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BBIIOOTTEECCNNOOLLOOGGIIAA EE BBIIOOÉÉTTIICCAA** José Geraldo de Freitas Drumond∗∗∗∗∗∗∗∗ INTRODUÇÃO O homem é um ser intrinsecamente tecnológico, pois desde a Antiguidade utilizou procedimentos tecnológicos para melhor se adaptar ao seu habitat, quer pela descoberta e desenvolvimento do vestuário para a proteção de seu corpo, quer pela elaboração de novos alimentos como queijo, iogurte e cerveja que, na realidade produtos biotecnológicos, mesmo que a sua essência (as transformações químicas produzidas pelos microrganismos) só fosse conhecida posteriormente. A palavra tecnologia originou-se entre os antigos gregos. Aristóteles na sua “Ética a Nicômaco”, usa o vocábulo Tykne ou techne em contraposição à Ananke. Esta significava a realidade na qual o homem não poderia intervir, como a seqüência das estações do ano (o verão após a primavera, depois o outono e o inverno), o nascer do sol no leste e o seu ocaso no oeste, enfim, os fatos já pré-determinadas, daí a palavra latina fatum ou necessitas absoluta. A tykne ou techne representaria a realidade sobre a qual o homem pode intervir. Esta realidade não estaria pré-determinada, mas apareceria por obra do acaso e, sendo assim, pode ser mudada, de acordo com as necessidades e conveniência dos humanos. As intervenções produzidas pelo homem na natureza foram se incorporando à sua cultura e, ao longo desta caminhada da humanidade até os dias atuais o homem vem fazendo ciência ao aplicar os seus conhecimentos para atender às suas necessidades. *Palestra proferida no Seminário de Ética na Pesquisa/FAPEMIG, Belo Horizonte, 1 e 2 de abril de 2005. **Professor Titular da Universidade Estadual de Montes Claros-UNIMONTES (MG) e Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais-FAPEMIG. 2 Para alguns, entretanto, o marco inaugural da ciência se deu no ano de 1609, quando Galileu Galilei observou a lua por meio de um tosco telescópio. Embora a ciência sempre estivesse com o homem, este foi um momento extraordinariamente novo e revolucionário, em que o homem, através de Galileu ousou enxergar o impossível. Galileu era um homem prático, um astuto comerciante atento à política de seu tempo e que tinha um dom especial para atrair mercadores para a comercialização de seus inventos, ao mesmo tempo em que convencia os dignatários da Igreja da importância de suas descobertas, o que durou algum tempo. Dando um grande salto na história e acelerando a máquina do tempo, chegamos ao século XX, considerado o século da tecnologia, pois foi neste tempo em que o homem e a humanidade experimentaram um caudal de conhecimentos jamais observado em toda a sua história. Em determinadas áreas da ciência, como a biotecnologia, por exemplo, a matriz do conhecimento passou a ser reformulada completamente a cada período de cinco anos e tanto neste como em outros ramos da ciência, a ficção finalmente se confundiu com a realidade. O marco considerado decisivo para o nascimento da biotecnologia moderna foi a descoberta da estrutura duplamente helicoidal do DNA – Ácido Desoxirribonucléico – realizado por James Watson e Francis Crick, em 1953, a partir dos estudos de difração de raios X desenvolvidos por Wilkins e Franklin. Este fato acelerou de modo irreversível o desenvolvimento da genômica – área especializada na decifração do código genético dos seres vivos – e incluindo definitivamente a descoberta entre as maiores de todos os tempos desde que o monge austríaco Gregor Mendel, em 1865, fez as suas descobertas sobre os princípios da genética, em ervilhas cultivadas no quintal de seu mosteiro. O primeiro teste em campo de uma planta geneticamente modificada aconteceu em 1987, com uma espécie de tomate resistente a vírus, seguido de uma incontrolável disseminação de experimentos na agronomia, até chegar ao 3 ano de 2003 com o planeta ostentando a cifra de 167,2 milhões de acres de plantas geneticamente modificadas, em 18 países. A partir de então os avanços da biotecnologia tem sido tão espetaculares quanto os desafios colocados pelo