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Teoria da História I Rodrigo Lemos Simões Teoria da História I Sumário Capítulo 1 - Teoria da História: noções preliminares ......................5 Capítulo 2 - Situando o trabalho do historiador ...........................23 Capítulo 3 - Ainda situando o trabalho ........................................42 Capítulo 4 - História: campo epistemológico e conceitual ............61 Capítulo 5 - Os locais de pesquisa e as fontes .............................80 Capítulo 6 - A interação entre a teoria e a metodologia ..............99 Capítulo 7 - Pensar a história: das origens ao século XVIII .........116 Capítulo 8 - Das filosofias da história à história ciência ..............135 Capítulo 9 - Reflexos do romantismo e do historicismo...............153 Capítulo 10 - O marxismo e a história .......................................174 Teoria da História: noções preliminares Rodrigo Lemos Simões Capítulo 1 6 Teoria da História I História: o que é e qual sua finalidade História é uma palavra de origem grega – ιστορία – com signi- ficado relacionado à investigação, averiguação. Atribui-se ao historiador grego chamado Heródoto, que viveu no século V a. C., o emprego desse termo com o sentido que lhe damos ainda hoje. Conhecido como o “pai da história”, seu trabalho distinguiu-se dos que lhe antecederam pelo fato de levar a cabo uma atividade de indagação, averiguação e investiga- ção a respeito da veracidade dos acontecimentos passados. Desde as origens a palavra história, teve diferentes formas de ser empregada, servindo tanto para designar as ações hu- manas ocorridas no passado e os seus desdobramentos em um dado contexto, sendo também entendida como o resultado dos questionamentos feitos sobre o passado e o relato dos mesmos. No rol das ciências, a história ocupa, segundo o historia- dor inglês Keith Jenkins (2001, p. 23), um lugar bem específi- co. Para ele: [...] a história constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo. Embora esses discursos não criem o mundo (aquela coisa física na qual aparentemente vive- mos), eles se apropriam do mundo e lhe dão todos os sig- nificados que têm. O pedacinho de mundo que é objeto (pretendido) de investigação da história é o passado. Algumas das diferentes formas de interpretação do passa- do, bem como do entendimento que temos na contemporanei- Capítulo 1 Teoria da História: noções preliminares 7 dade a respeito do significado e do sentido atribuído à palavra história, fazem parte deste livro e serão vistos no decorrer de sua leitura. Por ora, cabe salientarmos que os historiadores fi- zeram – e fazem – diferentes interpretações do que é a história e de sua finalidade. Se para Heródoto, cinco séculos antes da era cristã, a his- tória era a busca de motivos e a exposição dos resultados de investigações que tinham como objetivo evitar que os feitos humanos fossem esquecidos, para Eusébio de Cesarea, na transição da antiguidade para o medievo, a história prestava- -se à narrativa do triunfo do cristianismo ao longo do tempo. No século XIX, o historiador alemão Leopold Von Ranke (2010) argumenta que a história interessa-se pelos eventos, além de como viveram e pensaram os homens em um determi- nado tempo, sendo possível a obtenção de certezas a respeito da história universal. No limiar do século XX, Jenkins (2001) adverte-nos sobre a impossibilidade de atuação do historiador em todos os flancos do passado bem como sobre a multiplici- dade de interpretações possíveis a respeito dos mesmos fatos ou processos, “um só passado, muitos historiadores”. História acontecimento e a história conhecimento “Papai, então me explica para que serve a história”. Assim, um garoto, de quem gosto muito, interrogava há poucos anos um pai historiador (BLOCH, 2001, p. 41). Essas frases iniciais do 8 Teoria da História I livro póstumo de Marc Bloch, publicado no ano de 1949 por Lucien Febvre, ainda que possam ser consideradas por alguns como demasiado singelas, podem nos conduzir por caminhos interessantes a respeito dos significados e do sentido em que a história foi pensada e efetivamente desenvolvida por diferentes tipos de pensadores ao longo do tempo. Dois pontos importantes a serem destacados neste mo- mento, e que podem ajudar-nos a compreender de uma forma mais ampla a história e o trabalho dos historiadores, dizem respeito à concepção de história “acontecimento” e a história “conhecimento”. A história, enquanto “acontecimento”, remete-nos ao en- tendimento de que somos seres sociais, que atuamos na trans- formação do mundo em que vivemos e que essas transfor- mações refletem de diferentes maneiras no nosso cotidiano. Ainda que tenhamos um olhar bastante objetivo sobre os im- pactos causados pelo nosso potencial transformador em rela- ção à natureza ou à sociedade, essas transformações também podem ser pensadas de uma maneira mais abrangente. Nossas ações, enquanto seres humanos, dotados de razão, consciência, desejos e interesses diversos, repercutem em dife- rentes níveis espaciais e temporais, podendo configurar trans- formações e rupturas com determinados modelos, como, por exemplo, a transição de um tipo de relação socioeconômica ou política para outra, em que novos agentes passam a atuar no sentido de ultrapassar os padrões pré-existentes, muitas ve- zes impostos ou tidos como naturais. Capítulo 1 Teoria da História: noções preliminares 9 Por outro lado, também agimos no sentido de perpetuar determinadas formas de compreender e proceder em relação à sociedade da qual fazemos parte, estabelecendo como re- gra, por exemplo, a continuidade de certos valores que irão balizar aquilo que consideramos bom ou ruim, belo ou feio, aceitável ou não. Nesse caso, também podemos encontrar in- teresses diversos entre aqueles que empreendem o esforço de manutenção de uma ordem existente, bem como entre os que se empenham na transformação da sociedade, na mudança dos valores ou, mais objetivamente, na superação de certos componentes explícita ou implicitamente atribuídos a determi- nados grupos ou à realidade em que se encontram. Desde aqueles mais simples acontecimentos do nosso dia a dia, como de que e como nos alimentamos, como nos rela- cionamos em casa, com os nossos familiares, ou na rua com pessoas que conhecemos ou não, o tipo de escolarização ou o de trabalho que desempenhamos, tudo isso está impregna- do de significados que podem ser compreendidos por meio da história. A noção muito difundida ao longo do tempo de que ape- nas os grandes acontecimentos do passado e os seus persona- gens ilustres é que importavam à história foi a muito tempo ul- trapassada, cedendo espaço para novas e variadas formas de concepção a respeito do que é ou não relevante ao trabalho do historiador. Sem perder a perspectiva dos grandes proces- sos ou acontecimentos, abriram-se as portas do passado para que nele fossem buscados todo o tipo de pessoas, grupos ou situações considerados importantes no entendimento de um determinado local ou época. 10 Teoria da História I É aqui que damos início ao segundo sentido atribuído à história, a história “conhecimento”. Nessa perspectiva, torna- -se importante levarmos em consideração que, assim como o passado foi feito pelos homens, a história ou, em outras pala- vras, a concepção que temos a respeito do passado, também é uma construção humana, portanto, eivada de significados e interesses diversos. Conforme argumenta Jenkins (2001), o que temos na re- alidade a respeito do passado são “histórias”, no sentido que existem múltiplas formas de se interpretar o que passou. Tem- -se, então, que passado e história são coisas diferentes e estão distantes entre si no tempo e no espaço. Conforme esse autor (p. 24-25): [...]a história, embora seja um discurso sobre o passado, está numa categoria diferente dele. Isso pode lhe parecer estranho, porque talvez você não tenha notado essa distin- ção antes ou, do contrário, talvez ainda não tenha se preo- cupado muito com ela. Uma das razões para que isso acon- teça – ou seja, para que em geral a distinção seja deixada de lado – é que temos a perder de vista o fato de que real- mente existe essa distinção entre história – entendida como o que foi escrito/registrado sobre o passado – e o próprio passado, pois a palavra “história” cobre ambas as coisas. Portanto, o preferível seria sempre marcar essa diferença usando o termo “o passado” para tudo que se passou an- tes em todos os lugares e a palavra “historiografia” para a história; aqui, “historiografia” se refere aos escritos dos his- toriadores. Também seria um bom critério (o passado como objeto da atenção dos historiadores, a historiografia como Capítulo 1 Teoria da História: noções preliminares 11 a maneira pela qual os historiadores o abordam) deixar a palavra “História” (com H maiúsculo) para indicar o todo. O próprio Jenkins admite a dificuldade de nos desvenci- lharmos do hábito tão arraigado de se generalizar o conceito de história tanto para a designação do passado como para o que dele se escreve. Ainda assim, e fazendo uso das suas pa- lavras, o que nos cabe neste ponto é reforçar que “o passado já passou, e a história é o que os historiadores fazem com ele quando põem suas “mãos à obra”. A história é o ofício dos historiadores”. (JEKINS, 2001, p. 25) Levando em consideração o que foi exposto acima, não se torna difícil compreender que, em se tratando de história, existem diferentes tipos de interpretações a respeito dos mes- mos processos ou acontecimentos. Para Paul Veine (1995), a apreensão que os historiadores fazem do passado é sempre incompleta, acontecendo por intermédio de documentos, tes- temunhos e indícios que possibilitam uma visão parcial a res- peito do ocorrido. Soma-se a isso o fato de que a importância atribuída a determinados fatos depende dos critérios adotados por cada historiador, não tendo uma grandeza absoluta. Ao contrário disso, o autor argumenta que: Os fatos não existem isoladamente, nesse sentido de que o tecido da história é o que chamaremos de uma trama, de uma mistura muito humana e muito pouco “científica” de causas materiais, de fins e de acasos; de um corte de vida que o historiador tomou, segundo sua conveniência, 12 Teoria da História I em que os fatos têm seus laços objetivos e sua importância relativa. [...]