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Tourinho 2006 Subjetividade e Relacoes Comportamentais

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Serviço Público Federal 
Universidade Federal do Pará 
Centro de Filosofia e Ciências Humanas 
Departamento de Psicologia Experimental 
 
 
 
 
 
 
 
Subjetividade e Relações Comportamentais 
Emmanuel Zagury Tourinho 
 
 
 
Tese apresentada ao Departamento de 
Psicologia Experimental, Universidade 
Federal do Pará, como requisito para 
inscrição no Concurso Público para 
Professor Titular da Matéria Psicologia 
Geral e Experimental. 
 
 
 
 
 
Belém, Pará 
2006
 i 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico este trabalho à Simone, com muito amor.
 ii 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A elaboração deste trabalho foi apoiada de forma 
decisiva pelo Conselho Nacional de 
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq 
(Processos 305743/2004-0 e 470802/2004-9).
 iii 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ou se tem chuva e não se tem sol 
ou se tem sol e não se tem chuva! 
 
Ou se calça a luva e não se põe o anel, 
ou se põe o anel e não se calça a luva! 
 
Quem sobe nos ares não fica no chão, 
quem fica no chão não sobe nos ares. 
 
É uma grande pena que não se possa 
estar ao mesmo tempo em dois lugares! 
 
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, 
ou compro o doce e gasto o dinheiro. 
 
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . . 
e vivo escolhendo o dia inteiro! 
 
Não sei se brinco, não sei se estudo, 
se saio correndo ou fico tranqüilo. 
 
Mas não consegui entender ainda 
qual é melhor: se é isto ou aquilo. 
 
(Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo)
 iv 
Tourinho, E. Z. (2006). Subjetividade e Relações Comportamentais. Tese 
apresentada ao Departamento de Psicologia Experimental, Universidade 
Federal do Pará. Belém, Pará. 
 
 
 
RESUMO 
Fenômenos relativos à “subjetividade” humana têm sido abordados pela 
Psicologia desde sua origem como disciplina independente e representam, 
ainda hoje, um tema dos mais controversos no debate travado por diferentes 
escolas de pensamento psicológico. No presente trabalho, a “subjetividade” é 
entendida como conceito que sintetiza os modos como sentimentos, emoções 
e pensamentos são vividos em sociedades em estágio avançado do processo 
civilizador. Com o objetivo de prover um tratamento (comportamental) 
abrangente para o tema da subjetividade, alguns aspectos centrais dessa 
temática são discutidos à luz de duas referências principais. Uma primeira 
referência consiste das dicotomias psicológicas clássicas, que sintetizam a 
problematização moderna da chamada experiência subjetiva: as dicotomias 
público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno e físico-mental. A segunda 
referência consiste da proposição analítico-comportamental de interpretar os 
fenômenos psicológicos como relações comportamentais. No exame das 
dicotomias psicológicas clássicas são assinaladas algumas de suas raízes 
histórico-culturais e suas conexões com valores e práticas de uma cultura 
individualista. No desenvolvimento de uma interpretação analítico-
comportamental para a subjetividade são propostas direções para uma 
caracterização de sentimentos e pensamentos como relações comportamentais 
e explicadas como se elaboram nesse contexto as noções de individualidade, 
autonomia e autocontrole. O trabalho desenvolve a tese de que os conceitos de 
privado, subjetivo, interno e mental refletem a dificuldade em reconhecer 
dimensões da interdependência entre indivíduos na definição dos fenômenos 
psicológicos, o que pode ser superado com uma interpretação de sentimentos 
e pensamentos como relações comportamentais, desde que ponderados os 
modos como variáveis culturais dão uma conformação particular a esses 
fenômenos. Nesse percurso, sugere-se que uma interpretação analítico-
comportamental consistente para o problema depende menos da afirmação de 
um monismo físico e mais da apreciação de como se configuram, na cultura 
ocidental moderna, as relações comportamentais descritas como sentimentos e 
pensamentos. 
 
Palavras-chave: subjetividade, eventos privados, sentimentos, pensamento.
 v 
Tourinho, E. Z. (2006). Subjectivity and Behavioral Relations. Thesis presented 
to the Departamento de Psicologia Experimental, Universidade Federal do 
Pará. Belém, Pará. 
 
 
 
ABSTRACT 
 
Human “subjectivity” phenomena have been discussed in Psychology since its 
inception as an independent discipline, and still represent one of the most 
controversial themes in the debate promoted by different psychological 
systems. In the present work, “subjectivity” is treated as a concept that 
summarizes the ways feelings, emotions and thinking are experienced in highly 
civilized societies. The objective of the work is to provide a broad (behavioral) 
approach to the theme of subjectivity. Two main references are adopted in the 
discussion of some aspects that are central to the problem of subjectivity. The 
first reference is the set of classical psychological dichotomies, which largely 
summarize modern treatment of the so called subjective experience: the public-
private, objective-subjective, outer-inner, and physical-mental dichotomies. The 
second reference consists of the behavior-analytic proposition that we interpret 
psychological phenomena as behavioral relations. With respect to the classical 
psychological dichotomies, some of their historical-cultural roots are pointed 
out, as well as their relation to values and practices that are typical of 
individualist societies. In the development of a behavior-analytic interpretation to 
subjectivity, some directions are proposed in order to view feelings and thinking 
as behavioral relations. It is also explained how the notions of individuality, 
autonomy and self-control may be approached in the context of such theoretical 
perspective. The work develops the thesis according to which the concepts of 
private, subjective, inner and mental reflect a difficulty in recognizing 
interdependence among individuals, and that this may be overcome as we 
interpret feelings and thinking as behavioral relations, as long as we regard the 
ways cultural variables give in unique features to these phenomena. Along this 
reasoning, it is suggested that a consistent behavior-analytic interpretation to 
the problem requires not so much an assertion of physical monism, but more 
importantly requires a proper evaluation of the features found in behavioral 
relations described as feelings and thinking in modern western cultures. 
 
Key-words: subjectivity, private events, feelings, thinking. 
 vi 
SUMÁRIO 
 
RESUMO iv 
ABSTRACT v 
APRESENTAÇÃO viii 
INTRODUÇÃO 1 
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 7 
CAPÍTULO 1: RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O FLORESCIMENTO DAS 
DICOTOMIAS PSICOLÓGICAS CLÁSSICAS. 
14 
1.1. A Interdependência Humana em uma Sociedade 
Hierárquica. 
18 
1.2. Condições de Interdependência em uma 
Sociedade de Mercado. 
27 
1.3. A Emergência do Indivíduo e o Acobertamento das 
Relações de Interdependência. 
37 
1.4. Dimensões do Indivíduo e as Dicotomias 
Psicológicas Clássicas. 
58 
CAPÍTULO 2: DIMENSÕES DA ABORDAGEM ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL 
PARA O PROBLEMA DA SUBJETIVIDADE. 
94 
2.1. A Noção de Eventos Privados. 100 
2.2. Limites da Noção de Eventos Privados. 114 
2.3. “Eventos Privados” como Resposta Verbal. 123 
2.4. Relações Comportamentais e as Dicotomias 
Psicológicas Clássicas. 
145 
 vii 
CAPÍTULO 3: SUBJETIVIDADE, EVENTOS PRIVADOS E RELAÇÕES 
COMPORTAMENTAIS. 
160 
3.1. A Individualização. 161 
3.2. A Autonomia. 174 
3.3. O Autocontrole. 190 
3.4. Fugindo à Lógica das Dicotomias PsicológicasClássicas: Complexidade, Acessibilidade e 
Relevância de Relações Comportamentais. 
200 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 204 
REFERÊNCIAS 211 
 