próprio ser humano para mitigar as suas necessidades básicas de nutrição, saúde e paz. Atualmente, a saúde constitui 85% de todos os investimentos em biotecnologia: hoje existem mais de 370 drogas e vacinas de origem biotecnológica em estudo clínico para sua aplicação em humanos, com a finalidade de vencer os desafios representados pelo câncer, doença de Alzheimer, diabetes, cardiopatias, esclerose múltipla e AIDS, dentre outros. Outros exemplos das benéficas aplicações dos resultados da pesquisa biotecnológica atual, são o desenvolvimento de kits diagnósticos para a detecção de vírus e agentes patogênicos diversos, em sangue e derivados, garantindo-se a segurança do tratamento hemoterápico. A economia, também, tem colhido muitos frutos da aplicação do conhecimento em biotecnologia: no agronegócio, o desenvolvimento de plantas resistentes a pragas e com maior valor nutricional, levou à conseqüente redução do emprego de pesticidas químicos; enquanto a melhoria genética dos rebanhos, por meio da inseminação artificial, levou a mudanças no teor nutritivo das carnes e do leite, escoimando as gorduras nocivas à saúde humana. Outros exemplos podem ser citados como a utilização de microrganismos para limpeza de resíduos, a descobertas de processos industriais menos poluentes nas áreas têxtil, da química industrial, de papel, alimentos, etc. Hoje, somente nos Estados Unidos da América, o número de empresas de biotecnologia é superior a 1.500, um terço das quais com ações negociadas nas bolsas de valores, com transações financeiras estimadas em mais de 300 bilhões de dólares. Avalia-se que este setor de indústria e negócios possa movimentar algo em torno de 30 bilhões de dólares anuais, somente nos Estados Unidos. Esta realidade não tem mais do que meio século de desenvolvimento, mas a sua capacidade de transformação da natureza e intervenção no homem vem causando, a um só tempo, perplexidades científicas e éticas. 4 É perplexidade científica, porque o século pretérito iniciou-se com uma expectativa de renovação da base do conhecimento humano a cada cinqüenta anos e, nestes alvores do milênio terceiro esta expectativa se encontra em torno de uma década. Daí porque o século XX ficou conhecido como o século da tecnologia, pois imprimiu uma velocidade tão grande na aplicação do conhecimento humano que foi capaz de revolucionar os hábitos das pessoas em praticamente todos os quadrantes do planeta. Nunca o homem foi tão longe em conquistas, tanto no macro quanto no microcosmo, quer na produção de novas formas de vida quanto na capacidade de sua destruição. Os exemplos são inúmeros, mas três podem ser tomados como ícones desta era de realizações científicas: os projetos Manhattan, Apolo e Genoma. O projeto Manhattan foi desenvolvido nos Estados Unidos, com a participação de cientistas americanos, alemães e italianos, resultando na descoberta da fissão do átomo. No entanto, as suas terríveis conseqüências foram materializadas na construção dos artefatos atômicos que destruíram Nagasaki e Hiroshima, no Japão, de cujas conseqüências os japoneses ainda padecem até os dias atuais. Já o projeto Apolo fez desenvolver a tecnologia dos foguetes de propulsão, que culminou com o envio da primeira nave tripulada à lua e a primeira incursão do homem no espaço infinito do universo inexplorado. Por fim, o projeto Genoma Humano, nascido em outubro de 1990,através de um consórcio de 16 centros oficiais, compreendendo universidades e institutos científicos dos Estados Unidos, Reino Unido, Japão, França e China. Custeado pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos e programado para ser concluído em 2005, tinha por objetivo decifrar o código genético do homem a um custo aproximado de três bilhões de dólares. O PGH, devido à concorrência estabelecida entre os institutos de pesquisa públicos e privados (“Celera Genomics”) dos Estados Unidos, teve a sua finalização antecipada para o ano 2000, obtendo-se a decifração de exatos 26.383 genes codificadores de proteínas, estando em análise outros 12.731 genes hipotéticos, para um possível total de identificação de 39.114 dos cerca de 100 (cem) mil anteriormente previstos, confirmando-se que a maior parte das seqüências do código genético não tem qualquer significação aparente. 