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MICROTERRITORIALIZAÇÕES URBANAS DA CULTURA HOMOERÓTICA: OS GUETOS EM DISCUSSÃO ANDREW FEITOSA DO NASCIMENTO∗ INTRODUÇÃO O filósofo francês Michel Foucault, ao tratar do espaço e das funções que as instituições ocupam na sociedade moderna, afirmava que, nela, uma ordem autoritária se estabelece. Resultante disso, quando uma pessoa se insere em determinada instituição deve logo se adequar às normas, valores e ditames da mesma. O autor cita ainda exemplos de tais instituições que, atuando de modo conjunto, mantêm afirmadas as relações de poder do dominado e do dominador. As instituições - fábrica, escola, hospital psiquiátrico, hospital, prisão - têm por finalidade não excluir, mas, ao contrário, fixar os indivíduos. A fábrica não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de produção. A escola não exclui os indivíduos; mesmo fechando-os, ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber. O hospital psiquiátrico não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um aparelho de normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a casa de correção ou com a prisão. (FOUCAULT, 2001, p. 114) Nesta perspectiva, temos a ideia de uma sociedade disciplinadora, que fixa os indivíduos em sua rede de controle. O autor afirma ainda que, nesta mesma sociedade, existem espaços alternativos de sociabilidade, pontos periféricos que não correspondem aos valores dominantes. Rompendo com estas formas disciplinares, ou, sendo um espaço resultando das mesmas, contrapostas em valores, temos o gueto homossexual. Simões e França (2005) definem este espaço de sociabilidade como lugares nos quais as pessoas que compartilham uma vivência homossexual podem se encontrar, sendo eles espaços urbanos públicos ou comerciais. Os ∗ Graduado em Educação Física pela Universidade Católica Dom Bosco. Integrante do Universo Dialógico – Grupo de Pesquisa em História, Cultura & Política e do LabDiS – Laboratório de Estudos em Cultura & Diversidade, Política & Sexualidade (UFMS/CPAQ). andrew_ufms.ucdb@hotmail.com� 2 autores ainda citam exemplos como parques, praças, calçadas, quarteirões, estacionamentos, bares, restaurantes, casas noturnas e saunas. Nas décadas de 1950 e 1960 surgem espaços frequentados por gays, guetos; já na década de 1970 aparecem estudos nos Estados Unidos sobre esses espaços. No Brasil, a concepção de gueto passa a ser ressignificada para entender a dinâmica espacial no país, passando a perder a rigorosidade na delimitação espacial. É importante ressaltar que essa concepção de gueto não poderia ser transportada para a realidade brasileira sem mediações. Embora muitos homossexuais que frequentam os espaços de sociabilidade identificados com esse públicos em São Paulo refiram se genericamente a este circuito como gueto, aqui esta noção talvez seja entendida mais no sentido de enfatizar um espaço de sociabilidade e a constituição de um sentimento de comunidade, ao invés de representar um território que delimita de forma tão clara a circulação dos que com ele se identificam, diferentemente do caso paradigmático de San Francisco. (FRANÇA: 2006, p. 33) Deste modo, buscaremos entender a formação dos guetos homossexuais no Brasil e os valores motivadores e agregados em tais espaços, adentrando nas discussões que apontam sobre os valores e a sociedade em que se encontram. É preciso entender que os guetos não são apenas uma manifestação do desejo homoerótico, mas especializam uma cultura e política de oposição/alternativa de uma sociedade normalizante. A SOCIEDADE MODERNA E OS GUETOS Ao discutirmos sobre a sociedade moderna, veremos que existem padrões normalizantes que, embora ocultos, ou ao menos, não sejam claramente visíveis, estão consolidados, principalmente nas instituições. Em contrapartida, consolidam-se espaços marcados por representações simbólicas onde se dão estas práticas. Estes espaços de representações simbólicas, embora consolidados, não se apresentam de um modo fixo, e sim, são construídos na relação com o grupo. Deste modo, o território é 3 constituído como espaço vivido e o grupo, com suas peculiaridades sócio-políticas e culturais, poderá se identificar com ele. Determina-se o lugar pelo encontro de seus frequentadores, seja uma praça, um bar ou uma rua, etc. Costa (2007) afirma que se pode entender a modernidade como um grande projeto de organização racional das identidades sociais como as suas distribuições funcionais no espaço urbano, na qual a homossexualidade, apresenta se, nesse contexto, como um polo unificado para que converge os desviantes (sexuais). Neste sentido, as expressões homoeróticas, manifestações diversas do desejo entre pessoas do mesmo sexo, são vistas como uma sexualidade de identificação de um polo divergente e desviante da condição heterossexual que, por sua vez, é