 
 viii 
APRESENTAÇÃO 
 
 Emoções e pensamento são tratados em manuais de Psicologia (e.g., 
Huffman, Vernoy & Vernoy, 2003) como alguns dos processos psicológicos 
básicos (ao lado de aprendizagem, cognição, memória, percepção e outros), 
uma matéria que requer um tratamento específico de qualquer sistema 
explicativo abrangente na Psicologia. Como o conceito de emoções, o conceito 
de sentimentos é também empregado com freqüência na abordagem de 
fenômenos considerados afetivos. Ainda que muitas vezes sejam usados como 
sinônimos, sentimentos e emoções são em alguns sistemas diferenciados com 
base na existência (para os primeiros) de um componente lingüístico na 
afetividade. Emoções, sentimentos e pensamentos constituem o foco do 
presente trabalho. Eles serão abordados como fenômenos que em grande 
medida sintetizam o que tem sido denominado de subjetividade. A análise 
oferecida pode se estender a outros fenômenos ou conceitos correlatos, como 
cognição, sensação etc., embora não sejam examinadas particularidades 
desses outros fenômenos ou dos usos desses outros conceitos. Discutindo 
pensamentos, emoções e sentimentos, acreditamos ser possível oferecer um 
tratamento (comportamental) abrangente para o tema da subjetividade, objetivo 
deste trabalho. 
 Homens e mulheres de todas as culturas emocionam-se e refletem 
sobre o mundo a sua volta. Algumas emoções (e.g., medo, tristeza) são, 
inclusive, consideradas parte de nossa herança filogenética (cf. Ekman, 1993; 
Millenson, 1967/1975; Russell, 1991). Com o conceito de subjetividade, porém, 
 ix 
estaremos referindo o modo específico como emoções, sentimentos e 
pensamentos são experimentados na cultura ocidental moderna, um modo que 
tem sido referido como “privado” (cf. Elias, 1994) ou “privatizado” (cf. 
Figueiredo e Santi, 1997). É a configuração (discutida ao longo deste trabalho) 
que sentimentos, emoções e pensamentos adquirem na cultura ocidental 
moderna que dá origem aos conceitos de privado, subjetivo, interno e mental. E 
é essa mesma problemática que está na base da fundação da Psicologia como 
disciplina independente, primeiro um campo reflexivo, depois uma ciência e 
uma profissão de ajuda. 
 A subjetividade assim entendida será examinada ao longo do trabalho, a 
partir de duas referências. No Capítulo 1, são discutidos aspectos histórico-
culturais da experiência moderna de sentimentos e pensamentos, enfatizando-
se as condições sociais que estão na origem do que denominaremos aqui de 
dicotomias psicológicas clássicas (público-privado, objetivo-subjetivo, interno-
externo, físico-mental). Nos Capítulos 2 e 3, o trabalho focaliza a elaboração de 
uma interpretação para emoções, sentimentos e pensamentos, à luz dos 
princípios do sistema explicativo denominado Análise do Comportamento, que 
tem como referência principal a obra filosófica e científica de B. F. Skinner. 
 O trabalho pretende oferecer um tratamento analítico-comportamental 
abrangente para a subjetividade, em que emoções, sentimentos e pensamento 
são concebidos essencialmente como relações comportamentais. Essa 
elaboração conflita com noções e valores, próprios de uma cultura 
individualista, que encontram expressão nas dicotomias psicológicas clássicas. 
A perspectiva interpretativa relacional depende, por outro lado, de uma 
 x 
apropriação das informações que emergem de uma análise histórica daquelas 
dicotomias. Em suma, o trabalho desenvolve a tese de que os conceitos de 
privado, subjetivo, interno e mental refletem a dificuldade em reconhecer 
dimensões da interdependência entre indivíduos na definição dos fenômenos 
psicológicos, o que pode ser superado com uma interpretação de sentimentos, 
emoções e pensamentos como relações comportamentais, desde que 
ponderados os modos como variáveis culturais dão uma conformação 
particular a esses fenômenos. 
 1 
INTRODUÇÃO 
 
 Tema de alguns dos trabalhos mais notáveis de Skinner (e.g., 1945, 
1953/1965, 1963/1969, 1974/1993, 1968/2003), os eventos privados (conceito 
com o qual a subjetividade é tratada no sistema skinneriano) receberam pouca 
atenção da comunidade de analistas do comportamento até pelo menos a 
década de 90 do século XX. Alguma atenção mais sistemática passou a ser 
dada ao assunto apenas quando analistas do comportamento com atuação 
clínica afirmaram a necessidade de resgatar, nesse campo da prática 
psicológica, os princípios analítico-comportamentais e assinalaram que, na 
terapia verbal face a face, o assunto eventos privados é recorrente e demanda 
um tratamento mais avançado do que aquele delineado nos escritos de Skinner 
(cf. Anderson, Hawkins, Freeman & Scotti, 2000; Anderson, Hawkins & Scotti, 
1997; Banaco, 1999; Dougher, 1993a, 1993b, 1994, 2000; Dougher & 
Hackbert, 2000; Friman, S. C. Hayes & Wilson, 1998; Moore, 2000; Wilson & S. 
C. Hayes, 2000). 
 Skinner desenvolve dois argumentos principais ao tratar de eventos 
privados. Em uma direção, sustenta que o que é sentido não explica o 
comportamento publicamente observável, do que conclui (e.g., Skinner, 
1953/1965) que uma ciência do comportamento prescinde da referência a 
sentimentos e emoções para lidar de modos efetivos com o comportamento 
humano. Em uma outra direção, discute os processos verbais envolvidos na 
aquisição de repertórios autodescritivos de sentimentos, emoções e 
pensamentos e sustenta a tese (e.g., Skinner, 1945) de que, por dependerem 
de contingências sociais, esses repertórios são sempre imprecisos 
 2 
(novamente, uma razão para não considerá-los em sua ciência). Esse segundo 
argumento constitui o ponto de partida para análises alternativas (e.g., Friman 
& cols., 1998; Dougher & Hackbert, 2000; Tourinho, 1999b, no prelo) sobre o 
lugar dos eventos privados em uma ciência do comportamento. 
 Quando se consideram as autodescrições de sentimentos, emoções e 
pensamentos à luz de uma concepção funcional de linguagem, como aquelas 
formuladas por Skinner (1957/1992) e por Wittgenstein (1953/1988), têm-se 
que as autodescrições são, elas mesmas, parte do fenômeno da subjetividade. 
É com a linguagem que parcelas do que pode ser chamado de um ambiente 
interno (cf. Tourinho, 1999b) tornam-se diferenciadas, adquirem funções em 
relações comportamentais, ainda que dentro de limites e sob condições 
específicas (cf. Skinner, 1945, 1974/1993; Tourinho, 1994a, 1994b). De outro 
lado, as autodescrições podem adquirir, elas mesmas, funções em relações 
comportamentais diversas. À luz de análises mais recentes sobre eventos 
privados e sobre comportamento verbal (e.g. DeGrandpre, Bickel, & Higgins, 
1992; S. C. Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001), isso levará a uma 
rediscussão (e.g. Friman & cols., 1998) da idéia de que a eventos privados não 
são relevantes em uma análise funcional dos comportamentos publicamente 
observáveis. Mais importante, os “eventos privados” serão menos enfatizados 
como eventos discretos de inacessibilidade restrita e mais enfatizados como 
conceito que remete a relações complexas dos indivíduos com o mundo. 
 Alguns trabalhos sobre eventos privados, anteriores ao debate 
inaugurado pelos clínicos, já haviam colocado em discussão o status causal de 
eventos privados, mas a partir da noção de causação interna do 
 3 
comportamento (e.g. Flora, & Kestner, 1995; Overskeid, 1994; Stemmer, 1995; 
Zuriff, 1979). Não foram, portanto, eficientes para promover uma discussão da 
subjetividade sob um enfoque de relações comportamentais, ainda que alguns 
problemas que levantaram tenham ficado sem uma apreciação devida na 
literatura analítico-comportamental. Quandoanalistas clínicos do 
comportamento recolocaram o tema em discussão, o fizeram de um modo que 
enfatizou dimensões relacionais verbais dos fenômenos. 
 Um grande mérito dos trabalhos mais recentes sobre eventos privados 
consiste, assim, de sua capacidade para conformar o exame do assunto à 
lógica relacional que sustenta mais fundamentalmente o sistema explicativo 
analítico-comportamental como um sistema psicológico; a idéia de que os 
fenômenos que constituem o objeto de estudos da Psicologia definem-se como 
relações dos homens e mulheres (ou dos organismos1) com o mundo. No 
lugar, agora, de olhar para sentimentos, emoções e pensamentos como 
eventos discretos (sejam eles públicos ou privados), torna-se necessário 
examinar como relações complexas (operantes e respondentes – cf. Darwich & 
Tourinho, 2005) são estabelecidas e entrelaçadas, de tal modo que alguns 
eventos inacessíveis à observação pública direta delas tomam parte. 
Com a explicitação de aspectos das relações verbais (e.g., a 
possibilidade de formação de classes de estímulos equivalentes) que 
 
1
 Neste trabalho, não ignoramos que o projeto skinneriano tinha como objeto o comportamento 
dos organismos (humanos e infra-humanos). Entendemos, porém, que seu interesse principal 
era o comportamento humano (cf. Andery, 1990) e que é na espécie humana, apenas, que se 
encontram os fenômenos mais complexos relacionados à subjetividade (ver Capítulo 2, 
adiante). As análises aqui desenvolvidas são pautadas pelo interesse específico no 
comportamento humano e por isso deixará de ser assinalado (exceto em casos particulares) 
quando as argumentações desenvolvidas se aplicarem ao comportamento de outros 
organismos. 
 
