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ENSINO, PESQUISA E REALIDADE HISTÓRICA UNIASSELVI-PÓS Autoria: Melissa Probst Indaial - 2020 2ª Edição CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Carlos Fabiano Fistarol Ilana Gunilda Gerber Cavichioli Jóice Gadotti Consatti Norberto Siegel Julia dos Santos Ariana Monique Dalri Marcelo Bucci Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2020 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. P962e Probst, Melissa Ensino, pesquisa e realidade histórica. / Melissa Probst. – In- daial: UNIASSELVI, 2020. 133 p.; il. ISBN 978-65-5646-025-3 ISBN Digital 978-65-5646-026-0 1. Historiografia. - Brasil. 2. Pesquisa. – Brasil. 3. Ensino de história. – Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 370 Impresso por: Sumário APRESENTAÇÃO .......................................................................... 07 CAPÍTULO 1 Das Possibilidades de Pesquisa em História: Objeto, Métodos e Fontes ........................................................... 7 CAPÍTULO 2 A Pesquisa e a Produção de Conhecimento em Sala de Aula ............................................................................ 49 CAPÍTULO 3 História e Ensino de História..................................................... 89 APRESENTAÇÃO Ensino, Pesquisa e Realidade Histórica é a publicação que lhe apresentamos, desejando que você aceite nosso convite para leitura das páginas que seguem. Partimos do pressuposto de que as inter-relações entre a história, a sociedade e a educação são muitas, e que a formação dos estudantes e docentes em História inclui em “sem fim” de conceitos e abordagens, visando sempre suscitar um olhar crítico sobre o que se faz quando se pretende fazer história. Se a História é um olhar para e sobre o passado, é certo que esse olhar está sempre influenciado pelo presente, se manifesta na e pela memória, retrata o tempo em movimento, se transforma no questionar e na interpretação das fontes e se materializa nas narrativas. Além disso, narrativas são discursos, e discursos são sempre implicados pelas relações de poder que se estabelecem na sociedade, sob efeitos da cultura, economia, política. E é assim que a História se torna historiografia, se torna história escrita, numa abordagem que assumiu o status de Ciência no decorrer do século XIX. E, como Ciência, foi sendo discutida e modificada, teve seus métodos e objetos questionados e foi sendo ampliada no que fiz respeito aos saberes e fazeres do Historiador. A partir da ideia do “fazer história”, no presente livro buscamos abordar questões relacionadas ao objeto de estudo e sua importância na pesquisa histórica, à importância do exercício da pesquisa histórica na formação dos estudantes da educação básica, bem como do ensino de história e dos projetos de pesquisa. De certo modo, objetivamos, ao longo deste livro, promover um diálogo produtivo entre discussões da historiografia, da pesquisa e do ensino de história, e essa proposta se reflete na divisão, em partes do presente livro. Nosso texto, portanto, está dividido em três capítulos. O primeiro, intitulado “Das possibilidades de pesquisa em história: objeto, métodos e fontes”, dividido em três seções, traz para a discussão conceitos como história e historiografia, tempo, memória, narrativas e, por fim, objeto e fontes históricas. No segundo capítulo, que tem como título “A pesquisa e a produção de conhecimento em sala de aula”, iniciamos nossa abordagem a partida da problemática do Porquê e para quem ensinar história. Nas seções que seguem discutimos sobre as pistas e conexões, ou seja, sobre métodos e técnicas de pesquisa em História, bem como sobre possibilidades para o ensino de História a partir da metodologia de pesquisa. Finalizamos com o capítulo tratando da pesquisa como exercício de ensino e aprendizagem. No último capítulo, “História e ensino de história”, buscamos apresentar possibilidades de encaminhamento metodológico para abordagem e utilização de documentos e das diferentes linguagens em sala de aula. Para tanto, dividimos o capítulo em três seções: diferentes fontes e linguagens no processo de ensino e aprendizagem, procedimentos metodológicos e práticas interdisciplinares, e fontes não escritas: propostas para o ensino de história. Assim, desejamos que o livro propicie momentos de reflexão, e sobretudo, que, desperte a