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Antiguidade Tardia – www.antiguidadetardia.blogspot.com.br RICHE, P. As Invasões bárbaras. Lisboa: europa-América, s/d. O Reino Vândalo Quando Genserico morre, em 477, os Vândalos são senhores do Norte de África. Convém primeiro definir bem que eles só ocupam apenas a parte oriental, a actual Tunísia e o Leste da Argélia; o resto, «a Africa esquecida», como lhe chama C. Courtois, o maciço de Aures, os planaltos do Oeste, a Mauritânia, escapam-lhes como tinham de facto escapado à autoridade de Roma. Eles têm de se defender das pilhagens que os pequenos chefes indígenas organizam e daí advirá uma causa de fraqueza. A segunda característica da realeza vândala é a coexistência das duas sociedades bárbara e romana. A minoria vândala (80.000) não procurou fundir-se com os Romanos ou Púnicos, sobretudo por razões militares e religiosas. Os reis quiseram preservar o valor guerreiro dos seus homens, e por isso impediram todos os casamentos mistos e toda a conversão ao catolicismo. Além disso, Genserico e Hunerico (477-484) perseguiram cruelmente a Igreja. Segundo Victor de Vita, historiador das perseguições, perto de 5000 clérigos e leigos foram deportados para o Sul da Tunísia, enquanto os bispos eram exilados para a Córsega e a Sardenha ou obrigados a trabalhar nas minas. Numerosos católicos se refugiarão em Espanha, na Gáli.a e em Itália, levando consigo importantes manuscritos, em especial os de Santo Agostinho. Ao mesmo tempo que conservam a sua religião, os Vândalos conservam as suas leis, os seus costumes, e cobram pesados impostos às populações. No entanto, e é esta uma terceira característica da ocupação, não mudam em nada a organização administrativa da África romana. Estabeleceram grandes domínios (sortes), mas mandam-nos cultivar pelo mesmo pessoal; deixam os romanos aumentar os impostos e julgar as causas. O rei todo-poderoso é o único senhor do reino, tendo o testamento de Genserico proibido a divisão das terras entre os seus herdeiros. Continua a ser vândalo, mas utiliza na sua corte romanos que redigem as leis em latim e o ajudam na sua administração. Certos príncipes deixam-se seduzir pela cultura antiga, tal como Thrasamund (496-523), que pretende ser teólogo e compreender as poesias dos letrados. O bispo de Ruspe, Fulgêncio, que quer convertê-lo, escreve-lhe: «Vós promoveis os estudos entre as nações bárbaras que habitualmente reivindicam a ignorância como seu apanágio.» Cumprimento interessado, sem dúvida, mas que é um reflexo daquilo que se chamou impropriamente o «renascimento vândalo». O rei Hilderico, seu sucessor (523-530), protege igualmente os letrados e imita mesmo o imperador bizantino. Além disso, os jogos recomeçam em Cartago, constroem-se termas e a população pode crer que nada mudou, pelo menos enquanto a paz religiosa se mantém. Preciosos documentos, as 45 tábuas chamadas Albertini, do nome do primeiro historiador que as estudou depois da sua descoberta a sul de Tebessa, mostram que os contratos de venda continuavam a ser feitos de acordo com o direito romano. Sem o nome do rei Gunthamund inscrito em algumas delas, poder-se-iam ter tratado da época imperial. Nestas condições, compreende-se o descontentamento dos «nacionalistas» vândalos e em 530 o golpe de Estado de Gelimer, primo do rei. Este acto provoca a intervenção de Justiniano, que há muito procurava reconquistar a rica África aos Bárbaros. Pouco numerosos e com falta de treino, o exército vândalo e a sua célebre cavalaria são rapidamente vencidos pelas tropas de Belisário (533). O reino germânico durara menos de um século. O Reino Ostrogodo Teodorico-o-Grande. Ainda mais efémero vai ser o domínio gótico em Itália (493-555). Mas toda a primeira parte é ocupada pelo reinado de um único príncipe, Teodorico (493-526), um dos maiores dessa época. Quando o imperador Zenão enviou o chefe ostrogodo para Itália, confiou- lhe uma dura tarefa: a sucessão dos imperadores romanos. Teodorico compreendeu bem essa missão. Quando escreve ao imperador: «o nosso reino é uma imitação do Vosso», - isso não é uma simples fórmula, mas uma realidade. Educado em Bizâncio, tinha pela cultura antiga uma grande admiração e, para a manter, conserva a organização administrativa do Império. A sua corte, onde se encontram os grandes funcionários do passado (prefeito do pretório, condes das regiões sagradas, etc.), é o ponto de encontro dos guerreiros godos romanizados e dos nobres romanos aliados à monarquia. Graças às cartas respeitantes à administração e reunidas por Cassiodoro em Variae e graças aos papiros de Ravena, podemos traçar um quadro da vida social e da situação económica italiana no início do século VI. Pode-se verificar que os problemas postos no século IV preocupam ainda o governo (crise frumentária, extensão da grande propriedade, etc.). Junto do príncipe vivem grandes senadores, o mais célebre dos quais é Cassiodoro, que redige as cartas e os edidos do rei. Ao contrário dos outros bárbaros, Teodorico conserva a preocupação da Res Publica, tanto no domínio político como no religioso. Sendo ariano, não persegue os católicos, pelo menos no início do reinado, e até intervém para fazer cessar o cisma que perturbava a vida da Igreja de Roma (498). O Senado, ao qual Odoacro já concedera o direito de cunhar moeda, ganha de novo um certo prestígio e acolhe como um imperador o bárbaro, que em 500 visita a cidade. Para reatar a tradição imperial, Teodorico manda organizar jogos, efectuar grandes trabalhos (secagem dos pântanos de Ravena e dos campos romanos), restaurar os grandes monumentos de Roma e construir em Ravena, Pavia e Verona. Os vizinhos da Itália têm de contar com este grande príncipe. Os reis bárbaros aceitam as alianças matrimoniais que Teodósio lhes propõe e os Burgúndios, que tinham aproveitado as perturbações de 493 para descer à Itália, têm de evacuar a península. Em 508, Teodorico salva a monarquia visigótica de uma derrota total e ocupa a Provença, assegurando assim a essa região a prosperidade, que manterá até ao fim do século VI. Enfim, ele protege a Itália, reconquistando a Dalmácia, a Récia e a Panónia, que a fortaleza de Sírmio defende de novo, e faz todos os esforços para que essa Itália reconstituída fique amigavelmente independente do Império Bizantino. Se Anastácio (491-518) esperava ter, através de Teodorico, alguma influência no Ocidente, viu em breve desvanecidas essas esperanças; as relações entre os dois Estados, que se mantiveram correctas durante esse reinado, tornaram-se tensas durante o governo do seu sucessor, Justiniano, por razões mais religiosas que políticas. Teodorico tornou-se «romano», mas continuava a ser ariano, e esta situação contraditória enfraquece a sua posição no final do seu reinado. Para compreender a crise dos anos 524-526 deve-se notar que, nesta Itália, que a ocupação bárbara não parece ter transformado, o povo ostrogodo continua de fora e recusa a fusão. Teodorico concentrou os seus guerreiros no Norte da península, construiu igrejas arianas nos bairros das cidades reservadas aos Godos e proibiu aos Romanos o porte de armas. Nas cidades, o conde godo dirige em princípio os assuntos militares, deixando a cargo dos curiales romanos os assuntos civis; de facto, por meio dos seus condes ou de agentes directos, os saiones, o rei podia intervir em todos os domínios, mas, a maior parte das vezes, há a ilusão de uma repartição de tarefas entre os dois elementos da população. Se numerosos italianos se deixaram levar por esse duplo jogo, certos senadores romanos, por algum tempo aliados ao regime, vieram a reagir contra ele. Assim, o grande filósofo Boécio, mestre do palácio e dos oficios, dá-se bem conta da ambiguidade dessa situação: todos os esforços do rei bárbaro serão impotentes para fazerdele um romano, de tal modo é grande ainda a incompreensão e a rapacidade da sociedade gótica que o rodeia. Como Boécio, certos senadores continuam a ver em Bizâncio o centro da civilização e mantêm freqüentes relações com os imperadores. Em 524, a polícia do rei descobre cartas trocadas entre o imperador Justino e o senador Albino. Boécio, que defendera tantos romanos, protege este último: é preso com ele e executado em Pavia, deixando na sua Consolação Filosófica, escrita na prisão, um magnífico testemunho intelectual. No ano seguinte, o imperador Justino decide perseguir os arianos de Constantinopla. Teodorico encarrega o papa João I de pedir a Justino a revogação deste edicto e, perante o fracasso da sua missão, manda-o para a prisão, onde morre. Estava-se nas vésperas de um conflito entre católicos e arianos, quando Teodorico faleceu subitamente em Ravena (Agosto de 526). Essa crise do fim do seu reinado fora demasiado curta para fazer esquecer a grandeza da obra do príncipe bárbaro, que em breve, sob o nome de Dietrich de Berne (Verona), entraria na lenda germânica. Mas foi o indício da fragilidade da ocupação ostrogoda na Itália: tudo assentava na Personalidade do rei, tudo vai desfazer-se depois dele. Resistência dos Godos à reconquista romana. Sobrinho e sucessor do imperador Justino, Justiniano quer, por razões políticas e religiosas, reconquistar o Ocidente: «Temos boas esperanças de que o Senhor nos concederá o resto desse Império que os Romanos outrora estenderam até aos limites dos dois oceanos e que perderam pela sua indolência.» Livre da ameaça persa pelo tratado de paz «perpétuo» de 532, Justiniano pode empreender uma acção contra os Bárbaros do Oeste, tirando proveito, como sucedeu em Africa, de uma crise interior. O sucessor de Teodorico era o seu neto Atalarico, uma criança de 10 anos. Sua mãe, Amalaswinthe, assegurou a regência e apoiou-se imediatamente no elenco romano, desfavorável ao povo ostrogodo. Para combater essa influência, os «nacionalistas» godos impuseram à regente o seu primo Theodahad, que em breve faz desaparecer a rainha e toma o poder (535). Boa ocasião de intervir para Justiniano, que manda Belisário apoderar-se da Itália. Os primeiros sucessos dos Bizantinos (conquista de Nápoles, depois triunfal entrada em Roma) fizeram crer que o exército dos Ostrogodos se renderia tão facilmente como o dos Vândalos. No entanto, a minoria bárbara estava decidida a defender-se até ao fim e escolheu para chefiar a resistência oficiais de origem modesta que durante vinte anos lutaram energicamente contra os invasores «romanos» (535-555). Fixemos algumas fases dessas guerras góticas de que o historiador grego Procópio nos deixou um precioso testemunho. Belisário, cercado em Roma, consegue resistir durante um ano e persegue Witiges no Norte de Itàlia; fechado em Ravena, o chefe godo é entregue por traição aos Bizantinos (540). Os Germanos submetem-se, mas alguns anos depois escolhem Totila para retomar a luta. Duas brilhantes vitórias permitem a esse grande guerreiro reconquistar a Itália continental, depois descer pata o sul, conseguir abrir as portas de Roma (546) e recuperar toda a península e até as ilhas. A sua frota ataca as costas da Dalmácia e do Epiro e os seus exércitos expulsam os últimos «romanos». Justiniano, no entanto, não se dá por vencido: em 551 manda o velho Narses, o seu camareiro-mor, atacar os Ostrogodos de flanco. Partindo da Dalmácia, Narses avança para a planície do Pó, toma Ravena e desce ao encontro de Totila. O seu exército de 20000 homens, composto de mercenários lombardos, érulos e sobretudo hunos, destrói o exército gótico em Tadinae, no Apenino Umbrio: Totila é morto e toda a defesa desorganizada (552). Os Godos e o seu novo chefe, Teias, lançam um apelo aos guerreiros francos e alamanos, que se deixam vencer perto de Cápua (554). Algumas fortalezas resistem ainda no Centro e no Norte da Itália, mas em vão: a partir de 555, os Bizantinos são de novo os senhores da Itália. Os últimos Godos fundem-se com os Romanos e poucos vestígios, a não ser alguns vocábulos, recordam uma ocupação de sessenta anos. A Itália e Roma fazem de novo parte do Império Romano, mas este privilégio custou-lhes caro. Todo o país foi posto a ferro e fogo, a cidade foi três vezes cercada, conquistada e reconquistada. Justiniano reorganiza a sua conquista pela pragmática sanção de 554, mas não pode dar-lhe nem a riqueza nem a cultura que o bárbaro Teodorico tão notavelmente preservara. Espanha Visigótica Instalados nas mesmas condições que os seus «parentes» de Itália, ameaçados pelos mesmos perigos, os Godos de Espanha poderiam ter tido a mesma sorte e desaparecer rapidamente. No entanto, a fusão das duas sociedades, que se opera em meados do século VI, vai permitir a organização de um Estado que s6 a invasão árabe do século VIII destruirá em parte. a) Início difícil. Pouco depois da derrota de Vouillé, que repele os Visigodos para a Espanha, tudo parece anunciar o fim de um Estado que parecia fortemente consolidado. No interior, o filho de Alarico II vê-se ameaçado por uma revolta dos grandes e dos naturais da Tarraconense. A protecção do seu avô Teodorico permite-lhe fazer frente aos