. A trama pode se apresentar como um corte transversal dos diferentes ritmos temporais, como uma aná- lise espectral: ela será sempre trama porque será humana, porque não será um fragmento de determinismo. (VEYNE, 1995, p. 28) Nesse caso, assim como em outros tantos em que os his- toriadores falam a respeito do trabalho que desenvolvem, po- demos observar que se atribui constantemente significados ao passado. Este, por sua vez, nada tem a dizer, até que alguém, geralmente um historiador, chegue até ele por meio de suas fontes e lhe retire aquilo que se quer dado a saber. Portanto, a história enquanto “conhecimento” nos faz compreender sob um determinado ponto de vista, os diferentes aspectos do pas- sado. Estes adquirem sentido em relação ao tempo histórico ao qual se vinculam, ao mesmo tempo em que são em relação à história, elementos passíveis das inquietações e interpreta- ções do presente. O presente e o passado A reciprocidade entre o passado e o presente no trabalho do historiador é um dos temas centrais da disciplina. No começo da década de 1960, o historiador Inglês E.W. Carr (2002, p.65), ilustra o trabalho historiográfico como um “diálogo in- terminável entre o presente e o passado”. Nesse ponto, cabe Capítulo 1 Teoria da História: noções preliminares 13 esclarecermos uma diferença importante. Trata-se do que po- demos chamar do “equivoco do anacronismo”, que consiste em atribuir ao passado formas de pensar ou agir caracterís- ticas do presente, e, por outro lado, a compreensão correta de onde partem os historiadores em seus estudos, de que as questões feitas ao passado adquirem sentido e, portanto, são coerentes à época em que eles, os historiadores vivem. A esse respeito, Arlette Farge (2011, p. 11) acrescenta: Certamente não é novidade para um historiador preocupar- -se com os laços de seu discurso com a sociedade em que o inscreve: “quando falam da história, estão sempre na his- tória”, escrevia Michel de Certeau. Bem antes dele, Marc Bloch tinha sublinhado reiteradas vezes a necessidade de ser curioso quanto aos problemas que agitam o mundo, de colocar questões pertinentes para a comunidade científica, de “unir o estudo dos mortos ao tempo dos vivos”. Podería- mos citar ainda muitos exemplos sobre este ponto, bastante discutido, da ciência histórica. Isto posto, podemos concluir que o passado, na forma como o conhecemos, está condicionado pelas formas como entendemos o presente. Ou seja, os historiadores, quando es- crevem a respeito do passado, assim o fazem levando a efeito suas concepções de mundo, os aspectos teóricos que conside- ram mais coerentes ou interessantes, suas ideologias e outros tantos conhecimentos. Dessa forma: “Para explicarem o passa- do, os historiadores vão além do efetivamente registrado e for- 14 Teoria da História I mulam hipóteses seguindo os modos de pensar do presente”. (JENKINS, 2001, p. 33) Não existe, portanto, uma objetividade absoluta no traba- lho do historiador. Ele opta por diferentes sistemas de interpre- tação histórica, escolhe e faz uso de certos documentos em detrimento de outros, prioriza certos fatos ou processos, e, por mais que se esforce no sentido de uma imparcialidade, isso não seria suficiente para abstrair por completo sua crítica a respeito do passado. Levando-se em consideração as circunstâncias da época em que vivem, temos que os historiadores fazem diferentes perguntas ao passado, logo, diferentes serão as possíveis for- mas de interpretá-lo. Isso irá transparecer ao longo de todo o processo de sua pesquisa, até o produto final do seu trabalho. Nesse sentido, Jean Glénisson (1977, p. 202), argumenta que: Durante o longo período preparatório da pesquisa das fon- tes, da crítica, esforçou-se ele no sentido da imparcialidade, talvez tenha pensado ser suficiente “deixar falar os textos”. Mas os textos só falam pela boca do historiador. Se quisés- semos deixar que se exprimissem por si mesmos, uma só ordem seria possível – a ordem estritamente cronológica – e a história não existiria: não conheceríamos outros gêneros além da crônica e da publicação integral dos documentos. Toda a história é uma encenação pela qual o historiador é responsável: seu talento, suas tendências profundas, sua concepção do mundo aí se exprimem, a despeito dela mes- ma, através da escolha que precisou fazer na massa de do- cumentos que submerge; através da adoção de uma certa Capítulo 1 Teoria da História: noções preliminares 15 ordem de exposição; através dos juízos de valor – menos implícitos – que ele não pode deixar de formular, acerca dos homens e dos acontecimentos. Ao contrário do que se propunha, o trabalho do historiador não pode ser entendido como uma mera descrição do passa- do. Ele reconstrói parte do passado por meio da pesquisa que realiza, levando a efeito possibilidades de entendimento e in- terpretação crítica das fontes que dispõe. Depreende-se disso a impossibilidade do historiador colocar-se à parte do texto que produz, sendo a subjetividade um componente intrínseco ao seu trabalho. O real e a verdade É possível que a história seja posta em dúvida quanto ao seu conteúdo de verdade? Afinal de contas, existeobjetividade em história? Que tipo de realidade encontramos quando lemos um trabalho de história? Qual o peso dessas questões no/ sobre o trabalho dos historiadores? Esses são alguns dos questionamentos feitos por leigos, es- pecialistas de outras áreas e até mesmo pelos próprios histo- riadores a respeito do seu métier. Por mais que já tenha sido visto e revisto, tal debate ainda fomenta boas discussões e po- sicionamentos distintos. 16 Teoria da História I Certamente, e esse é o primeiro pensamento que nos é sus- citado quando pensamos a respeito do conteúdo de um livro de história, os historiadores não estão a escrever mentiras. A questão acerca da possibilidade de se chegar a uma verdade em história vai muito além disso, e, de certa forma, já come- çamos a tratar dela nos parágrafos anteriores, quando fizemos referência ao seu caráter subjetivo. Vejamos o que o mesmo Glénisson (1977, p. 190-191), nos fala a esse respeito: De fato, como persistir acreditando na possibilidade atual de uma estrita objetividade histórica, quando somos obri- gados a admitir que a história permanece em estado de “perpétua gestação”? [...] Sem necessidade de apelar à filosofia da história, os historiadores universitários, melhor do que ninguém, sabem com que rapidez saem da moda e devem ser substituídas as obras mais metódica e escrupu- losamente compostas: Não mais se admite o pensamento histórico que as perpassa e impôs-se a todos uma nova maneira de ver e de explicar. Forçoso é constatarmos, en- tão, para retomar uma fórmula célebre, que – a despeito de todos os nossos esforços – a história continua a ser “filha do seu tempo”. Uma vez que relaciona o passado e o presente, o conheci- mento histórico implica subjetividade e objetividade. O histo- riador chega ao passado por meio de suas fontes. Estas, não lhes apresentam o passado por completo, são lacunares, ou se abrem a diferentes tipos de interpretação. Por seu turno, Capítulo 1 Teoria da História: noções preliminares 17 o historiador parte do presente munido de procedimentos e objetivos a serem exercitados sobre o material que dispõe a respeito do passado, alvo do seu estudo. Ainda assim, e mesmo que consideremos a interpretação como um dos elementos imprescindíveis no trabalho do histo- riador, não podemos deixar de levar em consideração que os fatos nos levam a determinados caminhos, argumenta Carr (2002, p. 62). A verdade, ou o que é considerado real no tra- balho do historiador, repousa no fato deste conseguir estabe- lecer, da melhor forma possível, um diálogo com suas fontes, alicerçando-a em certos princípios teóricos e metodológicos reconhecidos pelos seus interlocutores. Nas palavras de Certeau (1982, p. 44), podemos dizer que: [...] a situação da historiografia faz surgir a interrogação sobre o real em duas posições bem diferentes do procedi- mento científico: o real enquanto é o conhecido (aquilo que o historiador estuda, compreende ou "ressuscita" de uma sociedade passada) e o real enquanto implicado pela ope- ração científica (a sociedade presente a qual se refere a problemática do historiador, seus procedimentos, seus mo- dos de compreensão e, finalmente, uma prática do sentido). De um lado o real é o resultado da análise e, de outro, é o seu postulado. Estas duas formas da realidade não podem ser nem eliminadas nem reduzidas uma a outra. A ciência histórica existe, precisamente, na sua relação. Ela tem como objetivo próprio desenvolvê-la em um discurso. 