curiosidade e o entusiasmo para seguir adiante, buscando sempre novos conhecimentos a fim de transformar de nossas práticas, no âmbito acadêmico e escolar. “Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade. Mas é por isso que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido” (BENJAMIN, 1994, p. 104-105). Professora Dra. Melissa Probst CAPÍTULO 1 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES A partir da perspectiva do saber-fazer, são apresentados os seguintes objetivos de aprendizagem: Compreender o que é a História como campo de produção de saberes. Articular os conceitos de História, tempo e objeto de pesquisa à possibilidade de atuação na pesquisa histórica. 8 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica 9 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Não raro, ainda na atualidade, somos muitas vezes levados a pensar a que função do historiador seja a de narrar os fatos, tal qual eles ocorreram. Toda vez que somos confrontados com tal pensamento, sentimos certo desconforto, que nos leva a questionar se essa seria uma tarefa verdadeiramente possível. E, motivada pelo nosso próprio desconforto, iniciamos a apresentação desse primeiro capítulo com uma série de questões/perguntas... E sim, o fazemos de modo intencional, buscando incentivar algumas refl exões sobre questões que são aparentemente simples, mas que dizem respeito ao que somos, enquanto profi ssionais e/ou estudantes, enquanto sujeitos que somos, lembrando que somos historicamente constituídos. Assim, nos perguntamos se existem possibilidades metodológicas em que o historiador possa apenas narrar os fatos sem interpretá-los? E, se houver interpretação desses fatos, então haverá também um posicionamento pessoal desse historiador, ao descrever os fatos? Se o historiador se posicionar diante dos fatos, então sua descrição não apresentará mais “verdade”, sobre os fatos, mas sim, uma interpretação deles? Não estaria a História, então, ancorada no senso comum, ao invés de poder ser considerada uma “ciência”? Aliás, a História pode mesmo ser considerada uma Ciência? E sempre foi assim, ou esse status foi conquistado em algum momento da própria história? Então, depois de todos esses pontos de interrogação, lançamos a última pergunta do parágrafo, não menos importante que as demais: O que é, afi nal, a História? A resposta a essa última pergunta pode parecer simples, entretanto, é, ao mesmo tempo, complexa e enigmática. Não é propósito, aqui, estabelecer uma resposta defi nitiva para tal questão, pois é bem provável que cada historiador tenha a sua própria concepção do que seja a História. Entretanto, ao longo do capítulo por diversas vezes abordaremos os signifi cados da história, buscando respeitar as diferentes maneiras/perspectivas pelos quais os estudos históricos são realizados na atualidade. Para tanto, iniciaremos pela apresentação dosmodos como o próprio conceito de História foi sendo forjado e os entendimentos, ou seja, os pressupostos de verdade que as diferentes perspectivas teóricas nos permitem ter sobre a história, ao longo do tempo, passando pelos conceitos e debates acerca da história e da historiografi a, tempo, memória e narrativas, bem como os objetos e fontes. 10 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica 2 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA O que é “História”? Quantas vezes você já parou para pensar sobre isso? Ao nos depararmos com essa pergunta podemos perceber que existem muitos conceitos, com os quais convivemos cotidianamente, para os quais as defi nições parecem ser desnecessárias. A palavra em questão, história, é uma dessas, pois, desde a nossa infância, a ouvimos. As mães e avós contam histórias para as crianças, desde a mais tenra idade. Depois, as histórias passam a fazer parte das nossas vidas no contexto da educação infantil, no ensino fundamental e médio, e nos acompanham ao longo da graduação, pós-graduação e nos mais variados espaços para além do contexto escolar. É esse convívio tão direto com a palavra história que nos faz criar certa intimidade com ela, a ponto de parecer que ela não precisa de defi nição. No entanto, o que é, afi nal, História? Corroborando com Borges (1983), podemos dizer que ao tentar elaborar uma resposta, provavelmente nenhum de nós te ria uma defi nição muito precisa para apresentar, porém, estabeleceremos