 4 
conduzem a um novo exame da questão da subjetividade, a análise do 
comportamento alargou a perspectiva inaugurada por Skinner. A abordagem 
permanece, todavia, ainda no plano dos processos (nesse caso, verbais) 
básicos, à luz dos quais fenômenos comportamentais merecem ser analisados. 
Um analista do comportamento pode argumentar que, para além disso, a 
análise possível da subjetividade dirá respeito à história ambiental de cada um, 
à ontogênese, na qual se materializam as relações que vêm a definir a 
identidade de cada homem ou mulher. No presente trabalho, no entanto, 
propomos algo diverso. Argumentamos que uma abordagem analítico-
comportamental da subjetividade pode avançar a partir de uma consideração 
de contingências culturais que vêm a definir o fenômeno. 
Os componentes verbais das mais complexas relações comportamentais 
referidas como sentimentos, emoções e pensamentos são produtos de uma 
cultura que promove de modo mais abrangente padrões de relacionamento 
com o mundo físico e social, que definem a subjetividade e só existem quando 
essas contingências culturais estão em operação. Isto é, o problema da 
subjetividade (aquele reservado à Psicologia – cf. Figueiredo, 1991, 1992; 
Figueiredo & Santi, 1997) só passa a existir à luz de certas contingências 
culturais. O que tratamos como subjetividade são certas relações 
comportamentais cujas características distintivas precisam ser especificadas, e 
um caminho para isso consiste em examinar as contingências histórico-
culturais que as engendram. 
O ponto de vista defendido neste trabalho, portanto, é o de que uma 
compreensão mais abrangente da subjetividade na análise do comportamento 
 5 
requer uma apreciação de contingências que produzem sentimentos, emoções 
e pensamentos nas culturais ocidentais modernas e uma especificação dos 
tipos de relações que definem esses fenômenos. A questão da inacessibilidade 
à observação pública de certos estímulos e respostas (a base para a noção de 
eventos privados) não se perde com essa análise, mas nela encontra um 
contexto analítico mais amplo. 
 Diversos percursos investigativos poderiam ser seguidos para prover 
uma apreciação da subjetividade nos termos mencionados. Optamos aqui por 
examinar um conjunto de informações históricas, delas derivando uma 
interpretação para sentimentos, emoções e pensamentos enquanto fenômenos 
relacionais2. As categorias analíticas empregadas para esse fim serviram 
também para confrontar a perspectiva relacional da análise do comportamento 
com práticas ou discursos que parecem ignorar, ou pelo menos deslocar para 
um segundo plano, essa dimensão dos fenômenos psicológicos. 
Em sua formulação tradicional nas Psicologias, pensamentos, emoções 
e sentimentos são discutidos como ocorrências privadas, subjetivas, internas 
ou mentais, ocorrências do ou no indivíduo. A tese a ser desenvolvida inicia 
com uma afirmação de que a perspectiva individualista e subjetivista que esses 
conceitos veiculam é produto de contingências culturais que funcionam para 
obscurecer as relações (cada vez mais complexas) de interdependência entre 
homens e mulheres. Prossegue com a argumentação de que a referência 
 
2
 Sobre a opção de olhar para a história para compreender conceitos psicológicos, Skinner 
(1931/1961) fez algo parecido, ao se voltar para o conceito de reflexo. A decisão de recorrer a 
certas informações históricas neste trabalho não significa que a análise a ser apresentada é 
uma análise histórica, como a skinneriana, mas tem a mesma pretensão de lançar luz sobre 
problemas ainda insuficientemente formulados na Psicologia e na análise do comportamento. 
 
 6 
skinneriana à inacessibilidade de certos estímulos e respostas constitui um 
recurso insuficiente para explicar o conjunto de problemas que encontra 
expressão nas dicotomias público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno, 
físico-mental, requerendo uma formulação mais abrangente das relações 
comportamentais que definem sentimentos, emoções e pensamentos. Encerra 
com a proposição de que, à luz de um exame histórico das dicotomias 
psicológicas clássicas, é possível analisar de modos originais as noções de 
singularidade, autonomia e autocontrole e com isso favorecer uma 
interpretação analítico-comportamental mais abrangente e consistente da 
subjetividade. 
 
 7 
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 
 
 Trabalhos reflexivos estão na origem da constituição da Psicologia 
como disciplina independente, mas não raro são ignorados como uma 
dimensão importante desse campo de conhecimento (e.g., quando a Psicologia 
é definida apenas como uma ciência e profissão3). Em que pese sua 
precedência na história de constituição da Psicologia, nas abordagens 
comportamentais, em particular na análise do comportamento, a produção 
reflexiva recebeu atenção sistemática muito mais tardiamente do que os 
programas de investigação básica e aplicada. Como decorrência, não se 
encontram, na área reflexiva, ou conceitual, programas amplos de 
investigação, aos quais grupos diversos de pesquisadores se dediquem de 
forma integrada. Também não há, para essa produção, unidade metodológica 
ou soluções consagradas e compartilhadas com grande número de 
pesquisadores. Tudo isso, porém, é diferente de afirmar que a produção 
reflexiva, em análise do comportamento, prescinde de decisões de ordem 
metodológica. As que foram tomadas no presente estudo estão sumarizadas 
 
3
 Por vezes, a caracterização da Psicologia como “ciência e profissão” ignora esse fato: de que 
a disciplina psicológica é antes e originalmente uma disciplina reflexiva (em particular, sobre as 
condições – subjetivas - de realização do homem em diferentes domínios de sua vida), à qual 
apenas muito mais tardiamente se articulam programas de investigação científica e programas 
voltados à solução de problemas humanos (cf. Tourinho, Carvalho Neto & Neno, 2004).Em 
uma discussão do assunto Tourinho (2003) assinala que “a Psicologia se edifica como um 
campo de saber que envolve, simultaneamente: a) um esforço reflexivo sobre a natureza 
humana, seus problemas e suas possibilidades de realização em diferentes domínios da vida 
(social, material, intelectual, religioso etc.); b) uma investigação cientificamente orientada para 
a descoberta de regularidades dos fenômenos psicológicos (um modo de tentar apreender as 
novas experiências sob a forma de enunciados que incorporam os requisitos empírico-racionais 
da emergente ciência); c) uma profissão de ajuda, voltada para a solução de problemas 
humanos” (p. 35). 
 
 8 
nos parágrafos seguintes4. 
 
a) a definição do problema: 
O trabalho foi desenvolvido no contexto de um programa mais amplo de 
pesquisas conceituais e empíricas, voltado para a temática da subjetividade na 
Psicologia e seu tratamento no sistema explicativo analítico-comportamental. 
Vimos desenvolvendo esse programa, com a colaboração de pesquisadores 
formados e em formação (graduandos, mestrandos e doutorandos), sempre 
com a perspectiva de elaborar ou aperfeiçoar uma compreensão para 
sentimentos, emoções e pensamentos enquanto fenômenos relacionais. O 
presente estudo pretende avançar em relação aos resultados até aqui 
alcançados com esse programa de pesquisas. Trabalhos desenvolvidos no 
âmbito desse programa de pesquisas ocuparam-se das diferentes dimensões 
ou aspectos da noção skinneriana de eventos privados (Darwich & Tourinho, 
2005; Santos, 1998; Tourinho, 1995, 1997a, 1997b, 1997c, 1999a, 1999b, 
2005, no prelo; Tourinho, Teixeira & Maciel, 2000), suas articulações com 
temas no campo da aplicação clínica da análise do comportamento (Azevedo, 
2001; Cavalcante, 1999; Cavalcante & Tourinho, 1998; Maciel, 2004; 
Marchezini-Cunha, 2004; Martins, 1999; Martins & Tourinho, 2000; Medeiros, 
2001; Souza Filho, 2001; Tourinho, Cavalcante, Brandão & Maciel, 2001), suas 
conexões com elaborações no campo da epistemologia e da filosofia da 
linguagem (Tourinho, 1994a, 1994b; Tourinho & Neno, 2003) e sua 
contraposição a outros sistemas explicativos psicológicos (comportamentais ou 
 
4
 Algumas especificações aqui fornecidas apóiam-se na sistematização sugerida por Tourinho 
e Micheletto (2002). 
 
 9 
não) (Costa, 1999; Tourinho, 2004). À medida em que esses estudos foram se 
desenvolvendo, especialmente os estudos conceituais, um conjunto de 
informações históricas sobre a constituição da problemática da subjetividade 
no mundo moderno foi sendo colecionado e de algum modo incorporado à 
interpretação que se foi procurando refinar para o tema. A partir de um 
acúmulo mais sistemático desse tipo de informação, foi se mostrando possível 
estruturar uma abordagem analítico-comportamental para o tema tomando-se 
como referência o que designamos de dicotomias psicológicas clássicas 
(público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno, físico-mental). 
Há basicamente duas razões para que aquelas dicotomias tenham sido 
consideradas referências heurísticas para uma análise da subjetividade. 
Primeiro, o fato de que por meio delas é possível reconstituir de modo eficiente 
o processo de construção da subjetividade como problema para o mundo 
moderno, colocando em relevo aspectos centrais dessa problematização, nem 
sempre identificados quando nos atemos a uma ou outra alegação (filosófica 
ou psicológica) sobre a experiência subjetiva (filosofia e psicologia muitas 
vezes partem da problemática já constituída, atravessada por supostos que 
não são tomados eles próprios como objeto de necessária investigação). A 
segunda razão decorre de uma incursão preliminar na literatura histórica: uma 
suposição de que, à luz das informações produzidas pela análise histórica, 
seria possível alargar a interpretação analítico-comportamental para 
pensamentos, sentimentos e emoções, tornando-a, ao mesmo tempo, mais 
abrangente e consistente. Mais que uma razão, essa “suposição” passou a 
funcionar como uma hipótese, que, no entanto, requeria categorias analíticas 
 10 
que pudessem explicitar o curso de um exame produtivo do problema. 
As dimensões relacionais dos problemas psicológicos foram então 
assumidas como o ponto de partida e referência, tanto para a reconstrução 
histórica das dicotomias clássicas (isto é, para a sistematização das 
informações produzidas a partir da análise histórica), como para a apreciação 
das possíveis dimensões de uma interpretação analítico-comportamental para 
o tema da subjetividade. As dicotomias deveriam ser examinadas à luz do que 
veiculavam sobre as relações de interdependência entre homens e mulheres 
em contextos culturais específicos; a interpretação analítico-comportamental 
precisaria examinar de que modos esses contextos culturais que se destacam 
na análise histórica imprimem configurações específicas às relações 
consideradas representativas dos fenômenos relativos à subjetividade. 
 
