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CAPÍTULO PRIMEIRO: O SURGIMENTO Podemos entender a sociologia como uma das manifestações do pensamento moderno. A evolu- ção do pensamento científico, que vinha se cons- tituindo desde Copérnico,passa a cobrir, com a sociologia, uma nova área do conhecimento ainda não incorporada ao saber científico, ou seja, o mundo social. Surge posteriormente à constituição das ciências naturais e de diversas ciências sociais. A sua formação constitui um acontecimento complexo para o qual concorrem uma constelação de circunstâncias, históricas e intelectuais, e determinadas intenções práticas. O seu surgimento ocorre num contexto histórico específico, que coincide com os derradeiros momentos da desa- gregação da sociedade feudal e da consolidação :!;J4:>r:JO capitalista. A sua criaçâo não é obra \ ) o que é Soctologia 11 Biblioteca "Prof.1osé 8tqrq)6U" de um único filósofo ou cientista, mas representa o resultado da elaboração de um conjunto de pensadores que se empenharam em compreender as novas situações de existência que estavam em curso. O século XVUJ constitui um marco importante para a história do pensamento ocidental e para o surgimento da sociologia. As transformações econômicas, políticas e culturals que se aceleram a partir dessa época colocarão problemas inéditos para os homens que experimentavam as mudanças que ocorriam no ocidente europeu. A dupla revolução que este século testemunha - a indus- trial e a francesa - constitu ia os dois lados de um mesmo processo, qual seja, a instalação definitiva da sociedade capitalista. A .., palavra sociologia apareceria somente um século depois, por' volta de.183Q, mas são os acontecimentos desencadeados pela dupla revoluçãoque.a precipitam e a tornam possível. Não constitui objetivo desta parte do trabalho proceder a uma análise destas duas revoluções, mas apenas estabelecer algumas relações que elas possuem com a formação da socicloqia. A revo- lução industrial significou algomaisdoquea intro- dução da máquina avapor e dos sucesslvos-aperíel- çoamentos dos métodos produtivos. Ela represen- tou o triunfo da indústria capitalista,capitaneada pelo empresário capitalista que foi pouco a pouco ccncentrandoas máculnas.res terras e as ferramen~ -~ ---------------- ---------_ ..._---------------------------- ) 12 Cartas B. Marfins o que é Sociologia. 13 r tas sob o seu controle, convertendo. grandes massas humanas. em simples trabalhadores despossu ídos. Cada avanço com relação à consol idação da sociedade capitalista representava a desintegração, o solapamento de costumes e instituições até então existentes e aintrodução de novas formas de organizar a vida social. A util ização da máquina na produção não apenas destru iu o artesão inde- pendente, que possuía um pequeno pedaço de terra, cultivado nos seus . momentos livres. Este foi também submetido a' uma severa disciplina, a novas formas' de conduta ,e de relações de tra- . balho, completamente diferentes das vividas anteriormente por ele. Num período de oitenta anos, 'ou seja, entre 1780 e 1860, a Inglaterra havia.rnudado de forma marcante a suafisionomia. País com pequenas cidades, com uma população rural dispersa, passou a comportar enormes cidades, nas quais se con- centravam suas nascentes indústrias, que espalha- . vam produtos para o mundo inteiro. Tais modifi- cações não poderiam deixar de produzir novas real idades para os homens dessa época. A formação de uma sociedade que se industrializava e urba- nizava em ritmo crescente implicava a reordenacão da sociedade rural, a destruição da servidão, o desmantelamento da fam (lia patricialetc. A trans- formação da atividade artesanal em manufatu- reira e,· por último, em atividade fabril, desenca- deou ..uma maciça emigração do campo para a cí- dade, assim como engaJou mulheres e crianças em jornadas de trabalho de pelo menos doze horas, sem férias e feriados, ganhando um. salário de subslstêncla, Em alguns setores da indústria ingle- sa, mais da metade dos trabalhadores era cons- titu ída por mulheres e crianças, que ganhavam salários inferiores dos homens. A desaperição : dos .pequenos proprietários rurais, dos artesãos independentes, a imposição de prolongadas horas de trabalho etc, tiveram um vefelto traumático sobre milhões de seres humanos ao modificar radicalmente suas formas habituais de vida. Estas transformações, que possu Iam um sabor de catacHsma, faziam-se mais visíveis nas cidades industriais, local .para onde convergiam todas estas modificações e explodiam suas conseqüências. Estas cidades passavam por um vertiginoso crescimento demo- gráfico, sem possuir, no entanto, uma estrutura de moradias, de serviços sanitários, de saúde, capaz de acolher a população que se deslocava do campo. Manchester, que constitui um ponto de referência indicativo desses tempos, por volta do início do século XIX era habitada por setenta mil habitantes; cinqüenta anos depois, possu ía trezentas mil pessoas. As conseqüências da rápida industrialização e urbanização levadas a cabo pelo sistema capitalista foram tão visíveis quanto trá- gicas: aumento assustador da· prostituição, do suicídio, do alcoolismo, do ·infanticídió;da crlrnl- \. I J, t ••••••••••••••••••••••••• J.. •• •••••••••••••••• _ ~--------------_._._- - - . 14 CarlosB. Martins nalidade, da . violência, de surtos de epidemia de tifo e.cólera .quedlzimararn.parte da população etc. i: evidente que a -,situação' de vmlséria também atingia o campo, principalmente. os trabalhadores .assalariados, mas o seu epicentro ficava, sem dúvi- da, nas cidades industriais. . Um dos fatos de msior importância relacionados com a revoluçâc.lndustrial.é sem dúvida o apareci- mento do proletariado e o papel histórico que ele desempenharia na sociedade capitalista. Os efeitos catastróficos que esta .revolução acarretava para a classe trabalhadora levaram-na a negar suas. con- dições. de vida. As manifestações de revolta dos trabalhadores. atravessaram diversas fases, como" a destru i_ção das máqu inas, .atos de sabotagem e explosão de algumas. oficinas, roubos e crimes, evoluindo. para a criação de associações livres, .formação de sindicatos etc. A conseqüência desta crescente organização foi a de que os "pobres" deixaram de se confrontar com· os ."ricos" ; mas uma. classe específica, a classe operária, com cons- ciência de seus interesses, começava à orqanizar-se para enfrentar os proprietários dos instrumentos de .,trabalho. Nesta trajetória, iam produzindo seus jornais, sua própria literatura, procedendo a uma crítica da sociedade cepltalistae inclinando-se para o -socialismo como alternativa de mudança. Qual a importância desses. acontecimentos para a..sociologia? O que merece ser salientado é que a profundidade das .transformações em curso colo- .~ ! I I: . o.que é' Soeiologià cava a sociedade-num plano de análise, ou seja, esta passavaa se constituir em "problema",' .em "objeto" que deveríaserinvestigado; Os-pensado- res. ingl'f:~sesque testemunhavam' estastransforma- ções .e com elas se preocupam não eram, no··en- '; tanto, homens de ciência ou sociólogos que viviam desta profissão.' Eram antes de. tudo 'homens voltados 'para a' ação, que desejavam introduzir determ inadas modificações. na sociedade. Parti- cipavam ativamente dos debates ideológicos em que se envolviam as correntes liberais, conserva- doras ·esocialistas. Eles não desejavam produzir um mero conhecimento sobre as novas condições de vida geradas pela revolução industrial, mas procuravam. extrair dele orientações para a ação, tanto para manter i como. para, reformar ou modi- ficar radicalmente a sociedade de seu tempo .. Tal fato significa que.os precursores da socloloqla foram recrutados entre militantes pol íticos,entre indivíduos que participavam e se -envolvlarn pro-' fundamente com os problemas de suas sociedades.Pensadores como Owen-] 1771 ~1858) ,William Thompson (1775-1833), Jeremy Bentham (1.748- 1832)., só para citar alguns daquele momento histó- rico, podiam discordar entre si ao julgarem as novas condições de vida p,rovocadas pela revolução . industrial eas modificações que deveriam serreall- . zadas na nascente sociedade industrial, mas-todos eles concordavam que ela produzira fenômenos inteiramente novos que mereciam ser' analisados. • -------------_._ .._-_ ... - .Oulos B.Martins ., o que eles refletiram e escreveram foi de funda- mental importância pa~a'formação econstitu ição de um saber sobre a sociedade. A SOCi?logia constitui em certa . medida uma resposta . Int!l~tual.· às novas situações colocadas pela revolução Industrial. Boa parte de seus temas d! análise e de reflexão foi retirada das novas situa- çoes, como, por exemplcç a situação da classe trabalhadora, o surgimento da cidade industrial as transformaçõe~ tecnológicas, a organização d~ trabalho na _fábrica etc. e a formação de uma estr~t~ra: social. muito específica - a sociedade capl~hsta ,- que impulsiona uma reflexão sobre a sociedade; ~obre suas transformações, suas crises, seusanta~onlsmos de classe. Não éporrneroacaso ~ue ~ socloíoçla, en~uanto instrumento -de análise, tn~xlstl?