revoltosos, mas, morto o rei ostrogodo (526), o seu poder é abalado. No exterior, os Francos procuram tomar a Septimânia e combatem Amalarico perto de Narbona; o rei é assassinado pelos seus soldados (531). Surgem então insurreições no País Basco, revoltas na Andaluzia, de que Justiniano se vai aproveitar para prosseguir a sua reconquista (tomada de Ceuta). A energia do ostrogodo Theudis, antigo governador de Espanha no tempo de Teodorico, permite deter a invasão franca e repelir os Bizantinos para o mar, mas o seu assassinato volta a pôr tudo em causa. A luta entre o ariano Agila (549-554) e Atanalgildo permite aos Bizantinos, instalados nas Baleares, ocupar as costas desde Valença a Málaga e depois conquistar Múrcia e Córdova. Atanalgildo, proclamado rei, procura então desembaraçar-se dos seus aliados da véspera: para melhor resistir, estabelece a capital, que até então fora Barcelona e depois Mérida, na planície de Castela, no sítio fortificado de Toledo. Na corte, o primeiro grande príncipe visigodo tem grande prestígio; a sua reputação é tal que os reis francos Sigeberto e Chilperico lhe pedem as filhas em casamento: uma delas, Brunehaut, parece ter herdado as qualidades políticas do pai. Com a morte de Atanalgildo, o período crítico passou. Justiniano morreu, e com ele os sonhos de reconquista total da Espanha, e o seu sucessor recebe o reconhecimento teórico do novo rei, Leovigildo (567). b) Unificação política e conversão religiosa. Uma das primeiras tarefas do novo rei foi a conquista do reino dos Suevos, que, desde a partida dos Vândalos para a África, se organizara na região ocidental da Península (ao norte do actual Portugal). Aliados por algum tempo aos Visigodos, eles tinham-se convertido ao catolicismo, graças ao apostolado de Martinho, bispo de Braga, e assim se tornaram inimigos ferrenhos dos Gados. Várias campanhas foram necessárias para destruir o reino suevo, que, em 585, foi anexado à Espanha visigótica. A noroeste, para se defender das revoltas dos Bascos, Leovigildo funda Vitória, enquanto a leste fortifica Narbona e Carcassona contra os ataques dos Francos. A sul reconquista Córdova e Málaga aos Bizantinos, que em breve deverão abandonar definitivamente as costas do Levante espanhol. Assim, o reinado do «unificador nacional» conclui-se por um saldo positivo. A corte de Toledo continua a ser famosa pelo seu fausto «à romana», a sua moeda de ouro e mesmo a sua cultura. Mas, se a unidade política é realizada, se a fusão social começa a fazer da Espanha uma grande nação, o arianismodo rei continua a ser um obstáculo à unidade moral. As lutas com o seu filho Hermenegildo, que os bispos católicos e as cidades de sul apóiam, parecem reforçá-lo na sua posição. O seu sucessor Recaredo, rei em 5867 não vai adoptar essa política religiosa. Sob a influência de Leandro, metropolita de Sevilha, dez meses depois da sua subida ao poder, Recaredo fez, juntamente com a sua família, uma espetacular abjuração. O terceiro concílio de Toledo (589) registrou essa conversão e organizou a luta contra o arianismo. Enquanto na Gália a conversão de Clóvis provocou a do seu povo, parece que em Espanha a aristocracia gótica abandonou mais lentamente as suas práticas religiosas. Daí nascerão numerosos conflitos que enfraquecerão a monarquia visigótica. c) Características da monarquia visigótica. A corte do rei, aula regia, lembra muito a corte de Ravena: o príncipe, que abandonou o vestuário bárbaro, está rodeado pelos seus seniores e é aju- dado na sua administração pelo conde da câmara real, pelo conde do tesouro público, pelo conde do património, etc. Os actos da sua chancelaria, formalmente semelhantes aos de Bizâncio, são enviados aos rectores das províncias e aos curiales das cidades. Nesta corte, Romanos e Gados encontram-se e os príncipes gabam-se de serem letrados: Recaredo e os seus sucessores Sisebut e Recesvindo deixaram-nos nas suas poesias ou nas obras hagiográficas as marcas do seu talento literário. Os nobres não podiam deixar de seguir este exemplo. Quando não residem em Toledo, os nobres cultivam, directamente ou por meio dos colonos hispano-romanos, as terras que a partilha lhes concedeu e que estão situadas sobretudo no Norte da Meseta (campos góticos). Conservam eles a sua própria legislação? Até meados do século VII, Hispano-Romanos e Visigodos têm