definida como uma condição normal à manifestação do desejo sexual. Acima, percebemos que o comportamento homossexual tem sido apresentado como divergente do heterossexual e impróprio, já que o termo desviante remete ao erro e ao que não segue seu curso natural, normal. Importante destacar então, que na discussão sobre os espaços de sociabilidade homossexual, o mesmo vai se constituir não só como espaço de oportunidades de encontro homossexual, mas como espaço em que se objetiva liberar o sentimento de desconforto e de culpa impetrado pelos setores conservadores da sociedade, reforçando a auto-aceitação do desejo e ampliando as possibilidades de assumi-lo neste ambiente restrito. Assim, podemos perceber que os valores dominantes heterossexuais estavam presentes nos espaços impositivamente, devendo aqueles que frequentam o espaço seguir a regras pré-estabelecidas. Aos homossexuais, é negado, na história da civilização moderna, o espaço público, cuja norma é a expressão das afetividades e sensualidades heterossexuais. Mas, além disso, também como evidência da incapacidade da norma, vai emergir a expressão e a sujeitificação homossexual, que culmina nas manifestações de uma cultura e de uma comunidade gay em formação nas cidades desse mundo moderno. (COSTA: 2007, p. 15) 4 Com o “surgimento da sociedade moderna, desde o final do feudalismo, era preocupante a necessidade de organização da diversidade social que tomava caótica a convivência espacial e perigosa aos projetos da classe burguesa”. (COSTA: 2007, p. 60) Em meio à década de 1970, com o regime militar entrando em declínio no Brasil e propiciando as reivindicações de grupos, surge a necessidade de discussão sobre a diversidade social. Dos grupos, o movimento homossexual começa a se organizar e a militar no cenário político, esta conjuntura ficou conhecida como a primeira onda do movimento homossexual brasileiro. Foi também naquela década que se iniciaram atividades contra o sexismo e a cultura machista no Brasil, partindo de ativistas gays e de feministas, se inserindo em uma atmosfera política que, por sua vez, se encontrava naquele momento mais flexível à reivindicações: “O desafio das feministas ao patriarcado, à rigidez dos papéis de gênero e aos costumes sexuais tradicionais desencadeou uma discussão na sociedade brasileira que convergiu com as questões levantadas pelo movimento gay a partir de 1978”. (GREEN: 2000, p. 394) Cientes de certa “oportunidade de espaço”, um grupo de intelectuais aproveitou o momento, assim como as feministas, para lançar fundações para a construção de um movimento homossexual. Em 1978, um pequeno grupo de intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo fundou o Lampião da Esquina, um tablóide mensal de ampla circulação dirigido ao público gay. Muitos meses depois, um grupo de homens em São Paulo formou o Somos, a primeira organização pelos direitosgays do país. (GREEN: 2000, p. 394) E é este grupo, chamado Somos, que Facchini associa ao surgimento do movimento homossexual no Brasil, grupo que adquiriu notoriedade e visibilidade do ponto de vista histórico, não só por ter sido o primeiro grupo brasileiro, mas por ter se tornado um modelo, tanto para as outras organizações como também para os pesquisadores do tema (FACCHINI: 5 2005). A firmação desta autora também pode ser constatada quando Peter Fry e Edward MacRae descrevem a primeira ação deste grupo na obra O que é homossexualidade: Em fevereiro de 1979, os membros deste grupo já agora batizado de “SOMOS - Grupo de Afirmação Homossexual” apareceram pessoalmente em público durante um debate sobre as minorias, promovido na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. A importância deste debate é que marcou mais uma vez a crescente importância do movimento homossexual como interlocutor legítimo na discussão dos grandes assuntos nacionais. Além disso, foi uma experiência catártica que aumentou a confiança dos participantes e deu impulso à formação de outros grupos similares em São Paulo e outras cidades como também em vários estados. (FRY, Peter; MACRAE, Edward: 1983, p. 12) Como podemos ver, as ações promovidas pelo Somos ganhavam visibilidade na sociedade, consequentemente, suas críticas também. Mas não só a conjuntura e o machismo eram pauta das críticas do grupo. Os frequentadores do gueto eram vistos pelos militantes como alienados, conformados com o espaço limitado de expressão social. Se, para muitos dos homossexuais identificados com o gueto, a constituição de espaços de consumo era vista como um avanço no combate ao preconceito, para os militante do Somos isso soava como uma alternativa bastante limitada em comparação as aspirações de transformações sociais mais abrangentes a partir da margem. (FRANÇA: 2006, p. 142) Do ponto de vista dos frequentadores do gueto, o movimento homossexual que surgia contribuía