b) a especificação das informações: 
 Dois conjuntos de informações tornaram-se essenciais para que a 
análise pretendida pudesse ser desenvolvida. De um lado, era necessário 
buscar nos textos históricos e sociológicos, nas referências que fazem ao tema 
da subjetividade, as informações sobre o que se passava no plano das 
relações interpessoais ao tempo em que se elaboravam as dicotomias 
clássicas, assim como suas conexões com práticas e valores culturais 
específicos. De outro, era necessário circunscrever as dimensões 
contempladas na análise comportamental do problema até o presente 
momento e identificar os instrumentos conceituais com os quais se poderia 
trabalhar para estender essa abordagem para nela incluir a referência aos 
 11 
problemas identificados a partir da análise histórica. 
 
c) a seleção das fontes: 
 O trabalho requereu o levantamento de dois conjuntos de produções, 
que poderiam prover as informações necessárias ao estudo: um primeiro 
conjunto de textos referia-se aos elementos que poderiam subsidiar a análise 
das dicotomias psicológicas clássicas; um segundo conjunto deveria tratar do 
sistema explicativo analítico-comportamental. 
 O primeiro conjunto de textos, com informações históricas, foi 
selecionado com base em dois critérios: a) análise do período de transição do 
feudalismo para o capitalismo (referido em textos de história da Psicologia – 
e.g., Figueiredo, 1991, 1992 - como o período de construção da subjetividade 
moderna); b) referências a mudanças nas “mentalidades”, concepção de 
homem, ou construção da cultura individualista. Não apenas trabalhos de 
historiadores proviam essas informações. Foram também selecionados para 
esse primeiro conjunto, textos de disciplinas como sociologia, economia, 
filosofia e política, que também traziam informações históricas relevantes para 
o problema focalizado. 
 O segundo conjunto de textos, com informações sobre o sistema 
explicativo-analítico comportamental foi selecionado com base em dois outros 
critérios: a) referências a eventos privados (o conceito com o qual Skinner 
examina a problemática da subjetividade; e b) referências a contingências 
próprias das culturas ocidentais modernas. O ponto de partida para essa 
seleção foi o conjunto da obra publicada de Skinner (cf. Andery, Micheletto & 
 12 
Sério, 2004) e a coleção de trabalhos publicados nos periódicos The Behavior 
Analyst e Behavior and Philosophy (destino principal da produção conceitual 
em análise do comportamento). Textos de outras fontes foram acessados a 
partir de um contato com essa primeira seleção. Uma familiaridade prévia com 
a literatura também importou na identificação de possíveis fontes de 
informação. 
 
d) o levantamento de informações:Do material selecionado foram destacados trechos ilustrativos de temas 
relacionados ao problema descrito. Esse levantamento poderia ter sido feito ao 
longo do exame de cada texto, mas efetivamente só aconteceu após uma 
apreciação geral da literatura que seria considerada. A partir disso, os trechos 
eram transcritos em arquivos que seriam depois aproveitados na construção 
das análises. 
 
e) o tratamento das informações: 
 Como em outros domínios, em um trabalho conceitual a análise não se 
realiza somente após a coleta de informações. O processo de coleta de 
informações já se dá pautado por uma suposição acerca de cursos de análise 
possíveis, identificados desde a construção do problema de pesquisa e leitura 
preliminar de uma dada literatura. Ainda assim, pode-se dizer que há um 
momento em que claramente trata-se menos de colecionar informações e mais 
de a elas conferir uma determinada inteligibilidade. 
Dois momentos principais sintetizam o processo analítico no presente 
 13 
estudo. Primeiro, a adoção da questão (do reconhecimento) das relações de 
interdependência entre homens e mulheres como eixo a partir do qual práticas 
e valores sociais seriam examinados no processo de tratamento das 
informações históricas, com as quais se pretendia enfocar as dicotomias 
clássicas. Segundo, a formulação dos temas da singularidade, autonomia e 
autocontrole como temas a partir dos quais o enfoque analítico-
comportamental para a subjetividade seria desenvolvido, a fim de incorporar 
possíveis contribuições derivadas do exame histórico das dicotomias clássicas. 
 
As decisões descritas definem e limitam o alcance da contribuição que o 
presente trabalho pode trazer para a análise do comportamento, ou, mais 
propriamente, para a construção de uma abordagem analítico-comportamental 
da subjetividade. Elas devem ser consideradas tanto pelo que promovem 
diretamente em termos de uma formulação conceitual, como pelas áreas de 
interlocução a que conduzem com outros saberes ou produções culturais. 
Pensadas desse modo, essas decisões revelam também o tipo de contribuição 
esperada: não apenas o desenvolvimento da interpretação analítico-
comportamental, mas também a sinalização de alguns possíveis caminhos 
para programas de pesquisa mais abrangentes sobre emoções, sentimentos e 
pensamentos. 
 
 14 
CAPÍTULO 1 
RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O FLORESCIMENTO DAS DICOTOMIAS PSICOLÓGICAS 
CLÁSSICAS 
 
 Organismos humanos são capazes de interagir uns com os outros de 
modos complexos, impondo à realidade configurações sofisticadas, com graus 
variados de diferenciação e que afetam de maneiras importantes sua vida 
cotidiana. Transcendem, assim, as determinações de sua história filogenética 
em larga medida e de modos únicos. Suas realizações nas artes, nas técnicas 
e nas ciências atestam sua capacidade diferenciada e constituem alguns dos 
produtos mais salientes dos processos de criação e transformação da realidade 
em que vivem. O caráter social de tais produções dificilmente será negado por 
alguém que se debruce sobre o processo histórico que está na sua origem. 
Todavia, a interdependência entre os homens e mulheres de uma sociedade 
(mais ou menos complexa) constitui um fato que nem sempre se reflete nas 
crenças ou sistemas explicativos que essa mesma sociedade vem a construir 
sobre suas conquistas, ou sobre as capacidades humanas. E quando as 
condições de interdependência tornam-se menos evidentes, ou menos 
reconhecidas, estão criadas as condições para uma concepção de homem 
como ser autônomo, cujas ocorrências ou faculdades pessoais constituem o 
núcleo de sua existência e de suas realizações. 
 O conceito de indivíduo e a noção de autonomia em que está 
fundamentado, na contramão das evidências empíricas de interdependência, 
refletem uma auto-imagem do homem moderno como capaz de realizar-se à 
 15 
parte das relações com outros homens. São as virtudes e faculdades do ou no 
homem particular que começam a ser vistas como a base de suas realizações, 
quer materiais, espirituais, cognitivas, ou de qualquer outra ordem. Um 
exemplo clássico desse individualismo, que terá ampla repercussão no 
pensamento moderno, inclusive na fundação na disciplina psicológica, é 
encontrado no racionalismo cartesiano, de acordo com o qual a possibilidade 
de o homem chegar a juízos seguros acerca da realidade à sua volta é 
resultante não de processos de interlocução, do diálogo e do embate de idéias 
com outros homens, mas, ao contrário, de um exercício de uma faculdade 
pessoal, o pensamento racional, cujo emprego eficaz depende inclusive do 
desprendimento em relação às opiniões alheias: “é quase impossível que 
nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam, se tivéssemos o 
uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido 
guiados senão por ela” (Descartes, 1637/1979, p. 35). Não é de surpreender, 
portanto, que o próprio pensar seja suficiente, no sistema cartesiano, como 
prova da existência do indivíduo pensante (a res cogitans). Para Descartes 
(1596-1650), nenhuma obra será tão perfeita quanto aquela planejada e 
executada por um único homem, de acordo com o seu próprio julgamento, “não 
há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de 
diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou” (Descartes, p. 34). 
 No presente Capítulo, a problematização da subjetividade humana será 
discutida à luz da emergência e consolidação de uma cultura individualista, na 
qual a percepção dos laços de interdependência entre os homens dá lugar à 
auto-imagem de autonomia do indivíduo. Todavia, no lugar de simplesmente 
 16 
questionar essa auto-imagem, serão discutidas algumas condições que 
explicam sua elaboração e reprodução em sistemas de crenças (inclusive 
teorias psicológicas) e práticas sociais das culturas caracteristicamente 
individualistas. Em particular, serão discutidas certas mudanças importantes 
nas sociedades ocidentais com o advento de uma economia de mercado. Às 
transformações no plano das relações interpessoais e dos sistemas 
explicativos produzidos nesse contexto de mudanças serão relacionadas as 
dicotomias psicológicas clássicas: público/privado, interno/externo, 
físico/mental e objetivo/subjetivo. Pretendemos argumentar que o florescimento 
de uma cultura individualista, cujas práticas, valores e crenças tendem a 
obscurecer as dimensões interpessoais das realizações humanas, constitui o 
fundamento daquelas dicotomias. Isso implicará dizer que a caracterização de 
fenômenos psicológicos como privados, internos, mentais ou subjetivos 
representa um modo de desqualificar, ou remeter para segundo plano, as 
dimensões interpessoais daquelas realizações. Com o propósito de introduzir 
essa interpretação, serão assinalados alguns aspectos da vida em sociedade 
na Europa feudal que, se não promoviam de modo claro uma concepção de 
heteronomia ou interdependência dos homens, certamente não constituíam as 
condições necessárias para a formação de uma cultura individualista. Hunt e 
Sherman (1993) ilustram essas questões ao referirem aspectos da ética 
paternalista cristã, que exerceu forte papel na regulação da vida social feudal: 
no início do período feudal, a ética paternalista cristã estava 
profundamente encravada na cultura européia ocidental. A ganância, 
a avareza, o egoísmo, a ânsia de acumular riquezas, enfim, todas as 
 17 
motivações materialistas e individualistas eram severamente 
condenadas. O homem ganancioso e individualista era considerado 
a própria antítese do homem bom, preocupado com o bem-estar de 
todos os seus irmãos. Os homens prósperos tinham ao seu alcance 
a possibilidade de, coma riqueza e o poder de que dispunham, 
realizar um grande bem ou um grande mal: o pior dos males 
consistia em usar a riqueza exclusivamente para a sua 
autogratificação, ou como meio para acumular continuamente, em 
seu próprio proveito, maior quantidade de riquezas. Os homens ricos 
honrados eram os que tinham consciência de que a sua fortuna e o 
seu poder constituíam uma dádiva de Deus. Assim, sentiam-se 
moralmente obrigados a agir de modo paternalista, administrando 
seus negócios temporais com a finalidade de promover o bem-estar 
de seus semelhantes. (pp. 17-18) 
 Sobre a importância das mudanças econômicas para que os laços 
feudais se dissolvessem e a noção de autonomia emergisse, Duby (1990) 
assinala: 
 As marcas evidentes das conquistas de uma autonomia pessoal se 
multiplicam no decorrer do século XII, isto é, no momento em que se 
acelera a distensão da economia, em que o crescimento agrícola 
chega ao ponto, reanimando estradas, mercados, aldeias, de 
transportar pouco a pouco para a cidade todos os sistemas de 
controle e os fermentos de vitalidade, em que a moeda começa a 
desempenhar no mais cotidiano da vida um papel capital, em que 
 18 
por toda parte se difunde o uso da palavra ganhar ... Tal movimento, 
a mobilização das iniciativas e das riquezas suscitou a valorização 
progressiva da pessoa. (pp. 505-506) 
 Ao longo das próximas seções, alguns aspectos das mudanças do modo 
de vida feudal para uma sociedade de mercado serão brevemente discutidos, 
enfatizando-se o que representam do ponto de vista das relações interpessoais 
e dos modos como os homens passam a representar suas relações com o 
mundo físico e social. Essas informações são importantes para a análise 
desenvolvida neste trabalho tanto quanto possibilitam compreender o que está 
na origem da noção de que sentimentos e pensamentos são ocorrências do ou 
no indivíduo. Com isso, pretende-se argumentar que a idéia de que 
sentimentos e pensamentos são fenômenos mentais, internos, subjetivos ou 
privados decorre não de um compromisso com uma doutrina psicológica 
particular, mas da exposição a contingências sociais específicas, que podem 
inclusive explicar certos limites das soluções que se pretendem críticas de uma 
visão individualista de homem. A análise de contingências histórico-sociais 
(algumas delas, pelo menos) é inspirada nos trabalhos de Figueiredo (e.g., 
1991, 1992; Figueiredo e Santi, 1997) sobre a história da Psicologia, embora se 
desenvolva segundo categorias próprias (com ênfase nas conexões dessas 
contingências com uma economia de mercado, e nos conceitos resultantes sob 
a forma de dicotomias psicológicas). 
 