5 No que pertine às inúmeras inovações tecnológicas na área médica, com repercussões imediatas sobre a vida e a saúde do cidadão, são citados a produção de antibióticos mais potentes, a transplantologia, a reprodução assistida, a terapia genética, o uso de novos materiais e medicamentos nas áreas de estética e sexologia, além do desenvolvimento de incríveis máquinas de diagnóstico que esquadrinham toda a intimidade biológica do corpo humano, chegando a propiciar a idéia de que talvez a última fronteira a ser desvendada será a alma humana. Os transplantes de órgãos constituem, nos dias de agora, procedimentos tão corriqueiros que já não despertam sequer a curiosidade da mídia. A biotecnologia médica vem alimentando as três grandes utopias humanas, quais sejam, a utopia da eternidade (pelo aumento da longevidade), a utopia da beleza (pelas mudanças cosmetológicas) e a utopia do prazer (pelo aparecimento de novas drogas que suprimem a dor e promovem o prazer físico e psíquico). Para Lucian Sfez, Professor da Universidade de Paris I e autor do célebre livro “A saúde perfeita, critica de uma nova utopia”, a nova obsessão humana é a utopia da saúde e do corpo perfeitos. É perplexidade ética, porque não obstante tamanho progresso, o mundo se encontra na fronteira de graves responsabilidades morais, determinadas pelo processo de intervenção cada vez mais agressivo na biosfera, acelerando o seu processo de deterioração e no próprio homem, ao interferir na sua identidade genética. A última batalha pela dignidade humana será travada não mais nas trincheiras de uma guerra convencional ou em torno de uma mesa de negociação entre lideres mundiais, mas sim nos laboratórios de genética molecular, onde se manipulam o DNA humano, eis uma afirmação grave do Professor Genival Veloso de França, um dos maiores pensadores médicos patrícios. Edgar Morin, sociólogo francês, diante do quadro paradoxal que vive a humanidade, assim se expressa: “A humanidade corre o risco de naufragar no momento em que dá a luz ao seu futuro”. 6 Daí porque organismos internacionais vêm se posicionando sobre esta realidade, como fez a UNESCO, ao promulgar a Declaração dos Direitos do Genoma, que representa uma conquista comparável à Declaração Internacional dos Direitos Humanos, de dezembro de 1948. As preocupações provocadas pelas inovações tecnológicas se referem ao fato de que elas podem não só beneficiar a humanidade, mas também serem utilizadas contra ela. Uma reação a estas perplexidades surgiu na década de 70, nos Estados Unidos, através da Bioética, uma nova proposta ética, com o escopo de balizar o progresso humano tendo como norte a preservação da dignidade do homem. Graças ao oncologista Van Rensselaer Potter, a bioética se tornou um divisor de águas na caminhada da humanidade rumo a um futuro imprevisível, porém mais solidário. No seu livro “Bioethics: a bridge to the future”, Potter perscrutava os avanços da ciência, principalmente através da biotecnologia aplicada ao homem propugnando por uma discussão ampla para a definição de balisas morais suficientes para impedir o abuso da tecnologia contra a humanidade. O Relatório Belmont foi um outro marco na defesa da dignidade do homem, enquanto alvo dos abusos das pesquisas científicas nos Estados Unidos, estabelecendo os princípios da beneficência, autonomia e justiça, a favor do homem, que logo se viram ampliados Childress e Beauchamps para quatro, constituindo-se a tétrade da Bioética principialista: a beneficência, a não-maleficência, a autonomia e a justiça. CIÊNCIA E ÉTICA 7 A ciência avançou tão celeremente que, paradoxalmente, a confiança em seu poder e na sua eficácia vem sendo substituída, nos dias atuais, por sentimentos de medo e desconfiança. A humanidade do pós-guerra sabe, desde Nüremberg, que a ciência não é ingênua, sequer neutra, pois representa um poder e este poder