uma dupla legislação, o Breviário, condensado da lei romana dada por Alarico II, e os códigos visigóticos e suevos. Em 654, para completar a fusão, o rei Recesvindo suprime esta personalidade das leis e promulga um código uno, o Liber Judiciorum, em doze livros, todos inspirados no direito romano. Só a Septimânia conserva a dualidade jurídica. Os outros factores de aproximação foram os casamentos mistos, autorizados desde o fim do século VI, e a entrada dos indígenas no exército. Sem dúvida, a cavalaria continua a ser exclusivamente gótica, mas as lutas comuns contra os Suevos e sobretudo contra os «Romanos» permitiram o despontar de um sentimento nacional que a conversão dos Godos ao catolicismo veio reforçar ainda mais. A partir de 589, a Igreja desempenha um grande papel na monarquia. Não somente é nela que nasce, à volta de Isidoro de Sevilha, o «renascimento» das letras, mas sobretudo é ela que, com efeito, dirige a política dos reis. O metropolita de Toledo é quem sagra os reis, pelo menos a partir de 672, e preside com eles aos numerosos concílios de Toledo, que podem ser considerados como as cortes da monarquia visigótica. E aí que são julgados os, grandes processos e que são aprovadas as decisões legislativas. E aí que são elaborados os decretos contra os Judeus, únicos elementos inassimiláveis da população espanhola, ou contra aqueles que recusam o juramento de fidelidade ao rei. Em 633, um concílio reconhece o princípio da eleição dos soberanos, mas não sabemos em que medida essa decisão foi seguida. O que podemos dizer é que o deus católico apóia constantemente os príncipes nas suas lutas contra a aristocracia. E estas lutas foram numerosas no século VII. Quererão os nobres, sobretudo se alguns se mantiveram arianos, libertar os soberanos das garras do clero ou, mais provavelmente, procurarão tornar-se independentes? Certos historiadores, como Sanchez Albornoz, vêem na anarquia do século VII aparecer já elementos de vassalagem: o rei cerca- se de uma corte de fiéis (os gardingos) que, ligados por juramento e dotados de terras, o defenderiam da ambição dos grandes nobres. Um outro ponto dessa história permanece ainda obscuro: o papel desempe- nhado pela nobreza na invasão dos Bárbaros, no início do século VIII. Simbolizado pela traição do enigmático conde Juliano, de que a literatura árabe se apoderou, este papel terá sido o apelo directo ou o abandono? Enfraquecido por estas lutas internas, arruinado economicamente pelas perseguições dos Judeus, o reino visigodo não teve forças para resistir aos guerreiros de Tárique. Roderico, o último rei godo, desaparece na batalha de Guadalete (711). Em 722, os Visigodos tentam, refugiando-se nas montanhas das Astúrias, retomar a ofensiva, mas serão necessários sete séculos para que esta «reconquista» consiga expulsar o Islão da Península Ibérica (tomada de Granada, 1492). Assim, apesar da fusão das populações, a realeza bárbara de Espanha não pôde manter o seu domínio. O destino das realezas germânicas estava, aliás, mais perto do berço dos povos bárbaros. Os Reinos Anglo-Saxões a) Condições da ocupação. Para explicar a originalidade da ocupação germânica na Inglaterra devem-se realçar em primeiro lugar dois factos importantes: A fraca «romanização» desse território e a encarniçada resistência das populações locais. Roma ocupou a Bretanha, mas não a civilizou. Todo um equipamento militar deixa sem dúvida vestígios: estradas estratégicas, muralhas, cidades fortificadas onde se instalam colónias militares, mas, quando as legiões recuam para o Sul (a partir da segunda metade do século IV) e, depois, quando começam a deixar a ilha, em 407, a acção romana é em breve diluída e as cidades de Iorque, de Londres, de Lincoln, por algum tempo prósperas, entram rapidamente em decadência. O génio romano, por todo o lado conseguira impor a língua latina, falhou aqui; só os clérigos se recordarão da linguagem dos ocupantes. Mais ainda, é preciso reparar que nem todas as regiões montanhosas da Inglaterra sofreram essa ocupação; os Celtas conservaram ali às suas instituições e, à partida das últimas legiões, podiam pensar em reconquistar as regiões do Su- doeste. A invasão germânica não lhes permitiu levar muito longe essa reconquista. Os Romanos tinham lutado durante muito tempo contra a resistência bretã, não sendo, pois, de