a relação entre História e Passado, o que remete também ao conceito de Memória e Historiografi a. Além dessa intimidade cotidiana com a palavra história, que parece dispensar a necessidade de conceituá-la, podemos associar o fato de que a própria História está sempre se refazendo e, como campo do conhecimento, o que é produzido sobre ela nunca está pronto ou acabado. Nem mesmo as formas de compreender ou registrar a história estão defi nitivamente delimitadas/demarcadas, tendo passado por transformações desde os seus primórdios até os dias atuais. Borges (1983, p. 9) que afi rma que, para “compreender satisfatoriamente a história como hoje ela se confi gura, é preciso recapitular sua origem e sua evolução”. Como nos lembra Bloch (2001), a palavra “história” é muito antiga, sua origem remonta à milênios e, nos lábios dos homens que a pronunciaram, já trocou de sentido e signifi cado inúmeras vezes. Desse modo, não pretendemos aqui tratar dos diversos modos de denominá-la, porém, ainda assim, gostaríamos de, por vezes, “voltar no tempo” , para recapitular alguns dos aspectos históricos da História, como campo de produção de saberes. E nessa primeira digressão, gostaríamos de lhe perguntar se você já ouviu falar em Clio? Você sabia que Clio é considerada, desde a antiguidade clássica (mitologia grega), a “Musa da História”? 11 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 Quanto à origem das Musas (mitologia), não há um consenso. Alguns consideram que sejam fi lhas Urano (Céu) e Gaia (Terra), outros ainda lhes atribuem a fi liação a Píero e Antíopa. Entretanto, a versão mais aceita, entre os estudiosos sobre o tema, é a versão que passou a ser veiculada por Hesíodo, no século VIII a.C, que atribui a concepção de nove musas, à Mnemosine (deusa da Memória) e a Zeus (deus dos deuses). Entre as musas, fi lhas de Mnemosine e Zeus, está Clio, a Musa da história. Acreditava-se que as Musas inspiravam a verdade; os poetas baseavam-se em suas palavras para não correrem o risco de contar coisas falsas aos homens [...] Homero considera as Musas unicamente como inspiradoras da arte, sobretudo da música e da poesia. Hesíodo estende o poder essas divindades também aos reis, que, protegidos por elas, tornavam-se soberanos justos, capazes de discernir entre o bem e o mal. Outros poetas, ao longo dos séculos, acabaram atribuindo às musas a capacidade de suscitar aos cientistas, legisladores e navegantes a realização de grandes trabalhos (CASTRO, 1976, p. 370-371). Clio era, entre as Musas, a fi lha preferida, compartilhando com Mnemosine, sua mãe, o passado e a tarefa de fazer lembrar. Nesse contexto, ou seja, na mitologia, a história (Clio) é fi lha da memória (Mnemosine). E, conforme menciona Pesavento (2014, p. 07), “no tempo dos homens, e não mais dos deuses, Clio foi eleita a rainha das ciências, confi rmando seus atributos de registrar o passado e deter a autoridade da fala sobre fatos, homens e datas de um outro tempo, assinalando o que deve ser lembrado e celebrado”. Nesse momento, podemos nos perguntar qual é a razão de estarmos falando de deuses e musas, se o objeto de nosso estudo é a História, e não a mitologia. Essa foi uma escolha intencional, visto que os mitos são sempre “histórias”, ou seja, narrativas sobre fatos e acontecimentos. Nos mitos, entretanto, não existe preocupação com a verdade, sendo essas histórias permeadas por elementos sobrenaturais, fantasiosos, porém, que procuram responder aos problemas e angústias da sociedade, em um determinado tempo e contexto. Os mitos tiveram grande importância para o pensamento humano, tanto é que todas as sociedades, desde as mais antigas até as atuais, elaboram mitos. Aliás, “o grande fascínio que a mitologia exerce sobre nossas mentes talvez seja uma prova de que a humanidade realmente precise deles” (SILVA; SILVA, 2010, p. 296). 12 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica Desde a Antiguidade Clássica, portanto, temos menção à História, materializada na fi gura de Clio, então, como você mesmo pode perceber, a pergunta “O que é História” não é, de forma alguma, uma pergunta nova. E, por isso, não há uma só resposta para ela. Aliás, cada corrente de pensamento procura dar a essa pergunta a sua própria resposta, o que nos leva a refl etir sobre a complexidade que há em torno dessa questão. Aliás, é justamente sobre as correntes histográfi cas que vamos tratar daqui por diante. 