1.1. A Interdependência Humana em uma Sociedade Hierárquica. 
 Homens e mulheres nascem e se desenvolvem como membros de 
 19 
grupos sociais específicos, no interior dos quais encontram um modo de vida e 
participam, também, da construção de suas condições de sobrevivência e 
reprodução. Assim, ainda que as crianças revelem, ao nascer, certas 
competências para interagir com aspectos importantes de seu mundo (cf. 
Moura & Ribas, 2004; Oliva, 2004; Tourinho & Carvalho Neto, 2004), 
é apenas na sociedade que a criança pequena, com suas funções 
mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma 
num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres 
humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao 
mundo se transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que 
tem o caráter de um indivíduo e merece o nome de ser humano 
adulto. (Elias, 1994, p. 27) 
 Reconhecido o caráter sócio-cultural do desenvolvimento humano, é 
importante destacar algumas condições sob as quais homens e mulheres se 
desenvolvem em sociedades agrárias e hierárquicas como a sociedade feudal. 
Em primeiro lugar, é necessário observar que as funções das classes (clero, 
senhores e servos) que definem a estrutura dessa sociedade são vistas como 
complementares, em particular no sistema de crenças (o catolicismo) que 
constitui a principal fonte de legitimação dessas relações: uns rezam, outros 
protegem, outros produzem. Inexistindo um poder (central) impessoal que atue 
na regulação dessas relações, as obrigações são acompanhadas de 
solidariedades coletivas nos códigos e costumes de cada feudo. Ou seja, é no 
plano das relações imediatas dos homens uns com os outros que são 
construídas as condições concretas de sobrevivência da sociedade como um 
 20 
todo. 
Na Idade Média, como em muitas sociedades em que o Estado é 
fraco ou simbólico, a vida de cada particular depende de 
solidariedades coletivas ou de lideranças que desempenham um 
papel de protetor. Ninguém tem nada de seu – nem mesmo próprio 
corpo – que não esteja ameaçado ocasionalmente e cuja 
sobrevivência não seja assegurada pelo vínculo de dependência. 
(Ariès, 1991, p. 17) 
 É claro que a existência de laços de solidariedade em uma sociedade 
hierárquica não implica o acesso indistinto às condições materiais de 
sobrevivência, mas significa que as relações de poder, à luz da ética cristã e da 
autoridade da igreja, encontravam certos limites. 
Os homens que ocupam posições de poder e detêm a riqueza 
assemelham-se ao pai ou ao protetor da família. Tinham obrigações 
paternalistas para com os homens comuns, isto é, os pobres ou, 
prosseguindo com a nossa analogia, os filhos. Do homem comum, 
por sua vez, esperava-se que aceitasse seu lugar na sociedade e se 
submetesse, de bom grado, à liderança dos ricos e poderosos, da 
mesma maneira que um filho aceita a autoridade do pai. (Hunt & 
Sherman, 1993, p.15) 
 Em segundo lugar, tem grande importância o fato de que nessa 
sociedade a função social de homem ou mulher encontra-se, salvo exceções, 
pré-definida, de acordo com a sua origem, portanto não é matéria quer de 
reflexão pessoal, quer de dedicação e conquista ao longo da vida. 
 21 
A identidade social numa sociedade agrária, como a medieval, em 
que as relações políticas cristalizadas em direitos e deveres, em 
obrigações e lealdades consuetudinárias suportavam o peso de toda 
a reprodução social era totalmente, ou quase, pré-definida pela 
cultura em função de eventos biográficos, como o nascimento, a 
filiação e a idade, independentes do próprio indivíduo. (Figueiredo, 
1991, p. 20) 
 Nessas sociedades, como em sociedades menos complexas ainda hoje 
encontradas (onde o Estado – se existe formalmente - não chega com suas 
instituições, e a sobrevivência depende fortemente de uma atividade produtiva 
voltada para a subsistência do grupo), a função social de cada um, além de 
não depender de uma conquista pessoal, define-se basicamente pelo interesse 
coletivo. O que está na base desses laços é principalmente o vínculo material 
entre os membros do grupo, o fato de que a sobrevivência material está 
estritamente vinculada à sobrevivência do grupo de origem; a impossibilidade 
de produzir a própria sobrevivência à parte dessas relações. Sob tais 
condições, o que regula a vida cotidiana de homens e mulheres não são 
projetos pessoais de vida, mas demandas e interesses coletivos, contingências 
ligadas à sobrevivência e reprodução do grupo. 
Nas comunidades mais primitivas e unidas, o fator mais importante 
do controle do comportamento individual é a presença constante dos 
outros, o saber-se ligado a eles pela vida inteira e, não menos 
importante, o medo direto dos outros. A pessoa não tem 
oportunidade, necessidade, nem capacidade de ficar só. Os 
 22 
indivíduos mal sentem alguma oportunidade, desejo ou possibilidade 
de tomar decisões por si ou de conceber qualquer pensamento sem 
a constante referência ao grupo. Isso não significa que os membros 
desses grupos convivam harmoniosamente.É comum ocorrer o 
inverso. Significa apenas que – para usar o termo que 
convencionamos – eles pensam e agem primordialmente do ponto 
de vista do “nós”. A composição do indivíduo adapta-se ao constante 
convívio com os outros a quem o comportamento tem que ser 
ajustado. (Elias, 1994, p. 108) 
 A distinção indivíduo-sociedade, ou melhor, o conceito de indivíduo 
sequer faz sentido nessas sociedades, visto que o espaço para cultivar 
vocações, interesses e mesmo o gosto pessoais são muito restritos. Também 
são poucas e pouco diferenciadas as funções sociais, de modo que não 
constituem exatamente um caminho para a individualização. O 
compartilhamento do destino inicia com o compartilhamento da moradia e dos 
espaços de deslocamento, dos utensílios domésticos e dos instrumentos e 
rotinas de trabalho, dos jogos e das preces. O isolamento físico é objeto de 
desconfiança e sequer pode existir no interior do espaço doméstico. Loucos (os 
homens comuns) ou heróis (eremitas e cavaleiros errantes) são aqueles que se 
arriscam a andar sozinhos. Rezar, ler, cantar ou lavrar a terra são 
essencialmente atos coletivos, realizados no espaço socialmente 
compartilhado. Realizar-se materialmente, espiritualmente, cognitivamente ou 
ludicamente, tudo pertence, de um ponto de vista imediato, ao plano das 
relações interpessoais, de modo inescapável. Vida privada confunde-se com 
 23 
vida pública, no sentido de que o compartilhamento das diversas dimensões da 
existência varia com respeito à amplitude do universo social, porém nunca a 
ponto de confinar o homem à introspecção. Ainda que aos olhos do indivíduo 
moderno essa imagem cause estranheza, é assim que os historiadores 
descrevem a experiência de vida no mundo feudal. Discutindo a “emergência 
do indivíduo” Duby (1990) assinala: 
Proximidade, promiscuidade, por vezes multidão – na época feudal, 
o espaço, com efeito, jamais estava previsto, no interior das grandes 
moradas, para a solidão individual, senão no breve instante do 
trespasse, da grande passagem para o outro mundo ... na sociedade 
feudal, o espaço privado aparece, na realidade, desdobrado, 
constituído de duas áreas distintas: uma fixa, em torno do lar, 
murada; a outra deslocando-se no espaço público, não menos 
coerente, apresentando em seu seio as mesmas hierarquias, 
reunida pelos mesmos procedimentos de controle ... E se vida 
privada significa segredo, esse segredo, necessariamente partilhado 
por todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto; 
se vida privada significa independência, também essa 
independência era coletiva. (pp. 503-504) 
 Outra característica essencial da sociedade feudal, ainda encontrada 
em sociedades mais simples, consiste do fato de que os processos reflexivos e 
de tomada de decisão não apenas são coletivos, como muito menos 
freqüentes, pela simples razão de que são menos necessários, uma vez que há 
poucas alternativas a serem consideradas a cada momento da vida cotidiana. 
 24 
Os homens nessas sociedades não precisam ocupar-se a cada momento de 
decidir aonde ir, como ir, o que fazer, ou de que modo fazer. Mesmo com 
respeito ao horizonte de uma vida, há muito menos decisões a serem tomadas, 
poucas encruzilhadas, como menciona Elias (1994): 
Nas sociedades mais simples, há menos alternativas, menos 
oportunidades de escolha, menos conhecimento sobre as ligações 
entre os acontecimentos e, portanto, menos oportunidades passíveis 
de parecerem “perdidas”, quando vistas em retrospectiva. Nas mais 
simples de todas, é freqüente haver diante das pessoas um único 
caminho em linha reta desde a infância – um caminho para as 
mulheres e outro para os homens. Raras são as encruzilhadas; 
raramente alguém é colocado sozinho diante de uma decisão ... 
Vive-se um dia atrás do outro. A pessoa come, sente fome, dança, 
morre. Qualquer visão a longo prazo de algo que possa ocorrer em 
algum momento futuro é muito limitada, e o comportamento 
presciente é incompreensível e pouco desenvolvido. Igualmente 
incompreensível é a possibilidade de uma pessoa deixar de fazer 
algo que se sinta premida a fazer aqui e agora em nome de uma 
satisfação que talvez lhe venha dentro de uma semana ou um ano, 
ou sua possibilidade de fazer o que chamamos “trabalhar”. Por que 
haveria alguém de fazer um esforço muscular não referido às 
exigências urgentes do momento? (p. 110) 
 Ligados uns aos outros de modos inescapáveis e vivendo uma vida 
cotidiana baseada na realidade imediata, homens e mulheres no mundo feudal 
 25 
não estão expostos a condições que favoreçam a construção e dedicação a 
projetos baseados em uma referência pessoal. O “nós” vale mais do que o “eu” 
na definição de cada passo, de cada rotina, de cada projeto. Na religião, por 
exemplo, o isolamento é coisa para poucos privilegiados. Para o homem 
comum, chegar a Deus é matéria de participação em cerimônias coletivas e/ou 
de cumprimento de reverência ou solidariedade a outros (esse ponto será 
retomado adiante). 
Se o segredo não é possível, ele também não é necessário, pelo menos 
não como nas sociedades modernas. Emoções e sentimentos podem ser 
experimentados de modos mais espontâneos. O que essa espontaneidade 
significa ficará mais claro quando observarmos o que acontece quando ela não 
é mais aceitável. As conseqüências para cada um de os outros saberem o que 
sente não são tais que justifiquem uma preparação para evitar a 
espontaneidade. É por essa razão que crianças e adultos compartilham os 
momentos da vida cotidiana. Apenas com a transformação dessas relações, a 
criança será retirada do convívio com a família e será inventada a infância, com 
um estágio da vida para o adestramento para a convivência com o mundo 
adulto. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhece a infância, ou 
não tentava representá-la ... É mais provável que não houvesse lugar para a 
infância nesse mundo” (Ariès, 1981, p. 50)5. A reflexão, também, sendo 
predominantemente oral e coletiva (porque voltada para assuntos que são de 
 