poderá ser utilizado para finalidades deletérias ao homem e à biosfera. Os primeiros a se conscientizarem do lado perverso do uso da ciência foram os físicos. Bronowiski, em sua obra “A ciência e os valores humanos”, admite que os físicos somente tiveram a consciência da humanidade após ter visitado Nagasaki, três meses decorridos da explosão da bomba atômica, quando se aperceberam do poder de destruição do artefato nuclear. Para Bronowiski foi como se a física despertasse de um sono de 2.500 anos, durante os quais se desenvolveu desvinculando-se, progressiva e sistematicamente, das concepções éticas sobre os fenômenos naturais, desde que o primeiro físico pôde formular a explicação do mundo, substituindo crenças e mitos por uma percepção fática da realidade, às custas de um instrumento que, para ele, seria neutro: a lógica do pensamento. Foi dessa forma que a ciência logrou evoluir: a cada avanço no conhecimento da realidade correspondia um recuo no conjunto mítico e de valores utilizados para explicar o mundo. Ou seja: a ciência evoluiu às custas da compreensão dos fenômenos naturais, através da construção de modelos racionais para explicação dos fatos. No que se refere à ética, a ciência exibe três distintas fases de comportamento evolutivo. A primeira, de caráter apenas elucidativo, se caracteriza pela superação de uma concepção teológica do mundo. A segunda 8 se alcança pela demonstração do poder transformador da técnica, que prescinde de princípios éticos. Finalmente, a terceira fase se materializa quando o poder transformador da técnica provoca situações catastróficas (bomba atômica, os vírus do ebola, antraz, da “vaca louca”, HIV, etc) que impõe ao cientista a busca de um comportamento ético, em geral de natureza normativa, no emprego da ciência. Em 1921, Einstein aconselhou a um dos seus discípulos para não se preocupar com uma possível aplicação de sua teoria da relatividade na construção de armas. No entanto, quando explodiram as bombas atômicas, Einstein declarou que a humanidade ainda não estava preparada para aquela invenção. O próprio Einstein participou das pesquisas que culminariam na construção do artefato nuclear sob a justificativa que esta seria uma estratégia para enfrentar o fascismo. Os físicos se julgavam protegidos moralmente, e alegavam que as suas descobertas só seriam utilizadas com a aprovação do conjunto da sociedade, e que caberiam aos políticos a responsabilidade de sua aplicação. Esta era, como se revelou mais tarde, uma convicção, pois achavam que essa atitude poderia fazê-los abdicar de uma postura ética. Foi, então, que a física concluiu o seu ciclo evolutivo de três tempos, iniciado com a abolição de uma ética explicativa e culminado com a exigência de uma ética reguladora.Neste limiar do século XXI estamos presenciando o fechamento do ciclo evolutivo da biotecnologia em relação à ética, ao se prenunciar o advento da clonagem humana e a ruptura das barreiras genéticas que até aqui separavam as espécies animais e vegetais. 9 Há quem julgue que o momento final desse ciclo da ciência ainda está por vir, quando ocorrer a união da microeletrônica com a engenharia genética, ensejando o surgimento de espécies mutantes de indivíduos, que certamente provocarão o maior desequilíbrio já observado na natureza. Na primeira edição de seu “Admirável Mundo Novo”, ocorrida em 1932, Huxley anteviu um futuro dominado pela técnica e pelo saber científico, que originaria uma sociedade totalitária, no remotíssimo ano de 2.532. Quando do lançamento da sua segunda edição, em 1946, o mundo já assistira a Segunda Grande Guerra, ao êxito das ciências da matéria (com destaque para a física e a química) e a fissão nuclear que, a um só tempo, proporcionou grandes benefícios e infelicidade à humanidade. Para Huxley, genuíno profeta da clonagem humana, a libertação da energia nuclear - que assinalou a grande revolução da história da ciência - não seria a final, nem a mais profunda. São suas palavras: “A liberação da energia atômica assinala uma grande revolução na história humana e, a não