer, ou superar, a concepção de homem dominante nesta 
cultura. De certo modo, essa é uma batalha que já vem sendo travada e não 
apenas pela análise do comportamento. Concepções anti-mentalistas e anti-
representacionistas da linguagem, em particular a perspectiva funcional de 
Wittgenstein (1953/1988) tiveram ampla repercussão no pensamento ocidental 
do século XX, com penetração em várias esferas da cultura e das 
humanidades. Na sociologia, a concepção anti-individualista de Elias (e.g., 
1994) alcançou notável reconhecimento a partir da década de 70 do século XX, 
sobretudo na Europa. Na filosofia, o neopragmatismo de Rorty (e.g., 1982, 
1988, 1993) caminha na mesma direção, enfatizando os processos dialógicos 
 156 
como o campo de construção e validação de nossas reivindicações a 
conhecimento, como o espaço no qual se definem, a cada momento de nossa 
história intelectual, os critérios com base nos quais tomamos nossas crenças 
como verdadeiras. 
Se não virmos o conhecer como a posse de uma essência, a ser 
descrita por cientistas ou filósofos, mas antes como um direito, pelos 
padrões correntes, a acreditar, estaremos então no bom caminho 
para ver a conversação como o contexto último em que o 
conhecimento deve ser compreendido. O nosso foco passa da 
relação entre os seres humanos e os objectos do seu inquérito para 
a relação entre padrões alternativos de justificação, e daí para as 
efectivas alterações nesses padrões que formam a história 
intelectual. (Rorty, 1988, p. 300, itálico no original) 
 Não por acaso, alguns trabalhos assinalam certas aproximações 
possíveis do pensamento skinneriano com Wittgenstein (e.g., Bloor, 1987; 
Costall, 1980; Day, 1969; Lampreia, 1992; Tourinho, 1994b; Waller, 1977) e 
com Rorty (e.g., Lamal, 1983, 1984; Leigland, 1999; Tourinho, 1994b). Quem 
sabe em breve serão também algumas referências acerca de aproximações e 
interlocuções possíveis entre Skinner e Elias. 
 
A dicotomia interno-externo. 
 Interno e externo constituem conceitos que podem ser empregados na 
descrição da localização de objetos ou eventos, tendo-se como referência 
alguma fronteira, a partir da qual se diz que os objetos ou eventos estão de um 
 157 
lado (dentro) ou de outro (fora). A gramática desses conceitos (para usar 
novamente o termo wittgensteiniano) requer, portanto, a indicação das relações 
espaciais entre o que é contido e o que o contém. Uma bola pode estar dentro 
de uma caixa, assim como um livro pode estar dentro de uma casa. Quando se 
diz que pensamentos e sentimentos são eventos internos, há duas 
possibilidades: (a) ignorar o requisito de especificar uma fronteira e usar os 
conceitos de interno e externo com um sentido metafórico impreciso, ou (b) 
postular que a pele constitui a fronteira. No primeiro caso, abdicamos de prover 
uma descrição científica para sentimentos e pensamentos. No segundo, 
deixamos de considerar sentimentos e pensamentos como eventos do 
organismo como um todo e passamos a trabalhar com a idéia de que pensar e 
sentir são atividades de parte(s) do organismo (ainda por serem especificadas). 
As duas posições sustentam a noção de mundo interno, que assim invadeo 
discurso do leigo e do cientista. 
 A opção de ignorar o requisito de especificar uma fronteira para a 
definição da interioridade freqüentemente aparece quando a noção de 
interioridade vem associada ao mentalismo. O mundo mental é que é interno. 
Nesse caso, há uma impossibilidade lógica notória. Se o mundo mental não 
está dotado da propriedade de extensão encontrada no mundo material, se não 
pode ser localizado espacialmente, como pode localizar-se dentro ou fora de 
alguma coisa? 
 A opção de considerar sentimentos e pensamentos como eventos sob a 
pele significa tratá-los como ocorrências de partes do organismo, o que 
conduz a um reducionismo organicista. Esse reducionismo pode funcionar para 
 158 
evitar o mentalismo, mas não para instaurar um objeto de investigação 
psicológica. Se o “pensar”, por exemplo, for identificado com a atividade do 
sistema nervoso central, podemos considerá-lo uma ocorrência interna ao 
organismo. Todavia, neste caso, trata-se de um tipo de fenômeno que se 
confunde com o objeto das neurociências, não requerendo o exame de uma 
disciplina psicológica. Quando dizemos que o pensar constitui um fenômeno 
psicológico, que requer o exame de uma ciência psicológica, isso deve 
significar que independentemente do grau de participação do sistema nervoso 
central na emissão da resposta, o fenômeno se estende para além disso, tem 
uma outra dimensão – relacional -, que o define como objeto dessa outra 
ciência. 
 O que favorece conceber sentimentos e pensamentos como fenômenos 
internos é não apenas a crença de que qualidades do ou no próprio indivíduo 
possibilitam-no representar o mundo e realizar-se em diversos domínios de sua 
vida (sua razão, fé, vocação, personalidade, convicção, determinação etc. 
impulsionam para o sucesso), como também o modo particular como 
sentimentos e pensamentos são vividos. 
 Com uma abordagem relacional para sentimentos e pensamentos 
deixam de fazer sentido as categorias de interno e externo. O pensar não está 
dentro do homem, como não estão o andar, o pintar, ou o ministrar uma aula. 
Em todos os casos, estamos diante de relações das quais participam respostas 
do organismo como um todo. Do mesmo modo, o alegrar-se, aborrecer-se ou 
amedrontar-se não se localizam no interior do homem, mas constituem 
relações nas quais certas condições corporais adquirem uma função. A noção 
 159 
de um mundo interno ou sob a pele, referida até por Skinner (e.g., 1953/1965), 
quando discutida à luz da perspectiva relacional analítico-comportamental se 
definirá por essa dupla abordagem: o reconhecimento da especificidade de 
relações nas quais condições corporais adquirem certas funções e a afirmação 
dos limites dentro dos quais isso ocorre (cf. Malerbi, 1999; Matos, 1999; 
Micheletto, 1999; Tourinho, 1999b). 
 A idéia de que o caráter encoberto de algumas respostas não significa 
que deixam de ser respostas do organismo como um todo, mas podem implicar 
uma participação reduzida do aparelho motor na sua emissão, está em acordo 
com a análise desenvolvida por Elias (1939/1990b) com respeito ao que 
sustenta a noção de interioridade na auto-imagem do homo clausus. Para 
Elias, é o autocontrole, a vigilância sobre o próprio corpo para evitar que 
respostas emocionais alcancem o aparelho motor, que dá origem a uma 
experiência de interioridade dos sentimentos e emoções. Isto é, o autocontrole 
de que Elias trata diz respeito exatamente à emissão de certas respostas 
(emocionais) com reduzida participação do aparelho motor. No Capítulo 3, a 
seguir, esse tema será desenvolvido. 
 
 
 160 
CAPÍTULO 3 
SUBJETIVIDADE, EVENTOS PRIVADOS E RELAÇÕES COMPORTAMENTAIS 
 
 No Capítulo anterior, delineamos uma caracterização de fenômenos 
psicológicos, em particular sentimentos, emoções e pensamentos, como 
relações do homem com o mundo, que não se tornam inteligíveis à luz dos 
conceitos de privado, subjetivo, mental ou interno, mas apenas a partir da 
especificação da dependência funcional entre estímulos e respostas, que pode 
materializar-se em fenômenos com graus variados de complexidade e 
observabilidade. À luz das análises ali desenvolvidas, o sistema explicativo 
analítico-comportamental pode ser reconhecido como um sistema que não 
reproduz o individualismo e o subjetivismo que historicamente fundamentaram 
a edificação da Psicologia como disciplina independente. Aquelas análises, 
porém, embora contrariem crenças e conceitos psicológicos modernos, não 
explicam suficientemente algumas questões importantes destacadas em 
trabalhos históricos, como aqueles mencionados no Capítulo 1. Em particular, a 
individualização, a autonomia e o autocontrole do homem que vive nas 
sociedades modernas, aos quais a problemática de sentimentos e 
pensamentos encontra-se estreitamente vinculada, constituem temas que 
precisam ser ainda examinados. O presente Capítulo ocupa-se desses temas, 
discutindo como podem ser tratados à luz de princípios analítico-
comportamentais e como suas conexões com a problemática de sentimentos e 
pensamentos podem ser produtiva e coerentemente interpretadas. O exame 
dos temas não altera a interpretação analítico-comportamental desenvolvida no 
 161 
Capítulo 2, mas confere-lhe um novo enquadre, que estende o alcance de suas 
contribuições e favorece, dentre outros, o diálogo com disciplinas que se 
ocupam de problemas afins. 
 
3.1. A Individualização. 
 O processo de individualização no mundo moderno pode ser enfocado a 
partir de duas referências. A primeira consiste do fato de que cada homem ou 
mulher vem a ser único(a), singular, diferenciado(a) de todos(as) os outros 
homens e mulheres a sua volta em aspectos considerados muito relevantes. 
Sob essa ótica, a individualidade, ou singularidade do indivíduo, implica o 
reconhecimento de que mesmo no interior de uma cultura compartilhada por 
outros homens e mulheres cada um merece atenção por aquilo que lhe é 
pessoal, próprio, inconfundível com os atributos do vizinho ao lado (em outras 
palavras, sua “subjetividade”). 
 Uma segunda abordagem possível para o processo de individualização 
consiste em examinar relações de contingências que definem a diferenciação 
de homens e mulheres uns dos outros na vida cotidiana, e que ganham 
importância especial nas sociedades de mercado. Homens e mulheres sempre 
foram diferentes uns dos outros, em muitos aspectos, e isso, em outros 
contextos culturais, não deu origem ao conceito de indivíduo, a conjuntos de 
práticas e crenças baseadas na auto-imagem do homo clausus, enfim, a uma 
cultura individualista e subjetivista. Quando a diferenciação se torna muito 
importante, o que muda não é o fato de que atributos pessoais diferem, mas o 
fato de que relações de contingências importantes na vida cotidiana se 
 162 
transformam. Esse segundo percurso analítico coloca então em destaque a 
peculiaridade do processo de individualização nas sociedades de mercado, 
buscando identificar contingências que explicam a emergência da 
individualidade como categoria do pensamento moderno. 
 O primeiro tipo de abordagem para o processo de individualização é 
claramente desenvolvido na literatura analítico-comportamental. Na introdução 
de seu Sobre o Behaviorismo, Skinner (1974/1993) enumera vinte concepções 
equivocadas acerca das realizações e do alcance da análise do 
comportamento. Uma dessas concepções veicula a idéia de que a análise do 
comportamento “se preocupa apenas com princípios gerais e, portanto, 
despreza a singularidade do indivíduo” (p. 5). Há, nessa crítica, uma confusão 
entre a investigação de regularidades dos fenômenos comportamentais e a 
aplicação do conhecimento daí derivado ao exame docomportamento 
individual. Ela talvez reflita o fato de que o desenvolvimento da análise 
experimental do comportamento só foi acompanhado tardiamente por um 
interesse maior na sua aplicação (especialmente em contexto de terapia verbal 
face a face), assim como na interpretação de fenômenos complexos. Se é 
verdade, porém, que o sistema explicativo skinneriano oferece leis gerais do 
comportamento, sua aplicação na intervenção frente ao comportamento 
individual parte do reconhecimento do caráter idiossincrático das relações 
comportamentais que resultam da história ambiental particular de cada 
organismo69. 
 