5
 Ariès (1981) afirma também: “Na sociedade feudal, que tomamos como ponto de partida, o 
sentimento da infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem 
negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento de infância não significa o 
mesmo que a afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, 
essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Por essa 
razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou 
de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes” (p. 156). 
 
 26 
interesse imediato também para os outros) desenvolve-se ao conhecimento 
dos outros. 
Contingências sociais dessa ordem não promovem, ao contrário, inibem 
uma concepção individualizada do homem. Não se pode dizer que promovam 
uma percepção das relações de interdependência, uma vez que raramente o 
homem é levado a refletir sobre sua condição no mundo. Mas certamente não 
reservam lugar para a noção de autonomia. Será necessário ao indivíduo 
encontrar novas condições para a produção de sua realização nos diversos 
domínios da vida, em especial será necessário encontrar novas condições 
materiais de vida, para que um sentimento de autonomia possa ser cultivado. 
Essas condições passam a se concretizar com o advento de uma economia de 
mercado. A conquista da autonomia pessoal, uma marca notável da vida 
moderna, não se realizaria sem essas transformações. É necessário, porém, 
refletir sobre a natureza e o alcance dessa autonomia. Como se argumentará 
adiante, há de fato uma autonomiaconquistada, no sentido de o indivíduo nas 
sociedades modernas encontrar-se menos limitado pelas condições de vida 
encontradas ao nascimento, e menos dependente de suas relações familiares 
e sociais imediatas. Em contrapartida, os processos de interdependência no 
mundo moderno assumem formas muito mais complexas e sofisticadas, 
impondo muito mais exigências para a realização individual. Essas duas 
dimensões da conquista da autonomia individual (a multiplicação dos 
horizontes de vida e a maior complexidade da interdependência) explicam em 
larga medida as concepções de homem que vão se tornando dominantes na 
cultura, inclusive no campo da disciplina psicológica. 
 27 
 
1.2. Condições de Interdependência em uma Sociedade de Mercado. 
 A transição do feudalismo para o capitalismo é descrita por historiadores 
como um processo desencadeado pelo crescimento da produtividade agrícola 
na Europa ocidental, que se prolongou por vários séculos, e que assumiu 
características peculiares em diferentes contextos geográficos e sócio-políticos. 
Para fins da presente análise, interessará assinalar alguns aspectos do que as 
mudanças desencadeadas pela dissolução dos laços econômicos feudais 
representaram do ponto de vista das relações cotidianas de homens e 
mulheres uns com os outros. 
 Com desenvolvimento da técnica na produção agrícola e a 
intensificação da atividade comercial, a partir do século XI6, a produção até 
então voltada primariamente para a subsistência começa a dirigir-se a um 
mercado. O interesse na troca, na possibilidade de produzir para obter moeda, 
com a qual são adquiridos os bens para a própria sobrevivência (e mais do que 
isso) traz um impacto considerável sobre a atividade produtiva rural (note-se 
que até o século X a população na Europa ocidental vivia quase inteiramente 
em feudos e pequenas aldeias cf. Hunt & Sherman, 1993). A definição do que 
produzir, como produzir, que função desempenhar no processo produtivo, tudo 
passa a ser regulado por condições do mercado. Na medida em que interessa 
produzir aquilo que pode representar maiores chances de sucesso financeiro 
nas trocas econômicas, começa a haver espaço para vocações pessoais, 
 
6
 A expansão do comércio a partir do século XI deve-se em grande medida às cruzadas cristãs, 
mas, como assinalam Hunt e Sherman (1993), isso não significa que a motivação desse 
movimento tenha sido propriamente religiosa. 
 
 28 
preocupação com a efetividade produtiva dos membros do grupo e uma divisão 
crescente do trabalho. Isto é, avança, no interior dos grupos, a diferenciação 
das funções sociais. Rompidos os compromissos entre senhores e servos, seja 
pela introdução do trabalho assalariado em substituição às relações de 
vassalagem, seja pelo abandono de obrigações relativas à observância de uma 
estrutura social hierárquica, abrem-se os horizontes para a conquista de uma 
identidade social nova. O sucesso material ou econômico não é mais 
constrangido pela condição de origem, mas dependente de uma conquista 
pessoal. 
 Em uma outra esfera, as alternativas para dedicar-se à atividade 
comercial e a outras funções (especialmente financeiras e contábeis), assim 
como à produção de manufaturas, multiplicam os cursos de vida possíveis, por 
meio dos quais o conforto e o reconhecimento social podem ser conquistados. 
Isto é, multiplicam-se as funções sociais que cada um pode desempenhar, e as 
novas funções não mais impõem o atrelamento aos laços familiares de origem. 
É claro que muitas dessas novas funções e as riquezas que com elas se pode 
alcançar não estarão acessíveis a qualquer um. Por exemplo, as funções 
contábeis exigirão habilidades matemáticas e de leitura que poucos, 
freqüentemente clérigos, dispõem. Ainda assim, é notável que a vida do 
homem comum deixe de ser tão marcadamente definida por uma condição de 
subsistência e tão decisivamente dependente de sua permanência junto ao 
grupo de origem7. 
 