~aS relativamente estáveis sociedades pré-capitalistas, uma vez que o ritmo e o nível das mudanças qu~ a ( se verificavam não chegavam' a ~oloc~r a SOCiedade como "um problema" a ser investigado.' . .' - . . O ~urgimento da sociologia, como se pode per- ceber, prende-se em 'parte aos abalos provocados pela r~v~lu~ão industrial, pelas novas condições d~ eXls~en~la _por ela criadas. .Mas ·uma outra clrcunstãncia ~concorreria também para a sua for- mação. Trata-se. das modificações' que vinham oc::orrendo nas formas de pensamento. As trans- ~~rma~ões econômicas, que se achavam em curso no 'ocidente europeu desde o século XVI, . não oqueê Sociologia poderiam deixar de. provocar modificações na forma de conhecer a natureza e a cultura. A partir daquele· momento,. o p~n:aroento paulatinamente vai renunciando a um? V!S80 sobre- natural para explicar os fatos .esuJ>stltulndo~ap~r 'uma indagação racional. Aapllcaçao d,a obse~aça? e da experimentação, ou seja, do metodo.clentl- fico para a explicação da natureza, conhecia uma fase de grandes progressos. Num ,es~aço de cento. e cinqüenta anos, ou seja, de Copernlcoa Newton, "a ciência passou por um notável progresso, mudan- . do até mesmo a localização do planeta Terra ·nOCosmo. . O emprego sistemático da observaça~ e da exp:- rimentação como fonte para a exploraç~o dos feno-o menos da natureza estava possibilita~do uma grande acumulação de fatos. O estabe~eclmento de relações entre. estes fatos ia p~ssibilitando. aos . homens dessa época um conhecimento da natu- reza que lhes abria possibilidade dea controlar e dominar.· '; . . O pensamento.filosófico do século XVI' contn- bulu para popularizar os avanços 90 pensamento científico. Para Francis Bacon (1561-1626), por exemplo, a teologia deixaria de ~r a forma nortea- dora do pensamento. A autondade, que exa~- mente const!tu (a um dos. alicerces da teol?9.laJ deveria, em sua opinião, ceder lugar a uma .duvlda metodica,a fim de possibilitar, um conhecimento .objetjvo da realidade. Para' ele, o novo método I -, t, L ) . ~. r ~.-. 11 I, o J18 CarlosB. Marfins o que é.Soctologia 19 de conheclrnento.. baseado na observação e' na experimentação, ampliaria infinitamente' o poder do homem e deveria ser estendido e aplicado ao estudo da sociedade. Partindo destas idéias, chegou a propor um programa para acumular os dados dis- poníveis e com eles realizar ·experimentos afim de , descobrir e formular leis geraissobre a sociedade. O emprego sistemático da razão, do livre exame da realidade ~ traço que caracterizava os pensa- dores do século XVII, os chamados racionalistas-, representou um grande avanço para Iibertar o conhecimento do controle teológico, da tradição, da "revelação" e, conseqüentemente, para a for- mu/açãode uma nova atitude intelectual -diante dos fenômenos da natureza edacultura, Diqa-se de passaqern queo progressivo abandono da autoridade, do doqrnatismo e de unia concepção . providencia lista, enquanto atitudes c intelectuais para analisar a realidade, não constitufaumecon- tecimentocircunscrito apenas ao campo científico ou filosófico. A literatura do século XVII, 'por exemplo, .constitufa Uma outra áreaque ia se afas- tarido do pensamento oficial, na medida 'em que se' rebelava contra a criação literária legitimada pelo poder. ,A obra de vários literatos dessa época, investia contra as instituições oficiais, procurando desmascarar os fundamentos do poder pol ítico, contribuindo assim para a renovação dos costumes e hábitos mentais dos homens da época. Se no século XVIII osdadosestatfsticos voavam, r indicando uma produtividade antes desconhecida, o pensamento social deste período também realiza- va seus vôos rumo a novas descobertas. A pressupo- sição de queo processo histórico possui uma lógica passível de ser apreendida constituiu um aconteci- mento que abria novas pistas pàra a investigação racional da sociedade. Este enfoque, por exemplo, estava na obra de Vlco (1668-1744), para o qual é o homem quem produz a história. Apoiando-se . nesse ponto de vista, afirmava que a sociedade podia, ser compreendida porque, ao contrário da natureza, ela constitui obra dos próprios, indiví- duos. Essa postura diante da sociedade, queen- contra em Vicoum de seus expoentes, 'influenciou os historiadores escoceses' da época, como David Hume{1711-1776) e, Adam Ferguson :(1723- 1816), - .e . "seria '. posteriormente desenvolvida e amadurecida por Hegel e Marx. Data também dessa épocaa disposição de tratar a sociedade a partir do estudo de seus grupos e hão dos indivíduos isolados. Essa orientação esta- ' va,porexemplo, nos trabalhos de Ferguson, que acrescentava que para' o estudo da sociedade era necessârio evitar conjecturas e especulações. A obra \. •. :,.~ deste historiador escocês' revela, a influência de algumas idéias de Bacon, como 'a de que é a indução, e não a dedução, que nos revela a natu- reza do mundo, e a importância da observação enquanto instrumento para a obtenção do conheci- mento. I ----------------- - --- -------~~----~~--~~~~~rw~~~~nr~~ I 20 Carlos B. Martins .'1 I o que é Sociologia Descartes, com seu método de investigação baseado na dedução. Influenciado por esse estado de espírito,Con- dorcet (1742-1794), por exemplo, desejava aplicar os métodos matemáticos ao estudo dos fenômenos sociais, estabelecendo uma área própria de inves- tigação a que denominava "matemática social". 'Admitia ele que, util izando os mesmos procedi- mentos das ciências naturais para o estudo da . sociedade, este poderia atingir a mesma precisão de vocabulário e exatidão de resultados obtidas por aquel es. Combinando o' uso da razão e da observação, os iluministas analisaram quase todos os aspectos da sociedade. Os trabalhos de Montesqu ieu (1689- 1755), por exemplo, estabelecem uma série de observações sobre a população, o comércio, a reli- gião, a moral, a família etc. O objetivo dos ilu- ministas, ao estudar as instituições de sua época, era demonstrar que elas eram irracionais e injustas, que atentavam contra a natureza dos indivíduos e, nesse sentido, impediam a liberdade do homem. Concebiam o indivíduo como dotado de razão, possuindo uma perfeição inata e destinado à liber- dade e à igualdade social. Ora, se as instituições existentes constitu íam um obstáculo à liberdade do indivíduoeàsua plena realização, elas, segun- dó-eles, deveriam ser ·eliminadas. Dessa forma rei- vindicavam a' liberação do' indivíduo de todos -es laços sociais tradlcionals, tal como as corporaçõês, No entanto, é entre os pensadoresfranceses do século XVIII que encontramos um grupo de filó- sofos que procu rava transformar não apenas as velhas formas de conhecimento, baseadas na tra- diçãoe na autoridade, mas a própria sociedade. Osiluministas, enquanto ideólogos da burguesia, que nesta época posicionava-sede forma revolu- cionária, atacaram com veemência os fundamentos da sociedade feudal, os privilégios de sua classe dominante e as restrições que esta impunha aos interesses econômicos e políticos da burguesia . . .~ . a intensidade do confl ito entre as classes dominantes da sociedade feudal e a burguesia . revolucionária que leva os filósofos, seus represen- tantes intelectuais, a atacarem de forma impiedosa a sociedade feudal. e a sua estrutura de conheci- mento, e a negarem abertamente a sociedade existente. Para proceder a uma indaçãocrítica da socie- dade da época, os iluministas partiram dos seus antecessores do século XVII, como Descartes, Bacon, Hobbes e outros, reelaborando, porém, algumas de suas idéias e procedimentos. Ao invés de utilizar a dedução, como a maioria dos pensa- dores do século XVII, os iluministas insistiam -nurnaexplicação da realidade baseada no modelo das ciências da natureza. Nesse sentido, eram influenciados mais por Newton,.com seu modelo de conhecimento baseado na observação, na .expe- rimentação ena 'acumulação de dados, do que por ~ ., :;'.,\-----------_ ..._-----------_ .._.:_-------- I 21 CarlosB. Marfins a autoridade feudal etc. Procedendo desta forma, os iluministas confe- riam uma clara dimensão crítica e negadora ao conhecimento; pois este assumia a tarefa não só de 'conhecer o mundo natural ou social tal como se apresentavam, mas. também de criticá-Io e rejeitá- lo, O conhecimento da realidade e a disposição de transformá-Ia' eram, portanto, uma só coisa. A filosofia, de acordo com esta concepção, não cons- titu (a um mero conjunto de noções abstratas dis- tante e à margem da realidade, mas, ao contrário, um valioso instrumento prático que criticava a sociedade presente, vislumbrando outras possibili- dades de existência social além das ex istentes. O visível progresso das formas de pensar, fruto das novas maneiras de produzir e viver, contribuía para afastar interpretações baseadas emsupersti- ções e crenças infundadas, assim como abria um espaço para a constituição de um saber sobre os fenômenos, histórico-sociais. Esta crescente racio- nalízaçâo da vida social, que gerava um clima pro- pício à constituição de um estudo científico da sociedade, não era, porém, um privilégio de filó- sofos e homens que se dedicavam ao conheci- mento. O "hom-em comum" dessa época também deixava, cada vez mais, de encarar as instituições sociais, as normas, como fenômenos sagrados e imutáveis, submetidos a forças sobrenaturais, passando a percebê-Ias como produtos da ativi- dade humana, portanto passíveis de serem conheci- o que é Sociologia. das e transformadas. A intensidade da crítica' às instituições feudais levada a cabo pelos iluministas constitu Ialndisfar- çável indício da virulência da luta que a burguesia travava no plano pol ítico contra as' classes que sustentavam a dominação feudal. Na França, o confl ito entre 'as novas forças sociais ascendentes chocava-se com uma típica monarquia absolutista, que assegurava consideráveis privilégios a aproxi- madamente quinhentas mH pessoas, isso num país que possuía ao final do século XVIII uma popu- lação de vinte e três milhões de indivíduos. Esta camada privilegiada não apenas gozava de isenção de impostos e possu (a direitos para receber tribu- tos feudais, mas impedia ao mesmo tempo acons- tituição de livre-empresa,a exploração eficiente . da terra e demonstrava-se incapaz de criar 'uma administração padronizada através de uma pol (- tica tributária racional e imparcial, A burguesia, ao tomar o poder em 1}89,invest~ decididamente contra os fundamentos da socie- dade feudal, procurando construir um Estado que assegurasse sua autonomia em face da Igreja e que protegesse e incentivasse ..a' empresa capitalista. Para a destruição do "ancien régime", foramrnobi-. lizadas as massas, especialmente os trabalhadores pobres das cidades. Alguns meses mais tarde, elas foram "presenteadas", pela nova classe dominante, com a interdição dos seus sindicatos. , à investida da -burguesia .rumo ao poder, suee- .