2.1 LINHAS GERAIS DO DEBATE Ao falarmos sobre as correntes historiográfi cas, nos cabe lembrar que o termo historiografi a se refere à escrita da História. Desse modo, embora haja uma relação direta da História, Teoria Da História e a historiografi a, é importante destacar que nas diferentes correntes historiográfi cas há diferentes compreensões do que seja a teoria e própria História. Isso impacta diretamente no trabalho do historiador e, porque não, do professor de História, na medida em que essas diferenças também perpassam pelos métodos, técnicas e fontes de estudo e trabalho. Quando nos referimos a métodos, técnicas e fontes, fazemos alusão a um tipo de conhecimento que é sistematizado, organizado e, por isso, revestido de caráter acadêmico e científi co. Então, para os estudos que aqui propomos, defi nimos a história como o estudo/pesquisa dos/sobre indivíduos, grupos humanos e instituições criadas ao longo do tempo, com base em métodos específi cos, fundamentada numa determinada concepção/tradição epistemológica. Destacamos, sobre isso, que com relação à história, não nos é possível ter acesso direto aos fatos do passado, já que não há máquina do tempo que nos permita reviver tais acontecimentos. Mas podemos ter acesso aos vestígios desse passo, por intermédio das fontes (das quais falaremos mais adiante) e de métodos de pesquisa ancorados em diferentes epistemologias, que nos permitem interpretar tais vestígios. A história nos permite conhecer a nós mesmos e aos outros, esclarecer eventos importantes do presente e, inclusive, concluir que nossa própria realidade é o resultado de mudanças que não são aleatórias. O nosso presente está repleto de nosso passado: ou seja, somos o resultado de processos, de conjuntos de transformações, de determinada construção. Processos, transformações e construções que infl uenciam e foram infl uenciados por objetos de poder, formas 13 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1de conceber o mundo e visões sobre o futuro, concepções culturais, objetivos econômicos, ou religiosos, ou nacionalistas, ou outros tantos diferentes. Atentarmos para nossa realidade histórica é uma das melhores maneiras que temos de raciocinar sobre o mundo e de nos instrumentalizar para que [...] possamos agir menos ingenuamente (FONTOURA, 2016, p. 27). Os modos de compreender o passado histórico, bem como as fontes e métodos utilizados para essa compreensão, entretanto, não são iguais e não o foram no decorrer do tempo. Diferentes correntes teóricas e historiográfi cas buscaram explicar a história e responder os diferentes problemas a partir de perspectivas diversas. Sobre essas diferentes perspectivas, você já deve ter se deparado com algumas dessas palavras: tradicional, positivismo, Annales, materialismo, história cultural, entre outras. Dessa forma, é correto afi rmar que todas essas palavras se referem a correntes historiográfi cas? E em que contexto tais correntes foram elaboradas? Qual o entendimento de história e de verdade dessas perspectivas? Essas são algumas das questões que guiarão nossos estudos daqui por diante. Desde a Antiguidade as pessoas desenvolveram diferentes formas de registrar e transmitir sua história, os eventos que consideravam importantes para seu grupo, no seu contexto. Os mecanismos escolhidos para tanto também foram diversos, desde antes da invenção da escrita. Temos como exemplos a transmissão oral, de geração para geração, a arte rupestre (realizadas em paredes, tetos e outras superfícies rochosas), entre outros, em um tempo em que a constituição e transmissão das memórias, conhecimentos e tradições foram marcadas majoritariamente pela narrativa oral dos fatos. Os modos como os antigos registravam e transmitiam a sua história eram muito distintos do que hoje compreendemos como História, afi nal, como destaca Reis (2012) a “memória” não era capaz de registrar eventos ou personagens particulares, utilizando-se, portanto, de categorias e arquétipos, assimilado ao modelo “mítico” de seu tempo. Não há dúvidas de que essa era uma “representação de mundo”, entretanto, a partir de uma base mitológica, comum à sua cultura e aos modos como experienciavam a sua existência. Assim, aqueles que foram considerados os primeiros “historiadores” dos quais temos notícias, viviam ainda na antiguidade greco-romana. Por certo, o trabalho por eles desenvolvido não tinha as mesmas características das perspectivas atuais em relação à História. Entretanto, é em Tucídides e em Políbio, por exemplo, que podemos encontrar os primeiros esforços para obtenção de um rigor metodológico. 