7
 Uma passagem de Sennett (1989) ilustra esse ponto, ainda que se referindo apenas a 
Londres e Paris e no século XVIII, um momento bem avançado do desenvolvimento do 
capitalismo: “Do ponto de vista social, o crescimento do comércio criou empregos nos setores 
financeiro, comercial e burocrático da cidade. Falar em “crescimento da burguesia” em 
 29 
 A intensificação do comércio dará origem ainda a uma condição 
geográfica de vida com grandes implicações para as relações interpessoais. As 
cidades, inicialmente pequenos centros de trocas, tornam-se um continente de 
homens e mulheres, desconhecidos em sua imensa maioria e freqüentemente 
dedicados a projetos de vida não compartilhados uns com os outros, ao 
contrário, muitas vezes conflitantes com os interesses uns dos outros. É 
incomparável com a “limitada e pacata vida feudal” a extensão do universo 
social em que está imerso o citadino e as exigências que lhe são impostas para 
uma vida bem sucedida social e economicamente. Especialmente a partir do 
século XVI, as cidades tornam-se notavelmente populosas. Londres, por 
exemplo, salta de 150 mil habitantes em 1595 para cinco milhões ainda no 
século XIX (Sennett, 1989, p. 70). Viver nas cidades é viver em um universo 
social no qual o comportamento de cada um está sujeito a regulações muito 
mais complexas, e que não se definem mais por códigos de obrigações e 
solidariedades definidas no plano de relações interpessoais específicas. 
No século XV, os locais onde se reuniam as feiras começavam a se 
transformar em prósperas cidades comerciais, cujos mercados 
funcionavam durante todo o ano. A atividade comercial desenvolvida 
por essas cidades era incompatível com as restrições impostas 
pelos costumes e tradições feudais. A maior parte das cidades 
conseguiu, após intensas lutas, libertar-se da tutela dos senhores 
 
qualquer das duas cidades é, pois, se referir a uma classe engajada em atividades de 
distribuição, e não na produção. Os jovens que vinham para a cidade encontravam trabalho 
nessas profissões mercantis e comerciais; na verdade, havia como que uma escassez de mão 
de obra, pois havia mais empregos que exigiam trabalhadores alfabetizados do que jovens que 
sabiam ler” (p. 79). 
 
 30 
feudais e da Igreja. Nos centros comerciais realizavam-se operações 
financeiras: de câmbio, de liquidação de dívidas e de crédito. 
Tornou-se corrente o uso das letras de câmbio e de outros 
instrumentos financeiros modernos. Uma nova legislação comercial 
foi elaborada pelos comerciantes dessas cidades. Ao contrário do 
direito consuetudinário e paternalista que vigorava nos feudos, a 
legislação comercial foi definida por um código preciso. Lançaram-se 
assim as bases da lei de contratos, dos papéis negociáveis, das 
representações comerciais, das vendas em leilão, enfim, de uma 
série de procedimentos característicos do capitalismo moderno. 
(Hunt & Sherman, 1993, pp.26-27) 
 Historicamente, a formação dos Estados nacionais, ao final da Idade 
Média, representou uma resposta a demandas crescentes de gerenciamento 
das relações interpessoais, em parte pelo alargamento do universo social de 
homens que se deslocavam da vida comunitária em seus grupos de origem, na 
direção de uma convivência com grupos numerosos e desconhecidos. A 
instituição social do Estado, porém, representa a resposta a um conjunto mais 
amplo de problemas do que o alargamento do universo social. A formação dos 
Estados nacionais cumprirá, entre outros, o papel de prover a sociedade de 
uma instituiçãoreguladora das relações interpessoais que tem, sobretudo, 
responsabilidades relacionadas à proteção e à garantia de cumprimento dos 
contratos, agora celebrados em caráter impessoal. São as garantias do Estado, 
também, que darão suporte ao descolamento do indivíduo de seu grupo de 
origem, em direção à conquista de sua (nova) identidade social. 
 31 
Um número cada vez maior de funções relativas à proteção e ao 
controle do indivíduo, previamente exercidas por pequenos grupos, 
como a tribo, a paróquia, o feudo, a guilda ou o Estado, vai sendo 
transferido para Estados altamente centralizados e cada vez mais 
urbanizados. À medida que essa transferência avança, as pessoas 
isoladas, uma vez adultas, deixam mais e mais para trás os grupos 
locais próximos, baseados na consangüinidade. A coesão dos 
grupos rompe-se à medida que perdem suas funções protetoras e 
de controle. E, nas sociedades estatais maiores, centralizadas e 
urbanizadas, o indivíduo tem que batalhar muito mais por si. A 
mobilidade das pessoas, no sentido espacial e social, aumenta. Seu 
envolvimento com a família, o grupo de parentesco, a comunidade 
local e outros grupos dessa natureza, antes inescapável pela vida 
inteira, vê-se reduzido. Eles têm menos necessidade de adaptar seu 
comportamento, metas e ideais à vida de tais grupos, ou de se 
identificar automaticamente com eles. Dependem menos deles no 
tocante à proteção física, ao sustento, ao emprego, à proteção de 
bens herdados ou adquiridos, ou à ajuda, orientação e tomada de 
decisão. Isso acontece, a princípio, em grupos limitados e especiais, 
mas se estende gradativamente ao longo dos séculos, a setores 
mais amplos da população, até mesmo nas áreas rurais. E, à 
medida que os indivíduos deixam para trás os grupos pré-estatais 
estreitamente aparentados, dentro de sociedades nacionais cada 
vez mais complexas, eles se descobrem diante de um número 
 32 
crescente de opções. Mas também têm de decidir muito mais por si. 
Não apenas podem como devem ser mais autônomos. Quanto a 
isso não têm opção. (Elias, 1994, p. 102) 
 Há vários aspectos da abordagem de Elias (1994) que merecem 
destaque neste ponto da apreciação do problema das relações interpessoais 
em sociedades de mercado. O primeiro deles diz respeito ao fato de que as 
relações de dependência entre os indivíduos se alteram, não na direção de 
uma autonomia absoluta, mas em direção a uma rede muito mais complexa de 
interdependência, daí a necessidade da instituição do Estado para fazer valer 
compromissos mútuos. Isso significará que o indivíduo, na vida cotidiana, de 
um lado, depende menos dos pequenos grupos sociais aos quais se encontra 
vinculado ao nascimento, e mais a redes complexas de relações com um 
universo social muito mais amplo. De outro, dada a extensão do universo social 
no qual está imerso e a complexidade das relações com os homens e mulheres 
que integram esse universo, não é principalmente de suas relações imediatas 
(com vizinhos, colegas de trabalho, parentes, amigos etc.) que depende o 
atendimento de grande parte de suas necessidades cotidianas (por exemplo, 
relativas a alimentação, locomoção, vestuário etc.) ou mesmo suas aspirações 
mais distantes ou de maiores “dimensões” (por exemplo, conquistar um 
emprego compatível com um trajeto longo de formação, alcançar uma situação 
econômica confortável e estável etc.). Para atender essas necessidades ou 
realizar essas aspirações, o indivíduo deverá interagir com complexos arranjos 
sociais e econômicos. O leite que o alimenta pela manhã estará disponível não 
por força de sua relação com familiares que ordenham animais domésticos dos 
 33 
quais também cuida, mas como resultado de um complexo sistema de relações 
econômicas, das quais participam desde um desconhecido operador de 
máquinas que confeccionam embalagens de papel e financistas responsáveis 
por operações de crédito a empresas de laticínios, até operários de empresas 
de conservação de estradas pelas quais transitam os caminhões que 
transportam a produção daquelas empresas, todos absolutamente 
desconhecidos e distantes das relações cotidianas ou imediatas dos indivíduos. 
 Um segundo aspecto a ser considerado é que a coesão encontrada em 
grupos familiares ou de afinidade, quando a sobrevivência de cada um 
depende direta e imediatamente das relações com os demais, inexiste se o 
indivíduo descola-se desse grupo em direção à realização de projetos pessoais 
de vida. Não se trata de abandonar um grupo, filiando-se a outro(s), mas de 
deixar para trás um tipo de interação social mais solidária e espontânea, em 
direção a relações muito mais complexas, onde a identidade de interesses é 
muito menos presente e onde o comportamento frente aos outros precisa ser 
calculado. Nas sociedades mais simples, o que promove a coesão não é uma 
“vocação” para a solidariedade, mas o fato de que as ameaças externas são 
constantes e a sobrevivência individual dependente das relações com grupos 
de convivência imediata. Nas sociedades mais complexas, nos Estados 
modernos, especialmente nas metrópoles, as condições materiais de 
sobrevivência tanto dependem menos dessas relações como exigem a 
dedicação do indivíduo a um projeto pessoal de vida. Quanto mais sensível a 
demandas dos outros, quanto menos concentrado em seus objetivos, projetos 
e horizontes de vida, menores as chances de “sucesso” material, medido 
 34 
principalmente pelo acúmulo de riquezas (daí seu menor envolvimento com a 
família de origem). Porém, se o indivíduo está menos disponível para as 
demandas alheias (porque não são necessariamente, ou na mesma medida, 
suas também), de outro lado ele também dependerá muito mais de si mesmo, 
no sentido de que poderá contar muito menos com o suporte de seu grupo 
social nas tarefas ou projetos cotidianos a que se dedica. 
 O terceiro ponto a ser destacado é o fato de que ao deslocar-se para 
um universo social de anônimos, a identidade individual deixa de ser aquela 
conferida no interior dos grupos familiares, passando a ser matéria de 
conquista que, dependendo do contexto, pode ser função de uma variedade de 
fatores, incluindo uma eficiente participação em “jogos” sociais, nos quais as 
“aparências” tornam-se fundamentais (cf. Sennett, 1989). Isso significa que se 
o indivíduo vê diante de si possibilidades de mobilidade social, também precisa 
responder a exigências crescentes de comportamento social. Não é sem razão 
que, a partir do século XVI, os códigos de etiqueta, ou “códigos de civilidade” 
tornam-se um tipo de literatura com ampla difusão e consumo na Europa 
ocidental (cf. Elias, 1939/1990b). Comportar-se adequadamente diante dos 
outros torna-se uma necessidade que para ser cumprida requer um longo 
aprendizado e disciplina constante. Desde um banal cumprimento, até as 
seqüências de comportamentos alimentares à mesa8, tudo se torna matéria de 
uma atenção cuidadosa, de comedimento, de autocontrole. 
 Por último, em uma sociedade de mercado, multiplicam-se as 
alternativas de ação a cada momento, assim como se multiplicam os sistemas 
 