ser que nos façamos saltar em pedaços e coloquemos assim, fim à história, esta não é a revolução final e a mais profunda. A revolução verdadeiramente revolucionária realizar-se-à não no mundo exterior, mas na alma e na carne dos humanos”. Foi essa revolução “verdadeiramente revolucionária” teve início na década de 70 e invadiu, inexoravelmente, os insondáveis mistérios da biologia: a inseminação artificial nos animais, a fecundação “in vitro” nos humanos, a engenharia genética nos vegetais, animais e humanos e, finalmente, a era da medicina regenerativa, baseada na clonagem terapêutica, para citar os mais espetaculares feitos da tecnologia biológica atual. 10 A análise da evolução destes resultados do progresso científico nos leva a admitir que a prática regular da clonagem humana será uma mera questão de tempo, principalmente porque os experimentos em biotecnologia e as suas aplicações em vegetais, animais e, mais recentemente, no homem têm obedecido a duas lógicas: o utilitarismo científico e os imperativos do mercado. Ao se curvar a essas demandas, a clonagem humana será o desdobramento lógico do próprio desenvolvimento da biotecnologia, que nasceu do fascínio dos cientistas pela partenogênese, no século 19. Nesse ritmo de conquistas tecnológicas pode-se antever que a biotecnologia conseguirá convencer à sociedade, não apenas da aceitação, mas, também, da necessidade da clonagem humana, mesmo porque como ciência os seus dois primeiros tempos de evolução já foram ultrapassados: destruíram-se os conceitos tradicionais de vida, morte, nascimento, corporeidade e reprodução, contestando uma humanidade que tinha por sagrada a vida e fazendo surgir uma nova humanidade que certamente não tem mais na inviolabilidade da vida um valor fundamental e inquestionável. O surgimento de Dolly foi legitimado pelo casamento do utilitarismo científico com as exigências do mercado. À “PPL Therapeutics” caberia, então, gerir um formidável filão financeiro, cujo carro chefe seria a produção de substâncias contra as mais diferentes doenças humanas. Até o nascimento de Dolly, a discussão esteve centrada na transformação de partes do corpo humano em mercadorias, como bem denunciaram Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa na obra “O mercado humano”. O direito à vida começava, então, a ser minado pelo direito de propriedade sobre células, tecidos e órgãos, como ficou bem ilustrado no 11 célebre caso John Moore que, em 1990, perdeu na justiça americana o direito de reaver as próprias células modificadas. A partir de Dolly, o que parecia um absurdo para a velha humanidade provocou um verdadeiro choque de perplexidade. Eis algumas das razões que o utilitarismo científico defende para justificar a clonagem embrionária humana: • O conhecimento do desenvolvimento de embriões múltiplos através da clonagem pode determinar as causas de abortos espontâneos; • O desenvolvimento de contraceptivos, pelo estudo do comportamento dos embriões na sua implantação uterina; • A melhoria do conhecimento em cancerologia, pela analogia da velocidade de multiplicação das células cancerosas e das células embrionárias (blastômeros); • A melhoria do conhecimento do comportamento das “stem cells” ou células-tronco e sua possível aplicação nos mecanismos de defesa e reconstrução de células e tecidos permanentes; • A “varredura” genética de embriões de pais com história de doença ligada à hereditariedade; • A utilização de embriões clonados como banco de órgãos para transplante. 