- I V J24 Cor/os B~Martins deu-se uma liquidação sistemática do velho regime. A revolução ainda não completara .um ano de existência, mas fora suficientemente intempestiva para liquidar a velha estrutura feudal eo Estado monárquico. O objetivo da revolução de 1789 não era apenas mudar a estrutura do Estado, mas abolir radlcal- mente a antiga forma de sociedade, com suas instituições tradicionais, seus costumes e hábitos arraigados, e ao mesmo tempo promover profundas inovações na economia, na política, na vida cul- tural etc. r= dentro desse contexto que se situam a abolição. dos grêmios e das, corporações e a promulgação de uma legislação que limitava os poderes patriarcais na fam Itla, coibindo os abusos da autoridade do pai: forçando-o a uma divisão igual itária da propriedade. A revolução desferiu também seus golpes contra a Igreja, confiscando suas propriedades, suprimindo os votos monás- ticos e transferindo para o Estado as funções da educação, tradicionalmente controladas pela Igreja. Investiu contra e destruiu os antigos privilégios de classe, amparou e incentivou o empresário. O impacto da revolução foi tão profundo que, passados 'quase setenta anos do seu triunfo, Alexis de Tocqueville, um importante pensador francês, referia-se a ela da seguinte maneira: 1/A Revolução segue seu curso: à medida que vai aparecendo. a cabeça do monstro, descobre-seque, após ter destru (do as instituições polfticas, ela f,.. o que é Sociologia .- . ~-"'":-.:- . ,"'-  Revolução Francesa: uma nova realidade . . r I 25 I' I .! . ----------------------_ .. _--_._ __ , ' .o) 26 . CarlosB. Marttns suprime asjnstltufçõescivls e muda, em seguida, as leis; os 'usos, os costumes e até a Iíngua; após ter errutnado a estrutura do governo, mexe nos fundamentos da sociedade e parece querer agredir até Deus; quando esta' mesma Revolução expande- se rapidamente pôr toda a parte comprocedimen- tos desconhecidos, novas táticas, máxirnas mortí- feras; poder 'espantosoque derruba as barreiras dos impérios, quebra coroasiesmaga povos e - coisa estranha - chega ao mesmo tempo a', ganhá~los para a sua causa; à medida que-todas estas coisas explodem, o ponto de vista muda. o que à primeira . vista parecia" aos-prfnolpesda Europa e aos estadis- tas urnacldenteéornum na vida dos.povos, tornou- se um fato novo.. tão contrário a tudo.que aconte- ceu antes no mundo e no. entanto tão geral,. tão monstruoso, tão incompreensível que, ao aperce- bê-Io, o espírito fica como que perdido". o espanto de Tocqueville diante da nova reali- dade inaugurada pela revolução francesa seria com- partilhado também por outros intelectuais do seu tempo -. Durkheim, por exemplo, um dos funda- dores da sociologia,. afirmou certa vez que a partir do momento .em que fia tempestade revoluclonéria passou, constitu iu-se' como .' que por encanto a 'noçãode ciência social". O .tato éque pensadores . franceses da época, como .Saint~Simorl, Cornte. L~ Play e alguns outros, concentrarão suas' refle- xões sobre a natureza eas conseqüências da revo- lução. Em seus trabalhos, .utillzarão expressões , I .;;l o que é Sociologia como "anarquia", "perturbação", "crise", "de- sordem", para julgara nova realidade provocada pela revolução. Nutriam ernqeral esses pensadores um certo rancor pela revolução, principalmente por aquilo que eles designavam como "os seus falsos dogmas"., como o seu ideal de igualdade, de liberdade, e a importância conferida ao indivf- duo emface das instituições existentes. A tarefa que esses pensadores se propõem é a de racionalizara nova ordem, encontrando soluções para o estadodevdesorqanjzação" então existente. Mas para restabelecera "ordem e a paz", pois é a esta missão que esses pensadores se entregam, para encontrar 'um estado de equil íbrio ria nova sociedade, seria necessário, segundo eles, conhecer as leis que regem os fatos sociais, instituindo portanto uma ciência da sociedade. A verdade é que a burguesia, uma vez instalada no poder, se assusta com a própria revolução. Uma das facções revolucionárias, por exemplo, os [acobinos, estava dispostaa aprofundá-Ia, radi- calizando-a e levando-a até o fim, situando-a além do projeto e dos interesses da burguesia.' Para contornar a propagação de novos surtos revolu- cionários, enquanto estratégia para modificação das, sociedades, seria necessário, de acordo com 'os . interesses da burguesia; controlare neutralizar novos levantes .revolucíonãrlos. Nesse sentido, era de fundamental lrnportância proceder a rnodifi- cações substanciais em.' sua" teoria da sociedade. I I I \ : I: II ! I,' li; ~.. I'·' i I OJ 28 I Cor/os B. Martins r A interpretação crítica enegadora da realidade, que constituiu um dos-traços rnarcantes do pensa- mentoIlurninista e alimentou o projeto revolucio- nário da burguesia, deveria de agora em diante ser "superada" por uma outra que conduzisse não mais à revolução, mas à "organização", ao "aper- feiçoamento" da sociedade. Saint-Simon, de uma maneira muito explfcitavaflrrrtarla a este respeito que "a filosofia do último século foi revolucio- nária; a do século XX deve ser reorganizadora". A tarefa que os fundadores da sociologia assumem é, portanto, a de estabil izaçãoda nova ordem. Cornte também é muito claro quanto a essa ques- tão. Para ele, a nova teoria da sociedade, que ele denom inava de 11positiva", deveria ensi nar os homens a aceitar a ordem existente, deixando de lado a sua negação. A França, no início do século XIX, ia se tor- nando visivelmente uma sociedade industrial, com uma introdução progressiva da maquinaria, prin- cipalmente no setor têxtil. Mas o desenvolvi- mento acarretado por essa industrialização causava aos operários franceses miséria e desemprego. Essa situação logo encontraria resposta por parte da classe trabalhadora. Em 1816-1817 e em 1825- 1827, os operários destróem as máqu inas em mani- festações' de revolta. Com a industrial ização da sociedade francesa, conduzida pelo empresário , . . capitalista, repetem-se determinadas situações sociais vividas pela Inglaterra no in ício de sua I o que é Sociologia 29 , '\' / revolução industrial. Eram VISlveIS,a essa época, a utilização intensiva do trabalho barato dernulhe- res e crianças, uma desordenada migração docam- po para a cidade, gerando problemas de habitação, de higiene, aumento do alcoolismo e da prosti- tuição, alta taxa de mortalidade infantil etc. A partir da terceira década do século XIX, intensificam-se na sociedade francesa as crises econôrn icas e as lutas de classes. A contestação da ordem capitalista, levada a cabo pela classe trabalhadora, passa a ser reprimida com violência.. . . , como em '1848, quando a burguesia utiliza os aparatos do Estado,· por ela dominado, para sufo- car as pressões populares. Cada vez mais ficava claro para a burguesia. e seus representantes inte- lectuais que a filosofia iluminista, que passava a ser designada por eles como "metafísica", "ativi- dade crítica inconseqüente", não seria capaz de interromper aquilo que denominavam estado de /I desorgan ização", de "anarqu ia pol ítica" e criar uma ordem social estável. Determ inados pensadores da época estavam imbuídos da crença de que para introduzir uma l/higiene" na sociedade, para "reorganizá-Ia", seria necessário fundar uma nova ciência. . Durkheim, ao discutir a formação da sociologia na França do século XIX, refere-se a Saint-Simon da seguinte forma: "0 desmoronamento do antigo sistema social,ao instigar a reflexão à busca de um remédio para os • )30 Carlos B. Marfins males de que a sociedade padecia, incitava-o por isso mesmo a aplicar-se às coisas coletivas.' Partindo' da idéia de quea perturbação que atingia as socie- dades européias resultava do seu estado de desor- ganização intelectual, ele entregou-se à tarefa de pôr termo a isto. Para refazer uma consciência nas sociedades, são estas que' importa, antes de tudo, conhecer. Ora.vesta. ciência das sociedades, a mais importante de todas, não existia; era neces- sário, portanto, num interesse prático, fundá-Ia sem demora"; Como se percebe pela afirmação de Durkheim, esta ciência surge com interesses práticos e não "como que por encanto", como certa vez afirmara. Enquanto resposta intelectual' à "crisesocial" de seu tempo, os primeiros sociólogos irão revalorizar determinadas instituições que segundo eles desem- penham papéis fundamentais na 'integração e na coesão da vida social. A jovem ciência assumia como tarefa intelectual repensar o problema da ordem social, enfatizando a importância deInsti- tuições como a autoridade, a família, a hierarquia social, destacando a sua importância teórica para o estudo da sociedade. Assim, por exemplo, .LePlav (1806-1882) afirmaria que é a família e não o indivíduo isolado que' possu ía significação para uma compreensão da sociedade, pois era uma uni- dade fundamental para a experiência do indivíduo e:elemento importante para o conhecimento da sociedade, Ao realizar um vasto estudo sobre as __ •••••••• w •• vywwTTTT. . , I I o que é Sociologia fam ílias· de trabalhadores, insistia que estas, sob a industrialização, haviam se tornado descontínuas, inseguras e instáveis. Diante de tais fatos,' propunha como solução .,para a restauração de seu' papel de "unidade social básica"a reafirmação daautori- dade do "chefe de famílla", evitando a igualdade jurídica, de' . homens e mulheres, -deümitando'.o papel da mulher às, funções exclusivas de mãe, esposa e filha. Procedendo dessa forma,' ou seja, tentandoins- taurar um estado de equilfbrio numa sociedade cindida pelos conflitos de classe, esta sociologia inicial revestiu-se de umindisfarçável conteúdo estabilizador, ligando-se aos movimentos de refor- ma conservadora da sociedade. . Na concepção de um de seus fundadores, Comte, a sociologia deveria orientar-se no sentido de co- nhecer eestabetecer aquilo que ele denominava . leis imutáveis da vida, social, abstendo-se 'de qual- quer consideração" crítica, eliminando também qualquer discussão sobre a realidade existente, deixando· de abordar; por exemplo, a questão da igualdade, da justiça, da liberdade. Vejamos como ele a define e quals objetivos deveriaela perseguir, na sua concepção : "Entendo por ffsica social a ciência que tem 'por objeto próprio o estudo dós fenômenos sociais, segundo o mesmo espírito coro que sãoconsidera- dos os fenômenos ·astronômicos, físicos, qu Irnicos .e fisiológicos,isto'é, submetidos a leis invariáveis, 31 " , ".