69
 Na terapia analítico-comportamental, esse reconhecimento constitui o ponto de partida para 
a intervenção e repercute sobre todos os aspectos (e.g., técnicos e éticos) que a compõem. 
Segundo Samson e McDonnell (1990), “uma análise funcional pode ser altamente complexa e, 
como decorrência, específica ao indivíduo. É improvável que sejam exatamente as mesmas as 
 163 
 Todo organismo humano é único, diz Skinner, enquanto resultado de 
múltiplas determinações, que, no entanto, não o tornam senhor de seu destino 
como pessoa, do destino de sua espécie, ou do destino de seu grupo. 
O indivíduo é no máximo um lócus no qual muitas linhas de 
desenvolvimento se agrupam de um modo único. Sua 
individualidade é inquestionável. Cada célula em seu corpo é um 
produto genético único, tão única quanto a marca clássica da 
individualidade, a impressão digital. E mesmo no interior da cultura 
mais uniforme, cada história pessoal é única. ... Mas o indivíduo 
permanece meramente um estágio em um processo que se iniciou 
muito antes dele vir a existir e que continuará longamente após ele. 
Ele não tem qualquer responsabilidade última por um traço da 
espécie, ou por uma prática cultural, embora tenha sido ele que 
passou pela mutação ou introduziu a prática que se tornou parte da 
espécie ou da cultura. (Skinner, 1971/2002, p. 209) 
 O modo causal de seleção por conseqüências constitui o instrumento 
conceitual com o qual é interpretado o caráter idiossincrático dos repertórios 
que resultam da história ambiental de um indivíduo. De acordo com esse 
 
intervenções que as análises funcionais podem recomendar para dois problemas que pareçam 
ser similares. Quaisquer similaridades entre as intervenções estarão relacionadas à 
similaridade das funções a que os problemas servem. Isso significa que não é possível, quando 
se usa uma abordagem analítica funcional, fazer generalizações amplas sobre a intervenção a 
ser realizada ou sobre o estilo com que deve se apresentar” (p. 260). Também discutindo a 
terapia analítico-comportamental, Neno (2005) assinala que “as fontes de individualização em 
uma intervenção clínica podem ser de três ordens. Uma primeira diz respeito à variabilidade 
das relações comportamentais, ao caráter idiossincrático das relações comportamentais que 
definem os problemas de cada indivíduo em atendimento. Em razão disso, qualquer modelo de 
intervenção, para ser eficiente, precisará ser sensível àquela variabilidade e prover condições 
para que seja adequadamente contemplada em suas estratégias” (p. 221). 
 
 164 
modelo explicativo, cada indivíduo é o produto único de uma conjugação de 
determinações filogenéticas, ontogenéticas e culturais. A singularidade desse 
indivíduo pode ser formulada em termos comportamentais: o que o diferencia 
de todos os demais são seus repertórios, ou uma probabilidade alterada de agir 
de determinados modos sob controle de certos estímulos. Os processos 
seletivos produzem, também, um organismo alterado do ponto de vista 
anátomo-fisiológico, mas esse constitui um domínio das ciências biológicas 
(embora venha a se tornar relevante, em termos discutidos adiante). Uma 
probabilidade de resposta diferenciada, resultante dos processos seletivos, 
define a pessoa ou o self, segundo Skinner (1974/1993) (ou várias 
pessoas/selves, quando repertórios concorrentes forem adquiridos, sob 
controle contextual). 
Um membro da espécie humana tem identidade no sentido de que é 
um membro e não outro. Ele começa como um organismo e torna-se 
uma pessoa ou self na medida em que adquire um repertório de 
comportamento. Ele pode tornar-se mais de uma pessoa ou self se 
ele adquire repertórios mais ou menos incompatíveis apropriados a 
diferentes ocasiões. (p. 247) 
 Aqui, as relações comportamentais não estão sendo enfatizadas, mas 
estão subentendidas nas referências a probabilidades de resposta, ou a 
repertórios. Em outro momento da análise skinneriana, fica menos evidente 
que seu enfoque continua relacional. Sua noção de singularidade aproxima-se 
daquela que prevalece no mundo moderno quando Skinner estabelece uma 
distinção entre pessoa e self. Em acordo com o modo causal de seleção por 
 165 
conseqüências, Skinner (1989) diferencia os produtos de cada nível de 
determinação: “a seleção natural nos dá o organismo, o condicionamento 
operante nos dá a pessoa e ... a evolução das culturas nos dá o self (p. 28). O 
self, nesse caso, não corresponde mais ao repertório comportamental em si 
(embora o que é promovido por contingências culturais sejam novas relações 
comportamentais), mas a um conjunto de condições “internas”. Trata-se de 
condições internas que, por força da exposição do indivíduo a certas práticas 
culturais, passam a adquirir funções (únicas) para o comportamento individual, 
tornam-se funcionalmente diferenciados para o próprio indivíduo (e apenas 
para ele). Mas Skinner contrasta o repertório (produzido pela ontogênese) dos 
estados produzidos pela cultura. 
Uma distinção mais clara pode agora ser feita entre pessoa e self: 
uma pessoa, enquanto um repertório comportamental, pode ser 
observada por outros; o self, enquanto um conjunto de estados 
internos que acompanham o comportamento, só é observado 
através do sentimento ou da introspecção. (Skinner, 1989, p. 28, 
itálico acrescentado) 
 Temos, assim, uma espécie de concessão à lógica subjetivista que 
orienta a interpretação moderna da individualidade. Não que aquilo que é 
“introspectivamente observado” por cada um não seja singular, único. Afinal, na 
abordagem de Skinner é o próprio corpo que é introspectivamente observado e 
este, como produto também singular dos processos seletivos, será diferenciado 
para cada um. Mas tomar essa especificidade como referência para a 
discussão da individualidade recoloca o problema no plano do que acontece no 
 166 
indivíduo. De todo modo, pode ser suficiente lembrar que quando as condições 
corporais assumem funções como resultado da exposição a contingências que 
promovem auto-observação e autocontrole, o que temos são novas relações 
comportamentais, também definidoras da singularidade do homem-em-relação-
com-o-mundo. 
 Uma maneira de ir além desse tratamento consiste em pensar a 
individualização no plano das relações de contingências encontradas na vida 
cotidiana de homens e mulheres que vivem nas complexas sociedades de 
mercado. A análise que se oferece a seguir tem esse objetivo. Ela será 
desenvolvida tomando como exemplo um campo específico, o das relações 
econômicas, podendo ser estendida para outras esferas. Esperamos com ela 
ilustrar o segundo percurso possível para um tratamento analítico-
comportamental do processo de individualização. 
 O argumento desenvolvido por Skinner (1986/1987a) em O Que Há de 
Errado com a Vida Cotidiana no Mundo Ocidental constitui um bom ponto de 
partida. Skinner afirma que o mundo ocidental foi eficiente em solucionar váriosproblemas da vida cotidiana e promover condições de conforto e segurança 
bastante avançadas em comparação com outras culturas. Mas, ao mesmo 
tempo, certas práticas culturais no ocidente têm funcionado para erodir 
contingências de reforço. Skinner explica que há dois efeitos do reforço: um 
efeito de fortalecimento da resposta (ao qual os analistas do comportamento se 
voltam em suas investigações operantes) e um efeito de prazer. Certas práticas 
culturais têm sido selecionadas no ocidente, segundo Skinner, pelo efeito de 
prazer do reforço, independentemente de efeito fortalecedor de respostas. 
 167 
 A erosão das contingências de reforço significa que eventos antes 
contingentes a certas classes de respostas, deixam de sê-lo. O responder do 
indivíduo deixa de produzir certas conseqüências, ou o acesso às 
conseqüências passa a independer do responder. Com isso, (a) a manutenção 
daquelas classes passa a depender de outras conseqüências (em muitos 
casos, coercitivas), caso em que os indivíduos deixam de contatar as 
conseqüências que antes mantinham aquele responder, ou (b) as classes de 
respostas entram em extinção e o indivíduo não entra em contato com outros 
efeitos do comportamento. Assim, “quando as conseqüências fortalecedoras do 
comportamento foram sacrificadas pelo bem das conseqüências de prazer, o 
comportamento simplesmente tornou-se fraco” (Skinner, 1986/1987a, p. 26, 
itálico do original). Um papel reservado à análise do comportamento aplicada 
consistiria justamente de promover a compreensão e o fortalecimento das 
contingências de reforço. 
 Skinner (1986/1987a) discorre sobre cinco exemplos de práticas 
culturais que ilustram a erosão das contingências de reforço. Dois dos 
exemplos dizem respeito à questão do trabalho. No primeiro caso, as 
contingências de reforço foram erodidas quando a produção dirigida para o 
mercado conduziu à alienação do trabalhador em relação ao produto do seu 
trabalho70. O comportamento do trabalhador industrial, diferente do artesão, ou 
do lavrador que planta para a subsistência, não é mantido por suas 
 
70
 Não se trata, aqui, de um problema apenas de economias capitalistas, nas quais apenas 
uma classe detém os meios de produção, mas de qualquer economia na qual a produção é 
voltada para o mercado e, com isso, a divisão do trabalho avança e a relação imediata 
trabalho-produto do trabalho é rompida: “A alienação tem pouco a ver com exploração, pois os 
empresários também são alienados das conseqüências do que fazem, assim como os 
trabalhadores em Estados socialistas” (Skinner, 1986/1987a, p. 18). 
 
 168 
conseqüências diretas – o produto de seu trabalho. Freqüentemente, o 
trabalhador não só não tem acesso, como sequer faz contato com esse 
produto. No lugar disso, seu comportamento é mantido por contingências que 
não funcionam exatamente para fortalecer o trabalhar71. 
 No segundo exemplo, a referência é ao comportamento do empregador, 
que passa a ter acesso ao produto do trabalho sem trabalhar72. Com isso, o 
empregador evita o contato com eventuais conseqüências aversivas do 
trabalhar, mas também com outros efeitos fortalecedores. Ele pode alcançar 
um conforto e bem estar únicos, mas como resultado de comportamentos que 
não são aqueles antes fortalecidos por esses eventos. E face à independência 
funcional de respostas e estímulos antes constitutivos de relações de 
contingências, sua vida poderá ser a um mesmo tempo confortável e 
monótona. A variedade de interações possíveis com o mundo, a experiência de 
operar de diferentes modos sobre o mundo e entrar em contato com diferentes 
conseqüências, que podem tornar a vida interessante e surpreendente, dá 
lugar a umas poucas respostas emitidas muito freqüentemente. “Ao vencer a 
guerra por liberdade e a busca de felicidade, o ocidente perdeu sua inclinação 
 
71
 O dinheiro pode funcionar como um reforço generalizado, mas mesmo quando o trabalhador 
recebe um salário deve-se considerar que: a) o dinheiro “está sempre um passo mais longe do 
tipo de conseqüência reforçadora à qual a espécie se tornou originalmente suscetível” (Skinner, 
1986/1987a, p. 18); e b) salários mensais não constituem conseqüências estritamente 
contingentes ao trabalho. “Os salários pagos pela quantidade de tempo trabalhado, 
estritamente falando, não reforçam de modo algum o comportamento” (Skinner, p. 19). 
 
72
 No mesmo exemplo, Skinner (1986/1987a) faz também referência a recursos de que o 
homem comum lança mão para evitar o trabalho, como a invenção de instrumentos eletrônicos 
como controles remotos e outros aparelhos que permitem acessar muitos reforços apenas com 
a resposta de pressionar botões. “Considere a extensão com que aparelhos para economizar 
trabalho nos tornaram apertadores de botões. Apertamos botões em elevadores, telefones, 
painéis, vídeo gravadores, máquinas de lavar, fornos, máquinas de escrever e computadores, 
tudo no lugar de ações que pelo menos teriam um pouco de variedade” (p. 20). 
 