14 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica O mesmo esforço se aplicaria, conforme afi rma Cardoso (1992), a IbnKhaldun, na Idade Média. Ainda conforme Cardoso (1992), foi somente entre 1475 e 1575, em consequência de movimentos como a Reforma e a Contrarreforma, bem como em função do humanismo que começaram a surgir novas exigências, mais científi cas, quanto à defi nição e à prática da História. Entre estas exigências, podemos citar a preocupação em aceitar como autênticos os fatos ou textos, somente após minuciosa verifi cação. Se nos séculos anteriores o progresso caracterizou sobretudo as técnicas de erudição crítica, o século XVIII foi particularmente brilhante no campo da teoria e das concepções da História, mesmo se os meios metodológicos ainda insufi cientes então à disposição dos historiadores para seu trabalho tornavam prematuras, de fato, algumas das exigências feitas na época à disciplina histórica. No plano teórico, Gianbattista Vico defendeu o caráter “cíclico” do desenvolvimento das sociedades humanas. Voltaire […] já mostrava a insufi ciência fl agrante de uma História exclusivamente voltada para o relato dos acontecimentos (em especial batalhas e tratados) e de intrigas da corte e a necessidade de uma História que, mudada em sua matéria e em sua problemática, se tornasse explicativa […] (CARDOSO, 1992, p. 29). É no século XIX, entretanto, que a História, como constituição de um campo de conhecimento com um estatuto que lhe seja próprio, consolida-se, a partir do surgimento das grandes correntes históricas, na Europa, sobre as quais convido você para conversar sobre. 2.2 HISTORIOGRAFIA DA ABORDAGEM TRADICIONAL ÀS PERPECTIVAS PÓS-MODERNAS Para iniciar essa discussão, é preciso ter em mente que toda história é escrita por alguém e para alguém. Isso signifi ca que a historiografi a, ou seja, o conjunto de concepções, ideias e produções, que dão forma ao discurso histórico, materializa-se a partir da "ação" e da "interpretação" do historiador sobre os vestígios do passado. 15 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 A historiografi a é um campo de estudo ao qual nenhum historiador pode se furtar. E a refl exão sobre a produção e a escrita da História. Para Guy Bourde e Herve Martin, é o exame dos discursos de diferentes historiadores, também de como estes pensam o método histórico. Segundo esses autores, a perspectiva historiográfi ca e uma ferramenta para o ofício do historiador, ao descrever “escolas” históricas, e como produziram conhecimento ao longo do tempo. Uma “escola” histórica, por sua vez, é uma corrente historiográfi ca que agrega diversos historiadores com perspectivas em comum. Por outro lado, a historiografi a também nos permite, por meio do estudo daqueles que escreveram a História antes de nós e do processo de como escreveram essas histórias, entender os elementos comuns aos intelectuais de um mesmo período (SILVA; SILVA, 2010 p. 189). Conforme comentado anteriormente, toda história é escrita/dita “por alguém” e no conjunto daqueles que disseram/escreveram a história, foi na modernidade, mais especifi camente no século XIX, que se estabeleceram o que chamamos de “alicerces” da história como um saber científi co. Em consonância com as ideias que circulavam na época, a História buscava se fi rmar como um campo de conhecimentos cientifi camente válidos. Afi nal, numa época em que a razão e a lógica se fortaleciam como paradigmas, “[…] assumir o selo de ciência era algo essencial para garantir a credibilidade social e acadêmica […]” (MARCZAL, 2016, p. 33). Destaca-se que, enquanto paradigma, “o cientifi cismo é uma doutrina fi losófi ca e política, nascida com a modernidade, que parte da premissa de que o mundo é inteiramente passível de conhecimento […]” (TODOROW, 2008, p. 88). Nesse contexto, no qual ocorre a gênese da História como ciência, podemos citar o historicismo alemão como expoente. E esse processo, do historicismo alemão, teve expressão com os trabalhos desenvolvidos por Humboldt, Niebuhr, Droysen, Gervinus, Ranke… Entre esses, há destaque para Leopold