~ ~_:',', ) " / } Carlos B. Martins cuja descoberta é o objetivo de suas pesqu isas. Os resultados de suas pesqu ísas tornam-se o ponto de partida positivo dos trabalhos do homem de Estado, que só tem, por assim dizer, como obje- tivo real descobrir e instituir as formas práticas correspondentes a esses dados fundamentais, a fim de evitar ou pelo menos mitigar, quanto possível, as crises mais ou menos graves que um movimento espontâneo determ ina, quando. não foi previsto. Numa palavra, a ciência conduz à previdência, e a previdência permite regular a ação". Não deixa de ser sugestivo o termo "ffsica social", utilizado por Comte para referir-se à nova . ciência; uma vez que ele expressa o desejo de constru í-Ia a partir dos modelos das ciências ffsi- co-naturaís .. A oficialização da sociologiafoi portanto em larga medida uma criação do positi- vismo, e uma vez assim constitu ída procurará realizar alegitimaçãointelectual do novo regime. Esta sociologia de inspiração positivista procu- rará constru ir uma teoria social separada não ape- nas da filosofia negativa, mas também da economia pol Itica como base para o conhecimento da reali- dade social. Separando a filosofia e a economia pai ítica, isolando-as do estudo da sociedade, esta sociologia procura criar um objeto autônomo, "0 social", postulando uma independência dos fe- nômenos sociais em face dos econômicos. Não seré esta sociologia, cnadae moldada pelo espírito positivlsta, que colocará em questão os I ) ) j } O que é Sociologia fundamentos da sociedade capitalista, já então plenamente configurada. Também não será nela que o proletariado encontrará a sua expressão teó- rica e a orientação para suas lutas práticas. t no pensamento socialista, em seus diferentes m~tiz~s, que o proletariado, esse rebento da revolução in- dustrial, buscará seu referencial teórico para levar adiante as suas lutas na sociedade de classes. t nes- te contexto que a sociologia vincula-se ao socialis- mo e a nova teoria crítica. da sociedade passa a estar ao lado dos interesses da classe trabalhadora. Envolvendo-se desde o seu in ício nos debates entre as classes sociais, nas disputas e nos anta- gonismos que ocorriam ·no interior da sociedade, a sociologia sempre foi algo mais do que mera tentativa de reflexão sobre a moderna sociedade. Suas explicações sempre contiveram intenções práticas, um desejo de interferir no rumo desta civilização tanto para manter como para alterar os fundam'entos da sociedade que a impulsionaram e a tornaram possível. ••~... 1 .-.I ·-- - ~',~ -- .,.-. . I Boaventura de Sousa Santo\ Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ftÍ PELAMAO DE ALICE ISOI~ 85-249-0578-6 o social e o político na pós-níodernidade Santos, Boaventura de Sousa Pela mão de Alice : o social e o político na pós-modernidade / Boaventura de Sousa Santos. - São Paulo: Cortez, 1995. 1. Ciências sociais - Filosofia 2. Conhecimento - Teoria 3. Política - Filosofia I. Título. 95-3235 CDD-300.1 índices para catálogo sistemático: 1. Ciências sociais: Filosofia 300.1 @c.oRTEZ ~EDITORA -: ,(-: \'~. '.:;.:...;., ~ 1<- i(" j(- }(_. .....••. \ ..•_- ,- I r ". )" )~ " arrisc -se a sufragar o despotismo, o ue veio de facto a acontecer, Se é verdade q o leninismo não é um desvio es 'rio do marxismo, não é, contudo; menos verda ue o marxismo caucionou mo s de transformação socialista que procuraram .c npatibilizar emancipação com. iectividade e cidadania; das posições de Kaub'kz à de Bernstein, das posições s.austro-rnarxistas (os ,grandes ,esquecidos) às _~ eurocomunistas, o que afinal a na em fa.vo..~.,d~ mpíexidade das pOSIÇeil:S da Marx, ' .. 'lili'~" o segundo capítulo pro~~ um balanço geral da proposta-qe M:~~~J, Agora p endo a~ena,s relevar alguó'~os méri~os dela para a di,scus,s ,,. "«~,~ se segue, primeiro lugar, a cntica; marxista da democracia hbera,é basicamente corr ta, ainda que a alternatica, que lhe propõe não o' seja;~;-~,~: segundo lugar, ao a' ar o primado das rel~~s sociais na constitúiçãO[;-alf subjectividade e da polfi ,Marx oferece a rnelhôr, contestação dos proces~o$Y naturalização e de reific ão do social de que ~'fJimentam os excessos' de r ulação em que se veio a tra zir a modernidade nas 'st}Çiedades capitaIís~.) Em terc ' o lugar, Marx estabelece, a tradição hegeliana, qi:le\ não há subjéC4' tividade se antagonismo e que o co'h~to. de classe social'e~o artiêuladQ~. __-, uclear do anta nisrno nas sociedades cap~istas. ajnda que. par'à:~xa ..lm.e.•".te:..·\i.:... ' e contrário de x, possa não ser o articufu<lor nuclear da supera -,qesse. antag ismo. Neste do 'nio. o erro de Marx foi ~sar que ocapit"lism~po(; via do envolvimento nológico das forças pro tivas, possibilitl\t:i.aFi. I mesmo torn 'a necessária a ransição para o socialis . Como. s~,:Y,~j9J'.~l·' verificar, entregu a si próprio, o apitalismo não transita pa nada s~/)ãgú~.u:.'J-;:' mais capitalismo, A ação autom ica entre progresso tecnol gicoe pr,ogrl(§~$?J; social desradicaliza a proposta emancipadora de Marx e torna-a",Aç {lftffi,tp.:A.r perversamente gémea da regulação capitalista. i ,;;;{J~U'4~~~' 'J,~.q~t.rf~).ij:~~-~· A emergência da cidadania social •(".i:;~~lJ1!i,' " ,>\dll.,:í,~V,I~j;'; 'O segundo período do' capitalismo nos países centrais. o capitíillsin~:If organizado. caracteriza-se !pela passagem da cidadania cívica e pol{tica.;~á~\t.~~~ que foi designado por "cidadania social'] isto é. a conquista de signífi~átiy()~~;~ direitos sociais, no domínio das relações de trabalho, da segurança'; sóÇ,Jál;f~éJâ~, saúde. da educação e da habitação por parte das cI:.>~t-~ trabalhadÔfás;'1i"9"w sociedades centrais e. de um modo muito menos característico e inten'só+:lp parte de alguns sectores das classes trabalhadoras em alguns países pérífért . e serniperiféricos. Melhor que ninguém, T. H, Marshall caracterizou este prpCessot;~~ em Citizenship and Social Class publicado pela primeira vez em ,195'0'l;;~~Pâi~~~ Segundo Marshall, na linha da tradição liberal, a cidadania é o conteú~ililií; da pertença igualitária a uma dada comunidade política e afere-se pejos pjrejto,~~1!1~ 243~~~~'1~ i ...._ ..__ ._-------------------~--------------------------------~_ .. ,--r r át -- /- r- -r,-·C \:.~ ,{-: ( .(' {r, .r ,- r: "(-:- l(~W .',:~., ....--. " '-' e deveres que o constituem e pelas instituições a que dá azo Qara ser social e politicamente eficaz, (A cidadania não é, por isso, monOlíticaJé constituída por diferentes tipos de direitos e instituições; é produto de histórias sociais diferenciadas protagonizadas por grupos sociais diferentes, Os direitos cívicos correspondem ao primeiro momento do desenvolvimento da cidadania; são os mais universais em termos da base social que atingem e apóiam-se nas instituições do direito moderno e do sistema judicial que o aplica. Os direitos políticos, são mais tardios e de universalização mais difícil e traduzem-se institucionalrnente nos parlamentos, nos sistemas eleitorais e nos sistemas políticos em geral. Por último, os direitos sociais só se desenvolvem no nosso século e, com plenitude, depois da Segunda Guerra Mundial; têm como referência social as classes trabalhadoras e são aplicados através de múltiplas instituições que, no conjunto, constituem o Estado-Providência. Um dos principais méritos da análise de Marshall consiste na articulação que opera entre cidadania e classe social e nas consequências que dela retira para caracterizar as relações tensionais entre cidadania e capitalismo. Transferida para o quadro analítico que aqui proponho, essa articulação significa que no período do capitalismo liberal a cidadania civil e política, enquanto parte integrante do princípio do Estado, não só não colidiu com o princípio do mercado como possibilitou o desenvolvimento hipertrofiado deste. Ao contrário, no período do capitalisl;i() organizado, a cidadania social, porque se ancorou socialmente nos interesses das classes trabalhadoras e porque serviu estes em grande medida através de transferências de pagamentos, colidiu significativamente com o princípio do mercado, conduzindo a uma relação mais equilibrada entre o princípio do Estado e o princípio' u(/" ••,,~ ,'ca('" .;., c(\'~ ela, li uma nova estrutura da exploração capitalista, precisamente 6 capitalismo organizado. Este maior cqui líbrio entre Estado c mercado foi obtido por pressão tio princípio da cornunidadc- enquanto campo e lógica das lutas sociais de classe que estiveram na base dd' conquista dos -direitos sociais. A comunidade assenta na obrigação política horizontal entre indivíduos ou grupos sociais e nasolidariedade que dela decorre, uma solidariedade participativa e concreta, isto é, socialmente contextualizada, Ora a classe operária foi precisamente o motor e o conteúdo desse contexto social e a articuladora da obrigação política qüe se traduziu nas múltiplas formas organizativas da solidariedade operária, dos partidos operários e dos sindicatos r,~cooperativas, aos clubes operários, à cultura operária, etc., etc.. .. Se a classe operária 1!::(~::foi o sujeito monumental da emancipação pós-capitalista, foi sem dúvida o agente das transformações progressistas (ernan- cipatórias, neste sentido) no interior do capitalismo. Embora seja ainda hoje debatível em que medida a cidadania social é uma conquista do movimento 244 I···· __ I l, operário ou uma concessão do Estado capitalista", não parece restar,ldúví4.