para a causa homossexual, sendo então, bem visto pelos mesmos. O próprio gueto passou a ter contornos políticos e sofreu uma expansão com abertura de novas boates e bares. Segundo Green, muitos foram os fatores convergentes que facilitaram o surgimento do movimento LGBT e outros movimentos no Brasil, dentre eles, o próprio gueto. O espaço social conquistado pelos “bichas” e “bonecas”na década de 1960, a difusão de idéias a partir do movimento gay internacional, o desenvolvimento de uma crítica brasileira ao machismo e à homofobia e a influencia dos movimentos políticos e sociais de esquerda sobre os principais líderes. (GREEN: 2000, p. 394) 6 Além das críticas sobre o segregacionismo dos espaços, alguns guetos foram criticados por serem mais um nicho de mercado do que um campo de luta política, principalmente aqueles que vão surgir da década de 1990 em diante. A parada gay é um exemplo destes espaços, discussões partindo de alguns militantes, apontam a parada apenas como um mercado. importante ressaltar, [...] a internet, desde que o espaço de interação social, de busca por parceiros sexuais e de ampliação da sociabilidade deixou se ser provido exclusivamente por instituições como bares, botequins e casas noturnas. Entre os sítios voltados ao público homossexual, o exemplo mais bem-sucedido é o Mixbrasil, tido como o mais visitado portal de notícias ligadas ao “mundo GLS no Brasil”, contando também com artigos, fóruns de discussão, bate-papo, serviço de encontros, roteiros gays das grandes capitais brasileiras, notícias sobre a noite GLS, contos, fotos, fotonovelas e vídeos eróticos. Como o Mixbrasil, há uma profusão de sítios comerciais destinados ao público homossexual, como o GLX, Gaybrasil.com, Gchannel, entre outros. Há também portais segmentados, como Grisalhos, Maduros, Crônica Bear, entre outros. (FRANÇA: 2006, p. 17 e 18) Expandindo com a bandeira do mercado GLS, os guetos tiveram uma enorme propulsão e, de fato, o impulso se deu justamente pelo mercado no Brasil. “Bem ou mal, foi dentro desse contexto de desenvolvimento dependente, autoritarismo e redemocratização [...] e neoliberalismo no mundo moderno cada vez mais globalizado que as vidas de homens e mulheres gays evoluíram no Brasil durante as últimas décadas” (PARKER: 2002, p. 174), assim como os espaços de sociabilidades homoeróticas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nos anos de 1980/1990 no Brasil, os guetos são estudados em uma esfera separada do movimento homossexual, o qual recebeu também, o nome de movimento politizado homossexual para demonstrar um caráter político o qual não possuía o gueto. No entanto, acreditamos que esta afirmação parte de uma concepção estrita sobre a política que resume a luta política apenas na militância dos grupos. O gueto, na década anterior, foi espaço de afirmação identitária e pode ter aberto espaço para a luta travada pelos militantes contra os preconceitos dos setores conservadores da sociedade. 7 Alguns autores retratam a extinção do gueto ou sua transição para o mercado GLS, mas é importante ponderar que o advento da internet trouxe uma nova forma de gueto, que podemos chamar de gueto virtual, pois permite ficar no anonimato ou manter uma falsa identidade, o que, de certo modo, parece com o caráter sigiloso da atividade no gueto nas décadas anteriores. A antropóloga Isadora Lins França afirma que “grande parte da atuação dos jovens no movimento GLBT deve se a construção de canais de comunicação na internet que, em grande parte das vezes, determinam a atuação e organização dos grupos de jovens pelo país”. (França: 2007, p. 69) De fato, a internet tem sido um instrumento para a sociabilidade ou, em si, o espaço de sociabilidade de pessoas, especialmente de jovens que utilizam as redes sociais para buscar parceiros, não sendo diferente para os homossexuais que ainda estão no armário. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA, Benhur Pinós da. Por uma geografia do cotidiano: território, cultura e homoerotismo na cidade. Tese (doutorado em Geografia), Programa de Pós-Graduação em Geografia. Rio Grande do Sul, 2007. FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. FRANÇA, Isadora Lins. Cercas e pontes: movimento GLBT e mercado GLS na cidade de São Paulo. 2006. Dissertação (mestrado em Antropologia Social), PPGAS - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2001. FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983. GREEN, James Naylor. Além do carnaval – a homossexualidade no Brasil no século XX. São Paulo: Unesp, 2000. PARKER, Richard. Abaixo do Equador – culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002. 8 SIMÕES, Júlio Assis, FRANÇA, Isadora Lins. Do gueto ao mercado In: Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2005, p. 309-336.
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