 169 
para agir” (Skinner, 1986/1987a, p. 25). Além disso, onde há menos 
variabilidade, há menores chances de sobrevivência do grupo. Assim, 
o que há de errado com a vida no ocidente não é que ela tem muitos 
reforçadores, mas que os reforçadores não são contingentes aos 
tipos de comportamento que sustentam o indivíduo ou promovem a 
sobrevivência da cultura ou da espécie. (Skinner, 1986/1987a, p. 24) 
 Partindo dessa argumentação de Skinner, podemos abordar a questão 
da individualização salientando um aspecto não discutido das novas 
contingências que passam a operar no plano da realização material dos 
indivíduos: o fato de que as conseqüências contingentes ao trabalhar passam a 
ser outras (em geral, o salário) e deixam de ser contingentes ao 
comportamento de um conjunto de homens e mulheres e passam a ser 
contingentes ao trabalhar individual. A moeda introduz (também) essa 
possibilidade. Um produto industrializado (e.g., uma televisão) não pode 
funcionar como conseqüência reforçadora para o comportamento de produzi-lo. 
No lugar disso, o comportamento do trabalhador que o produz é mantido por 
um salário que, na melhor das hipóteses tem uma relação indireta com os 
eventos que podem manter o comportamento de trabalhar (algumas vezes nem 
é contingente ao trabalhar). Além disso, ainda que o comportamento de vários 
trabalhadores seja requerido para produzir um bem (como a televisão), as 
conseqüências que mantêm o comportamento de cada um são independentes, 
não compartilhadas. 
 A individualização neste terreno torna-se, assim, uma questão de 
dissociação das conseqüências que mantêm o comportamento de trabalhar de 
 170 
grupos de homens e mulheres. A especialização crescente de suas funções é 
acompanhada pelo distanciamento cada vez maior entre as conseqüências que 
mantêm o comportamento de cada um. Conseqüências que não apenas 
diferenciam-se daquelas que modelaram o trabalhar originalmente, como 
também tornam o trabalhar de um indivíduo cada vez mais independente do 
trabalhar do outro em um sentido particular e crucial, isto é, do ponto de vista 
das conseqüências que o mantêm. Em contraste, em sociedades coletivistas, 
onde a produção é dirigida para a subsistência, o comportamento de trabalhar 
de cada um é mantido por uma conseqüência que afeta o comportamento de 
todos. Quando a sociedade é hierárquica - por exemplo, quando há servos e 
senhores que usufruem do trabalho dos servos em troca de proteção e cessão 
da terra - não há igualdade, mas a independência das conseqüências 
contingentes ao trabalhar pode ainda inexistir. 
 No interior de grupos sociais com alto grau de individualização,essa 
dissociação das conseqüências que mantêm o trabalhar de cada um traz várias 
implicações. As relações de poder tornam-se cada vez mais assimétricas, as 
relações afetivas são reguladas por aspectos econômicos (mais do que pelos 
costumes ou tradições), os contratos invadem o espaço privado de modo a 
ratificar o acesso diferenciado de cada um aos bens acumulados etc.. 
 Algo semelhante aparece em outros domínios das vidas de indivíduos. 
Considere-se, por exemplo, a mudança da leitura coletiva em voz alta, para a 
leitura individual silenciosa. No primeiro caso, uma mesma conseqüência o 
acesso a uma literatura sagrada ou profana, a comentários, reflexões etc. é 
compartilhada por grupos de indivíduos contingentemente a comportamentos 
 171 
diversos (não só o comportamento de ler do letrado, mas também os 
comportamentos de organizar o grupo para a leitura, providenciar o livro, 
preparar o alimento para as reuniões etc., de outros membros do grupo). No 
segundo caso, o da leitura silenciosa, o acesso às mesmas conseqüências (ou 
melhor, a algumas daquelas conseqüências) se dá individualmente73. Além 
disso, o acesso independe, do ponto de vista imediato, do comportamento do 
outro. O comportamento do próprio indivíduo lhe basta. Por último, como se 
trata de um comportamento que não precisa afetar o outro, pode ser emitido na 
forma encoberta. 
 Essa condição representa um tipo de independência de indivíduos, mas 
apenas do ponto de vista imediato. Além do fato de que o indivíduo vive em 
uma rede complexa de relações, que o tornam dependente de muitos outros 
indivíduos (ainda que não o perceba), o conjunto das práticas mantidas por 
esses grupos repercute, num prazo maior, sobre a sobrevivência do grupo 
como um todo. A sobrevivência do grupo passa a ser a principal conseqüência 
compartilhada com os outros, mas, nesse caso, uma conseqüência não 
contatada na vida cotidiana; no lugar disso, uma conseqüência remota demais 
para controlar o comportamento atual dos indivíduos. Contingências especiais 
passam, então, a ser requeridas, contingências que podem promover o que 
Skinner (1968/2003) denominará de autogerenciamento ético (discutido 
adiante, na seção sobre autocontrole). Nesse ponto, o processo de 
individualização articula-se com a questão da privacidade. Onde a 
 
73
 A propósito, voltando ao tema de Skinner, sobre a invenção de dispositivos para ter acesso a 
certas conseqüências sem ter que emitir os comportamentos que originalmente as produziram, 
e emitindo comportamentos cada vez mais repetitivos, temos agora os livros em áudio, que 
propiciam o acesso aos textos contingentemente apenas à resposta de apertar botões. 
 
 172 
sobrevivência do grupo é um evento remoto, a sociedade precisa dispor 
contingências novas para garantir um comportamento previsível (não 
impulsivo) de cada um (entra aqui, também, o papel do Estado). Como 
assinalado no Capítulo 2, a privacidade emerge em grande medida como 
função de práticas sociais que promovem auto-observação e autocontrole. As 
conexões do autocontrole com a individualização tornam essa última também 
um aspecto a ser considerado para a análise da privacidade. 
 Retornando à questão econômica, em uma sociedade de mercado, os 
bens individualmente acumulados têm importância crucial para definir a 
posição de cada um na hierarquia social, assim como seu status nos diferentes 
contextos de interação com os outros. A dissociação das conseqüências 
contingentes ao trabalho de cada um (e especialmente a possibilidade de 
acesso a essas conseqüências sem o trabalho) funcionará também a favor de 
construção de riquezas pessoais diferenciadas. Esse aspecto corresponde em 
grande medida ao que significa a individualização nessas sociedades, visto que 
o poder econômico passa a ser a principal referência para a localização de 
cada um nas redes de relações sociais. E desse ponto de vista, o grau de 
mediação das relações econômicas pela moeda constitui um bom indicador do 
grau de individualização em uma sociedade. Quanto mais as relações entre os 
homens e mulheres são mediadas pela moeda, maior a individualização 
encontrada na sociedade; em grupos ainda comunitários, essa mediação está 
menos presente. 
 O estabelecimento da dicotomia indivíduo-sociedade, longamente 
discutida por Elias (1994), pode ser examinada por essa ótica. Os homens e 
 173 
mulheres falam de sua vida cotidiana como o seu “grupo”, a sua “família”, a sua 
“comunidade” quando seus comportamentos são em grande medida mantidos 
por conseqüências que afetam de um ponto de vista imediato os 
comportamentos dos outros membros do grupo (seja no interior de uma 
sociedade igualitária, ou hierárquica). Tenderão a falar de si mesmos como 
“indivíduos”, e dos outros como “sociedade”, quando seu comportamento é 
mantido por conseqüências que não afetam imediatamente o comportamento 
dos outros (e quando não são imediatamente afetados por conseqüências 
contingentes aos comportamentos dos outros). Uma passagem de Elias é 
ilustrativa do problema: 
Desde a Idade Média européia, o equilíbrio entre a identidade-eu e a 
identidade-nós passou por notável mudança, que pode ser 
resumidamente caracterizada da seguinte maneira: antes a balança 
entre as identidades-nós e eu pendia maciçamente para a primeira. 
A partir do Renascimento, passou a pender cada vez mais para a 
identidade-eu. Mais e mais freqüentes se tornaram os casos de 
pessoas cuja identidade-nós enfraqueceu a ponto de elas se 
afigurarem a si mesmas como eus desprovidos do nós. Enquanto, 
em épocas anteriores, as pessoas pertenciam para sempre a 
determinados grupos, fosse a partir do nascimento, fosse desde 
certo momento de sua vida, de tal modo que sua identidade-eu 
estava permanentemente ligada a sua identidade-nós e era amiúde 
obscurecida por ela, o pêndulo, com o correr do tempo, oscilou para 
o extremo oposto. A identidade-nós das pessoas, embora decerto 
 174 
continuasse sempre presente, passou, então, muitas vezes a ser 
obscurecida ou ocultada, em sua consciência, pela identidade-eu. (p. 
161) 
 A análise desenvolvida nesta seção pretende sugerir, finalmente, que a 
mudança ilustrada por Elias (1994) pode ser examinada à luz das relações de 
contingências envolvidas na realização de homens e mulheres - por exemplo, 
no campo econômico, mas também em muitos outros, na mesma medida em 
que em cada um penetra a cultura individualista. 
Se cada um se torna um indivíduo não apenas porque seu repertório é 
único, mas também (e, talvez, principalmente) porque em sua vida cotidiana 
despende a maior parte de seu tempo em atividades mantidas por 
conseqüências que não mantêm igualmente o comportamento dos outros, 
então cada um será mais requerido a auto-observar-se e autocontrolar-se na 
medida necessária para que cada outro possa também buscar sua satisfação 
pessoal. 
 
3.2. A Autonomia. 
 Este trabalho tem afirmado em muitos momentos que a emergência de 
uma condição de autonomia foi essencial para o processo de individualização e 
para a construção da subjetividade moderna. Como se acomoda essa 
proposição em um sistema explicativo que entende o homem como produto de 
sua história ambiental? Para responder essa questão, comecemos com uma 
caracterização mais precisa do que é a crítica que analistas do comportamento 
tecem à noção de autonomia, ou, mais especificamente, à noção de liberdade. 
 175 
 O comportamento humano, sendo uma interação do homem com o 
mundo, consiste de uma relação de dependência funcional entre respostas e 
estímulos. Apenas no contexto de relações desse tipo, uma ação do homem 
pode ser apropriadamentedesignada uma resposta, e aspectos do mundo 
físico e social são apropriadamente considerados estímulos. Uma parte ou 
aspecto do mundo físico e social que não tenha função para uma resposta, não 
constitui exatamente um estímulo, assim como uma ação ou movimento do 
organismo não vem a ser uma resposta se não participa de uma relação 
funcional com estímulos. Muitas vezes, falamos de comportamento como 
sinônimo de respostas e esse é o caso quando discutimos se os 
comportamentos humanos são determinados pelo ambiente ou não. Portanto, 
se com a indagação sobre a autonomia, estivermos inquirindo sobre a 
possibilidade de uma resposta independer de relações de contingência com 
estímulos, a análise do comportamento terá sempre uma resposta negativa. 
Todo responder do organismo é função de (participa de relações funcionais 
com) contingências de reforço. A resposta é sempre um termo de uma relação 
comportamental. Essa noção de modo algum implica passividade do homem, 
visto que o ambiente que afeta seu comportamento não existe enquanto tal de 
modo independente do responder do organismo, ele é produzido por esse 
responder, isto é, “o comportamento está continuamente produzindo as 
condições de sua produção” (Sério, 1997, p. 210). Isso vale mesmo para 
alguém que não se comporta de acordo com os padrões de uma subcultura 
dominante (isto é, para alguém que age sob controle de contingências 
dispostas por outras subculturas): 
 176 
Mesmo aqueles que se destacam como revolucionários são quase 
inteiramente produtos convencionais dos sistemas que subvertem. 
Eles falam a língua, usam a lógica e a ciência, observam muitos dos 
princípios éticos e legais e empregam as habilidades práticas e o 
conhecimento que a sociedade os concedeu. Uma pequena parte de 
seu comportamento pode ser excepcional, talvez dramaticamente 
excepcional, e teremos que procurar razões excepcionais em suas 
histórias idiossincráticas. (Atribuir suas contribuições originais a seu 
caráter taumaturgo como homens autônomos não constitui, é claro, 
qualquer explicação). (Skinner, 1971/2002, p. 124) 
 Isso significa que a liberdade constitui uma ficção que merece ser 
abandonada? Em termos. Uma análise comportamental do problema começa 
com a indagação: “sob que condições, emitimos a resposta verbal ‘liberdade’”? 
Freqüentemente falamos de liberdade quando não há controle baseado em 
reforçadores negativos (punição positiva, ou reforço negativo). Para Skinner, 
essa é a base da “literatura da liberdade”, que cumpriu um papel importante na 
história do ocidente, ao motivar os indivíduos para a luta contra o controle 
aversivo do comportamento. 
Algo que podemos chamar de “literatura da liberdade” foi delineada 
para induzir as pessoas a escaparem de ou atacarem aqueles que 
agem para controlá-las aversivamente. O conteúdo dessa literatura é 
a filosofia da liberdade, mas as filosofias encontram-se entre aquelas 
causas internas que precisam ser examinadas. (Skinner, 1971/2002, 
p. 30) 
 177 
 A literatura da liberdade, no entanto, se volta apenas para situações em 
que um tipo específico de controle é encontrado, e ignora que o controle existe, 
e freqüentemente os indivíduos não lutam contra ele, em muitas outras 
circunstâncias74. Em particular, o controle sob a forma de contingências 
baseadas no uso de reforçadores positivos encontra pouca reação e mesmo 
reconhecimento. Os indivíduos tenderão menos a se ver como controlados 
quando são positivamente reforçados por agir de determinados modos e 
tenderão a reagir menos a essa forma de controle. Isso acontece porque a 
questão da liberdade e do controle é enfatizada no mundo moderno a partir de 
como os indivíduos se sentem. Isto é, respostas verbais do tipo “liberdade” 
tendem a ser emitidas sob controle de relações ou condições corporais a elas 
associadas, em que o controle aversivo inexiste. Na presença do sentimento de 
liberdade, supõe-se ainda que o controle em geral está ausente. Dada sua 
associação com estímulos aversivos, a noção de controle adquire um valor 
negativo na cultura ocidental, o que dificulta a disseminação do planejamento 
de contingências para a solução de problemas humanos75. 
 