áld~ que, pelo menos, sem as lutas sociais do movimento operário, tais concessões não seriam feitas. Mesmo que: com Brian Turner, não se devaesqlieéer~à contribuição de outros factores para a expansão e o aprofundamento.daicíd-ádifutà social, como a guerra e as migrações. ':'KI~"V"6fkr:. _ • . I',;';'f\';'I~;:~-j~ Para a cornpreensao do tempo presente é, no entanto, Importante.te(c;ro conta que as lutas operárias pela cidadania social tiveram lugar no"m~rdb)'da democracia liberal e que por isso a obrigação política horizontal 'dd!!prínCfpio da ~omunidade só foi ;ficazna medida em que se submeteu·à!.o~t!â'â5~ô política vertical entre cidadão e Estado, A concessão dos direitos soéiais';;ê"oá's instituições que os distri~uíra_m soc,i~ímente. ~ão exp~;~~ão da expan~ã9~~.(fil:? aprofundamento dessa obrigação pohtlca.(Pohtlcamer.!,:" este processo S!gl)lfJeç,u a integração política das classes trabalhadoras no Estado capitalista e;'poitánlli~ o aprofundamento da regulação em detrimento da emancipação. Daí~!q~ig!}àS lutas pela cidadania social tenham culminado na maior legitimação dô:L~~~a~ capitalista. Daí que o capitalismo se tenha 'transformado profundameo~~iJp~r~; no "fim" do processo da sua transformação, estar mais hegemóÍli,éó:".dQ.:,q4~ , •.• ", ,( I l'I ..U6...J!U nunca. , . ";' :;U) ."; •.I/~{;'J i; {j Em face disto, não surpreende que neste período se tenha agravado~P~ tensão entre subjectividade e cidadania. Por um lado, o alargamento da cidadaóià abriu novos horizontes ao desenvolvimento da subjecrividader A segurança 'dâ existência quotidiana propiciada pelos direitos sociais tornou possíveis vlv~nçias de autonomia e, de liberdade, de promoção educacional e de programação..Q~ trajectórias familiares que até então tinham estado vedadas às classes trabalhii~ dorasy'Mas, por outro lado, os direitos sociais e as instituições estatais a,;qJ.~ eles deram azo foram partes integrantes de um desenvolvimento, socíetalque aumentou o peso burocrático e a vigilância controladora sobre os Indivíduos; sujeitou estes mais do que nunca às rotinas da produção e do consumO;jcrio~ um espaço urbano desagregador e-atomizante, destruidor das solidariedadesdas redes sociais de interconhecimento e de entreajuda; promoveu uma cultura mediática e uma indústria de tempos livres que transformou o lazer n~m' gozo programado, passivo e heterónomo, muito semelhante ao trabalho. .Enflm, um modelo de desenvolvimento que transformou a subjectividade "num processo de' individuação e numeração burocráticas e subordinou a Lebenswelt às exigências de uma razão tecnológica que converteu o sujeito em objecto de si próprio. 4, Cf. por exemplo. o debate entre Tumer (1986), que privilegia o papel das lutas~odai;:·ril. criação da cidadania social, e Barbalet (1988), que dá mais atenção ao papel do E!l;tado.. '.'.lij < l\ 245 (,) _-I 11;'" existência fora desse processo, O sujeito e o cidadão são produtos m ufactúradôs' pelos poderes-saberes das dis iplinas, É com base nesta ideia e Foucaultssé; recusa a atribuir ao Estado lugar central no processo histó co de dominação': moderna. De facto, segu o ele, o poder jurfdico-polftic sediado no Estado' e nas instituições não t cessado de perder importân a em favor do poder . disciplinar. A cidadani é, pois, para Foucault, um a efacto deste poder-mais do que do conjunto dos direitos cívicos, políticos sociais concedidos' pelo Estado ou a ele c nquistados. 'i Em meu e ender, o processo histórico d cidadania e o processo his~p~ da subjectividj de são autónornos ainda qu , como tenho vindo a def~,~f.I~, intimamente elacionados. O capitalismo em sabido conviver CO~di~. e~.:en..tê..,•.,S., soluções e cada um destes processos as que consistiram na mai amplitude dada à dadania política e social ão são certamente as p'ores pàrai~o. desenvo imento da subjectividade. a das reivindicaçõ~j.,;;.,;ntrafs do feminis~Õ radica a de que a esfera pess I é política, não é,: nas .londíções,·iWttJ31~! susc tível de satisfação senão através da repolitização ~pS'~aesfera' ~~:\:i~~ éaí d id d . /, 'I "'1 >l'fr:l~),em strat gras e CI a ama. ,./,/, 'T'i!;:':5i!~ri Acresce que,. do po o de vista da emancipação, é possível ,pen~a.n!~JU vas formas de cidad ia (colectivas e não ingi~iduais; menos asse~~§'i~m, direitos e deveres do ue em formas e critérios' de participação), não:-li~J:~j~,' e não-esratizantes, que seja possível um51/relação mais equí1íbrada!,Ç9m:-I~',: subjectividade.J M mo assim, estas novas }ór~as de cidadania não nos ~4~y~W,'~;: fazer esquecer ue o Estado ocupa umJV'poslção centrah (porque exteno(h},l~' configuração as relações sociais de rodução capitalista e que essa. ppsiç~? .'; r ;r. -; '~: ,,': ~.\::: :,! ao contrári do que afirma Foucaul, tem vindo a fortalecer-secom ,o,'~~~~-9ã!~; volvimen do capitalismo. A te dência foucaultiana para homoge~fi~~i!i~I;}i' diferent formas de poder sob, conceito-chave do poder díscjplinar,",~ar;' ., furtar formulação de critéri s que permitam hierarquizã-los e pàr~'iv~;l,e,.i,i tod, as tentativas de resi encia a emergência insidiosa de noyos,iJ@F,~~§if.j c )' tra os quais é preciso organizar novas resistências, acaba por, copq~~iriJ.t,:W ,ma concepçãopanóptic dopanóptico benthamiano, ou seja, a uma copse~~f- 'da opressão onde não possível pensar a emancipação",";i,li\~jy.~. : /."',;, fn;~;;'IlJ..". _.) ,j\ ~~(,g~~.i, ,;,tmthZli;l';)A crise da cidadania social No final dos anos sessenta, nos países centrais, o processo hj~tóriJ.~e:~'9./' desenvolvimento da cidadania social sofre uma transformação cuja verdàdêiÍ'á :,\ dimensão só veio a revelar-se na década seguinte. Dois fenómenos marcam; essa transformação: a crise do Estado-Providência e o movimento estudantil. " 247 _L----------------------------.--- ~I (;: I•• Não t: este o lugar .sara tratar detalhada mente nenhum destes fenômenos". Basta reter, para () que aqui nos interessa, que a crise do Estado-Providência assenta basicamente na crise do regime de acumulação consolidado no pós-guerra, o "regime fordista", como é hoje conhecido. Este regime de acumulação caracteriza-se por uma organização taylorista da produção (total separação entre concepção e execução no processo de trabalho) acoplada à integração maciça dos trabalhadores na sociedade de consumo através de uma certa indexação dos aumentos de salários aos ganhos de produtividade. Esta partilha dos ganhos da produtividade é obtida por duas vias fundamentais: pelos aumentos dos salários directos e pela criação e expansão de salários indirectos, ou seja, os benefícios sociais em que se traduz a cidadania social e, em última instância, o Estado-Providência. Como referi, a classe operária, através dos sindicatos e partidos operários, teve um papel central na configuração deste compromisso, também conhecido por compromisso social-democrático para dar conta que as transformações socializantes do capitalismo neste período (o "capitalismo organizado") foram obtidas à custa da transformação socialista da sociedade, reivindicada no início deste segundo período do capitalismo comoa grande meta do movimento operário. Reside nisto verdadeiramente a integração social e política do operariado no capitalismo, um processo lento de desradicalização das reivindicações operárias obtido em grande medida através da crescente participação das organizações operárias na concertação social, nas políticas de rendimentos e preços e mesmo na gestão das empresas, um processo cuja dimensão política é hoje conhecida por neocorporativismo. A crise do regim 'i fordista e das instituições sociais e políticas em que ele se traduziu assentou, em primeira linha, numa dupla crise de natureza económico-política, na crise de rentabilidade do capital perante a relação produtividade-salãrios e a relação sul(,ó-;os directos-salãrios indircctos, e na crise da regulação nacional, que geria efir;.nmf'nt~ até então essas relações, perante a internacionalização dos mercados e a 1tt~'i':~;lUcion9Iiz!\ç~\, clJ produção. Como esta regulação estava centrada no Estado nacional, a sua crise foi também a crise do Estado nacional perante a globalização da economia e as instituições que se desenvolveram (0 n ela (as empresas multinacionais, o Fundo Monetário Internacional, o Banco ~.[undial).· Mas a crise do fordismo ou do capitalismo organizado teve também lima dimensão cultural ou político-cultural e, em meu entender, a reavaliação e a revalidação desta dimensão é de crucial importância para definir as alternativas ernancipatórias dos anos noventa. A crise é, em parte, a revolta da subjectividade 5. Quanto à crise do Estado-Providên-'". :'f. Santos (1990:193 e 55.). r r- I"" r> r r> \ : >', , ,--- '.