8
 Acompanha esse refinamento o surgimento dos utensílios usados à mesa: a taça individual, o 
prato, os talheres, o guardanapo etc.. 
 
 35 
de crenças que orientam o homem na vida cotidiana. Não apenas os indivíduos 
podem dedicar-se a funções sociais cada vez mais diversificadas, como podem 
dedicar-se a atividades de lazer cada vez mais variadas, interagir com grupos 
diversos e variar sua rotina em inúmeras direções (o que vestir, como trabalhar, 
que percurso fazer etc.). As reformas religiosas, por seu turno, também 
instituem a diversidade da cristandade. Para nadana vida há um único (ou 
poucos) caminhos a seguir, muito menos uma única referência em que apoiar a 
ação. Os indivíduos, como conseqüência, podem (e precisam) decidir. Tomar 
decisões torna-se uma parte rotineira da vida. E os indivíduos devem tomar 
decisões por si mesmos, pois não estão disponíveis contextos de suporte 
social para as tomadas de decisão. Em parte, esse afrouxamento da 
determinação dos cursos de vida e dos comportamentos cotidianos, assim 
como a experiência de decidir como prática rotineira explicam uma auto-
imagem de autonomia do homem moderno. 
 Alguns dos aspectos mencionados até aqui serão retomados adiante, na 
apreciação das dicotomias psicológicas clássicas. Antes disso, porém, convém 
acrescentar algumas observações sobre a diversificação das funções sociais 
nas sociedades de mercado. Elias (1994) assinala que o processo de 
diferenciação e multiplicação das funções sociais tem uma história mais longa 
(alguns milênios) do que a transição do feudalismo para o capitalismo, mas 
também experimentou uma aceleração única nos últimos séculos: “O número 
de atividades especializadas ... elevou-se ao longo dos milênios, a princípio 
lentamente, mas agora em ritmo cada vez mais acelerado” (Elias, 1994, p. 
113). 
 36 
Com o processo de diferenciação crescente das funções sociais a 
produção das condições de sobrevivência dos grupos passou a depender de 
um número cada vez maior de atividades ou passos executados cada um por 
apenas alguns indivíduos. 
No decorrer do tempo, não apenas multiplicou-se o número de 
passos entre o primeiro e o último numa seqüência de ações, como 
também um número crescente de pessoas se fez necessário para 
executar esses passos. E, no decorrer desse processo, mais e mais 
pessoas viram-se numa crescente dependência umas das outras, 
interligadas como que por correntes invisíveis. Cada qual funcionava 
como um elo de ligação, um especialista em uma tarefa limitada. 
Cada qual era urdida em uma trama de ações em que um número 
cada vez maior de funções especiais, e de pessoas dotadas das 
capacidades para executá-las, se interpunha entre o primeiro passo 
em direção a uma meta social e a consecução dessa meta. (Elias, 
1994, pp. 111-112) 
A especialização em uma função particular, cada vez mais diferente de 
todas as funções desempenhadas pelos outros, torna muito mais complexa e 
menos visível a dependência de cada um em relação a todos os outros. De um 
ponto de vista imediato, o sucesso do indivíduo no exercício de uma função 
particular (especialmente sob a forma de uma contrapartida em moeda) 
descola-se do que acontece com todos os outros que estão próximos, 
exercendo outras funções. Além disso, a função com alto grau de 
especialização pode ser desempenhada sem o auxílio imediato dos outros. 
 37 
Essa especialização acentuada favorece, assim, uma auto-imagem de 
autonomia. Todavia, paradoxalmente, quanto mais especializado, mais 
dependente o indivíduo se torna de muitos outros indivíduos, posto que estará 
menos capacitado para uma parcela muito maior das atividades necessárias à 
produção das condições necessárias à sua sobrevivência. A complexidade 
dessas novas relações de interdependência contribui, porém, para torná-las de 
mais difícil percepção. A emergência do indivíduo resulta, assim, não de 
criações originais de homens e mulheres particulares, mas de uma 
transformação expressiva das relações interpessoais. 
Os avanços da individualização, como na Renascença, por exemplo, 
não foram conseqüência de uma súbita mutação de pessoas 
isoladas, ou da concepção fortuita de um número especialmente 
elevado de pessoas talentosas; foram eventos sociais, conseqüência 
de uma desarticulação de velhos grupos ou de uma mudança na 
posição social do artista-artesão, por exemplo. Em suma, foram 
conseqüência de uma reestruturação específica das relações 
humanas. (Elias, 1994, pp. 28-29) 
 
1.3. A Emergência do Indivíduo e o Acobertamento das Relações de 
Interdependência. 
 Quando dizemos que uma sociedade muda, isso significa que mudam 
certas práticas sociais em seu interior, assim como mudam os sistemas de 
crenças que justificam ou legitimam essas práticas. A transição para o 
capitalismo ilustra de modo singular os dois tipos de mudanças. Na presente 
 38 
seção, serão assinaladas algumas mudanças nos sistemas de crenças do 
mundo ocidental que foram cruciais para a consolidação de um novo padrão de 
relacionamento interpessoal e para o enraizamento da auto-imagem de 
autonomia. Apenas por uma questão de conveniência, os novos sistemas de 
crenças serão exemplificados com referências pontuais à organização sócio-
política e econômica, às concepções religiosas, ao pensamento filosófico 
acerca do conhecimento humano sobre a realidade e às prescrições para o 
comportamento social. Há diversos outros domínios (por exemplo, o das artes) 
nos quais vão se elaborando noções que também refletem uma concepção de 
homem como indivíduo. O que acontece em cada um desses domínios de 
reflexão influencia e é influenciado pelo que ocorre nos demais. É a cultura 
como um todo que sofre transformações em uma dada direção, impulsionada 
de modo fundamental pela mudança na base material da vida. 
 Com a desagregação da organização social e política feudal, rompidos 
os laços locais de obrigações de solidariedades que ligavam os homens no 
interior da hierarquia social, ao mesmo tempo em que se multiplicavam as 
funções sociais e interesses pessoais, os conflitos encontrariam terreno fértil 
para progredir, a ponto de comprometer a sobrevivência da sociedade como 
um todo, se no lugar daquelas tradições e costumes não se estabelecessem 
outros mecanismos de ajustamento e regulação das relações sociais. O 
surgimento e expansão dos Estados nacionais, com suas leis, com o 
monopólio da violência física e com o controle da atividade econômica e da 
circulação da moeda, cumpriria essa função. 
 A extensão da intervenção do Estado nas relações interpessoais, em 
 39 
particular nas relações econômicas, tornou-se objeto de disputa permanente 
entre classes sociais e entre agentes econômicos, cujos interesses conflitantes 
os mantêm em também permanente luta (cf. Hunt & Sherman, 1993). O 
liberalismo clássico, pelo menos a partir do século XVIII, com o processo de 
industrialização, tornou-se o pensamento econômico dominante no ocidente, 
deixando para trás a ética paternalista cristã medieval. Não era possível ao 
capitalismo estabelecer-se como modo de produção à luz da condenação 
religiosa à busca e acumulação de riquezas. Ao contrário, as motivações que 
impulsionam o homem para o enriquecimento passam a ser vistas como 
virtudes necessárias para o progresso econômico. O poder regulador das 
relações entre os homens, o Estado, não mais a Igreja, deve, no lugar de impor 
sanções à avareza e ao egoísmo, liberar os indivíduos para que busquem o 
sucesso econômico, ocupando-se de evitar que esse movimento conduza a 
uma “guerra de todos os homens contra todos os homens” (Hobbes, 
1651/1979, p. 77). O pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679), ainda no 
século XVII, pode ser considerado fundacional para toda a doutrina liberal. 
 Em seu Leviatã, Hobbes (1651/1979) argumenta que em seu estado 
natural todo homem deseja e busca sua satisfação pessoal, entrando em 
conflito com outros homens: “se dois homens desejam a mesma coisa, ao 
mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se 
inimigos” (p. 74). A competição, a desconfiança e a glória constituem as três 
principais causas dos conflitos. “A primeira leva os homens a atacar os outros 
tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; a terceira, a reputação” (p. 75).

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