74
 Em uma passagem, Skinner (1971/2002) afirma que “uma das coisas mais notáveis da luta 
por liberdade do controle intencional é a freqüência com que ela não existe. Muitas pessoas 
têm se submetido aos mais óbvios controles religiosos, governamentais e econômicos por 
séculos, lutando por liberdade apenas esporadicamente, quando lutam. A literatura da 
liberdade prestou um contribuição essencial à eliminação de muitas práticas aversivas no 
governo, na religião, na educação, na vida familiar e na produção de bens” (p. 31). 
 
75
 Skinner (1971/2002) discute longamente esse problema. Segundo ele, a reação ao controle 
não deveria ser generalizada: “O problema é libertar os homens não do controle, mas de certos 
tipos de controle e isso pode ser resolvido apenas se nossa análise levar em conta todas as 
conseqüências” (Skinner, 1971/2002, p. 41). No âmbito das relações interpessoais, não há 
como ignorar a função que o comportamento de um indivíduo pode ter para o comportamento 
de outro (ou seja, como o comportamento de um pode controlar o comportamento de outro: 
“muitas práticas sociais essenciais ao bem estar da espécie envolvem o controle de uma 
pessoa por outra e ninguém que se preocupe com as realizações humanas pode suprimir 
essas práticas” (p. 41). A reação ao controle funciona, enfim, contra os indivíduos e as culturas: 
“Não fosse pela nossa generalização desavisada de que todo controle é errado, lidaríamos 
com o ambiente social de modo tão simples quanto lidamos com o ambiente não social. 
 178 
 Há duas situações principais em que analistas do comportamento 
empregam o conceito de controle: para falar dos objetivos de sua ciência (a 
afirmação da previsão e controle como os fins últimos da ciência) e para 
afirmar a dependência funcional do comportamento (ou respostas) em relação 
a estímulos (a afirmação de que todo comportamento é controlado pelo 
ambiente). No primeiro caso, já foi sugerido (S. C. Hayes, 1993) que o melhor é 
falar de “previsão e influência” como objetivos da ciência do comportamento, 
visto que face à multideterminação do comportamento é possível apenas 
reduzir, mas não eliminar totalmente a variabilidade comportamental. 
 No segundo caso, da dependência funcional entre respostas e 
estímulos, pode-se dizer que a noção de controle significa nada mais do que 
sensibilidade. O comportamento humano é controlado pelo ambiente no 
sentido de os homens e mulheres são sensíveis ao mundo que produzem ou 
com o qual interagem, isto é, não são indiferentes ao mundo a sua volta como 
um todo (embora possam sê-lo com respeito a algumas parcelas ou aspectos 
desse mundo, dependendo sempre de sua história ambiental). 
 O sentido em que o conceito de autonomia é empregado nos trabalhos 
mencionados até aqui não conflita com essa noção de sensibilidade aos 
eventos do mundo com o qual o indivíduo interage. Ao contrário, diz-se que é 
apenas quando o indivíduo passa a interagir com um ambiente social diferente, 
 
Embora a tecnologia tenha libertado os homens de certos aspectos aversivos do ambiente, ela 
não os libertou do ambiente. Aceitamos o fato de que dependemos do mundo a nossa volta e 
simplesmente alteramos a natureza da dependência. Da mesma maneira, para tornar o 
ambiente social tão livre quanto possível de estímulos aversivos, não precisamos destruir o 
ambiente ou escapar dele; precisamosredesenhá-lo (Skinner, 1971/2002, p. 42). 
 
 179 
quando fica sob controle das novas contingências de um ambiente social, que 
poderá experimentar alguma autonomia. 
 Embora a alegação de uma autonomia possa ser vista como compatível 
com a noção de determinação ambiental, ela não significa exatamente o 
sentimento de liberdade referido por Skinner. O que está em jogo quando se 
diz que o indivíduo moderno tem certa autonomia é não apenas o fato de 
experimentar um sentimento de liberdade (pela eliminação de certos controles 
aversivos, o que de fato ocorre para algumas culturas ou grupos), mas 
principalmente o fato de que ele é exposto a um ambiente no qual os cursos de 
ação possíveis estão multiplicados e freqüentemente ele tem que tomar 
decisões, ou fazer escolhas. As contingências sociais são tais nessas 
situações, que as possíveis conseqüências de cada alternativa de ação não 
são evidentes, entre outras razões porque distanciam-se temporalmente da 
ação (diferente do que acontece quando a sobrevivência do indivíduo vincula-
se estreitamente com a sobrevivência do grupo, em que conseqüências 
imediatas prevalecem e variáveis sociais muito freqüentemente limitam as 
chances de escolha). Esse é um aspecto insistentemente assinalado por Elias 
(1994)76. 
Quer o indivíduo o recorde ou não, o caminho que ele tem que trilhar 
nessas sociedades complexas – comparado ao que se abre para o 
indivíduo das sociedades menos complexas – é extraordinariamente 
rico em ramificações e meandros, embora não na mesma medida, é 
 
76
 O outro lado desse tipo de autonomia é o fato de que as conseqüências das escolhas pesam 
sobre o indivíduo particular, o que torna as ocasiões de tomar decisões circunstâncias que 
envolvem riscos pessoais. 
 
 180 
claro, para os indivíduos de diferentes classes sociais. Ele passa por 
um grande número de bifurcações e encruzilhadas em que se tem 
que decidir por esse ou aquele caminho. Quando se olha para trás, é 
fácil deixar-se tomar pela dúvida. Eu não deveria ter escolhido um 
rumo diferente? Não terei desprezado todas as oportunidades que 
tive naquela ocasião? Agora que consegui isto, que produzi isto ou 
aquilo, que me tornei um especialista nisto ou naquilo, não terei 
deixado que se perdessem muitos outros dons? E não terei deixado 
de lado muitos coisas que poderia ter feito? É próprio das 
sociedades que exigem de seus membros um grau muito elevado de 
especialização que grande numero de alternativas não utilizadas – 
vidas que o indivíduo não viveu, papéis que não desempenhou, 
experiências que não teve, oportunidades que perdeu – sejam 
deixadas à beira do caminho. (pp. 109-110) 
 Ainda que sem recorrer ao conceito de autonomia, há uma literatura na 
análise do comportamento que enfoca precisamente o problema da escolha 
entre cursos de ação possíveis e que alarga o enfoque oferecido para a 
questão da determinação ambiental do comportamento, abrangendo 
dimensões que dizem respeito à possibilidade permanente de um indivíduo 
poder comportar-se de modos variados. O ponto de partida dessa literatura é a 
noção de esquemas concorrentes, a idéia de que um organismo pode estar 
exposto, a um mesmo tempo, a diferentes contingências de reforço, 
respondendo a um ou outro de vários arranjos de contingências. Isto é, “um 
esquema concorrente consiste de dois ou mais esquemas individuais ou 
 181 
componentes, que estão disponíveis ao organismo ao mesmo tempo” 
(McDowell, 1989, p.154). Quando identificamos esquemas concorrentes a que 
um organismo está exposto, podemos supor (prever) que responderá a um ou 
outro esquema dependendo de certas propriedades77 das relações respostas-
conseqüências. E podemos mesmo influenciar sua escolha, o que conduz a um 
reconhecimento importante sobre de que modos podem ser alteradas 
probabilidades de operantes concorrentes. Souza e Andery (2004) introduzem 
a questão assinalando que 
a pesquisa sobre esquemas – isto é, sobre como o arranjo de 
conseqüências afeta o comportamento, tem mostrado que diferentes 
tipos de arranjos entre respostas e conseqüências podem gerar e 
manter padrões altamente regulares de comportamento (Ferster & 
Skinner, 1957/1992). Esse conhecimento é importante, seja para 
sintetizar comportamentos novos – isto é para planejar e 
implementar esses arranjos, de modo a gerar comportamentos de 
interesse, seja para entender e alterar padrões ocorrendo em 
situações naturais. Mas talvez a contribuição mais importante seja a 
noção, fortemente generalizável, de que todo comportamento ocorre 
no contexto de outros comportamentos e que os efeitos das 
conseqüências de um comportamento são sempre relativos, são 
função do contexto de reforço (Baum, 1974; Hernstein, 1970; 
McDowell, 1989) isto é, o valor reforçador de uma mesma 
 
77
 “a proporção de respostas em uma dada alternativa ... é igual à proporção de reforços 
obtidos daquela alternativa. Essa relação se mantém se o tempo despendido no responder é 
medido, no lugar da taxa de resposta” (McDowell, 1989, p. 154), isto é, a proporção de tempo 
despendido em um responder é igual à proporção de reforços obtidos nessa alternativa. 
 