~ rr> r> " r>. ( contra ã cidadania, da subjectividade pessoal e solidária contra a cidadania atomizante e estatizante. O compromisso social-democrático amarrou de 'tal modo os trabalhadores e a população em geral à obsessão e às - rotinas-da produção e do consumo que não deixou nenhum espaço para o exercício da autonomia e da criatividade, com as manifestações daí decorrentes, desde o absentismo laboral à psiquiatrização do quotidiano. Por outro lado,a cidadania social e o seu Estado-Providência transformaram a solidariedade social numa prestação abstracta de serviços burocráticos benevolentemente repressivos, con- cebidos para dar resposta à crescente atomização da vida social rnas.: de 'facto, alimentando-se dela e reproduzindo-a de modo alargado. Por último, o COm" promisso social-dernocrãrico, já de si assente numa concepção restrita (liberal) do político, acabou, apesar das aparências em sentido contrário, por reduzir ainda mais () campo político. A diferença qualitativa entre as diferentes opções políticas em presença foi reduzida até quase à Irrelevância, A representação democrática perdeu o contacto com os anseios e as necessidades da população representada e fez-se refém dos interesses corporativos poderosos. Com isto, os cidadãos alheararn-se da representação sem, no e~;;".I', terem desenvolvido no,:as formas de partic!paç~o polí!i~a, exerci}áveí~ em áreas políticas: nov:asi'~ mais amplas. As orgaruzaçoes polfticas do operariado, longe de serem "vítimas deste processo, foram um dos seus_~!::lífices principais, não adrnirandor- pbísi que as suas energias emancipatórias tenham sido desviadas para a gestão;zelósa do capitalismo, por mais transformado que este tenha saído dessa gestão':i\~':.í~~ . Como sab~mos, ~. movimento estuda~til dos anos sessenta foiA;;;~~~~ª~ articulador da c~l~e pohtlco-~ultural do ford~smo e a ~res?nça nele, ~eW,J\~~~!1 de resto, da ,CritiCa m~rcuslana é expressao. d~ r~dlcahdade da c~~~~ó~~ que protagonizava'', São três as facetas pnncipais dessa confrontaçãdJll;m primeiro lugar, opõe ao pr,QQutivismo e ao consurnisrno uma ideologi~~ndp,~ dutjvist~ ~ p6s-materíaJj~ta~m segun~o lugar, iden~ifica as múltipl~f~rêMmK do ~uotldla~~. tanto ao nfvel da ~ro~uçao (trabalho alienado), como da re~f~H~~~ socla~ (~amlha b~r?uesa, autontansmo da educação, monotonia doJ~r!'~~~ pen,d.encyt, burocratl.ca) e propõe-se alargar a elas o de~ate e a p~icíplW,~ pohtlcaseE.m t:rcelro. lugar, ~~clara o. fim da hegernonia operária;~~áM:m pela emancipaçao SOCial e legitima a criação de novos SUjeitos sociais de base transclassista. -,,;'!- t-"';" ,':' ; .~·it~-f.;~Rr()il O triu~fo ideológico da subjectividade sobre a cidadania teve, o~yiam~9~: os ~eu~ ~ustos, O _afã na .bus~-~ novas formas de cidadania, nãq 'h9,~J~M, s~bJe~tJvldade levou ~ ~eghgencl.ar qua.se totalmente a única forma d>e"ç~,d,~g~ni~ historicamente constituída, a Cidadania de origem liberal. Esta; ;p~~lj~Sl1~i~ .1 ;t):: t1{p~t~} ~t;:,--\, ,- d, r' revelou-se fatal para o movi rnento estudantil, enquanto movimento organizado, e 'está talvez na origem da facilidade relativa com que foi desarrnadc, No entanto, dialecticarnente, esse desarme organizacional facilitou a expansão capilar da nova cultura política instituída pelo movimento estudantil, e' sem esta não é possível entender os novos movimentos sociais dos anos setenta e dos anos oitenta nem será possível entender os dos anos noventa. Aliás, a herança não reside apenas na cultura política, reside também nas formas organizativas e na base social destas, A partir daí os partidos e os sindicatos tiveram de confrontar-se permanentemente com as formas organizativas dos novos movimentos sociais, tal como a partir daí o complexo marshalliano cidadania social-classe social não mais se pode repor como anteriormente. As duas últimas décadas: experimentação e contradição Por último, a década testemunhou Q c apso das.s..o.çl., ªA(;!§.. comunistas do Leste , um processo cujo desenvo imento é difíci e prevei:"'Ãü·'êõi1iriírlo "do que s - passa com os novos movim tos sociais, este>. processo significa, pelo menos na arência, a revalidaçãO,~_.'!l~_~)9._<:a2i~~I,~~~u _de desenvolvimento econórnico e soc'i~e asua afirll}~窺 9.Qm9.,Q. q!'!i~º,D1()ºelo viável da rnodernidade. Mas também neste caso é ainda cedo para-conhecer o tipode forol'açÕes 'sociais que está n~'''R.fática a emergir dolorosa~énte no Leste Europeu e qual o seu impacto na Eurepa e no mundo. Por todas estas , ;~ 250 " i,.íL. " -: <, ~ I' .>->, .I, ) '- / '- i'-. -" Publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais. (Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais/IBCCRIM. Ano 13 (56): 334-58 São Paulo: Revista dos Tribunais, set. out 2005. o ACESSO À JUSTIÇA: PARA ALÉMDO INSTITUÍDO) Eneida Gonçalves de Macedo Haddad2 INTRODUÇÃO Este estudo teve como objetivo a participação no debate científico acerca dos caminhos que possam conduzir à mudanças nas relações dos cidadãos com os órgãos públicos, transformações das próprias instituições, a. fim de aproximá-Ias física e simbolicamente da população atendida. Em outras palavras, a partir da identificação de obstáculos que impedem o acesso à justiça, buscou refletir sobre as possibilidades de superação das atuais representações de justiça, representações restritivas que legitimam uma história exc1udente. Realizado o levantamento sobre o tema em questão, alguns resultados de pesquisas empíricas foram eleitos como objeto de análise, na medida em que atendiam aos objetivos delineados. DESIGUALDADE JURÍDICA ) Não constitui tarefa simples a conceituação da expressão "acesso à justiça". Conforme Cappelletti e Garth, "o acesso à justiça pode ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e » 1 Este artigo é produto de atividades de pesquisa desenvolvidas junto aoDepartamento de Ciências Jurídicas do Centro Universitário Nove de JulholUNINOVE . 2 Mestre em Antropologia Social e doutora em-Sociologia pela USP, professora universitária e coordenadora- adjunta do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais/lBCCRIM. Q ,.) - igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar o direitode todos.',3 Segundo os autores, a expressão aponta duas finalidades básicas do sistema jurídico: a obrigatoriedade de ser igualmente acessível a todos e a de produzir resultados individual e socialmente justos. De fato, a atividade jurisdicional ocupa um lugar privilegiado na garantia do Estado Democrático de Direito. Entretanto, há que se questionar em que medida o monopólio da jurisdição pelo Estado vem garantindo a segurança jurídica. Conforme Rodriguez, os cidadãos podem contar com os tribunais na defesa de seus direitos, do que decorre a importância da atividade do juiz na preservação da paz social. "Sua atividade, por mais criativa e inovadora que possa ser, deve se enquadrar nos limites ditados pelo direito positivo e pelas estruturas de organização do poder do Estado." 4 Contrariamente, os estudos que serão apresentados a seguir apontam que, a despeito das normas constitucionais, o acesso à justiça é precário e a arbitrariedade não foi eliminada das práticas de justiça, na sociedade brasileira. No Brasil - semelhantemente a sociedades modernas, cuja consolidação do capitalismo, além de hiper-tardia, ocorreu por via colonial, onde não se verificou ou não se consolidou o Estado do Bem-estar Social - o princípio da igualdade jurídica tem permanecido letra morta. A distribuição da justiça alcança alguns cidadãos em detrimento de outros; o acesso aos serviços judiciais é dificultado por diferentes motivos (ausência de infra-estrutura do Judiciário para atender a ampliação das demandas; despesas e taxas cartoriais, ausência de informação dos direitos, prestação jurisdicional morosa, ineficiente e cara, custo elevado do processo e, principalmente, precária assistência judiciária"); a discriminação social nas decisões judiciárias é uma realidade; os amparos legais e 3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 12. 4 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Controlar a profusão de sentidos: a hennenêuticajurídica como negação do subjetivo. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu e RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.) .. Hermenêutica Plural: possibilidadesjusfilosóficas em contextos imperfeitos .. São Paulo: Martins Fontes, 200p. 282. S O Estado de São Paulo, o maior arrecadador da União, até hoje não criou a Defensoria Pública, passados quase duas décadas da promulgação do texto constitucional. A assistência Judiciária é prestada de forma irregular pela Procuradoria Geral do Estado que conta, no presente, para a demanda de todo o Estado, com 300 procuradores lotados na Procuradoria de Assistência Judiciária/PAJ. 2 -~ --------------------------------------------------------~----~~• ,•••_•••••••~a.~--- ", -'« ;..j constitucionais nem sempre são aplicados. Por conseguinte, não é de se estranhar o sentimento de descrença da população a respeito do Judiciário." O debate acadêmico vem apontando o papel que o Poder Judiciário deverá assumir na instauração da democracia social no Brasil, tornando-se acessível a todos, abolindo os rituais de distanciamento que o separam da população, dispensando o mesmo tratamento a todos os cidadãos. No artigo "Crime, justiça penal e desigualdade jurídica. As mortes que se contam no tribunal do júri" 7, Adorno problernatiza um axioma fundamental da modernidade, fruto da arquitetura liberal do Estado moderno, qual seja, o que estabelece "uma correlação inexorável e necessária entre justiça social e igualdade jurídica" 8: todos os cidadãos devem " estar submetidos às mesmas leis e gozar dos mesmos direitos constitucionalmente assegurados. .. " ,', As conclusões do autor estão fundamentadas em pesquisa empírica que privilegiou a comparação entre o perfil social dos condenados e dos absolvidos": foram analisados 297 processos penais, instaurados e julgados em um tribunal de júri da cidade de São Paulo, no período de janeiro de 1984 a junho de 1988. Os dados levantados referem-se ao perfil da vítima e dos agressores, do corpo de jurados e das testemunhas e à dinâmica dos acontecimentos, da instauração do inquérito até a proclamação de sentença decisória, em primeira instância. Conforme o autor, "as conclusões sugerem arbitrariedade na distribuição das sentenças, identificam grupos preferencialmente discriminados e apontam algumas evidências de desigualdade no acesso à justiça.t''" A universalidade do tratamento legal .;» 6 A esse respeito, dentre outros, FARlA, José Eduardo. A crise do Poder Judiciário no Brasil. In: Justiça e Democracia. Revista Semestral de Informação e Debate. Publicação Ofical da Associação Juízes para a Democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1° semestre de 1996, p. 19-64, 7 ADORNO, Sérgio. Crime, justiça penal e desigualdade jurídica. As mortes que se contam no tribunal do júri. In: Revista USP. (21): 132-51. São Paulo: mar.labr/maio 1994. 