18 Teoria da História I Nesse sentido, e já encaminhando o encerramento deste capítulo, podemos dizer que os historiadores têm em mente que, o que escrevem é de certa forma datado – outas épo- cas, outros questionamentos, o mesmo passado. Não existem verdades acabadas, absolutas e eternas na história, pois se isso fosse possível, por que continuaríamos a pesquisar sobre o passado? O caráter provisório atribuído às explicações his- tóricas em nada diminui o seu papel em termos de ciência. Ao contrário, reforçam a ideia de que a própria ciência não pode ser pensada única e exclusivamente sob determinados paradigmas, e que a multiplicidade do devir humano exige novas formas de pensar e compreender sua atuação diante do mundo. Referências BLOCH, Marc. Apologia da história, ou O ofício do histo- riador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. CARR, Edward Hallet. O que é história? 4. Ed. Rio de Janei- ro: Paz e Terra, 2002. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Edi- tora Autêntica, 2011. GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 2. ed. Rio de Janeiro-São Paulo: DIFEL, 1977. Capítulo 1 Teoria da História: noções preliminares 19 JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2001. RANKE, Leopold Von. Sobre o caráter da ciência histórica. In: MALERBA, Jurandir (Org.). Lições de história: o caminho da ciência ao longo do século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história. 3. ed. Edi- tora Universidade de Brasília, 1995. Atividades 1. História é uma palavra de origem grega – ιστορία – com significado relacionado à: a) Invenção. b) Deturpação. c) Imaginação. d) Segregação. e) Investigação. 2. A respeito da concepção de história “acontecimento” e de história “conhecimento” é correto afirmar que: 20 Teoria da História I (I). Enquanto “acontecimento”, a história reporta-nos ao entendimento de que somos seres sociais, que agimos na transformação do mundo em que vivemos e que es- sas transformações repercutem de diferentes modos no nosso cotidiano. (II). Na perspectiva da história “conhecimento” é impor- tante considerar que, assim como o passado foi feito pe- los homens, a história também é uma construção humana, portanto, eivada de significados e interesses diversos. (III). Em se tratando de história, não podem existir diferentes tipos de interpretações a respeito dos mesmos processos ou acontecimentos. (IV). A importância atribuída a determinados fatos depende dos critérios adotados por cada historiador, não tendo uma grandeza absoluta. Estão corretas as afirmações: a) I e II. b) I, II e III. c) I, II e IV. d) II, III e IV. e) Todas as afirmações estão corretas. 3. Em relação à história enquanto “conhecimento”, é correto afirmar que: Capítulo 1 Teoria da História: noções preliminares 21 a) A história enquanto “conhecimento” nos faz compreen- der, sob um determinado ponto de vista, os diferentes as- pectos do passado. b) Não há dificuldade de nos desprendermos do costu- me tão arraigado de se generalizar o conceito de histó- ria tanto para a designação do passado como para o que dele se escreve. c) O que temos a respeito do passado são “histórias”, no entanto, existe apenas uma forma de se interpretar o que passou. d) Passado e história são a mesma coisa, não estando dis- tantes entre si, no tempo e no espaço. e) A apreensão que os historiadores fazem do passado é sempre total, acontecendo por intermédio de documentos, testemunhos e indícios que possibilitam uma visão comple- ta a respeito do ocorrido. 4. No trabalho historiográfico, pode existir aquilo que chama- mos de “equívoco do anacronismo”, o qual consiste em: a) Atribuir ao presente formas de pensar e agir característi- cas do passado. b) Atribuir ao passado formas de pensar ou agir caracterís- ticas do presente. c) Atribuir ao presente formas de pensar e agir característi- cas do presente. 22 Teoria da História I d) Atribuir ao passado formas de pensar e agir característi- cas do passado. e) Atribuir ao passado nenhuma forma de pensar ou agir. 5. A verdade ou o que é considerado real no trabalho dohistoriador, apoia-se no fato deste conseguir estabelecer, da melhor forma possível, um diálogo com suas fontes, consolidando-o em: a) certos princípios teóricos e metodológicos reconhecidos pelos seus interlocutores. b) certos princípios teóricos e metodológicos não reconhe- cidos pelos seus interlocutores. c) certos princípios teóricos e de suposição reconhecidos pelos seus interlocutores. d) certos princípios metodológicos e de suposição não re- conhecidos pelos seus interlocutores. e) certos princípios teóricos, metodológicos e de suposição reconhecidos pelos seus interlocutores. Gabarito: 1.e; 2.c; 3.a; 4b; 5.a. Situando o trabalho do historiador Rodrigo Lemos Simões Capítulo 2 24 Teoria da História I Os fatos e as tramas Perguntar-se sobre o que é um fato histórico é inevitável quan- do lidamos com as questões epistemológicas do campo histo- riográfico. Todos os acontecimentos do passado estão abertos ao tipo de abordagem que interessa ao historiador, ou, ao contrário disso, somente alguns eventos são dignos de serem tratados como fatos históricos? Podemos iniciar a resposta a esses questionamentos sa- lientando que, de um modo geral, existem alguns fatos que formam a espinha dorsal do trabalho dos historiadores, como, por exemplo, uma batalha, o inicio de um reinado, um golpe contra a democracia etc. Contudo, convém lembrar que não são esses fatos propriamente ditos que interessam ao historia- dor. Saber situar em relação a um dado evento é matéria bá- sica em seu trabalho, o que irá fazer em termos de pesquisa a partir do conhecimento desses eventos é o que faz a diferença. Segundo Carr (2002, p. 47), é um equívoco pensar que os fatos falam por si. “Os fatos falam apenas quando o historia- dor os aborda: e é ele quem decide quais os fatos que vêm à cena e em que ordem ou contexto”. O mesmo ato pode ser repetido inúmeras vezes pelos mais variados personagens do passado e, ainda assim, só será dig- no de estudo se alguém decidir que ele tem interesse histórico. Em tempo, cabe ressaltarmos que não estamos falando de um evento excepcional, de grandes desdobramentos numa socie- dade. Até mesmo essa colocação, feita nesses termos, pode causar algum embaraço, uma vez que a dimensão do fato Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 25 pode ter tanto um significado extensivo a todo um grupo ou época ou, por outro lado, fazer sentido a uma única pessoa ou poucas delas, e ainda assim ser eleito como algo significativo para o estudo histórico. O historiador é um selecionador diz Carr (2002, p. 48), “[...] a convicção num núcleo sólido de fatos históricos que existem objetiva e independentemente da interpretação do historiador é uma falácia absurda, mas que é muito difícil de erradicar”. Soma-se a isso o fato de que, em se tratando de certos pe- ríodos do passado, nossa possibilidade de compreensão fica bastante limitada pelo local de onde nos falam as nossas fon- tes. Não temos a visão de todos os ângulos, todos os pontos de vista, mas, sim, um rastro de significados a respeito de um determinado acontecimento que nos foi legado por alguém ou grupo do passado. Estes, por sua vez, colocam-se sob um de- terminado ponto de vista, normalmente daqueles que tem con- dições de narrar ou preservar a memória de certos aconteci- mentos. Mas, e quanto ao ponto de vista de todos os demais? Segundo Paul Veyne (1995, p. 12): [...] em nenhum caso, o que os historiadores chamam um evento é apreendido de uma maneira direta e completa, mas, sempre, incompleta e literalmente, por documentos e testemunhos, ou seja, por tekmeria, por indícios. Ainda que eu tivesse sido contemporâneo e testemunha de Waterloo, ainda que tivesse sido seu principal ator, Napoleão em pes- soa, teria apenas uma perspectiva sobre o que os historia- dores chamarão o evento Waterloo; só poderia deixar para a posteridade o meu depoimento que, se chegasse até ela, 26 Teoria da História I seria chamado indício. [...] Desse modo, a narração his- tórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um do- cumentário em fotomontagem e não mostra o passado vivo “como se você estivesse lá”. Nesse ponto, já não é difícil para nós percebermos, por exemplo, que a concepção feita por um nobre, um burguês ou um operário a respeito, digamos, de uma hipotética crise sobre os preços, o da farinha ou do pão, teria diferentes tipos de repercussão na vida de cada um deles. Agora, como essas diferentes perspectivas chegarão até nós, historiadores do sé- culo XXI? Talvez sequer nos cheguem, por serem insignificantes demais para uns e difíceis de serem descritas e registradas pe- los demais. Mas imaginemos que essas informações nos chegaram, e isso só foi possível devido aos registros feitos por um burguês que desenvolvia suas atividades nesse setor. Mesmo que esse nosso hipotético narrador nos fale sobre como sua indústria sofreu com os efeitos do aumento dos preços, ou que ele nos conte sobre a dificuldade das pessoas comuns, dos diversos grupos de trabalhadores da cidade em adquirir tais produtos, teremos apenas, e tão somente, a percepção de um desses diferentes segmentos, seu olhar sobre os demais, e não uma visão completa sobre o fenômeno. Mas vamos mais longe. Ainda que dispuséssemos dos rela- tos de pessoas dos três grupos citados, e que cada um deles ti- vesse legado à posteridade longos discursos a respeito da alta Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 27 dos preços sobre a farinha e o pão. Ainda assim a atribuição da relevância a respeito do que se passou, de como se passou e de como foi narrado, só tornou-se possível na medida em que algum historiador elegeu esse fato em especial como algo interessante e