 182 
conseqüência varia dependendo de quais são os outros reforçadores 
disponíveis. (p. 2) 
 A lei da igualação consiste de uma proposição matemática da relação 
entre respostas e reforços em esquemas concorrentes. “De acordo com a 
teoria da igualação, o efeito do reforço contingente só pode ser entendido em 
termos do contexto total de reforço no qual ocorre” (McDowell, 1989, pp.155-
156). Essa formulação já incorpora uma contribuição de Hernstein (1970), que 
assinalou que os organismos estão expostos a esquemas concorrentes mesmo 
quando procedimentos experimentais programam o reforço contingente a uma 
única classe de respostas. Todo comportamento envolveria uma escolha, 
mesmo quando isso não é óbvio ou planejado, na medida em que sempre há 
outros cursos de ação possíveis. Assim, “as equações [propostas por 
Hernstein, 1970] estabelecem que o comportamento é determinado não 
apenas pelo reforço contingente (r), mas também por todo outro reforço provido 
pelo ambiente” (McDowell, 1989, p.155). 
 Face ao que estabelece a lei da igualação todo responder de um 
indivíduo é função não apenas do reforço contingente a uma classe de 
respostas, mas também da disponibilidade, na mesma situação, de outros 
reforços contingentes a outras classes de respostas. Quando um indivíduo se 
encontra, por exemplo, em uma praça, pode fazer muitas coisas diferentes e 
ser reforçado. Pode caminhar, conversar com o vendedor de jornais, jogar 
futebol, comprar um sorvete, observar os pássaros, brincar com as crianças, 
namorar etc.. A probabilidade de o indivíduo conversar com o jornaleiro 
dependerá não apenas do reforço contingente a essa classe de respostas, mas 
 183 
da taxa de reforço contingente a cada outra possibilidade de ação. Uma 
conseqüência importante da lei da igualação consiste do fato de que a 
probabilidade de emissão de uma classe de respostas pode ser alterada sem 
que o esquema correspondente seja alterado, simplesmente como resultado de 
uma alteração na taxa de reforço contingente a classes de respostas 
concorrentes. Por exemplo, a probabilidade de o indivíduo conversar com o 
jornaleiro poderá ser alterada simplesmente modificando-se a taxa do reforço 
contingente a brincar com as crianças. Do mesmo modo, uma criança pode 
chorar menos (um responder mantido por atenção social) como resultado de 
um aumento na taxa de reforço de respostas de brincar. Um adolescente pode 
despender mais tempo apostando em jogos eletrônicosquando se altera a taxa 
de reforço contingente à prática de esportes. Um professor pode dar mais aulas 
quando se altera o reforço contingente à elaboração de artigos. O contexto de 
esquemas concorrentes define, assim, as probabilidades de resposta de um 
indivíduo. A validade da lei da igualação em seus diferentes refinamentos (cf. 
McDowell, 1989) encontra amplo suporte empírico, com várias espécies. Além 
disso, “a evidência disponível indica que a teoria da igualação se sustenta nos 
ambientes humanos naturais tanto quanto no laboratório, e que ela tem 
aplicações terapêuticas úteis” (McDowell, p.156). Sobre as aplicações da 
teoria, Mijares e M. T. A. Silva (1999) assinalam: 
Uma das conseqüências mais importantes dentro da teoria e da 
prática comportamental derivada da lei da igualação e 
especialmente da hipérbole [de Hernstein], é que, para poder 
predizer como determinado reforçador vai afetar o comportamento, é 
 184 
necessário levar em consideração o contexto no qual esse 
reforçador é contingente ao comportamento, isto é, levar em 
consideração os outros reforçadores presentes no meio e 
contingentes a outras respostas. Por exemplo, a lei da igualação 
oferece um marco referencial que permite compreender os “efeitos 
colaterais” inexplicados do reforço ou da extinção, freqüentemente 
relatados na literatura e às vezes chamados por críticos da terapia 
comportamental de “substituição de sintoma”. Por exemplo, vários 
autores relataram que a taxa de comportamentos inadequados 
dentro de aula diminui quando comportamentos acadêmicos são 
reforçados; outros informaram que a freqüência do comportamento 
de auto-estimulação diminui quando outros comportamentos não 
relacionados são reforçados; igualmente, outros tantos estudos 
mostram que comportamentos adequados diminuem em freqüência 
quando outros comportamentos, também adequados, são reforçados 
(McDowell, 1988). Segundo a teoria da igualação, esses efeitos 
colaterais não são inexplicáveis, mas são conseqüências da 
mudança do contexto reforçador do ambiente. Assim, a teoria prediz 
que qualquer intervenção que acrescente ou remova reforçadores, 
mudando a quantidade total de reforços no ambiente, não apenas 
mudará o comportamento que é objeto de intervenção, mas também 
os outros comportamentos emitidos nesse ambiente. (p. 47) 
 A escolha está, portanto, contemplada em uma ciência comportamental 
que reconhece como unidade de análise não apenas respostas específicas ou 
 185 
relações de contingência específicas, mas também o contexto de 
possibilidades concorrentes de comportamento dos indivíduos. A idéia de que a 
escolha vem a ser ela mesma determinada pela taxa relativa de reforços pode 
parecer contrariar a idéia de que os indivíduos escolhem agir de um ou outro 
modo, mas o que está sendo afirmado é que esse escolher não existe 
independentemente das conseqüências de cada escolha. E de um ponto de 
vista empírico, a dependência funcional das escolhas está estabelecida. 
 Partindo-se, então, do fato de que a análise do comportamento 
reconhece (e tem produzido evidências) que os organismos estão 
permanentemente expostos a arranjos concorrentes de contingências, que 
sempre há vários cursos de ação possíveis, e que a probabilidade de um 
indivíduo agir de um ou outro modo é determinada apenas probabilisticamente, 
podemos avançar na interpretação das particularidades desse fenômeno nas 
culturas (individualistas) em que a noção de autonomia floresceu e tornou-se 
central. 
 Um primeiro aspecto a ser considerado é que um mundo baseado na 
exploração e transformação radical do ambiente e no desenvolvimento 
tecnológico cria muito mais alternativas de ação para o indivíduo, 
comparavelmente com ambientes culturais menos complexos. A cada 
momento, há uma variedade muito maior de classes de respostas com alguma 
probabilidade de serem emitidas e há muito mais variação topográfica dentre 
de uma mesma classe de respostas. Exemplo do primeiro caso são as 
inúmeras profissões que sintetizam as funções sociais disponíveis numa dada 
sociedade. Como exemplo do segundo caso há os diversos modos de 
 186 
alimentar-se, envolvendo o uso de utensílios cada vez mais variados, em 
contexto também bastante diversificados. Paradoxalmente, como apontado 
antes, esse é o mesmo ambiente cultural que promove a estereotipia 
topográfica e o responder repetitivo (considere-se a freqüência do “apertar 
botões” nesse ambiente), quando certas práticas culturais são selecionadas 
com base no efeito de prazer do reforço. De qualquer modo, há nas sociedades 
modernas, muito mais situações que designamos de escolha do que nas 
sociedades mais simples. Isto é, o sujeito nessas sociedades mais complexas 
está mais permanentemente exposto a arranjos concorrentes de contingências 
mais numerosos. Em razão disso, escolhe mais – não porque é mais 
autônomo, mas porque o ambiente exige. 
 Mais fundamental é outra particularidade dos esquemas concorrentes 
em sociedades complexas: o fato de que muito freqüentemente as 
conseqüências para os cursos de ação possíveis são muito atrasadas, muitas 
vezes jamais contatadas pelos indivíduos. Um indivíduo que vive em uma 
sociedade mais simples tende a escolher entre pescar ou caçar, conversar ou 
jogar, beber água ou aguardente etc.. Além de menos numerosas, as 
alternativas de ação têm em comum o fato de que produzem conseqüências 
contatadas pelos indivíduos imediatamente, ou no máximo em prazo curto (a 
distância temporal das conseqüências parece variar com o grau de 
complexidade das sociedades). Nas sociedades mais complexas, como as 
sociedades de mercado, a distância temporal entre a resposta e a 
conseqüência é maior. O indivíduo escolhe hoje pagar ou não um plano de 
previdência, para ter uma aposentadoria melhor trinta anos depois; escolhe 
 187 
hoje declarar ou não ao fisco o seu ganho financeiro, para fugir de uma multa 
cinco anos depois; escolhe hoje um curso profissionalizante, para dez anos 
depois talvez alcançar uma função social bem remunerada. Esses são tipos de 
escolha para os quais um adestramento especial será necessário. A 
impulsividade infantil precisará dar lugar à capacidade de ponderar 
conseqüências atrasadas da ação. A formação para a vida nessas sociedades 
exigirá um novo tipo de educação. 
 A capacidade de estimar conseqüências muito atrasadas dos vários 
cursos de ação possíveis será tão mais necessária quanto mais se realiza um 
terceiro aspecto peculiar dos esquemas concorrentes a que os indivíduos das 
sociedades modernas estão expostos: a maior distância (em magnitude ou 
valor reforçador) das conseqüências contingentes a cada curso de ação. No 
mundo moderno, escolher entre x e y significa não apenas ter acesso a um 
reforço um pouco maior ou um pouco menor, um pouco mais freqüente, ou um 
pouco menos freqüente. Significa muitas vezes realizar-se ou não 
(materialmente, afetivamente etc.), viver muitos ou poucos anos além da 
aposentadoria, tornar-se uma celebridade ou um anônimo, poder manter uma 
família ou viver na solidão etc.. As escolhas nesses contextos contêm a 
possibilidade de uma mudança muito significativa em aspectos importantes da 
vida a longo prazo; elas não envolvem simplesmente o conforto ou a satisfação 
imediatos do indivíduo. 
 Uma última observação sobre a autonomia no mundo moderno, pensada 
à luz da noção de esquemas concorrentes: como as conseqüências de maior 
magnitude ou maior valor reforçador produzidas por certas escolhas são 
 188 
freqüentemente muito atrasadas, o comportamento de escolha dessas 
alternativas freqüentemente vem a ficar sob controle de outras contingências, 
contingências sociais que funcionam parapromover a escolha do curso de 
ação que produz as conseqüências atrasadas. Em um trabalho sobre as 
relações entre assertividade e autocontrole, Marchezini-Cunha (2004) definiu 
os dois tipos de conseqüências: 
ao longo deste trabalho serão utilizadas as expressões 
“conseqüências sociais específicas” e “conseqüências reforçadoras 
em geral”. Conseqüências sociais específicas terão, aqui, o sentido 
de aprovação ou desaprovação de dado comportamento pelo grupo. 
Já conseqüências reforçadoras em geral (ou conseqüências 
aversivas em geral) poderão ser entendidas como satisfação de 
outras necessidades, conseqüências mediadas socialmente ou não, 
mas em sentido diverso àquele específico de 
aprovação/desaprovação. (p. 3) 
 Ou seja, uma última particularidade da autonomia de que fala Elias 
(1994), ou do comportamento de escolha em sociedades complexas é que a 
probabilidade de um curso de ação não é necessariamente função da 
proporção de reforço (atrasado) contingente a esse e a outros cursos de ação, 
mas de uma relação entre magnitude e atraso do reforço em esquemas 
concorrentes nos quais se incluem contingências sociais de 
aprovação/desaprovação não necessariamente conectadas com outros 
eventos possivelmente reforçadores. 
 189 
 A sociedade, porém, tende a introduzir contingências para influenciar as 
escolhas do indivíduo apenas naquelas circunstâncias em que a escolha 
produz não apenas uma conseqüência para ele mesmo, mas também uma 
conseqüência para o grupo. Por exemplo, a sociedade dispõe contingências 
especiais para favorecer a prática de esportes, no lugar do consumo de drogas. 
Nesse caso, a sociedade intervém para aumentar a probabilidade do 
comportamento que favorece o grupo. Quando não estão em jogo 
conseqüências para o grupo, e quando as conseqüências que afetam apenas o 
próprio indivíduo são muito atrasadas, as escolhas podem ser função de muitas 
outras variáveis relacionadas à história ambiental do indivíduo, por vezes muito 
difíceis de aferir, o que fortalece uma visão de autonomia. 
 Por exemplo, mesmo em sociedades complexas, os esquemas 
concorrentes envolvem conseqüências que não são atrasadas, e que não 
representam um conflito indivíduo/grupo. O indivíduo pode escolher beber leite 
ou suco, pegar um elevador ou uma escada rolante, viajar ou comprar um 
carro, jogar damas ou dominó etc. Essas são situações em que esquemas 
concorrentes estão operando e que podem ser explicadas recorrendo-se à lei 
da igualação. Não ilustram, porém, toda a problemática da autonomia individual 
no mundo moderno78. 
 Em suma, a autonomia encontrada nas sociedades modernas tanto se 
explica em termos da exposição permanente de indivíduos a esquemas 
concorrentes de reforço, que exigem escolhas, como, em alguns casos, a partir 
de particularidades desses esquemas nessas sociedades, em termos da 
 
78
 Voltando ao continuum de complexidade dos fenômenos comportamentais, podemos dizer 
que essas são situações em um ponto intermediário daquele continuum. 
 
 190 
distância temporal entre respostas e conseqüências e a participação de 
contingências sociais adicionais quando os cursos de ação possíveis envolvem 
um conflito entre conseqüências para o indivíduo e conseqüências para o 
grupo. Nesse ponto, a questão da autonomia se articula com o problema do 
autocontrole. 
 