8 Idem, ibidem, p.134. 9 Pesquisa realizada no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea- CEDEC, com apoio da Fundação Ford. Participaram da investigação as pesquisadoras Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Maria Ângela Pinheiro Machado e Anamaria Cristina Schindler (Nota do autor, p.134). IOADORNO, Sérgio. Op. Cit., p.136. 3 ~) ------------------------------------------------------------------ - permanece apologia do discurso jurídico-político liberal, não tendo se consolidado sequer nas democracias européias e norte americanas. O funcionamento normativo do aparelho penal tem, por efeito, a objetivação das diferenças e das desigualdades, a manutenção das assimetrias, a preservação das distâncias . Assim, não há porque falar na existência de contradição ou conflito entre justiça social e desigualdade jurídica; a desigualdade jurídica é o efeito de práticas judiciárias destinadas a separar, dividir, revelar diferenças, ordenar partilhas. É sob esta rubrica que subjaz a 'vontade de saber' que percorre todo o processo penal e cujo resultado é promover a aplicação desigual das leis penais. I I \ "I Pesquisas mais recentes apontam na mesma direção. Merecem destaque dois artigos, recentemente publicados - "Mulheres negras: as mais punidas nos crimes de roubo" 12 e "Mais punição para os punidos: as decisões judiciais da Vara de Execuções Criminais da Capital do Estado de São Paulo,,13 - referentes a resultados de investigação realizada pela Fundação Seade, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São PaulolF APESP. ') .. '.-'" Nos crimes de roubo, aponta o primeiro artigo, réus negros, especialmente mulheres, são mais punidos pelo sistema de justiça criminal de São Paulo. O estudo reconstruiu a trajetória dos indivíduos desde o indiciamento até a execução penal, no período de 1991 a 1998. Trabalhou com o total de registros criminais dos Bancos de Dados que formam o Sistema de Informações Criminais do Estado de São Paulo, gerenciado pelo PRODESP.14 11 Idem, ibidem, p.149. 12 TEIXEIRA, Alessandra, LIMA Renato Sérgio e SINHORETIO, Jaqueline. Mulheres negras: as mais punidas nos crimes de roubo. In: BOLETIM IBCCRlM - Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. (125): Encarte. São Paulo: abr. 2003. \3 TEIXEIRA, Alessandra e BORDINI, Eliana Blumer Trindade. Mais punição para os punidos: as decisões judiciais da Vara das Execuções Criminais da Capital do Estado de São Paulo. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. v.ll, (44): 267-77São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,jul./set. 2003. 14 Assim, a pesquisa tem o mérito de ter se baseado na totalidade dos registros, considerando que o PRODESP (Processamento de Dados do Estado de São Paulo) é alimentado simultaneamente pela Secretaria de Segurança Pública, o Tribunal de Justiça e a Secretaria de Administração Penitenciária. 4 Os resultados confirmam o que vem sendo apontado por outros estudos sobre os processos de discriminação social,de gênero e, sobretudo, racial a que estão submetidos indivíduos envolvidos no sistema de justiça criminaL 15 O segundo artigo corresponde a uma importante contribuição ao conhecimento da insuficientemente estudada esfera jurisdicional da execução penal. Trata-se de uma pesquisa de caráter quantitativo, cujo universo de investigação foi constituído por 7.960 processos de execução dos condenados em cumprimento de pena, nos estabelecimentos prisionais, sob competência da Vara de Execuções Criminais da Capital do Estado de São Paulo, em junho de 2002. A partir de amostra aleatória dos presos, foram trabalhados 339 processos; os parâmetros definidos corresponderam aos pedidos formulados e pedidos concedidos: a proporção de condenados que tiveram progressão da pena, a proporção de condenados que obtiveram a concessão de livramento condicional e a proporção de presos que solicitaram cada um dos benefícios. O objetivo fundamental- conhecer o funcionamento do sistema de execução penal, no que se refere às decisões judiciais - partiu da necessidade de se verificar em que medida têm fundamento empírico determinadas representações do senso comum sobre a atuação do sistema de execução. É amplamente difundido na sociedade brasileira que as altas taxas de criminal idade e a ineficácia da pena de prisão decorrem de serem os presos beneficiados por concessões legais que antecipam a sua liberdade, acabando, assim, por cumprir, em regime fechado, apenas uma pequena parte de sua pena. Neste cenário, projetos de lei têm proposto o endurecimento penal e a proibição de benefícios prisionais ou aumento do prazo para sua concessão. 15 Segundo os autores, "os dados apresentados reforçam a certeza de que a mudança tem que ser muito mais profunda do que uma simples resposta à opinião pública. No atual momento histórico do país, o governo federal acena ser possível sonhar com uma reforma do sistema de justiça para além de uma mera reforma do Poder Judiciário, em que interesses corporativos têm sido os únicos reivindicados e a dar a tônica monológica à discussão. A fim de ampliar e legitimar esse debate, a sociedade civil organizada, os movimentos sociais, enfim, todos os cidadãos portadores do direito de acesso à justiça, devem participar deste processo. " TEIXElRA, LIMA e SINHORETTO. Op. Cit, p. 4. 5 Por conseguinte, esse estudo acabou por questionar a realização dos ideais e princípios constitucionais e legais previstos para a matéria, como a individualização da pena e a sua progressividade'", demonstrando em suas conclusões que, contrariamente ao que vem sendo sobejamente alardeado, [...] o Judiciário apresenta um comportamento refratário aos dispositivos da Lei de Execuções Penais, notadamente no que toca aos chamados benefícios nela previstos. Pode-se dizer que, para além dos ditames legais e constitucionais, o Judiciário tem politizado suas decisões, assumindo, por certo, um discurso altamente repressivo ao extrapolar estas prescrições legais. 17 A conclusão supra fundamenta-se no fato de a pesquisa ter constatado que o sistema de justiça atua como· "aplicador de um plus punitivo", contemplando um pequeno número de presos com os benefícios previstos na LEP.18 16 "A Lei de Execuções Penais - LEP (Lei n" 7210/84), de edição relativamente recente, regulamentou de forma sistemática o modelo jurisdicionalizado de execução penal em nosso país. Afinada constitucionalmente com princípios como a ressocialização e a individualização da pena, trouxe ainda o corolário da progressividade do sistema - também adotado pela Constituição da República de 1988 - através do qual o condenado cumpriria sua pena em fases progressivas e sucessivas de acordo com o tempo e o mérito, de modo a alcançar a liberdade uma vez transcorridas as etapas de cumprimento: regime fechado, sem i-aberto, aberto e livramento condicional. "A LEP normatizou ainda a chamada jurisdicionalização na execução criminal, um sistema pelo qual cabe ao juiz das execuções, sobrepondo-se à administração prisional, presidir e fiscalizar o cumprimento da pena. Essa tendência, adotada por países como Alemanha e Portugal, teria finalidade de tornar a execução mais transparente e mais democrática, sujeitando todos os procedimentos ao contraditório e à ampla defesa, âmbito jurisdicional. Todo o cumprimento da pena, assim, compreendendo nele também aquilo que denominamos intercorrências, desde fugas, faltas disciplinares, até pedidos de beneficios e autorizações de saída temporária, insere-se na ordem jurídica processual, subordinando-se a procedimentos legais determinados. As decisões, por serem judiciais e não administrativas, se sujeitam a princípios como o acesso à justiça, o duplo grau de jurisdição, isonomia entre as partes e a necessidade de fundamentação da sentença, além dos já mencionados contraditório e ampla defesa. Descrito desse modo, é possível compreender que, não obstante a execução da pena ocorrer de modo híbrido - a participação do Poder Executivo se dá pela atuação direta da administração penitenciária, que tem sua competência definida por lei, especialmente ao que se refere à política prisional - é no âmbito jurisdicional que as questões relativas à finalidade da pena e em especial ao apenado se realizam. Para compreender o funcionamento desta realidade, portanto, foi necessário trabalhar quantitativamente junto a este universo: os processos de execução penal em curso na Vara de Execuções Criminais." (TEIXElRA, Alessandra e BORDINI, Eliana Blumer Trindade. Op. Cit, p. 269). 17 "Neste sentido, cabe citar a recente pesquisa realizada junto aos juízes federais e estaduais, pela Associação dos Magistrados do Brasil, divulgada em 2003. Os dados revelaram que metade dos consultados acredita que as penas arbitradas deveriam ser mais elevadas e 45% acreditam que as leis é que deveriam prever punições mais severas. O curioso é que, como medida de diminuição da violência, sugeriram, entre outros, o cumprimento efetivo da legislação existente" idem, ibidem, p. 276. IS"OS laudos criminológicos aparecem, neste cenário, como instrumentos aprove itáve is pelosjuízes na medida que impliquem em negação dos beneficios; mais uma vez percebe-se a utilização política, pelo Judiciário, das disposições jurídicas do universo criminal e carcerário. "Idem, ibidem, p. 276. 