significativo ao ponto de ser estudado. Normalmente, o historiador inicia seu trabalho selecionan- do alguns fatos e interpretando-os, tudo de forma ainda muito provisória. Ele não detém todas as fontes e informações que necessita, ou ainda não sabe ao certo onde todo o trabalho despendido nesses primeiros momentos da pesquisa irão lhe levar. Uma vez que avança na pesquisa, consegue estabele- cer certas ligações entre fatos que anteriormente não lhe eram perceptíveis. Passa então a imergir em um processo de con- textualização, vislumbra processos, e tanto mais se apropria do tema proposto, mais chances terá de ousar nas suas inter- pretações do passado. Uma troca, um “processo contínuo de interação”, isso porque: O historiador não é um escravo humilde nem um senhor tirânico de seus fatos. A relação entre o historiador e seus fatos é de igualdade e de reciprocidade. Como qualquer historiador ativo sabe, se ele para para avaliar o que está fazendo enquanto pensa e escreve, o historiador entra num processo contínuo de moldar seus fatos segundo sua inter- pretação e sua interpretação segundo seus fatos. É impos- sível determinar a primazia de um sobre o outro. (CARR, 2002, p. 65) 28 Teoria da História I Cabe salientarmos que não é a quantidade dos fatos que satisfaz o bom historiador, mas como esses fatos podem sus- citar possíveis entendimentos a respeito do passado. Pesqui- sas históricas que se tornaram célebres partiram de um único acontecimento, como é o caso dos livros de Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes, que conta a história do julgamento de um moleiro de Montereale, zona italiana do Friuli, feito pela inquisição no século XVI, ou a obra O carnaval de Romans, de Emmanuel Le Roy Ladurie, que narra um episódio sangren- to ocorrido no ano de 1580, e que colocou em confronto os habitantes desse povoado Francês. Em ambos os casos, a inspiração inicial dos historiadores foi um fato bem específico e, por sorte, fartamente documen- tado. Contudo, os fatos por si sónão nos levam ao entendi- mento do que se passava de uma forma mais ampla naqueles locais do passado, cabe aos historiadores encontrar a “trama” possível de organizá-los. Conforme Veyne (1995), a história interessa-se por aconte- cimentos individualizados ainda que não seja sua própria indi- vidualidade que a interesse. Nesse sentido, o que se procura é compreender o que neles existe de geral e também específico. Para esse autor, os fatos tem uma organização natural, cabendo ao historiador “reencontrar” essa organização. Noutras pala- vras, o que ele quer nos dizer é que os fatos não existem isola- damente, e que, dentro de um determinado assunto eleito pelo historiador, existem ligações objetivas a serem apreendidas. A esse respeito (p. 28), acrescenta que: Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 29 Os fatos não existem isoladamente, nesse sentido de que o tecido da história é o que chamaremos de uma trama, de uma mistura muito humana e muito pouco “científica” de causas materiais, de fins e de acasos; de um corte de vida que o historiador tomou, segundo sua conveniência, em que os fatos têm seus laços objetivos e sua importância relativa; a gênese da sociedade feudal, a política mediterrânea de Felipe I ou somente um episódio dessa política, a revolução galileia. A palavra trama tem a vantagem de lembrar que o objeto de estudo do historiador é tão humano quanto um drama ou um romance, Guerra e Paz ou Antônio e Cle- ópatra. Essa trama não se organiza, necessariamente, em uma sequência cronológica: como um drama interior, ela pode passar de um plano para outro; a trama da revolução galileia colocará Galileu em choque com os esquemas de pensamento da física, no começo do século XVII, com as aspirações que sentia em si próprio, com os problemas e referências à moda, platonismo e aristotelismo etc. A trama pode se apresentar como um corte transversal dos diferen- tes ritmos temporais, como uma análise espectral: ela será sempre trama porque será humana, porque não será um fragmento de determinismo. O trabalho de contextualização e recontextualização são inerentes ao ofício do historiador. Os fatos, ainda que impor- tantes e “verdadeiros”, vistos de forma descontínua, de nada lhe servem. Conforme Jenkins (2001, p. 60), os historiadores têm outras ambições, desejam descobrir não apenas o que aconteceu, mas também como e porque aconteceu e o que 30 Teoria da História I as coisas significavam e significam. O que se pretende com esse tipo de abordagem sobre o passado é justamente de- monstrar que não são os fatos por si, independentemente uns dos outros, mas o que significaram num contexto mais amplo e complexo. Os tempos da história Conforme o historiador francês Jacques Heers (1994, p. 32), não há história, nem investigação, nem obra, nem ensino, sem nos situarmos no tempo, sem tomarmos consciência do con- texto. De um modo geral, podemos dizer que o tempo é apre- endido de diferentes maneiras, dependendo do contexto e de quem está a abordá-lo. Pode ser tomado de forma objetiva, a partir de certos tipos de verificação mensuráveis em intervalos e durações, mas também pode ser trabalhado a partir das nar- rativas, estas inscritas nas mais variadas formas de expressão oral ou textual, que serão alvo das diferentes especialidades do conhecimento, entre elas, o conhecimento histórico. Temos, portanto, a possibilidade de pensarmos em um tem- po cronológico, na medida em que situamos os acontecimen- tos em determinados momentos do passado. Nesse sentido, os calendários nos servem como referência de localização no passado. Diferentes sociedades do passado adotaram, e ainda hoje adotam medidas diferentes para a marcação do tempo. O calendário gregoriano, utilizado atualmente na maioria dos países, é uma construção do século XVI. Ele substituiu o calen- dário juliano, implantado por Júlio César no ano de 46 a.C.. Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 31 O marco inicial da cronologia cristã tem como data o ano do nascimento de Cristo, já o calendário judaico começa com a criação da 'neshamá' (estrutura espiritual/alma) de Adão, o primeiro homem dentro da crença judaica, há cerca de 5770 anos. No mundo islãmico, a contagem do tempo começa com a Hégira, ou seja, a saída de Maomé de Meca e sua fixação em Medina, no ano de 622. Porém, outra possibilidade de se pensar a dimensão do tempo em se tratando de história, é a sua concepção a partir de durações, ou seja, períodos que dizem respeito às formas de organização social, política e econômica das sociedades do passado. O tempo entendido enquanto duração possibilita a identifi- cação de mudanças e permanências na forma como as socie- dades organizam-se nos mais variados sentidos. Por exemplo, quando estudamos a história do Brasil, costumamos falar em momentos diferentes segundo uma delimitação temporal que leva em consideração o aspecto político. Nesse sentido, temos a história do Brasil colônia, a história do Brasil império e a história do Brasil república. Não obstante a essa forma de mensuração do tempo histó- rico, podemos acrescentar outras formas de divisão temporal quando da análise desse mesmo passado. Assim, uma das nossas alternativas seria falar a partir dos aspectos econômi- cos, como, por exemplo, a economia açucareira ou cafeei- ra, ou ainda sob um enfoque socioeconômico que levasse em consederação um modelo de organização baseado na mão de obra escrava e outro no trabalho assalariado. 32 Teoria da História I O mesmo diz respeito à forma como habitualmente divi- dimos a história em antiga, medieval, moderna e contempo- rânea. Quem propôs pela primeira vez esse tipo de divisão (a noção de contemporaneidade só é incorporada posterior- mente) foi o alemão Christophe Keller, no século XVII. Tal re- particão em períodos bem distintos obedece a preocupações pedagógicas, visando expor as mudanças e permanências que auxiliem a identificar as continuidades e descontinuidades nas coletividades em que nossos estudos se debruçam. Contudo, tais recortes merecem reflexão. Nesse caso, podemos acrescentar que toda a forma de di- visão da história é uma arbitrariedade, no sentido de que par- timos sempre de certos parâmetros ou necessidades expressas em um tempo posterior ao que nos propomos a classificar. Noutras palavras, e para tornarmos claro ao que nos referi- mos, vejamos o que diz o historiador brasileiro Hilário Franco Júnior (1992, p. 17) que, a título de exemplificação, utiliza-se do termo Idade Média: Se utilizásse-mos numa conversa com homens medievais a expressão Idade Média, eles não teriam ideia do que isso poderia significar. Eles, como todos os homens de todos os períodos históricos, se viam vivendo na época contempo- rânea. De fato, falarmos em Idade Antiga ou Média repre- senta uma rotulação a posteriori, uma satisfação da neces- sidade de se dar nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo expressava um desprezo indiscriminado pelos séculos localizados entre a antiguidade clássica e o próprio século Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 33 XVI. Este se via como o Renascimento da civilização greco- -latina, e portanto tudo que estivesse entre esses picos de criatividade artístico-literária (de seu próprio ponto de vista, é claro) não passava de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma idade média. Seja como for, essas periodizações da história são unani- memente aceitas, não havendo, na opinião da maioria dos historiadores, a necessidade de mudanças uma vez que a pro- posição de outros formatos cairia inevitavelmente noutras for- mas de classificação. Conforme Heers (1994, p. 35), devemoslevar em consi- deração que: A verdadeira questão não está aí. Não se trata de reformar, de reconstruir sobre destroços, de ligar o nome de uma es- cola a um novo calendário de estudos, mas simplesmente de tomar consciência destes artifícios. Convirá verdadeira- mente erigir estes cortes em postulados, dar força de verda- de e insuflar vida própria àquilo que não passa do resultado de uma escolha, entre tantas outras igualmente arbitrárias, igualmente discutíveis, de vários pontos de vista? Inscrever- -se forçosamente num quadro, aceitar uma divisão cômo- da, é uma coisa. Acreditar na realidade intrínseca de uma abstração nascida de especulações intelectuais, numa ima- gem forjada, é outra. 