3.3. O Autocontrole. 
 Análises como a desenvolvida por Elias (1939/1990b, 1994) apontam 
para a importância do autocontrole na definição da experiência subjetiva 
moderna. Elias (1994) salienta que a particularidade do processo de 
individualização no mundo moderno é que ele vem acompanhado de uma 
exigência crescente de autocontrole. 
Aquilo que visto por um aspecto se apresenta como um processo de 
individualização crescente é, visto por outro, um processo de 
civilização. Pode-se considerar característico de certa fase desse 
processo que se intensifiquem as tensões entre os ditames e 
proibições sociais, internalizados como autocontrole, e os impulsos 
espontâneos reprimidos. Como dissemos, é esse conflito no 
indivíduo, essa “privatização” ... que desperta no indivíduo a 
sensação de ser, “internamente”, uma coisa totalmente separada, de 
existir sem relação com outras pessoas, relacionando-se apenas 
“retrospectivamente” com os que estão “fora” dele. (Elias, 1994, p. 
103) 
 Na medida em que vão se dissociando as conseqüências que mantêm o 
 191 
comportamento de cada um (que cada um vai sendo mais diferente de todos os 
demais porque suas relações com o mundo são cada vez mais 
particularizadas) e na medida em que isso acontece em um contexto de 
relações de dependência interpessoal indiretas muito complexas, mais e mais 
autocontrole vai sendo exigido do indivíduo e, desse modo, vai se construindo 
sua “interioridade” e ele vai se vendo como autônomo. Podemos formular o 
problema do seguinte modo: quanto mais idiossincráticas as relações 
comportamentais que definem a vida cotidiana dos indivíduos, em contextos de 
contingências concorrentes cada vez mais numerosas e que envolvem um 
conflito de conseqüências para o indivíduo e para o grupo, mais e mais vão 
sendo exigidos do indivíduo a auto-observação e a emissão de 
comportamentos autocontrolados. Como resultado disso, o indivíduo deve 
observar mais o próprio corpo, fazer mais escolhas e responder sob controle de 
conseqüências em geral atrasadas, ou conseqüências sociais imediatas 
específicas do tipo aprovação/desaprovação. Esse padrão de comportamento 
envolverá um responder reflexivo com participação cada vez mais reduzida do 
aparelho motor e um responder emocional sem os componentes motores 
selecionados filogeneticamente. Por “responder reflexivo” entendam-se aqueles 
repertórios de exame, apreciação elaboração conceitual e deliberação sobre 
aspectos do mundo a sua volta. Por “responder emocional”, entendam-se 
aquelas relações (ou conjunto de relações, mais ou menos complexas) que se 
originam a partir das chamadas emoções básicas ou primárias. 
 No Capítulo 1, assinalamos que para Elias (1939/1990b) a noção de 
interioridade se torna persuasiva na medida em que os “impulsos naturais” 
 192 
precisam ser contidos e nisso consiste o autocontrole. Tal contenção significa, 
para Elias, que os “impulsos emocionais” não podem atingir o aparelho motor. 
A metáfora do homo clausus seria assim justificada pela experiência que cada 
um tem de vigiar o próprio corpo para conter as emoções “naturais”. Um 
analista do comportamento pode considerar dispensável esse tipo de 
abordagem, alegando que permanece no campo de uma lógica internalista. 
Todavia, a argumentação de Elias vai justamente na direção oposta, 
assinalando as redes de interdependência entre os homens e as dimensões 
dessas redes (complexidade, sob a forma de extensão das redes e existência 
de muitos elos de mediação da dependência) que tornam difícil aos indivíduos 
visualizá-las. Toda a análise de Elias tem a função de tornar inteligível a auto-
imagem de autonomia e ainda assim apontar seu caráter ilusório. Portanto, 
estamos diante de um autor que opera com uma lógica relacional, não 
internalista, na análise de problemas de interesse central para a Psicologia. 
Que contribuições mais específicas sua análise provê para uma abordagem 
comportamental desses problemas? Diversas, dentre elas a indicação de 
algumas variáveis culturais de relevância central no mundo moderno, a 
proposição de que o autocontrole constitui uma chave para a discussão dos 
fenômenos emocionais tal como se configuram nessa cultura e a sugestão de 
que um aspecto importante dessa configuração consiste da forma de emissão 
de certas respostas:com restrita participação do aparelho motor, ou 
simplesmente a emissão de respostas com dimensões motoras concorrentes 
(e.g., sorrir em um momento de desagrado). 
 Na análise do comportamento, o autocontrole recebe um tratamento 
 193 
diverso. Não se trata de “conter emoções”, mas de responder sob controle de 
conseqüências com maior atraso e maior magnitude, quando esse responder 
concorre com outro(s) (impulsivos) mantido(s) por conseqüências imediatas de 
menor magnitude (cf. Hanna & Todorov, 2002; Rachlin, 1974, 1991; Skinner, 
1974/1993, 1968/2003). Segundo Rachlin (1991), “retire a questão temporal e a 
questão do autocontrole será também eliminada” (p. 264). Há, no entanto, um 
terreno comum às duas abordagens, que será aqui enfatizado: a relação entre 
autocontrole e dimensões éticas do processo de individualização. 
 Muito freqüentemente, nas sociedades modernas, o indivíduo está 
exposto a contingências concorrentes que envolvem um conflito entre 
conseqüências (imediatas) para si mesmo e conseqüências atrasadas (para si 
mesmo e para os outros) (e.g., cada um pode jogar seu lixo no mar quando vai 
à praia, ou acondicioná-lo em recipientes próprios e transportá-lo para o local 
de coleta; pode pescar a qualquer momento, ou apenas fora do período de 
reprodução das espécies; pode respeitar as leis de trânsito, ou dirigir de acordo 
com sua urgência e conveniência etc.). Nesses casos, a impulsividade traz 
uma conseqüência negativa para o grupo como um todo, ainda que represente, 
para o próprio indivíduo, de um ponto de vista imediato, um conseqüência 
positiva. Rachlin (1991) assinala que 
o que quer que leve uma pessoa a sacrificar prazeres imediatos para 
seu próprio bem no futuro pode também levar uma pessoa a 
sacrificar bens individuais em prol de bens sociais. A idéia 
subjacente à analogia é que cooperar com outros geralmente resulta 
em bens maiores a longo prazo para o indivíduo (embora isso possa 
 194 
não acontecer o tempo todo). (p. 284) 
 Skinner discute o autocontrole a partir de duas óticas. Uma primeira (cf. 
Skinner, 1953/1965) diz respeito à possibilidade de o próprio indivíduo dispor 
contingências que favoreçam a emissão do comportamento autocontrolado79. 
Neste caso, as “técnicas de autocontrole” funcionam do mesmo modo que as 
estratégias para controle do comportamento do outro: altera-se o ambiente e, 
como resultado, a probabilidade de certas classes de respostas é alterada 
(e.g., desliga-se a televisão para aumentar a probabilidade do comportamento 
de ler, coloca-se pouco dinheiro na carteira para reduzir a probabilidade de 
fazer despesas etc.)80. Uma outra, e talvez principal, ótica desenvolvida por 
Skinner diz respeito às circunstâncias nas quais a sociedade introduz 
contingências que favoreçam o comportamento autocontrolado e/ou inibam o 
comportamento impulsivo. Neste último caso, estamos no terreno da ética. 
A ética é principalmente uma questão de conflito entre 
conseqüências imediatas e remotas. Como podemos abrir mão de 
 
79
 Skinner refere-se às situações em que o indivíduo manipula variáveis para alterar a 
probabilidade de outros comportamentos como exemplos do que tem sido denominado como 
“resolução de problemas”, “tomada de decisão” e “autocontrole” (cf. Nico, 2001). Sobre a 
diferença entre tomada de decisão e autocontrole, Nico afirma que “o que caracteriza a tomada 
de decisão é o desconhecimento prévio, por parte do sujeito que se comporta, das 
conseqüências a serem produzidas por um e outro comportamento. Assim, diferentemente do 
autocontrole, o comportamento de tomar uma decisão não consiste na aplicação de um 
conjunto de técnicas de modo a tornar mais provável uma resposta antecipadamente 
identificada. O que define a tomada de decisão é a emissão de certos comportamentos que 
aumentam a probabilidade de optar por, decidir qual curso de ação será tomado. Dessa forma, 
um indivíduo torna-se mais capaz de tomar uma decisão quando se comporta de modo a 
produzir conhecimento acerca das contingências envolvidas em um e outro comportamento” (p. 
16). A discussão apresentada neste trabalho sugere, porém, que autocontrole e tomada de 
decisão confundem-se quando se trata de esquemas concorrentes que envolvem 
conseqüências imediatas e atrasadas, para o indivíduo e para o grupo. 
 
80
 Diz Skinner (1953/1965) que ao manipular as variáveis o indivíduo “controla-se precisamente 
como controlaria o comportamento de qualquer outro, por meio da manipulação de variáveis 
das quais o comportamento é função. Ao fazer isso, seu comportamento é um objeto próprio de 
análise, e finalmente deve ser explicado por variáveis que se situam fora do próprio indivíduo” 
(pp. 228-229). 
 
 195 
uma recompensa de modo a evitar uma punição mais tarde, ou 
admitir uma punição em nome de uma recompensa mais tarde? As 
culturas têm ajudado a resolver o problema, provendo 
conseqüências imediatas que têm os mesmos efeitos que as 
conseqüências remotas. Elas envergonham seus membros que não 
conseguem abrir mão das recompensas imediatas, ou se recusam a 
admitir a punição imediata, e louvam aqueles que conseguem. Se 
comer muito sal e açúcar fosse mais sério, isso seria considerado 
vergonhoso. (Skinner, 1987b, p. 6) 
 Contingências sociais podem funcionar para promover o responder 
autocontrolado, mesmo quando os esquemas concorrentes envolvem 
conseqüências apenas para o próprio indivíduo (e.g., a sociedade pode dispor 
contingências que favoreçam práticas esportivas relacionadas a uma vida mais 
saudável)81. No caso das sanções éticas82, porém, estamos diante da 
circunstância específica em que o responder impulsivo do indivíduo pode 
 
81
 Marchezini-Cunha (2004) e Nico (2001) fornecem boas sistematizações das possíveis 
relações de autocontrole. Na descrição de Marchezini-Cunha, “as relações de autocontrole 
podem ser didaticamente categorizadas da seguinte maneira: (1) situações nas quais o 
autocontrole é originado somente do conflito entre as conseqüências diretas do comportamento 
do indivíduo; (2) situações nas quais o conflito entre as conseqüências do comportamento é 
acentuado por sanções éticas impostas pelo grupo. As situações da categoria (2) podem ser 
ainda subdividas em (a) conjunto de condições sob as quais o grupo impõe sanções éticas 
como forma de facilitar o autocontrole e assim “proteger” o indivíduo das conseqüências 
aversivas de seu comportamento impulsivo e favorecer um comportamento vantajoso para o 
indivíduo; e (b) conjunto de condições sob as quais as sanções éticas visam a promoção do 
autocontrole, evitando assim conseqüências que seriam reforçadoras para o indivíduo, mas 
aversivas para o grupo (p. 29). 
 
82
 Uma definição para “sanções éticas” é elaborada por Marchezini-Cunha (2004): “sanções 
éticas podem ser compreendidas como estímulos aversivos dispostos pelo grupo com a função 
de reduzir a freqüência de uma resposta impulsiva, como também podem ser interpretadas 
como regras, alterando a função de certos estímulos, colocando assim o comportamento do 
indivíduo sob controle de estímulos que não o controlariam sem a regra. Por exemplo, a pena 
de 2 anos de reclusão por porte ilegal de arma (sanção como conseqüência aversiva) e a regra 
‘biscoitos recheados são constituídos de substâncias cancerígenas’ (regra alterando a função 
do estímulo, aumentando a probabilidade de autocontrole)” (p. 31). 
 196 
produzir conseqüências aversivas para o grupo. As sanções tornam-se 
necessárias porque o responder autocontrolado do indivíduo, que favoreceria o 
grupo, não chega a ser instalado. As conseqüências são muito atrasadas e 
freqüentemente o indivíduo sequer faz contato com elas. Assim, umaestimulação suplementar, social, entra em ação para evitar a impulsividade83. 
Trata-se, em geral de uma punição contingente ao comportamento impulsivo 
(uma punição cuja magnitude, para ser eficaz, varia acompanhando mudanças 
nas conseqüências de respostas concorrentes – ou seja, varia acompanhando 
o contexto de reforços disponíveis). Como resultado, os esquemas 
concorrentes a que o indivíduo encontra-se exposto incluem contingências 
sociais que produzem um autocontrole sob a forma de “comportamento de 
esquiva socialmente instalado” (Nico, 2001, p. 85)84. 
 Ora, o responder do organismo que pode alterar o ambiente físico e 
assim afetar os outros é o responder com (determinada) participação do 
aparelho motor85. Assim, o autocontrole, em circunstâncias de conflito ético, 
mesmo pensado enquanto um responder sob controle de conseqüências 
 
83
 Nico (2001) assinala que “esta pode ser apontada como uma diferença em relação ao 
primeiro conjunto de condições sob as quais o grupo leva o indivíduo a autocontrolar-se 
[categoria 2a]. Sob aquelas condições, o indivíduo em algum momento entra em contato com 
as estimulações aversivas diretamente produzidas pelo seu comportamento – a ressaca por ter 
bebido, a dor no estômago por ter comido muito, a perda de fôlego por ter fumado etc.; no 
presente caso, as estimulações aversivas produzidas pelo seu comportamento, agregadas 
àquelas produzidas por muitos outros homens, no mais das vezes não são experienciadas pelo 
indivíduo que assim se comporta. Portanto, neste segundo caso, é ainda menos provável que o 
indivíduo se autocontrole, sendo o planejamento de conseqüências especiais, na forma de 
sanções éticas, o único modo possível de estabelecer tal comportamento” (p. 77). 
 