6 -•• - - ~ 11\ .~ r I. I - I I -------------_. __ ._-- ----~--------------------------- , , ! I ; . 1 ' ~ 'o. -(i·}.o -3 SOCIOLOGIA \ E DIREITO i .\ ... Textos Básicos para a Disciplina de Sociologia Jurídica Cláudio Souto e Joaquim Falcão (da Universidade Federal de Pernambuco e da UI~i'!ersl/lac!a F~;;l,:ial do Rio de Janeiro) (orgamzadores) 2!! edição atualizada " I ,r'" "í O;: .t ,{: -} ~. "'" . .\ ~ ::~ " ~1; J\~ r t '. --I Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada Boaventura de Sousa Santos I Introdução Este texto faz parte de um estudo sociológico sobre as estruturas jurídicas.çt-::-:J:::;, ínternas de uma favela do Rio de Janeiro, a que dou o nome fictício de Pasárgadal'.:i;jitii Este estudo tem por objetivo analisar em profundidade uma situação de plur~ ~'11;\@i jurídico com vista à elaboração de uma teoria sobre as relações entre Estado,~,; :~!;1'il~ direito nas sociedades capitalistas. Existe uma situação de pluralismo jurídiC<;~:':Hlt\ sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mafs~:<;1Ji!il uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentaç~;,; l"iW! econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a \um período' J;:;' )(1:1 ruptura social como, por exemplo, um período de transformação revolucionária;ou, . ,:t pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da conformação específica do ',j'1[[: ~~~~~oãO~eclasses numa área determinada da reprodução social - neste :~;,;,.I!;.', '.'lli!1, ..' .~r, ' ", )~:i Este estudo, cuja pesquisa de campo foi realizada no verão de 1970, constituiu wna tese ; ;;::: de doutoramento apresentada na Universidade de Vale (U. S. A.) em 1973 e intitUlada:, "•..·.:'~,;.·,..,,~~'~,,:.,.l:., Law Against Law: Legal Reasoning tn Pasargada Law. Foi publicado pelo Centro Inter-, .). cultural de Documentacion de Cuernavaca (México) em 1974. Uma versão bastante reduzída. e revista foi publicada sob o título "The Law o{ lhe Oppressed: The Construction .and ;:.i}:i '11 Reproduction o[ Legality in Pasargada" na Law and Society Review, vol. 12 (1974), pp. ;'1' 5 -126. Encontra-se em preparacão a versão Dortl101Ip.,~ int"<rrol ~ ·r \----'r- [~ ..}t, ...:' 'hr M~~----------------------------------------------------------------------- __---------- _ r .?~. r r .~ '7 ri; .~~ ,~r··. ..r.;. ~~ '.~ \~ ;.;~.: .;; . "-- ·,i·· ':..2; ;:~;/ _ .;..' -;» '·":9 _ .. ~~;. <_ .~'.:: ,_. NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURloICO·SOCL",L De PASÀRGAOA ..~. :'7 ...• .;.~;, ,SOCIOLOGIA E DIREITO 'j A favela é um _espaço terrítoríal, cuja relativa autonomia decorre, entre outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasí- leiro. Esta ilegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacioname~to. da comunidade enquanto tal com o aparelho jurídico-político do Estado brasilelr~. . l No caso específico de Pasárgada, pode detectar-se a vigência não-ofícíal e. pr,:cária de um direito interno e informal, gerido, entre outros, pela .fSsoc13çao de moradores, e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade '. decorrentes da luta pela habitação. Este direito não-oficial - o direito de Pasárgada como lhe poderei chamar - vigora em paralelo (ou em conflito) com o direito oficial brasileiro e é desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a ordem jurídica de Pasárgada. Entre os dois direitos estabelec~-se ur~a ~e~açã~de pluralismo jurídico extremamente complexa, que só uma análise muito n.:m~clOs.a , pode revelar. Muito em geral pode dizer-se que não se t~at~ de uma relaçao 1~~1' tária, já que o direito de Pasárgada é sempre e de multiplas formas um direl~o dependente em relação ao direito oficial brasileiro. Recorrendo ~ uma c~te~~n.a da economia política, pode dizer-se ,que se trata de umg, jrQca desigual d~ [uridicí- dade que reflete e reproduz, a nível sócio-jurfdico, as relações de desigualdade " entre as classes cujos interesses se espelham num e noutro direito. . A análise da ordem jurídica de Pasárgada circunscreve-se, no que interessa " para este estudo, aos recursos internos que são mobilizados para ~r~venir e resolver conflitos decorrentes da propriedade ou posse da terra e dos direitos sobre cons- truções (casas e barracos) que nesta se implantam' . É através da análise dos. ti~os de conflitos e dos seus modos de resolução que melhor se surpreende o direito de Pasárgada em ação. isto é, enquanto prática social. Esta análise, feita nu:n cer:o momento do desenvolvimento de Pasárgada, requer, para ser completa, a inclusãó de uma dimensão histórica. Mais concretamente, trata-se de saber como se consti- tuíram e desenvolveram, a partir da formação da favela, as normas e as formas jurídicas e os órgãos de decisão iurfdica, que hoje se centram à volta da associação de moradores e de outros pólos ~ Jrgr-i'~':tª() ,,~~munitária autônoma, que continuam a subsistir, ainda que de modo cada vez mais precário, anos depois do apogeu do desenvolvimento comunitário no início da década de 60. , Em qualquer sociedade moderna ou em vias de ~odernização, a terra te~de a ser ~onside- . rada como um recurso de muito valor, tanto em áreas urbanas como em areas rurais. Desta maneira, o sistema jurídico tende a desenvolver medidas e estratégias atra~és das qu~is a segurança e a estabilidade das relações sociais que envolvem a terra estejam garantidas. Como diz W. S, Holdsworth, "as regras que regem a maneira pela qual a terra pode ser possuída, usada ou alienada devem ser sempre de muita importância para o Estado. A estabilidade do Estado e o bem-estar dos seus cidadãos em todas as épocas dependem' consideravelmente do dirp;:v'li'''' 'yropriedade sobre as terras". (An Historical Introduction to the Land Law, Ox :"'ftl, 1927, ;;. 3,)Não admira, pois, que em Pasãrgada se te~ham desenvolvido mecanismos jurídicos informais e não oficiais destinados a garantir o rnínímo de segurança e de estabilidade das relações sociais centradas na terra e na habitaçã~, uma vez que, pelas razões apresentadas no texto, tal estabilidade e segurança não podiam ser , ..I! __ : •••__ .t'~_:.•1 1...•.•••,..;10 •••.••.•__ I o texto que se segue circunscreve-se à análise da primeira parte desta evoluçã9 : s- e mesmo assim de modo muito lacunoso. As dificuldades da investigação hístõríca no domínio sõcío-jurfdíco do inúmeras:' sobretudo' qúãJido o objetivo é captat~;i lJ. : gênese das formas e estruturas jurídicas. As dificuldades são ainda maiores quattdS: Jf' como no caso presente, é quase total a carência de documentação escrita. Para 'aS<1:-f!:i!;: . - .... , ~:r.~.:.<: obvíar, recorri a entrevistas com os moradores mais antigos de Pasárgada e sob~d-' ;.: tudo com aqueles que. ali viveram desde o início da comunidade. É sabido que este • método sociológico tem muitas limitações e que o rigor do conhecimento auavéi dele obtido é sempre muito problemático. E isto é tanto mais assim quando se trata . depesquisar "questões jurídicas" porque, consoante a perspectiva anaJ{tícaus~ peloentrevistador, tais questões, ou se referem a fatos que não ultrapassam Os 'Umbrais de um quotidiano, por yezes longínquo, ou envolvem nútos e tabus â volta dos.quaís o conhecimento e o desconhecimento social 'se organizam estratégica e .~Caprichosamente". Em qualquer dos casos, as respostas dos entrevistados tendem :'a;'padecer de vícios, tais como lacunas e dístorções de percepção e me~óri~; prejuízos éticos ou outros (sobrevalorização do presente em relação ao passado e . ~ce-versa), indução das respostas, ou seja, ad.~"!'.t.i(ão destas ao estereótipo;'d~ . entrevístador e das suas preferências. Em condições como estas, a tentaçã6!~é : grànde para compensar as deficiências de informação com sobre-ínterpretaçãc. .~flir;<~,' .. ':<.~I :j;:~'f];ü: 11 ,Quando os primeiros habitantes se fixaram em Pasárgada em meados da , "de 30J.,existía muita terra disponível. Cada morador demarcava o seu pedaço -.terra e construía o seu barraco, deixando em geral espaços abertos pano '\'oide verduras, plantio de árvores ou para criação de animais domésticos. ""'do os mais antigos moradores de Pasárgada, naquela época quase não 'fiam conflitos entre os habitantes envolvendo direitos sobre a terra e as ftações. "Não havia necessidade de brigas", dizem eles. Os barracos eram de 'trução muito primitiva, pouco valor tendo. Podiam ser construídos ou demo- "Vem.questão de horas. Por outro lado, uma vez que existia muita terra de»' ;\qualquer conflito relacionado com a posse da terra (linútes, preferências rVtdões) poderia ser evitado facilmente com a simples mudança de uma das ';"s'do conflito para outro lugar no morro.;]; Nt\Mas o povoado cresceu muito rapidamente e a qualidade das construções '''orou consideravelmente, de tal modo que na segunda metade da. década de . '''ram já freqüentes os conflitos envolvendo a propriedade e a posSe'"daterra;~ o se pergunta aos moradores mais antigos a maneira como naquela época } onflitos eram resolvidos, eles respondem invariavelmente: "Violência, a leí '.~rita.is forte". Ouando. a fim de evitar. em alguma medida. diSioições'cfêper:-- m--' cepção e de memória, se procura obter informações com base num paralelo entre o modo como os conflitos eram tratados naquele tempo e como são tratados agora, é freqüente obter-se uma resposta deste teor: "Oh! Agora é diferente. Agora as questões são tratadas em paz e tenta-se
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