34 Teoria da História I Também podemos identificar nesse esforço de pensar- mos as diferentes possibilidades de apreensão do tempo no estudo do passado, aquelas condições adotadas ou im- postas a fim de dividirem o tempo conforme certos ritmos previamente estabelecidos. Nesse sentido, podemos dizer que o ritmo do trabalho do camponês medieval, por exemplo, está orientado pelos ciclos naturais, as épocas do ano de plantar ou colher. Como toda a sociedade agrária, acrescenta Franco Júnior (1992, p. 22), a sociedade medieval guiava-se pelo ritmo mais visível da na- tureza, o sol, a lua, as estações. Por outro lado, e levando-se em consideração uma série de questões litúrgicas, as ordens religiosas adotavam um sistema de quantificação e controle sobre as horas mais rigoroso, contando-as de três em três a partir da meia noite. O sino no campanário das igrejas medievais também serviu ao controle do tempo, isso se pode dizer no que se refere tanto aos monastérios como na vida mundana das cidades e vilarejos. Doutra forma, o tempo é também medido pelo tempo de vida das pessoas, uma vez que elas sentem sua presença por meio dos nascimentos, do crescimento, da vida adulta, da ve- lhice e da morte. Acrescenta-se, a isso, o fato de que cada so- ciedade experiencia diferentes concepções sobre o que é típico ou aceitável nos diferentes ciclos da vida de seus membros. A idade do casamento, da inserção na escola ou no mundo do trabalho, e outras tantas formas de expressão dos sujeitos na vida cotidiana, variam conforme a época e o local estudado. Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 35 O historiador Francês Philippe Ariès (1981) destaca que, no século XVII, muitos jovens filhos da nobreza abriam mão da escolarização e muito cedo ingressavam no exército. Con- forme o autor, no fim do reinado de Luís XVI, portanto, no final do século XVIII, havia tenentes de quatorze anos em seu exército, e soldados que aderiam às tropas aos onze anos de idade. O mesmo pode-se dizer em relação às meninas em termos de precocidade. Conforme o autor (ARIÈS, 1981, p. 125): Desde que completei meus 12 anos, graças a Deus cuja vida é eterna, casei-me cinco vezes no pórtico da igreja”. Assim falava uma das mulheres de Chaucer, no século XIV. Mas no fim do século XVI, Catherine Marion casou-se com Antoine Arnauld aos 13 anos. [...] Catherine Lemaître, tinha-se ca- sado aos 14 anos de idade. As pessoas falavam em casar sua irmã Anne aos 12 anos, e só a vocação religiosa da menina fez com que esses planos fracassassem. [...] Aliás, a partir dos 10 anos, as meninas já eram mulherzinhas como essa mesma Anne Arnauld, uma precocidade explicada por uma educação que treinava as meninas para que se com- portassem desde muito cedo como adultas. “Desde os 10 anos de idade essa pequena tinha o espírito tão avançado que governava toda a casa de Mme Arnauld, a qual a fazia agir assim deliberadamente, para formá-la nos exercícios de uma mãe de família, já que este deveria ser seu futuro. Com o advento do relógio mecânico, uma outra possibi- lidade de mensuração do tempo, foi introduzida no cotidiano 36 Teoria da História I das pessoas. Os diferentes momentos da vida passaram a ser regidos pela contagem das horas de uma forma mais preci- sa. Se tomarmos como exemplo o período conhecido como o da primeira Revolução Industrial, cada vez mais a jornada de trabalho de homens, mulheres e crianças, era aumentada, po- dendo chegar a 17 horas diárias de trabalhos exaustivos nas fábricas e em outros locais. Nas palavras do pensador alemão Karl Marx (2003, p. 320): O Capital levou séculos, antes de surgir a indústria moder- na, para prolongar a jornada de trabalho até seu limite má- ximo normal e, ultrapassando-o, até o limite do dia natural de 12 horas. A partir do nascimento da indústria moderna, no último terço do século XVIII, essa tendência transformou- -se num processo que se desencadeou desmesurado e vio- lento como uma avalanche. Todas as fronteiras estabeleci- das pela moral e pela natureza, pela idade ou pelo sexo, pelo dia e pela noite foram destruídas. A essa altura, não é difícil para nós compreendermos que o advento de novas tecnologias fez com que a noção das pesso- as a respeito do tempo mudasse consideravelmente. Cruzar o oceano nas naus dos séculos XV e XVII era algo extremamente demorado e dispendioso se considerado em relação ao tempo necessário para fazermos a mesma viagem em um avião nos dias de hoje. O tempo necessário para obtermos informações de locais distantes até poucas décadas atrás estava condicio- nado ao sistema de correio ou as ligações telefônicas, difíceis e dispendiosas na maioria dos casos. Hoje, através de e-mails, Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 37 dos satélites e dos cabos de fibra ótica, conseguimos nos co- municar com praticamente todos os locais do nosso planeta em tempo real. Portanto, como pudemos observar ao longo dessa etapa do nosso estudo, as questões relativas à forma como o tempo é medido e vivido pelas pessoas irá variar conforme a época e o local. Cada momento do passado teve suas próprias ca- racterísticas e formas de se relacionar com o tempo. O uso da tecnologia fez com que a concepção a respeito do tempo, do que está longe e do que está perto, do que é considerado rápido ou demorado, fosse mudando constantemente. Referências ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981. CARR, Edward Hallet. O que é história? 4. ed. Rio de Janei- ro: Paz e Terra, 2002. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. HEERS, Jacques. A idade Média, uma impostura. Lisboa: Edições Asa, 1994. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história. 3. ed. Bra- sília: Editora Universidade de Brasília, 1995. 38 Teoria da História I Atividades: 1) A respeito do que é fato histórico, marque V ou F: ( ) É um equívoco pensar que os fatos falam por si. ( ) O mesmo ato sendo repetido inúmeras vezes pelos mais variados personagens do passado será digno de estudo, mesmo se ninguém decidir que ele tem interesse histórico. ( ) Em se tratando de certos períodos do passado, nossa possibilidade de compreensão fica bastante limitada pelo local de onde nos falam as nossas fontes. ( ) O que temos do passado é um rastro de significados a respeito de um determinado acontecimento que nos foi legado por alguém ou grupo. A alternativa que corresponde à sequência correta é: a) V-V-F-V b) F-F-V-V c) F-V-V- F d) V-F-V-V e) V-F-V-F 2. Sobre o trabalho do historiador, podemos afirmar que: I – O historiador começa seu trabalho elegendo alguns fatos e interpretando-os, tudo de forma ainda muito provisória. Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 39 II – Mesmo não possuindo todas as fontes e informações de que necessita, o historiador já sabe ao certo onde todo o trabalho despendidonos primeiros momentos da pesquisa irão lhe levar. III – Com o avanço da pesquisa, o historiador estabele- ce certas ligações entre fatos que anteriormente não lhe eram perceptíveis. IV – À medida que imerge em um processo de contextua- lização, o historiador vislumbra processos, e tanto mais se apropria do tema proposto, mais chances terá de ousar nas suas interpretações do passado. Estão corretas as afirmações: a) Apenas I, II e III. b) Apenas I, III e IV. c) Apenas II, III e IV. d) Apenas I, II e IV. e) Todas as afirmações estão corretas. 3. Assinale a alternativa que traz informações incorretas a res- peito dos acontecimentos históricos: a) Não é a quantidade dos fatos que satisfaz o bom histo- riador, e sim como esses fatos podem provocar possíveis entendimentos a respeito do passado. b) À história interessa acontecimentos coletivos, embora não seja sua própria coletividade que a interesse. 40 Teoria da História I c) Os fatos não existem isoladamente, dentro de um de- terminado assunto eleito pelo historiador, existem ligações objetivas a serem apreendidas. d) O trabalho de contextualização e recontextualização são inerentes ao ofício do historiador. e) O que interessa para o historiador não são os fatos por si, independentemente uns dos outros, mas o que significa- ram em um contexto mais amplo e complexo. 4. Assinale a alternativa que melhor completa a frase: “Toda a forma de divisão da história é uma arbitrariedade, po is..._____________________________”. a) ...partimos sempre de certos parâmetros ou necessida- des expressas em um tempo posterior ao que nos propo- mos a classificar. b) ...partimos sempre de certos parâmetros ou necessida- des expressas em um tempo anterior ao que nos propomos a classificar. c) ...partimos sempre de certos parâmetros ou necessi- dades expressas em um tempo atual ao que nos propo- mos a classificar. d) ...partimos sempre de certos parâmetros ou necessida- des expressas em um tempo qualquer ao que nos propo- mos a classificar. Capítulo 2 Situando o trabalho do historiador 41 e) ...partimos sempre de certos parâmetros ou necessida- des expressas em um tempo transpassado ao que nos pro- pomos a classificar. 