84
 Um discussão mais detalhada do uso de estímulos aversivos na promoção do autocontrole, é 
encontrada em Nico (2001). 
 
85
 Algumas vezes a ativação do sistema circulatório também afeta o outro, sob a forma de uma 
ruborização do indivíduo. Formas mais avançadas de autocontrole (e.g., técnicas refinadas de 
representação) incluem a evitação dessa resposta fisiológica. Ainda que não controladas, 
respostas fisiológicas são em geral respondentes condicionados ou incondicionados. Embora 
possam ter dimensões públicas, não produzem conseqüências aversivas para o grupo. 
 
 197 
atrasadas, ou sanções sociais imediatas, envolve uma resposta com restrita 
participação do aparelho motor, ou uma resposta com componente motor que é 
concorrente com aquela que seria impulsiva86. 
 Como já assinalado, o papel da ativação (restrita) do aparato motor na 
definição do caráter (parcialmente) encoberto de certas respostas é abordado 
por Watson (1930/1970), Skinner (1957/1992) e Kantor (Kantor & N. W. Smith, 
1975). É também a questão levantada por Elias (e.g., 1939/1990b) ao discutir o 
autocontrole nas sociedades modernas. Também esses autores chamam a 
atenção para a importância de contingências sociais punitivas para a produção 
dessas respostas encobertas. Essas contingências são dispostas socialmente 
não por seu efeito para o indivíduo, mas por seu efeito para o grupo. 
Na discussão oferecida por Andery (1997) acerca as práticas culturais que 
produzem a subjetividade, somos chamados a atenção para esse aspecto 
crucial de uma interpretação analítico-comportamental: práticas culturais 
produzem repertórios individuais, mas são selecionadas por seus efeitos para o 
grupo87, não para o indivíduo. 
as contingências responsáveis pela construção da subjetividade ... 
são ... um conjunto de contingências que só permanecem por suas 
conseqüências em termos da sobrevivência do grupo praticante. 
 
86
 Essas possibilidades têm conexão com uma problemática discutida no âmbito clínico como 
comportamentos assertivos, agressivos e passivos (cf. Marchezini-Cunha, 2004). 
 
87
 Algumas vezes, dependendo das relações de poder no interior dos grupos, as práticas 
podem se manter por seus efeitos (proveito) para alguns subgrupos: “Se o futuro dos governos, 
religiões e sistemas capitalistas fosse congruente com o futuro da espécie, nosso problema 
estaria resolvido. Quando se descobrisse que um determinado comportamento ameaça a 
espécie, as instituições o declarariam ilegal, pecaminoso, ou dispendioso, respectivamente, e 
mudariam as contingências que impõem. Infelizmente, os futuros são diferentes. Armas 
nucleares são construídas para garantir a sobrevivência de governos e religiões, não a 
sobrevivência da espécie”. (Skinner, 1987b, p. 7). 
 198 
Não se pode, portanto, compreender a subjetividade como mero 
conjunto de resultados de interações entre indivíduos, uma vez que 
estas interações são mediadas pela comunidade verbal, uma 
comunidade que mantém um conjunto de práticas por suas 
conseqüências para o grupo ... 
talvez a subjetividade aparentemente tão absolutamente individual e 
singular só sobreviva enquanto puder ser também social e 
diretamente ligada à sobrevivência do grupo social. (p. 206) 
É à cultura que interessa o autocontrole e é por visar esse autocontrole 
que a cultura promove a discriminação de condições corporais e a 
transformação das relações tidas por um responder emocional espontâneo. 
Isso não significa que algo fica contido dentro do sujeito autocontrolado (exceto 
como uma metáfora). Mas significa que sobre as relações emocionais primárias 
a cultura opera transformando-as e produzindo relações com graus cada vez 
maiores de complexidade (por exemplo, do ponto de vista dos entrelaçamentos 
entre relações diversas, verbais e não verbais, com componentes abertos e 
encobertos etc.), das quais participam respostas parcialmente encobertas não 
encontradas nas relações que definem as emoções primárias (o responder 
emocional referido no início desta seção). Do mesmo modo, significa que 
outras classes de respostas relacionadas à “cognição”, o responder reflexivo 
mencionado anteriormente, tornam-se parcialmente encobertas por força da 
individualização, exposição do indivíduo a esquemas concorrentes cada vez 
mais numerosos, necessidade de estar permanentemente fazendo escolhas e 
conflito de conseqüências (imediatas/atrasadas, maior/menor magnitude, para 
 199 
o indivíduo/para o grupo etc.). 
O padrão autocontrolado de comportamento interessa à cultura (no 
mundo ocidental) por várias razões. O alto grau de complexidade das relações 
entre os indivíduos torna importante para a sobrevivência do grupo a 
previsibilidade do comportamento de cada um (utilizando um único de muitos 
exemplos possíveis, imagine-se como ficaria comprometida essa sobrevivência 
se todos os habitantes de uma grande metrópole dirigissem automóveis 
impulsivamente). O desenvolvimento tecnológico e a especialização das 
funções multiplicam os cursos de ação possíveis (multiplicam os reforços 
disponíveis em cada contexto de ação) tornando impossível para a sociedade 
controlar diretamente, a cada momento, o comportamento individual em favor 
do grupo. A dissociação das conseqüências que mantêm o comportamento de 
cada um introduz um grau inédito de conflito entre conseqüências para o 
indivíduo e para o grupo (inexistente em sociedades menos complexas). 
Pensar as relações que definem emoções, sentimentos e pensamentos, 
sob as variáveis culturais aqui referidas, a partir de suas articulações com as 
questões da autonomia, individualização e autocontrole pode ser produtivo 
porque assim tem-se uma referência dos tipos de variáveis para as quais olhar 
ao buscar compreender aquelas relações. Uma emoção ou sentimento não 
constitui simplesmente uma estimulação interoceptiva, ou um responder verbal 
sob controle de uma condição corporal (e, assim, não será suficientediscutir 
como essa autodescrição se instala, ou se é precisa ou não). De mesmo modo, 
o pensar não é simplesmente um responder encoberto (portanto, não será 
suficiente discutir se adquire ou não funções para outros comportamentos). A 
 200 
análise do comportamento poderá avançar em sua abordagem de sentimentos, 
emoções e pensamentos na medida em que considerar as relações concretas, 
nas vidas dos indivíduos de uma cultura, em que esses fenômenos vêm a 
existir. 
 
3.4. Fugindo à Lógica das Dicotomias Psicológicas Clássicas: 
Complexidade, Acessibilidade e Relevância de Relações 
Comportamentais. 
Toda a argumentação aqui desenvolvida demanda estudos adicionais, 
conceituais e de outros tipos, para que sua possível contribuição seja aferida. 
Dentro dos objetivos estabelecidos, ela organiza conceitualmente um conjunto 
de problemas, mas de um modo que merece ser explorado, refinado. Ela 
oferece direções para o tratamento de alguns problemas importantes, nos 
limites do sistema explicativo analítico-comportamental. Sua capacidade de 
contribuir para estudos empíricos, básicos e aplicados, precisa ainda ser 
avaliada, assim como sua possível contribuição para a intervenção do analista 
do comportamento, especialmente o clínico, que é cotidianamente instado a 
interpretar o comportamento verbal descritivo e emoções, sentimentos e 
pensamentos. 
 A discussão oferecida para os temas da individualização, autonomia e 
autocontrole permite pensar em termos de relações comportamentais os 
fenômenos complexos considerados instâncias de sentimentos, emoções e 
pensamentos, fugindo, assim, da lógica dualista que está na origem das 
dicotomias psicológicas clássicas. Ela permite restaurar na análise as 
 201 
complexas relações de interdependência entre homens e mulheres, que ficam 
obscurecidas com aquelas dicotomias. Porém, ela faz isso sem ignorar os 
problemas que estão na origem daquelas dicotomias; ao contrário, procurar 
trazê-los à luz com um enfoque relacional. 
 Na análise desenvolvida, não se tornam necessários os conceitos de 
interno, mental ou subjetivo. Quando muito podemos empregar o conceito de 
privado, mas não como característica do fenômeno psicológico ou 
comportamental. Com a análise oferecida, podemos sugerir que o conceito de 
privado serve para chamar a atenção para a especificidade de um fenômeno 
que existe enquanto tal sob certas contingências culturais. Mas “privado” é uma 
propriedade de termos daquelas redes de relações, não uma propriedade das 
relações em si mesmas. Sentimentos, emoções e pensamentos, desse ponto 
de vista, não são privados, embora se definam como relações das quais podem 
participar estímulos e respostas cuja observabilidade, sob certas condições, é 
restrita. 
 Considerando-se que o enfoque relacional é que recoloca os problemas 
humanos no plano das relações de interdependência entre homens e mulheres, 
a superação das dicotomias clássicas não se dá pela afirmação dos pólos que 
atendem critérios de uma visão monista. Não é afirmando que sentimentos, 
emoções e pensamentos são todos eles fenômenos públicos, objetivos, físicos, 
ou externos que se visualizam as dimensões relacionais funcionais desses 
fenômenos. No lugar dessa lógica, podemos indagar quais são as novas 
relações que dão origem à auto-imagem do homem autônomo e enclausurado 
em si mesmo. 
 202 
 Certas características das relações que definem a individualização, 
autonomia e autocontrole na cultura ocidental moderna mostram-se relevantes 
para compreender aquela auto-imagem e suas repercussões nos modos como 
sentimentos, emoções e pensamento são vividos. Uma compreensão mais 
avançada dessas características exige do analista do comportamento um 
exame de práticas culturais, o que parece fugir aos domínios de seu objeto de 
estudos. Skinner (e.g., 1990) chega a sugerir que esse é um objeto de parte da 
antropologia. Podemos, no entanto, indagar se é possível evitar essa incursão 
nas práticas culturais sem com isso limitar o alcance de nossa análise desse 
conjunto particular de fenômenos (e, talvez, de outros). Na medida em que 
essas variáveis definem o próprio fenômeno, a resposta é negativa. No próprio 
Skinner (1953/1965), por outro lado, e em outros analistas do comportamento, 
como nos lembram Andery, Micheletto e Sério (2005), encontra-se o 
reconhecimento de que fenômenos sociais são também objeto da análise do 
comportamento. 
 Uma leitura dos volumes dos últimos anos de alguns periódicos 
freqüentados por analistas do comportamento (e.g., The Behavior Analyst, 
Behavior and Philosophy e Behavior and Social Issues) evidencia, na verdade, 
um interesse cada vez maior de analistas do comportamento pelas 
contingências culturais (a proposição do conceito de metacontingências 
constitui um desses exemplos – cf. Glenn, 1988, 1991) e um esforço para 
incorporá-las em suas discussões dos fenômenos psicológicos ou 
comportamentais. Ou seja, na prática, analistas do comportamento estão se 
voltando às práticas culturais como parte de seu objeto de estudos (ainda que 
 203 
a elas não se dirijam com os mesmos instrumentos da investigação 
experimental). O presente trabalho, como um esforço na mesma direção, não 
está propondo um tipo novo de investigação, mas apenas voltando-se para um 
problema específico: a subjetividade. A complexidade do problema recomenda 
que o percurso analítico aqui seguido seja tomado como possíveis direções 
para investigações futuras (o que também não é muito diferente dos outros 
esforços de analistas do comportamento para explicar o comportamento 
humano complexo). 
 
 204 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
 A inexistência de programas de pesquisa amplos sobre a temática da 
subjetividade na análise do comportamento88, conseqüência de uma dedicação 
mais sistemática ao assunto apenas nos últimos anos, significa que estamos 
ainda em uma etapa de construção conceitual, na direção de estabelecer 
problemas relevantes, enfoques pertinentes e alternativas metodológicas para 
esses estudos. Em um contexto desse tipo, cada passo pode apenas remover 
algumas inconsistências e sugerir algumas direções para os próximos passos. 
Trabalhos como os de Anderson e cols. (2000) e Friman e cols. (1998) são 
contribuições desse tipo, orientados principalmente por demandas da aplicação 
clínica da análise do comportamento. Com o presente estudo esperamos estar 
também dando um passo desse tipo adiante, partindo de uma interlocução com 
uma literatura diversificada (não apenas analítico-comportamental). 
 Não faz parte da tradição da análise do comportamento buscar a 
interlocução com outros sistemas explicativos psicológicos ou de outras 
áreas89. Ao contrário disso, alguns analistas do comportamento (e.g., o próprio 
Skinner, 1971/2002) por vezes sugerem que a disciplina está sozinha na 
promoção de uma visão de homem que conflita com aquela produzida pela 
 
88
 Programas de pesquisa sobre o controle do comportamento por auto-regras existem, são 
muito relevantes e seus produtos podem contribuir para uma discussão analítico-
comportamental das descrições encobertas de contingências (e.g., Simonassi, Tourinho & A. V. 
Silva, 2001). Mas esses programas não se voltam especificamente aos problemas instituídos 
pela noção de subjetividade, como examinados ao longo deste trabalho. 
 