espantar que esse povo não tenha aceita do a ocupação germânica. Pouco sabemos desta longa luta: as únicas fontes quase contemporâneas são uma passagem da Vida dos Germanos, de Auxerre, e um opúsculo moralizador do monge Gildas. Mas, se os factos faltam, as lendas abundam e, se entre os heróis da resistência o rei Artur é o mais popular, está longe de ser o único. Confrontando textos históricos e lendários, parece que a conquista germânica foi feita em duas fases. Por volta de 450-500, os invasores instalam-se em pequenos grupos nas regiões orientais: os Jutos ocupam a ilha de Wight; os Anglos, as planícies ao Norte do Wasch (East-Anglia); os Saxões, o Essex e o Wessex. Nas regiões arborizadas na bacia de Londres e nas terras do centro habitam os Bretões. Na segunda metade do século VI e no século VII, os Germanos retomam a ofensiva e repelem os Bretões para o Oeste; Severn torna-se a linha fronteiriça e os planaltos da Cornualha e, o País de Gales são o refúgio das populações célticas. Vencidos, os Bretões não aceitam o domínio dos Anglo-Saxões; mesmo nas regiões orientais, a fusão não se faz: nem uma palavra do britânico na língua anglo-saxónica, poucos nomes bretões na toponímia da Inglaterra, nenhuma mistura de povos. Além disso, mesmo depois da conversão religiosa dos Anglos-Saxões, os Bretões oporão a sua liturgia à dos Germânicos e as relações entre as diferentes serão nulas ou hostis. b) o início das realezas anglo-saxónicaso Instalados numa região que nada conservou da ocupação romana e onde os povos locais recusam a fusão, os conquistadores vão manter-se fiéis às instituições germânicas.Eis, enfim, povos que nenhuma influência vai contaminar e isto é para o historiador das “invasões bárbaras” um precioso testemunho. Infelizmente para ele, nada sabemos sobre o início das realezas anglo-saxónicas. Nesse ponto ainda as lendas nos descrevem a fixação dos primeiros reis do Kent, de Mercie ou de Nortúmbria, mas a realidade dos factos escapa-nos e a história desses reinos começa a ser conhecida no século VII. Mas os historiadores ingleses não querem aceitar esta lacuna e, utilizando os dados da História Eclesiástica, de Bede (morto em 735), o Beowulf, primeiro poema em língua vulgar, e enfim as leis de Athelbert de Kent e de Ine de Wessex, tentaram reconstituir a sociedade anglo-saxónica do século VI. Fixemos alguns aspectos. Primeiramente, a anarquia política: enquanto os reinos bárbaros do continente conhecem muito rapidamente uma relativa unidade política e se pode falar do reino dos Francos ou dos Visigodos a partir do século VI, não existe reino anglo- saxónico unificado. Instalados em pequenos grupos isolados uns dos outros, os povos invasores vão formar principados independentes e inimigos. Não sabemos o seu número: falou-se da «heptarquia inglesa», mas, de facto, a Inglaterra divide-se, não em sete reinados, mas em dezasseis ou dezoito. Alguns deles, vão, sem dúvida, crescendo à custa dos vizinhos e podem-se distinguir, no fim do século VI, Bernicie e Deirie (Iorque), que formarão a Nortúmbria, ao sul do rio Humber a East-Anglia e Mercie (“marcha” contra os Bretões) e, por fim, os estados meridionais de Kent, Essex Sussex e Wessex. Toda a história inglesa do século VI ao século IX é preenchida pela luta de influências desses pequenos reinos; e delimitam-se os seus períodos falando da supremacia de Ethelbert de Kent (fim do século VI), de Edwin e de OswaId de Nortúmbria (primeira metade do século VII), de Offa, rei de Mercie (757-796), até ao momento em que o Wessex dominará definitivamente, pouco antes das invasões dinamarquesas do século IX (reinado do rei Alfredo). As instituições anglo-saxónicas diferem conforme os reinos e a idéia de um «sistema anglo-saxónico» primitivo, concebida no fim do século XIX pelo grande historiador Stubbs, está agora ultrapassada. As fontes do século VII que já citamos mostram-nos os chefes de bandos que se tornaram reis rodeados de uma nobreza de guerreiros, os jovens educando-se junto ao príncipe, os velhos formando um conselho político que mais tarde tomou o nome de witenan-gemot (assembléia dos anciãos). À antiga nobreza dos companheiros de armas (thanes) junta-se, depois da conquista, uma nova nobreza dotada de terras e encarregada de funções administrativas, a dos eorls. Abaixo destas nobrezas, a base da