12 Todas as evidências até agora registradas, no que se refere à clonagem, nos fazem acreditar que o homem já estava sendo incluído nessas experiências. Daí perguntarmos se, de fato, estamos vivenciando o momento limite da humanidade, para além do qual, segundo Jean Dausset, célebre pesquisador francês e criador do “Movimento Universal pela Responsabilidade Científica”, o avanço científico poderá se voltar contra a dignidade do homem? Não estaria a humanidade caminhando para uma grande e temerosa aventura pela aplicação desvirtuada das descobertas genéticas? É Giovanni Berlinguer, um dos notáveis bioeticistas vivos até o momento, quem afirma: “A velocidade com que se passa da pesquisa pura para a aplicada é hoje tão alta que a presença, por breve que seja o tempo, de erros e fraudes, pode provocar catástrofes”. O noticiário internacional do ano 2000 divulgou que centenas de experiências com terapia gênica foram realizadas nos EUA, cujos resultados fracassaram e, em alguns casos, até com a morte de pacientes. Informou-se, também, que estes resultados foram mantidos em segredo para não causar prejuízo no financiamento das pesquisas. No campo da clonagem, desde que Ian Wilmut, no ano de 1997, logrou a clonagem de uma ovelha a partir de uma célula adulta, deu-se a bandeirada da largada de uma inexorável corrida de equipes científicas em direção à vitória final em torno da clonagem humana. 13 OS QUESTIONAMENTOS ÉTICOS DAS PESQUISAS INOVADORAS “Os direitos nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha, inevitavelmente, o processo tecnológico (a capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens) – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novas remédios para suas indigências”. Norberto Bobbio (“A era dos direitos”) Quando a humanidade descobriu os horrores perpetrados pela ciência biomédica a serviço da ideologia nazista, durante a Segunda Grande Guerra, houve imediata reação, como a constituição do Tribunal de Nuremberg, para julgar os criminosos de guerra e a Declaração de Nüremberg, aprovada no ano de 1946, cujas linhas mestras são: 1) é absolutamente necessário o consentimento voluntário do paciente na experimentação; 2) o experimento deve buscar resultados saudáveis à sociedade; 3) o experimento deve ser conduzido de tal forma que evite todo sofrimento ou injúria física e mental; 4) o grau de risco a ser corrido pelo paciente não deve exceder a importância do problema a ser resolvido pelo experimento; 5) o experimento só pode ser realizado por pessoal tecnicamente qualificado e 6) deverá haver suspensão da experiência a qualquer momento que possa colocar em risco sério a saúde do paciente.A Declaração de Helsinki, já na sua quinta versão, de outubro de 2000, desde que foi editada pela primeira vez em 1964, pela Assembléia Geral da Associação Média Mundial, é o documento internacional mais importante para 14 a regulação da pesquisa em seres humanos, desde o Código de Nüremberg (1947). A sua atual reforma é a mais extensa e a mais profunda de todas as anteriores, tendo com pontos principais: ! Aumento das exigências para pesquisas feitas sem o consentimento informado, que devem constituir-se exceção. ! Deve-se esperar que as populações sobre as quais se desenvolve a pesquisa, se beneficiem dela; ! Devem ser declarados os conflitos de interesse. ! É reforçado o direito de cada participante numa pesquisa, ainda que seja integrante de um grupo de controle, em obter o melhor tratamento provado disponível (com o que o uso do placebo fica reservado para o caso em que não haja qualquer outro tratamento disponível para a situação que se vai investigar). ! Os participantes da pesquisa devem ter acesso ao melhor tratamento disponível, identificado pela pesquisa ao seu término. ! A nova Declaração de Helsinki inclui não só a investigação do material humano propriamente dito, como também material de informação, identificáveis como tais. CCOONNCCLLUUSSÃÃOO 15 Mais que antes, a aplicação de novas tecnologias à medicina e à saúde humana tem que levar em conta os princípios fundamentais da pessoa humana, a saber: ! Princípio da dignidade e inviolabilidade. ! Princípio da não comercialização do corpo humano. ! Princípio da não discriminação. ! Princípio da confidencialidade. ! Princípio da autonomia, através do consentimento livre e informado. Os questionamentos que devem ser feitos por ocasião da utilização do homem ou material humano, como sujeitos da pesquisa são: 1) O novo método ou procedimento é seguro? 2) O novo método ou procedimento é eficaz? 3) Qual é o benefício real do novo método ou procedimento em relação ao pré-existente? 