5. Em relação à forma como o tempo é medido e vivido pelas pessoas, podemos entender que: I – Varia conforme a época e o local. II – Cada momento do passado teve suas próprias caracte- rísticas e formas de se relacionar com o tempo. III – O uso da tecnologia fez com que a concepção a respeito do tempo, do que está longe e do que está per- to, do que é considerado rápido ou demorado, fosse mudando constantemente. Quais alternativas estão corretas? a) Somente as alternativas I e II estão corretas. b) Somente as alternativas I e III estão corretas. c) Somente as alternativas II e III estão corretas. d) Todas as alternativas estão corretas. e) Nenhuma das alternativas está correta. Gabarito: 1.d; 2. b; 3. b; 4. a; 5. d. Ainda situando o trabalho Rodrigo Lemos Simões Capítulo 3 Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 43 Algo mais sobre o tempo: as durações Conforme o historiador francês Fernand Braudel (apud Gléni- son, 1977, p. 233), para o historiador, tudo começa, tudo ter- mina pelo tempo. Nesse sentido, nunca é demais retomarmos essa discussão a fim de apreendermos da melhor forma pos- sível as diferentes concepções que os historiadores têm sobre esse ponto crucial do seu trabalho. Podemos partir de diferentes possibilidades que levem em consideração as questões espaço temporais quando analisa- mos uma obra de história ou mesmo quando damos início a uma pesquisa. Trata-se, em ambos os casos, de identificarmos o tipo da duração que está sendo ou será proposta no trabalho. A essa altura, você deve estar se perguntando: mas como, ou por meio de que parâmetros podemos pensar em diferentes tipos de duração numa abordagem histórica? Vejamos o que o historiador espanhol Enrique Moradiellos (1999, p. 47) fala a respeito disso quando analisa o livro de Braudel O medi- terrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II, obra essa considerada um marco nesse tipo de abordagem sobre o passado: [...] Seu livro estudava esse amplo espaço geográfico no sé- culo XVI atendendo a três tempos/níveis distintos: na base, o tempo da “longa duração” que corresponde às estruturas da história (certos marcos geográficos, certas realidades biológicas, certos limites de produtividade, e até certas coa- ções espirituais); por cima, o tempo da média duração que corresponde a conjuntura, entendendo como tal os proces- 44 Teoria da História I sos sociais, econômicos e culturais que se revelam em ci- clos: “uma curva de preços, uma progressão demográfica, o movimento dos salários, as variações das taxas de juros” etc.; finalmente, no “terceiro nível”, o tempo curto e breve dos “indivíduos e dos acontecimentos”, a história “episódi- ca” que basicamente era uma história política tradicional. [...] os acontecimentos (meras “espumas superficiais”, “a crista das ondas que animam superficialmente o potente movimento respiratório de uma massa oceânica”). Isso posto, temos que, em história, o tempo pode ser traba- lhado nos diferentes tipos de duração propostos acima. Uma história estrutural, ou de “longa duração”, quase imóvel em suas transformações, onde se sobressai a relação entre o ho- mem e o meio que o cerca. Em um segundo plano, a história conjuntural, ou a “média duração”. Uma história de transfor- mações lentas, das instituições políticas, das mudanças sociais e econômicas, das transições na cultura e nas mentalidades. Finalmente, a história dos acontecimentos, ou a “curta dura- ção”. A história dos indivíduos, rica em interesse humano, e que situa homens e eventos em um dado contexto. Para Glénison (1977, p. 236), temos então: [...] a história transformada numa “dialética da duração”. Concebemos facilmente que as consequências não sejam apenas de ordem teórica, mas influam diretamente até mesmo na gênese das obras históricas. Pois é possível na prática, realizar “uma recomposição da história em planos dispostos em degraus”, conceder lugar, num mesmo estu- Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 45 do, “ao tempo geográfico, o tempo social, ao tempo indi- vidual”. Agindo pelo exemplo, F. Braudel distribuiu segundo um plano desta natureza seu grande trabalho sobre O me- diterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II. O instantâneo, o duradouro, o permanente aí encontram respectivamente seu domínio, para se recomporem no fim e articularem-se sem dificuldade. Nesse ponto, cabe ressaltarmos que a distinção de dife- rentes tipos de duração foi e ainda é algo comum no trabalho dos historiadores. Porém, a combinação desses diferentes tipos de apreensão do tempo em um único trabalho, visando àquilo que Braudel chamava de uma “história total” é algo incomum. Portanto, e fazendo uso do que disse Peter Burke (1991) a esse respeito, podemos finalizar dizendo que poucos historiadores desejariam imitar o que Braudel fez na obra O mediterrâneo, e um número ainda maior deles conseguiria sequer fazê-lo. A interdisciplinaridade Foi-se o tempo em que as diferentes áreas do conhecimento aspiravam algum tipo de supremacia sobre as demais. A his- tória, em dado momento do passado, tentou atrair para si tal protagonismo, e não raras vezes ouvimos falar, por exemplo, que o século XIX foi o século da história. O correto seria dizer que, na atualidade, existe uma infini- dade de combinações possíveis de entrecruzamentos onde a 46 Teoria da História I história irá dialogar de igual para igual com as demais áreas do conhecimento, a sociologia, a antropologia, a economia etc. Uma verdadeira interdisciplinaridade sem qualquer tipo de pretensões“imperialistas” de uma dessas disciplinas sobre as demais. Por interdisciplinaridade, entendemos essa troca de experi- ências, saberes e conhecimentos que caracterizam cada ciên- cia. Não se trata, portanto, de diluir uma área de conhecimento em outra, mas, sim, de integrá-las para a melhor compreensão possível dos processos e fenômenos relacionados ao objeto da pesquisa. Nesse sentido, concordamos com Japiassu (1976, p. 74), quando afirma que a interdisciplinaridade caracteriza- -se pela intensidade das trocas entre especialistas e pelo grau de interação real das disciplinas no interior de um mesmo pro- jeto de pesquisa. Para exemplificar esse necessário processo de interação entre a história e as outras áreas do conhecimento, vejamos o que falam os especialistas. Primeiro, uma fala do histo- riador Peter Burke (2002, p. 12-13) a respeito das possíveis relações entre o trabalho dos historiadores e dos sociólogos. Para o autor: Sociologia pode ser definida como o estudo da sociedade humana com ênfase em generalizações sobre sua estrutura de desenvolvimento. História é mais bem definida como o estudo de sociedades humanas no plural, destacando as di- ferenças entre elas e as mudanças ocorridas em cada uma com o passar do tempo. Por vezes, as duas abordagens têm sido consideradas contraditórias, porém é mais útil tratá-las Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 47 como complementares. Apenas mediante a comparação da história com as outras disciplinas podemos descobrir em que aspectos determinada sociedade é única. Em seu texto, Burke (2002) ressalta a importância de criar- mos o hábito de dialogarmos com as outras ciências, de am- pliarmos nosso rol de possibilidades de entendimento do pas- sado a partir do que essas outras disciplinas têm a nos oferecer. Vejamos agora o que um profissional ligado à antropolo- gia fala sobre o trabalho interdisciplinar, mais especificamente da relação dessa área de conhecimento com a história. Trata- -se do antropólogo estadunidense Clifford Geertz, uma das principais referências na antropologia da segunda metade do século XX, e cuja obra ultrapassou as barreiras disciplinares. Para Geertz (2001, p. 123): A onda recente de interesse dos antropólogos não apenas pelo passado (sempre nos interessamos por ele), mas pela maneira como os historiadores lhe dão um sentido atual, e dos historiadores não apenas pela estranheza cultural (coi- sa que Heródoto já exibia), mas também pelas maneiras como os antropólogos a trazem para perto de nós, não é um simples modismo; sobreviverá ao entusiasmo que gera, aos medos que desperta e às confusões que cria. Bem me- nos claro é a que levará essa onda, ao sobreviver. Geertz destaca em seu texto que nem sempre essa re- lação é dada como tranquila. Contudo, trata-se de algo 48 Teoria da História I inevitável, não apenas em relação às trocas feitas entre a história e a antropologia, mas dessas e das demais ciências umas com as outras, uma vez que tomamos consciência de que os fenômenos, sejam eles do passado ou do presente, necessitam de diferentes formas de apreensão para que se- jam melhor compreendidos. Há muito tempo os historiadores têm se proposto a fazer incursões noutras disciplinas quando pretendem realizar seus trabalhos de pesquisa. Assim foi, por exemplo, os casos dos historiadores franceses Lucien Febvre e Marc Bloch, que já no início do século XX estabeleceram fortuitos diálogos e trocas com a geografia, a psicologia, a sociologia e a antropologia. Conforme relata Burke (1991), o encontro dos dois histo- riadores na Universidade de Estrasburgo e o trabalho realizado por ambos entre os anos de 1920 e 1933, valeu-se muito do ambiente interdisciplinar em que atuavam, sendo esse propício às trocas com especialistas das mais diversas áreas do conhe- cimento. Nesse sentido, salienta que (p. 27 – 28): Quando Febvre e Bloch se encontraram em 1920, logo após as suas nomeações como professor e maître de con- férences respectivamente, rapidamente tornaram-se ami- gos. Suas salas de trabalho eram contíguas, e as portas permaneciam abertas. Em suas infindáveis discussões parti- cipavam colegas como o psicólogo social Charles Blondel, cujas ideias eram importantes para Febvre, e o sociólogo Maurice Halbwachs, cujo estudo sobre a estrutura social da memória, publicado em 1925, causou profunda impressão em Bloch. Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 49 Mais recentemente, historiadores de diferentes matizes têm utilizado em seus trabalhos referências oriundas de especia- listas das mais diversas áreas. Carlo Ginzburg (1987), por exemplo, buscou nos trabalhos de Mikhail Bakhtin, um filó- sofo russo, teórico da cultura e da linguagem, os elementos necessários para o entendimento do ambiente cultural em que viveu Menóquio, o protagonista do livro O queijo e os vermes. Conforme esse autor, o que existe é uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura das classes dominantes e não a mera sobreposição de uma sobre a outra. Em seu livro Os excluídos da história, Michelle Perrot (1988) baseia sua interpretação a respeito da imposição de uma ordem disciplinar na indústria francesa do século XIX nos trabalhos do filósofo francês Michael Foucault. Conforme a autora (1988, p. 53), a disciplina industrial é uma entre outras, podendo ser observada também na escola, no exército, na pri- são etc., sendo a obra de Foucault, “[...] um convite à história detalhada dessas redes de malhas cada vez mais densas [...]”. (PERROT, 1988, p. 53) Já Jean-Pierre Vernant, no livro Trabalho e escravidão na Grécia antiga (1989), utiliza-se dos escritos do filólogo fran- cês Georges Dumézil, a respeito dos temas lendários relativos aos trabalhos técnicos para explicar as representações feitas a respeito desses trabalhadores. O medievalista Jacques Le Goff (1989), no livro O homem medieval, cita o sociólogo alemão Norbert Elias como uma de suas referências para a compreensão do processo de constituição e institucionalização 50 Teoria da História I da cultura cavalheiresca na Europa feudal. Conforme o autor (p. 16), as instituições e a cultura cavalheiresca, com seu ima- ginário de caráter “mítico-folclórico”, foram um dos principais motores do “processo de civilização” descrito por Elias. Historia e memória Segundo o historiador Peter Burke (1992), foi o sociólogo fran- cês Maurice Halbwachs que primeiro abordou de uma forma mais consistente o conceito de memória, propondo em seus estudos o uso do termo “quadro social da memória” para de- signar o caráter social a ela atribuído. Opondo-se às noções mais superficiais a respeito da rela- ção entre história e memória, os historiadores contemporâne- os passam a problematizar com maior ênfase tais conceitos. Para Burke (1992, p. 236): Lembrar o passado e escrever sobre ele já não parecem poder ser consideradas atividades inocentes. Nem as re- cordações nem as histórias nos parecem objetivas. Em am- bos os casos estamos a aprender a estar atentos a seleção consciente ou inconsciente à interpretação e à distorção. Nos dois casos esta seleção, interpretação e distorção são fenômenos socialmente condicionados. Não se trata do tra- balho de indivíduos isolados. Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 51 Isso posto, temos que não apenas os indivíduos recor- dam, mas que os grupos sociais determinam aquilo que é digno de memória bem como a forma como irão proceder a respeito desta. Conforme Le Goff (1982), o estudo da memória social é um dos modos fundamentais de enfrentar os problemas do tempo e da história. Nesse sentido, recordar ou esquecer diz respeito a manipulações conscientes ou inconscientes exerci- das sobre a memória individual, ao passo que, de modo aná- logo, a memória coletiva é postaem jogo nas lutas pelo poder que são conduzidas por diferentes forças sociais. Apoderar-se da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupa- ções das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas, logo, os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1982, p. 12) Povos sem escrita acumularam na memória elementos sig- nificativos dos modos de fazer e proceder de suas sociedades, normalmente cabendo às etnias ou famílias a manutenção dos mitos, das técnicas e das tradições estabelecidas. Le Goff (1982, p. 14) destaca ainda que: Nestas sociedades sem escrita há especialistas da memó- ria, homens-memória: “genealogistas”, guardiões dos có- digos reais, historiadores da corte, “tradicionalistas”, dos quais Balandier diz que são “a memória da sociedade” e que são simultaneamente os depositários da história “obje- tiva” e da história “ideológica”. [...] Mas também “chefes de família idosos, trovadores, sacerdotes”, segundo a lista 52 Teoria da História I de Leroi-Gourhan, que reconhece a esses personagens “na humanidade tradicional, o importantíssimo papel de manter a coesão do grupo”. Temos, portanto, que nessas sociedades a oralidade exerce um papel fundamental na transmissão dos saberes técnicos, como também na construção de uma identidade coletiva do grupo e na manutenção do prestígio de certas famílias. Com o aparecimento da escrita, novas formas de memória serão desenvolvidas. Ela passa a estar ligada aos monumentos cele- brativos e aos documentos, que tem por finalidade armazenar informações diversas, assegurando que as mesmas estejam resguardadas para o conhecimento presente e futuro. Le Goff irá referenciar o historiador francês Pierre Nora quando este diz que a história é feita a partir do estudo dos “lugares” da memória coletiva. Temos, então, os “lugares to- pográficos”, como os arquivos, bibliotecas e museus, os “lu- gares monumentais”, como os cemitérios e as obras arquite- tônicas, os “lugares simbólicos”, expressos, por exemplo, por meio das festas, aniversários e peregrinações, e os “lugares funcionais”, representados por meio dos manuais, das biogra- fias e das associações. Soma-se a isso, o que o autor chama dos “lugares da his- tória”, no sentido de conseguirmos identificar de onde vem a elaboração dos diferentes tipos de memória coletiva, seus cria- dores e dominadores. Estados, meios sociais e políticos, comu- nidades de experiência histórica ou de divulgação dispostos a Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 53 construir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória (p. 55). A memória coletiva é, sem dúvida, um dos elementos mais importantes das sociedades. Le Goff (1982, p. 54-55) volta a Nora e, a esse respeito, destacando que: Pierre Nora nota que a memória coletiva – definida como “o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que estes grupos fazem do passado” – pode, à primeira vista, opor- -se quase palavra a palavra, à memória histórica, tal como antes se opunha a memória afetiva à memória intelectual. Até aos nossos dias “história e memória” confundiram-se praticamente e a história parece ter-se desenvolvido “sobre o modelo de rememorização, da anamnese e da memoriza- ção”. Os historiadores davam a formula das “grandes mito- logias coletivas”, ia-se da história à memória coletiva. Mas toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata em grande parte fabricada ao acaso pelos meios de comunicação de massa, caminha para a fabricação de um número cada vez maior de memórias co- letivas e a história escreve-se, muito mais do que antes, sob a pressão destas memórias coletivas. A história dita “nova”, que se esforça por criar uma história científica a partir da memória coletiva, pode ser interpretada como “uma revo- lução da memória” que leva esta a efetuar uma “rotação” em torno de alguns eixos fundamentais: uma problemática abertamente contemporânea... e um procedimento decidi- damente retrospectivo”, “a renúncia a uma temporalidade linear” em proveito dos múltiplos tempos vividos “nos níveis 54 Teoria da História I em que o individual se enraíza no social e no coletivo” (lin- guística, demografia, economia, biologia, cultura). Poderíamos, nesse ponto, começar a falar não em “memó- ria”, mas em “memórias”, no sentido de que diferentes tipos de manutenção e organização da memória coletiva serão de- senvolvidos pelos diversos grupos que tomam parte de uma sociedade. Cada qual elege seus interesses e necessidades a respeito do que deve ser preservado, rememorado, ou es- quecido. Tratam-se dos momentos considerados significativos para a coesão e a manutenção de uma identidade comum aos seus membros. A memória está ligada, portanto, a construção da própria realidade de uma dada sociedade ou de um grupo. Tem uma relação direta com o conjunto dos seus valores, suas regras e padrões de expressão e convívio, servindo como elemento aglutinador e definidor das identidades. Memória e esquecimento andam juntas nesse processo. Noutras palavras, podemos dizer que a organização da me- mória estipula certos princípios, modelos, “tradições”, que devem ser perseguidas, mantidas e preservadas, ao mesmo tempo em que seleciona outras tantas a serem esquecidas. Importante seria, então, que nos perguntássemos o que está sendo lembrado, por que está sendo lembrado, quem propõe tais lembranças, a que e a quem servem essas lembranças e o que “não lembramos” quando nos lembramos de algo. Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 55 Lembranças oficiais, por exemplo, podem servir aos interes- ses dos Estados que, por mais legítimos que possam parecer, também podem servir como instrumento de manipulação das massas para os mais diversos fins. No prelúdio das guerras, por exemplo, foi e ainda é muito comum que se insuflem os ânimos evocando a memória da nação, do povo, as institui- ções sociais, e a lembrança de tudo que está em jogo naquele momento tão delicado. Animosidades entre grupos dentro de uma mesma socie- dade podem vir à tona pelo uso ideológico da memória. Não são poucos os exemplos do passado que nos mostram como pessoas e grupos que viviam dentro de certo limite de respeito e convívio social, estabeleceram verdadeiras cruzadas contra aquilo que passou a ser identificado como um perigo para os que detinham o poder de manipular a memória. Lembramos e associamos tal afirmação, trazendo como um exemplo quase que imediato, o advento da Alemanha nazista e tudo o que ela causou aos grupos considerados inaptos, incapazes, inumanos e inconcebíveis de serem mantidos no convívio social. Mas também não seria difícil pensarmos como hoje em dia a memória é, em certos momentos, manipulada para justificar atitudes coercitivas apesentadas não raras vezes como tradições, e que, na maioria das vezes, não passam de construções muito recentes e que servem a determinados fins ou interesses de pessoas ou grupos muito precisos. 56 Teoria da História I Referências BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991. ______. O mundo como teatro: estudos de antropologia histórica. Lisboa: DIFEL, 1992. ______. História e teoria social. São Paulo: Editora UNESP, 2002. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. GLÉNISSON, Jean. Ini- ciação aos estudos históricos. 2. ed. Rio de Janeiro-São Paulo: DIFEL, 1977. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Com- panhia das Letras, 1987. JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e Patologia do sa- ber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. LE GOFF, Jacques.História e memória. Lisboa: Edições 70, 1982. V.2. ______. O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. MORADIELLOS, Henrique. El oficio de historiador. 3. ed. Madrid: Siglo Veintiuno de Espanha Editores, 1999. PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mu- lheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 57 VERNANT, Jean-Pierre. Trabalho e escravidão na Grécia antiga. Campinas: Papirus, 1989. Atividades 1. Marque Verdadeiro (V) ou Falso (F) nas considerações abaixo a respeito do tempo e as durações na pesquisa histórica: ( ) Ao analisarmos uma obra de história, podemos partir de diferentes possibilidades que levem em consideração as questões espaço temporais. ( ) Em uma abordagem histórica, o tempo pode ser traba- lhado em diferentes tipos de duração. ( ) Distinguir diferentes tipos de duração foi e continua sendo algo comum no trabalho dos historiadores. 2. Sobre a disciplina de História e a interdisciplinaridade, é correto afirmar que: a) A disciplina de História conquistou uma supremacia so- bre as demais disciplinas. b) Os historiadores não se propõem a fazer incursões nou- tras disciplinas quando pretendem realizar seus trabalhos de pesquisa. c) Há uma infinidade de combinações possíveis de en- trecruzamentos onde a história irá dialogar de igual para igual com as demais áreas do conhecimento. 58 Teoria da História I d) Há uma infinidade de combinações possíveis de entre- cruzamentos para a História dialogar com as demais áreas do conhecimento, mas nunca será de igual para igual. e) Não há como a História dialogar com as demais áreas do conhecimento. 3. Quais alternativas trazem informações corretas a respeito de História e memória? I – Os grupos sociais determinam aquilo que é digno de me- mória, mas não a forma como irão proceder a respeito desta. II – O estudo da memória social é irrelevante para se en- frentar os problemas do tempo e da história. III – Apoderar-se da memória e do esquecimento nunca foi uma das grandes preocupações das classes, dos gru- pos, dos indivíduos que dominaram e dominam as socie- dades históricas. IV – Os esquecimentos e os silêncios da história nada revelam sobre os mecanismos de manipulação da memória coletiva. a) Apenas as alternativas I, II e III. b) Apenas as alternativas II, III e IV. c) Apenas as alternativas II e IV. d) Todas as alternativas estão corretas. e) Todas as alternativas estão erradas. Capítulo 3 Ainda situando o trabalho 59 4. Marque a alternativa que não traz uma afirmação verdadei- ra sobre a memória: a) A memória não apresenta nenhuma ligação com a cons- trução da própria realidade de uma dada sociedade ou de um grupo. b) Poderíamos falar não em “memória”, mas em “memó- rias”, no sentido de que diferentes tipos de manutenção e organização da memória coletiva serão desenvolvidos por diferentes grupos que tomam parte de uma sociedade. c) A organização da memória estipula certos princípios, modelos, “tradições”, que devem ser perseguidas, man- tidas e preservadas, ao mesmo tempo em que seleciona outras tantas a serem esquecidas. d) A memória coletiva é, sem dúvida, um dos elementos mais importantes das sociedades. e) A história é feita a partir do estudo dos “lugares” da memória coletiva. 5. Assinale a alternativa que melhor expõe um dos usos da memória: a) A memória sempre é manipulada para justificar atitudes coercitivas apesentadas não raras vezes como tradições, e que, na maioria das vezes, não passam de construções muito recentes e que servem a determinados fins ou interes- ses de pessoas ou grupos muito precisos. b) A memória nunca é manipulada para justificar atitudes coercitivas apesentadas não raras vezes como tradições, 60 Teoria da História I e que, na maioria das vezes, não passam de construções muito recentes e que servem a determinados fins ou interes- ses de pessoas ou grupos muito precisos. c) A memória é, em certos momentos, manipulada para justificar atitudes coercitivas apesentadas não raras vezes como tradições, e que, na maioria das vezes, não passam de construções muito recentes e que servem a determina- dos fins ou interesses de pessoas ou grupos muito precisos comprometidos com a veracidade dos fatos. d) A memória é em certos momentos manipulada para ne- gar atitudes coercitivas apesentadas não raras vezes como tradições, e que, na maioria das vezes, não passam de construções muito recentes e que servem a determinados fins ou interesses de pessoas ou grupos muito precisos. e) A memória é, em certos momentos, manipulada para justificar atitudes coercitivas apesentadas não raras vezes como tradições, e que, na maioria das vezes, não passam de construções muito recentes e que servem a determina- dos fins ou interesses de pessoas ou grupos muito precisos. Gabarito: 1.V – V – V; 2. c; 3. e; 4. a; 5. e. História: campo epistemológico e conceitual Rodrigo Lemos Simões Capítulo 4 62 Teoria da História I História e ciência A melhor prova de que a história é e deve ser uma ciência é construída pelo fato de que necessita de técnicas, de métodos, e que é ensinada, disse Le Goff (1982 a, p. 100) ao tratar da velha e já desgastada questão a respeito de que se pode ou não considerar a história uma ciência. Quando falamos em ciência, logo nos vem à mente uma série de referências culturalmente construídas sobre tudo o quanto podemos considerar como tal. Em primeiro lugar, po- demos dizer que a ciência – ou as ciências –, ao contrário da arte ou da literatura, tem o compromisso com a verdade, ao passo que as demais estão livres para criar obras ficcionais a respeito de um tema qualquer. Ao contrário das crenças, dos dogmas ou opiniões, as ciências buscam verdades objetivas, passíveis de verificação, reprodução e generalização. Mas como isso seria possível em uma disciplina como a história, considerada por Jenkins (2001), de frágil base episte- mológica, inevitavelmente interpretativa, relativa conforme os diferentes ângulos por que está sendo analisada e inacessível ao historiador em termos de observação direta? Vejamos o que diz sobre essa questão o filósofo e historia- dor Henri Berr (apud GLÉNISON, 1977, p. 190): A questão durante tanto tempo debatida: se a história é uma arte ou uma ciência, está definitivamente resolvida. A história é uma das formas de pesquisa da verdade: ela não é um gênero literário. À semelhança de um tratado de bio- logia ou de psicologia, uma obra de história não comporta Capítulo 4 História: campo epistemológico e conceitual 63 preocupações estéticas. Se acontece de ser belo um livro que contribui para o estabelecimento da verdade, temos aí um feliz acaso, e também uma espécie de luxo. Berr esforça-se em distinguir o tipo de conhecimento pro- duzido pela história de outros como, no caso citado, o da li- teratura. Para ele, questões relacionadas à estética, por exem- plo, não interessam ao trabalho do historiador, que deve estar focado no estabelecimento da verdade. Bloch (2001) lembra que a história não apenas é uma ci- ência, mas uma ciência em marcha, no sentido de que na primeira metade do século XX seus métodos e enfoques ainda estavam – e porque não dizer, ainda estão – em constante pro- cesso de mudanças, acréscimos e reorganizações. A “história ciência do passado”, um equívoco, dizia (p. 52). Como se des- se passado, por si só pudéssemos tornar matéria de conheci- mento racional. Será possível imaginar, em contrapartida, uma ciência total do Universo, em seu estado presente? Não, diria Febvre (1989, p. 30). A história, não como ciên- cia – soma de resultados –, mas como “estudo cientificamente conduzido”, social por definição. História das diversas
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