von Ranke que, em meio aos seus pares, foi aquele que se dedicou às questões mais analíticas, refl etindo sobre o método histórico e sobre o uso de documentos como fonte para a pesquisa. Aliás, você já havia ouvido falar sobre Ranke? Sabe quais foram as suas contribuições no sentido de tornar científi ca a História? Vamos conversar um pouco sobre ele? Leopold von Ranke (1795-1886) nasceu em Weihe, na Turíngia e, tendo vivido mais de 90 anos, teve a oportunidade de testemunhar as transformações ocorridas ao longo do século XIX na Europa e, em particular, na Prússia. Como 16 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica dizem Martins e Caldas (2013, p. 15), Ranke “[…] testemunhou as mudanças trazidas pelo ciclone napoleônico, viveu a ordem do Congresso de Viena e viu instalar-se o Império Alemão”. Com relação a sua vida pessoal, Ranke associava-se à tradição religiosa do protestantismo luterano e sua posição na sociedade pode ser classifi cada, segundo Marczal (2016), como burguesia intelectual. Destaca-se que nessa época, embora a burguesia intelectual pudesse ser compreendida também como “classe média,” no século XVIII, essa posiçãoainda não estava relacionada com a herança ou espólios de família. Nessa época, pertencer à ‘burguesia’ estava relacionado com posição alcançada pela educação e pelo trabalho. Profi ssionalmente Ranke atuou como professor, tendo iniciado a docência em um ginásio em Frankfurt. Ranke se destacou como pesquisador e historiador, fato que lhe rendeu a nomeação para professor na Universidade de Berlim, onde trabalhou entre os anos de 1825 e 1871. A atuação de Ranke foi decisiva não apenas na conformação do modelo historiográfi co da investigação metódica da História, nos termos praticados contemporaneamente, mas igualmente na institucionalização da História como uma especialidade universitária (é o criador do modelo do Seminário de História como utilizado até os dias de hoje nas universidades alemãs, e não só) e como a uma tarefa do Estado (com a criação da Comissão Histórica, em 1858, na Real Academia das Ciências da Baviera, em Munique) (MARTINS; CALDAS, 2013, p. 16). No que diz respeito aos trabalhos relacionados com a historiografi a, um dos pontos do trabalho que merece destaque é o rigor metodológico no tratamento das fontes. Esse rigor seria, na concepção de Ranke, essencial no sentido de garantir a qualidade das informações que pudessem ser extraídas dessas fontes. Assim, Ranke pretendeu desenvolver um método a partir do qual seria possível escrever a história como ela “realmente ocorreu,” numa reprodução fi el e imparcial dos acontecimentos. Outra ideia central, e indispensável nas proposições de Ranke, é a objetividade – no sentido de recusar qualquer pensamento dualista – e, por fi m e não menos importante, o terceiro parâmetro está na regularidade, ou no sentido de amplitude, articulação e complementaridade. [...] Além da análise integrada das diversas instâncias do documento – entre as quais a autenticidade, a veracidade, os modos de análise da própria informação que iriam ser sofi sticados gradualmente – a própria coleta de documentação e constituição de novos tipos de fontes (na época de Ranque, essencialmente arquivísticas e ligadas à política, à diplomacia e às instâncias institucionais) foi um elemento que trouxe efetivamente um novo tônus àquela historiografi a que agora se postulava como científi ca (BARROS, 2014, p. 71). 17 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 Muito embora esses três parâmetros do historicismo alemão (leia-se, para o historicismo rankeano) se assemelham às perspectivas do Positivismo, ambas compreendem de modo distinto o ‘saber histórico’ e o papel do historiador. Segundo Marczal (2016), a historiografi a tinha como premissa a valorização da capacidade hermenêutica do historiador no trabalho com as fontes. Isso signifi ca que, além do método utilizado para interpretar as fontes, o historiador deveria ter também habilidade argumentativa bem como capacidade para elaborar textos escritos. Apesar de valorizar a capacidade hermenêutica, é muito importante destacar que para Ranke a impessoalidade e neutralidade do historiador são essenciais. E mesmo já tendo mencionado anteriormente, reforçamos aqui a ideia da fórmula rankeana: o historiador deve apenas descrever as coisas "tais como aconteceram”, de modo