4) Qual é a relação custo/benefício do novo método ou procedimento? 5) Que repercussão social terá o novo método ou procedimento? Infelizmente, nem sempre têm sido estes exatamente os critérios adotados nas pesquisas inovadoras ao redor do mundo. Basta verificar o que está acontecendo com as experiências genéticas, assim como a avaliação dos resultados da reprodução assistida. 16 No mês de maio de 2002, Ian Wilmut, o co-criador de Dolly, a ovelha, primeiro mamífero a ser clonado a partir de uma célula adulta, publicou trabalho em que constata que todos os animais clonados no mundo apresentam deficiências genéticas e físicas. Wilmut conclui, pela sua pesquisa que o ser humano clonado também estaria correndo imenso risco de defeitos genéticos. Wilmut baseia o seu estudo em Dolly, que nasceu com cromossomos exibindo telômeros mais curtos (extremidades do DNA que protegem a porção final dos cromossomos). Em ovelhas normais e no homem, os telômeros encurtam com a idade cronológica, ou seja, à medida que se encurtam, as células tendem ao envelhecimento e à morte. Dolly, por exemplo, parece estar acometida por artrite, em uma idade bem mais jovem do que o normal, para as ovelhas. Os principais defeitos geralmente encontrados em animais clonados, segundo o trabalho de Wilmut, seriam o gigantismo em ovelhas e gado clonados, a placenta aumentada em quatro vezes o tamanho normal em camundongos e defeitos cardíacos em porcos. Outras alterações encontradas foram o aumento grotesco do corpo de camundongos submetidos à dieta normal, enquanto vacas, ovelhas e porcos clonados mostraram-se com dificuldades de desenvolvimento, problemas pulmonares e deficientes sistemas imunológicos. Algumas anormalidades dizem respeito á morte súbita ou repentina de animais clonados. No início de 2002, a empresa norte-americana Advanced Cell Technology anunciou ter clonado três embriões humanos, mas admitiu que nenhum deles ultrapassou o estágio de seis células. 17 Um estudo publicado recentemente pelo “The New England Journal of Medicine” revela que crianças concebidas em laboratório, pelas técnicas modernas de reprodução assistida, têm mais que o dobro de possibilidades de nascer com alguma complicação de saúde do que os bebês concebidos naturalmente. Este trabalho foi realizado por pesquisadores ingleses e australianos acompanhando cerca de 1000 bebês, nascidos entre os anos de 1993 e 1997, e demonstrou que, ao longo do primeiro ano de vida, quase 10% deles apresentaram baixo peso, problemas cardíacos, distúrbios neuromusculares e até paralisia cerebral. Antes de representar uma condenação aos métodos da reprodução assistida, a pesquisa serviu de alerta para que o médico esclareça aos casais que querem utilizá-la os riscos a ela inerentes. O mais terrível para a humanidade – que teve na ciência a desmistificação dos fenômenos naturais – é exatamente a perda dos valores espirituais, provocada pelo poder fascinantemente corrosivo que a tecnologia exerce sobre o pensamento humano, principalmente devido à luta desigual entre a velocidade das descobertas e a capacidade de reflexão moral sobre elas. Mesmo que a clonagem humana venha a representar, como querem alguns, uma grande fonte de progresso para o homem, nunca se poderá deixar de admitir as suas possibilidades de produzir danos irremediáveis à natureza humana, como a obtenção de clones para rastreamento de caracteres supérfluos, o seu uso político na purificação étnica (o ressurgimento da ideologia eugênica) ou a transformação do ser humano em simples mercadoria. 18 Se o progresso da ciência é, de fato, bem mais veloz do que as reflexões sobre as suas repercussões na biosfera e na vida humana, este fato torna mais angustiante e premente a discussão a cerca dos limites da sua intervenção sobre a vida humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • APPLEYARD, Bryan. Ciencia vs Humanismo: un desacuerdo imprevisible. 1. ed. Buenos Aires: EL Ateneo, 2004. • BEAUCHAMP TL, Childress JF. Principles of Biomedical Ethics. 4. ed. 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