89
 A leitura dos textos de Skinner mostra que se trata de um autor que buscou conhecer pontos 
de vista muito variados sobre os fenômenos e os problemas humanos. Todavia, isso não se 
reflete em citações de outros autores, ou em um encorajamento ao leitor para usufruir de uma 
literatura diversa. Sobre o comportamento de citar de Skinner, a partir do momentoem que seu 
sistema explicativo começa a tomar feições próprias, ver Andery, Micheletto e Sério (2002). 
 205 
cultura individualista, subjetivista. Todavia, a idéia de que a análise do 
comportamento se encontra em uma posição única, singular na cultura 
ocidental, na medida em que se opõe às doutrinas mentalistas; que está na 
contracorrente das idéias encontradas nos principais sistemas de crenças com 
repercussão no mundo moderno, encontra pouca sustentação quando se 
consideram as obras de autores das mais variadas disciplinas nas 
humanidades. Já se mencionou a importância do anti-mentalismo veiculado na 
filosofia da linguagem de Wittgenstein (1953/1988), no pragmatismo de Rorty 
(e.g. 1988) e na sociologia de Elias (e.g., 1994), todos com notável 
repercussão no pensamento do século XX90. Outros tantos exemplos podem 
ser encontrados nestas e outras disciplinas. 
 Elaborações como as de Elias (e.g., 1939/1990b) constituem 
contribuições relevantes a uma interpretação relacional dos problemas 
psicológicos, do mesmo modo que as argumentações de Wittgenstein 
(1953/1988) acerca da impossibilidade de uma linguagem privada. Essas 
elaborações informam sobre possíveis percursos de uma interpretação 
relacional, assim como contribuem para uma compreensão mais avançada das 
práticas e valores contra os quais essa interpretação deve ser edificada. 
 No presente estudo, iniciamos com um exame das condições sociais 
sob as quais se elaboraram as dicotomias psicológicas clássicas. Com essa 
contextualização fica mais fácil notar que o individualismo e o mentalismo que 
prevalecem na cultura ocidental moderna não resultam simplesmente de uma 
ignorância sobre os fatos descritos por uma ciência do comportamento (e por 
 
90
 Sobre o enfoque relacional e a noção de função em Elias, ver Waizbort (1999). 
 206 
outras ciências que assinalam as relações de interdependência entre os 
homens e mulheres), mas de contingências sociais muito complexas que 
tornam muito persuasivas as noções de indivíduo e de mente. Compreender 
essas contingências, investigar o que representam do ponto de vista da 
regulação da vida cotidiana de homens e mulheres, é crucial tanto para 
promover um conhecimento avançado das relações comportamentais que 
definem sentimentos, emoções e pensamentos, como para pensar em intervir 
no nível cultural, em promover uma nova forma de vida, baseada em valores 
mais ligados à variabilidade comportamental e à sobrevivência da espécie91. 
 A elaboração da noção de eventos privados representou um passo 
importante na construção de uma abordagem para a subjetividade, que se 
revela crítica do dualismo e da noção de autonomia. Com ela, a Psicologia 
enquanto ciência do comportamento pôde começar a se voltar para problemas 
embaraçosos para uma ciência empírica, porém centrais para qualquer 
pretensão de edificar-se como sistema psicológico. A referência a estímulos 
privados e respostas encobertas funciona para afirmar que permanecemos no 
terreno dos fenômenos comportamentais quando nos voltamos para 
sentimentos, emoções e pensamento. Mas esse é um ponto de partida, não um 
 
91
 De certo modo, a discussão aqui desenvolvida pode também ser conectada com o debate 
sobre metacontingências (cf. Todorov, Martone e Moreira, 2005; Glenn, 1988, 1991). Todavia, 
ao buscar esse tipo de elaboração, será necessário notar que não é a subjetividade individual, 
não são os conjuntos de relações definidoras da subjetividade de um indivíduo, que podem 
constituir uma metacontingência, ainda que práticas culturais sejam responsáveis por sua 
produção. Apenas a partir da identificação de produtos agregados das relações que definem a 
subjetividade de vários indivíduos poderíamos falar de metacontingências. Talvez possamos 
considerar que a coordenação dos comportamentos de grupos sociais amplos, em relações 
complexas, de modo a tornar previsível (probabilisticamente) o comportamento de cada um, 
seja um desses produtos agregados das práticas culturais responsáveis pela construção da 
subjetividade no mundo moderno. Esse tipo de abordagem, porém, requer, ele mesmo, um 
exame mais sistemático, que foge aos objetivos do presente estudo. 
 
 207 
ponto de chegada, como tornam evidentes os debates encontrados na 
literatura analítico-comportamental mais recente, sobretudo as proposições de 
analistas do comportamento com atuação clínica. 
 Alguns analistas do comportamento (e.g. Skinner, 1953/1965) 
argumentam que para objetivos práticos, de controle (ou influência) do 
comportamento, bastam os instrumentos conceituais e metodológicos 
desenvolvidos na abordagem do comportamento publicamente observável. 
Talvez isso seja verdade na abordagem do comportamento individual menos 
complexo e/ou em circunstâncias nas quais o analista do comportamento tem 
acesso amplo a informações da história ambiental do indivíduo. É muito 
improvável que se sustente face a repertórios complexos, que incluem relações 
verbais diversas, em contextos sociais sofisticados como aqueles discutidos ao 
longo deste trabalho e quando o analista do comportamento tem acesso restrito 
à história ambiental. Nesses casos, evitar a abordagem de sentimentos, 
emoções e pensamentos não deve constituir exatamente a melhor solução 
prática. 
 Se a noção de eventos privados constitui um ponto de partida, 
precisamos examinar o que vem depois. Deixando para trás as dicotomias que 
obscurecem as relações de interdependência, o presente trabalho sugere que 
um percurso possível consiste em tratar sentimento, emoções e pensamentos 
como conjuntos de relações com graus variáveis de complexidade, construídas 
em um contexto cultural específico, que confere àquelas relações dimensões 
usualmente referidas com os conceitos de singularidade, autonomia e 
autocontrole. 
 208 
 Para uma análise comportamental, a noção de singularidade significará 
não apenas o caráter idiossincrático do repertório de cada um, não apenas o 
fato de que cada um é único (em qualquer cultura) do ponto de vista das 
relações que vem a estabelecer com o mundo a sua volta, mas principalmente 
o fato de que face à dissociação das conseqüências que mantêm o 
comportamento individual, o responder emocional e reflexivo sofrerá 
transformações do ponto de vista de seus componentes motores, com 
implicações diversas, ainda por serem adequadamente analisadas (de um 
ponto de vista comportamental)92. 
 As dimensões de autonomia podem ser interpretadas com o 
reconhecimento de que todo homem ou mulher é sensível ao mundo a sua 
volta, de que há uma dependência funcional entre suas respostas e 
ocorrências desse mundo. No entanto, será necessário considerar que cada 
um está permanentemente exposto a esquemas concorrentes, que se 
multiplicam quanto mais complexo o ambiente social, face ao qual deve tomar 
decisões ou fazer escolhas. A diversificação das funções sociais constitui 
apenas um exemplo dessa multiplicação de alternativas de ação. A auto-
reflexão necessária quando esquemas concorrentes envolvem conseqüências 
muito atrasadas e individualizadas (assim como sua dependência de outras 
contingências sociais) constitui um outro elemento a ser levado em conta. 
Nesses contextos, o indivíduo escolhe mais, não porque é mais autônomo, mas 
porque o ambiente exige. Suas escolhas têm um impacto que vai além do 
conforto ou a satisfação imediatos. E a sociedade só intervém para favorecer 
 
92
 A psicossomática e outras áreas da Psicologia têm enfocado essas conseqüências, por uma 
outra ótica. 
 
 209 
cursos específicos de ação quando estãoem jogo também conseqüências que 
afetam o grupo. É por isso que alguns autores falam da modernidade como 
uma época de desamparo. 
 O autocontrole pode ser interpretado como um responder também 
sensível a contingências ambientais, portanto não representando uma forma de 
autodeterminação. Mas é necessário considerar que o autocontrole assume 
características (e freqüência) peculiares sob certas contingências do mundo 
moderno. Nessa direção, as chamadas “técnicas de autocontrole” (cf. Skinner, 
1953/1965) são menos importantes do que o autocontrole como forma de 
autogerenciamento ético, quando se está diante de um conflito entre 
conseqüências para o indivíduo e conseqüências para o grupo, um conflito que 
se acentua de modos originais em uma cultura individualista. Sob esses 
conflitos é que o autocontrole representará uma transformação do responder 
reflexivo e emocional do ponto de vista de seus componentes motores. Essa 
transformação, freqüentemente baseada na punição social, requer por seu 
turno um exame à parte, que leve em conta os efeitos diversos da punição, 
que, como diz Skinner (1971/2002), não funciona simplesmente para reduzir a 
probabilidade de uma resposta93. 
 A singularidade, autonomia e autocontrole como categorias analíticas, 
convém reiterar, foram sugeridas pelo exame de informações históricas sobre a 
problemática da subjetividade, que tomou como referência as dicotomias 
 
93
 Afirma Skinner (1971/2002): “Uma pessoa que foi punida não estará simplesmente menos 
inclinada a comportar-se de uma dada maneira; no melhor dos casos, ela aprende como evitar 
a punição. Algumas maneiras de fazer isso são mal adaptadas ou neuróticas, como nos 
famosos “dinamismos freudianos”. Outras maneiras incluem a esquiva de situações nas quais o 
comportamento punido é provável de ocorrer e fazer coisas que são incompatíveis com o 
comportamento punido” (p. 81). 
 
 210 
psicológicas clássicas (Capítulo 1). A análise a partir daí desenvolvida, sobre o 
alcance das proposições de Skinner e as possibilidades de fazer avançar a 
abordagem analítico-comportamental para o tema (Capítulos 2 e 3), usufruiu 
daquele esforço de interlocução com disciplinas afins, na área das 
humanidades. Outras iniciativas de interlocução com as mesmas ou outras 
ciências (inclusive das áreas biológicas) podem conduzir a novas e produtivas 
sistematizações dos problemas aos quais uma ciência do comportamento deve 
se voltar94. A objetividade na definição de seu objeto e dos modos eficazes de 
produzir descrições de regularidades desse objeto não é incompatível, na 
análise do comportamento, com um diálogo mais fecundo com disciplinas afins. 
Ao contrário, pode ser muito importante para aumentar nossa compreensão 
desse objeto e tornar inteligível para outras áreas o ponto de vista 
comportamental e suas contribuições (hoje, limitadamente reconhecidas) para 
a solução dos problemas humanos. 
 
 
94
 Também sobre a possibilidade de usufruir da interlocução com as ciências biológicas, é 
interessante observar o exemplo de Elias (1990a), que em dado momento dedicou-se ao 
estudo da medicina: “Só mais tarde compreendi com clareza que o estudo da medicina fora 
uma das experiências fundamentais que me estimularam a abandonar a filosofia para me 
consagrar à sociologia. Mas até os anos 60, quando dava minhas aulas de introdução a alunos 
de sociologia, tinha às vezes ao alcance da mão um crânio humano desmontável. Parecia-me 
que um estudante de sociologia devia ter algumas noções essenciais da estrutura do sistema 
nervoso humano, para ser capaz de se aproximar da concepção do homem indispensável à 
compreensão de contextos sociais, ou seja, uma concepção do homem como 
fundamentalmente organizado para viver em meio a homens , animais, plantas e minerais” (p. 
99). 
 211 
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