estritamente imparcial. Sobre a perspectiva de compreensão da história e da ação do historiador, Bloch (2001) nos convida a refl etir sobre duas questões: a da imparcialidade e a da reprodução do fato. Sobre a imparcialidade, vejamos um pequeno trecho de Apologia de História ou o ofício do historiador, a seguir. Existem duas maneiras de ser imparcial: a do cientista e a do juiz. Elas têm uma raiz comum, que é a honesta submissão à verdade. O cientista registra, ou melhor, provoca o experimento que, talvez, inverterá suas mais caras teorias. Qualquer que seja o voto secreto de seu coração, o bom juiz interroga as testemunhas sem outra preocupação senão conhecer os fatos, tais como se deram. Trata-se, dos dois lados, de uma obrigação de consciência que não se discute. Chega um momento, porém, em que os caminhos se separam. Quando o cientista observou e explicou, sua tarefa está terminada. Ao juiz resta ainda declarar sua sentença. Calando qualquer inclinação pessoal, pronúncia essa sentença segundo a lei? Ele se achará imparcial. Sê-lo-á, com efeito, no sentido dos juízes. Não no sentido dos cientistas. Pois não se poderia condenar ou absolver sem tomar partido por uma tábua de valores, que não depende de nenhuma ciência positiva. Que um homem tenha matado um outro é um fato eminentemente suscetível de prova. Mas castigar o assassino supõe que se considere o assassino culpado: o que, feitas as contas, é apenas uma opinião sobre a qual todas as civilizações não entraram num acordo (BLOCH, 2001, p. 125-126). 18 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica Então, a partir de tais prerrogativas, seria de fato possível ao historiador ser tal qual "juiz" da História? Seria de fato possível narrar os fatos a partir de uma perspectiva de imparcialidade/neutralidade? Independente de nossa resposta a tais questões, era proposição de Ranke que os fatos históricos fossem tratados a partir de uma perspectiva de "verdade,” ou seja, de que a escrita da história fosse uma "descrição" dos fatos de modo a retratar a verdade dos acontecimentos e não suposições sobre eles. Essa não deixa de ser uma das características do positivismo que se aproxima do historicismo alemão. Outra característica que aproxima as duas perspectivas é a crença na natureza científi ca e objetiva da História, conforme menciona Cardoso (2000). Cabe destacar ainda que não se pode confundir a premissa de neutralidade rankeana com "ingenuidade". Tal interpretação seria, de acordo com Frizzo (2019), uma forma de vulgarizar o seu pensamento. Tal confusão pode ocorrer por consequência da tradução das proposições de Ranke, que originalmente seria “wie es eigentlichgewesen”, que pode ser relacionado ao conceito de “essência,” que melhor explicaria o que se pretendia dizer. “Logo, a proposta de Ranke era buscar o conhecimento do passado conforme sua essência – o que encaixa no debate fi losófi co alemão da dualidade essência-aparência” (FRIZZO, 2019, p. 135). No entanto, se na Alemanha era o historicismo rankeano que se fi rmava, nos Estados Unidos a perspectiva da história cientifi cista também tomava forma e força. Aliás, tal perspectiva é infl uenciada, nos Estados Unidos, tanto pelo historicismo alemão quanto pelo positivismo de Augusto Comte (França). Na perspectiva historiográfi ca norte-americana, cabia ao historiador, conforme destaca Marczal (2016) buscar evidências dos fatos, agrupando-os de modo que pudessem ser encontradas as generalizações capazes de revelar as "leis universais" da história. Não caberia, portanto, ao historiador, buscar suposições ou testar hipóteses, apenas encontrar os dados que revelassem as informações necessárias. Gooch (1913) diz que a historiografi a americana provavelmente surgiu com Jared Sparks (1789-1866) que desenvolveu sérios estudos sobre os escritos de Washington. Tais estudos resultaram a escrita de uma coletânea de doze volumes, publicados entre os anos de 1834 e 1838. Entretanto, pode-se arriscar dizer que antes da criação da American HistoricalAssociation (AHA), no ano de 1884, muito pouco era realizado nos Estados Unidos em relação à historiografi a. Entre as pessoas envolvidas na criação da AHA podemos mencionar John Eaton e Frank B. Sanborn que eram, respectivamente, o presidente e o secretário da Associação. Além disso, estiveram envolvidos historiadores importantes da época, tais como