sociedade parece ser formada pela multidão de camponeses livres (os ceorls), depois pela dos escravos libertos (laets) - pelo menos no Kent- e, finalmente, pela dos escravos (theows) vindos da Germânia ou escolhidos entre os Bretões vencidos. No conjunto, essas instituições conservam a marca do sistema germânico e, se estudássemos a organização judicial e as tarifas do Wergeld, ou a comunidade de aldeia (township) - cuja origem é ainda muito obscura -, ou, enfim, a religião dos Anglo-Saxões, esta influência germânica seria confirmada. Os reinos de Inglaterra ficam durante muito tempo em contacto comas civilizações escandinavas. A descoberta do barco funerário de Sutton Roo (East Anglia) e do seu tesouro é uma brilhante confirmação desse facto. Uma literatura em língua vulgar - o velho inglês - constituir-se-á mais rapidamente do que no continente e uma arte será criada, particularmente em Nortúmbria (ourivesaria e miniaturas), cuja influência será grande no continente. O Reino Franco a) Desaparecimento da realeza borgonhesa. Clóvis não conseguira anexar o reino borgonhês, que parecia destinado a formar um enclave no reino franco. A posição e a organização da Borgonha pareciam dar a esta realeza hipóteses de perdurar. Enquadrado pelos planaltos de Champanhe e do Jura, este reino ocupava o corredor rodaniano até Avignon e interceptava' todas as relações entre a Gália e a Itália. Instalados desde 475, os Burgúndios tinham sabido aliar·se às populações romanas e conservar boas relações com o Império. Gondebaud, rei em 485, deixou fama de príncipe humano e inteligente; mandou redigir, sem dúvida por galo-romanos, dois códigos, um para a população das grandes cidades e de Lião, a sua capital a Lex Romana Romanorum, outro para o seu povo, a Lex Burgondionum, chamada depois «Lei Gombette». Estas leis determinaram a partilha das terras e as relações jurídicas entre as pessoas, mas mantiveram a desigualdade entre Bárbaros e Romanos. Porém, parece que a fusão das suas sociedades se fez bastante cedo. O que poderia tê-lo impedido era a fidelidade dos Burgúndios ao arianismo. De facto, se Gondebaud conservou até à morte esta crença religiosa, ele não era nada intolerante e o seu principal conselheiro foi o bispo católico de Viena, Santo Avito. Esta grande personagem da família senatorial dos Aviti, primo e discípulo literário de Sidónio Apolinário, conseguiu levar ao catolicismo o sucessor de Gondebaud, seu filho Sigismundo (516-523). Tudo parecia anunciar um grande reino. Infelizmente para Sigismundo, os vizinhos do seu reino eram demasiado ousados. Retomando os projectos de seu pai, encorajados pela mãe, Clotilde, sobrinha e vítima de Gondebaud, os filhos de Clóvis invadiram a Burgúndia em 52.3, enquanto, no Sul, os seus aliados astro gados ocupavam as planícies do Baixo Ródano e Sigismundo foi aprisionado e torturado, mas o seu irmão Godomar conseguiu manter-se até 5.34. Um novo ataque dos Francos obrigou-o a fugir e o seu reino foi partilhado entre Childeberto, Clotário e o seu sobrinho Teodeberto. Eles ocuparam mesmo a Provença, que os sucessores de Teodorico, ameaçados por Justiniano, não tiveram possibilidade de defender: a posse de Arles e de Marselha fazia do reino franco uma potência mediterrânica (536). Nada restará da ocupação dos guerreiros de «Gunther» na Gália. Só o nome de uma província, a Barganha, lembrará a efémera permanência destes germanos. b) A realeza franca no século VI A conquista da Borgúndia não passa de um episódio da expansão dos Francos em direccão a leste. Os filhos de Clóvis herdaram o ímpeto do pai, impõem o seu domínio aos Turíngeos e aos Bávaros a leste e dominam os Saxões e os Frisões a norte. Se lhes é possível reunir os seus esforços é porque, contrariamente aos reinos anglo-saxónicos, os reinos francos nascidos das múltiplas partilhas (teilreiche) que a morte de um soberano ocasiona conservam, porém, características comuns e instituições semelhantes. Destas instituições a principal é a monarquia. Ao contrário dos príncipes godos, o rei merovíngio lembra mais os chefes germânicos que os imperadores. Ele herda dos seus antepassados não só o traje, como os hábitos de guerra e de devassidão. Só o interesse e o capricho o fazem agir e a idéia do bem comum lhe é estranha. Se certos decretos revelam preocupação pelo bem comum, isso é devido a uma influência eclesiástica. Da mesma forma, o exercício da justiça muitas vezes se confunde com a percepção dos direitos de justiça. O “palácio” continua a ser uma espécie de acampamento que se desloca segundo as necessidades materiais; os dignatários que seguem o rei são os camerarius, que toma conta das câmaras, em especial da do tesouro, o major domus, administrador da villa real, o sinischal, chefe dos lacaios, ou o marischal, responsável pelas cavalariças. Sem dúvida, devemos igualmente mencionar o referendário, de que dependem os serviços administrativos do rei. O merovíngio que reina sobre populações romanas deixou, com efeito, numerosos autos escritos, todos redigidos por galo- romanos e que lembrariamos autos imperiais se as regras do latim neles fossem observadas, Para fazer aplicar os editos nas diferentes regiões do seu reino, os principes enviam condes francos ou romanos, que, nos limites da cidade, têm plenos poderes: mandam aumentar os impostos segundo o hábito imperial e as taxas indirectas (alfândegas, peagens, direitos sobre as mercadorias, portagens, etc.) para maior proveito do tesouro real; recrutam os exércitos quando rebenta uma guerra com um soberano vizinho; dirigem os debates do tribunal (mallus) e são ajudados nessa tarefa por aqueles que os textos chamam Boni Homines, ou ratchimbourgs, sem dúvida os notáveis da cidade. Os abusos de poder do conde não são raros, mas são denunciados por aquele que se torna uma espécie de defensor da cidade, o bispo. O bispo merovíngio é, com efeito, igualmente poderoso. Sendo, em geral, galo-romano (dos 536 bispos reunidos nos concílios, entre 475 e 576, 28 têm nomes de origem germânica), os bispos têm a confiança do rei e a simpatia das populações. De origem aristocrática, são quase os únicos a ter uma cultura e, o que é mais importante, possuem numerosas terras. Estes bens, que a caridade e a piedade dos fiéis aumentam continuamente e que mais tarde. graças ao privilégio de imunidade, escaparão ao controlo fiscal do rei, permitem-lhes sustentar os seus clérigos, resgatar os cativos, socorrer os pobres, construir igrejas ou monumentos de interesse público (fortificações, diques, etc.). A isto acrescenta-se o prestígio religioso desses "homens de Deus», pregadores ou taumaturgos, que, no meio da anarquia geral do século VII, aumenta constantemente. c) A preponderância austrasiana nos séculos VII / VIII. - A acção dos bispos contribui em parte para realizar a fusão entre os diversos povos da Gália. Quando Gregório de Tours escreve a História dos Francos, conta, na verdade, a história de todos aqueles que são súbditos dos Merovíngios e que, conscientemente ou não, se sentem solidários no mesmo destino. Mas essa fusão realizou-se quase exclusivamente nas regiões compreendidas entre o Loire, o Marne e o Escalda (Nêustria). Noutros lados, a influência germânica foi muito fraca (Aquitânia, Borgonha, Provença), nula (Armórica) ou preponderante (regiões do Leste). São essas regiões, chamadas Austrásia no século VII, que no decurso das guerras civis que se seguem ao reinado de Dagoberto (629-639), vão decidir a sorte da Gália Franca. Uma família descendente de Pepino de Landen (perto de Liege) e de Arnoul, bispo de Metz, consegue impor a sua política aos reis merovíngios e, graças a Pepino de Herstal, vence os Neustrianos (687). A morte deste provoca de novo a anarquia, mas um dos seus bastardos, Carlos, restabelece a situação e tem a sorte de deter perto de Poitiers uma invasão muçulmana (732). Desta vez, a família austrasiana ganha uma situação sólida e o filho de Carlos, Pepino-o- Breve, pode aprisionar o último merovíngio e tomar o seu lugar. Para realizar o que se chamou o «golpe de Estado de 751», Pepino apoiou-se nas forças germânicas do reino, cujo centro de gravidade se desloca das regiões marítimas para os vales do Mosa e do Reno. Mas teve sobretudo o apoio da Igreja e do arcebispo de Mogúncia, São Bonifácio, com quem realizara a reforma eclesiástica na Gália. Além disso, consultado o papa, este aprovou a mudança de dinastia. Enfim, é sagrado o novo rei à maneira dos reis visigodos. A aliança que se estabelece entre a igreja católica e a família carolíngia está destinada a ter futuro. RICHE, P. As Invasões bárbaras. Lisboa: europa-América, s/d. 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