Charles Kendall Adams, Herbert Baxter Adams e Moses Coit Tyler. O principal objetivo da American HistoricalAssociation (AHA) era o incentivo ao trabalho dos historiadores e, como fato memorável, pode-se destacar a eleição 19 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTESCapítulo 1 de "membros honorários." Sobre esses membros honorários, você tem ideia de quem seria, na história AHA, o primeiro deles? Não sei se você chegou a cogitar tal hipóteses, mas, sim, o primeiro deles foi Leopold Von Ranke! E tal feito não foi nenhuma grande novidade entre os associados, visto que os primeiros “líderes” da historiografi a americana foram bastante infl uenciados por historiadores alemães, sendo que boa parte deles, inclusive havia estudado na Alemanha e, por isso, já havia tido, de certo modo, contato com Ranke. Sobre a AHA considera-se ainda interessante destacar que além de incentivar o trabalho dos historiadores, a associação buscava também a aproximação com o Governo americano, mais precisamente, uma possível incorporação ao Congresso, com a intenção de angariar mais recursos fi nanceiros, por intermédio de tal aproximação com os governantes. Esses recursos permitiram, por um lado, expandir o seu campo de atuação, sendo que passaram a investir em publicações, em eventos, comitês para buscar documentos que antes eram inacessíveis. Em contrapartida, o trabalho dos historiadores e, principalmente as publicações, passaram a sofrer interferência por parte dos membros do governo. Em vários momentos, inclusive, sobre a atuação da AHA, houve censura e direcionamento dos temas investigados e textos publicados, de modo que tal trabalho atendesse aos interesses de quem o estava fi nanciando. Pela proximidade com os historiadores alemães que defendiam a ideia de uma História Universal, bem como pelos interesses de governo, a tradição historiográfi ca americana esteve pautada também no cientifi cismo e na ideia de “universalidade da história”. É importante ainda lembrar que essa perspectiva fi cou conhecida como Historiografi a Moderna e, dentro dela, é como “História Tradicional,” na qual o viés político é tido como o fi o condutor da história. Assim, fi rmou-se a escrita da história das civilizações e da história mundial, que tinham como marcos as grandes rupturas e acontecimentos políticos, embasados em longas durações temporais. O Historicismo (alemão, bem como os seus desdobramentos) deve ser compreendido na sua relação com o contexto da época, século XIX, portanto. Essa corrente historiográfi ca toma forma no contexto da formação dos Estados Nacionais, a partir de perspectivas conservadoras, representado, portanto, os interesses dos estados e das burocracias estatais. O Historicismo é, conforme destaca Barros (2011, p. 109), fruto das necessidades de sua época, representadas “[…] pelo paradoxo de encaminhar uma modernização política que viabilizasse aquele desenvolvimento industrial que atenderia às exigências da burguesia […] e, ao mesmo tempo, conservar alguns privilégios sociais da nobreza.” O historicismo alemão deveria ser compreendido também pela positividade no sentido de ser aquela que, enquanto disciplina, ao longo de todo o século 20 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica XIX contou com o trabalho de historiadores que sistematizaram e organizaram a História como um campo de estudos, que até então se encontrava disforme. Outro grande "paradigma," surgido ainda no século XIX, é o Materialismo Histórico, que não poderíamos deixar de abordar aqui, uma vez que seus conceitos fazem parte do repertório utilizado por muitos historiadores, até os dias atuais. Destacamos, entretanto, que a primeira refl exão a ser feita é a distinção entre Materialismo Histórico e Marxismo, expressões que facilmente são aceitas como sinônimos, embora sejam distintas. Conforme destaca Barros (2013a, p. 16) O “marxismo-leninismo” é um programa de ação política que visa estabelecer uma sociedade comunista a partir de certas ações, que também são muito discutidas em termos de quais seriam as mais adequadas (luta armada, ditadura do proletariado, mobilização de operários ou de camponeses, aliança com a burguesia, participação na política tradicional). Em contrapartida, o Materialismo Histórico, apesar de também encontrar suas bases no trabalho desenvolvido por Marx e Engels, pode ser compreendido como uma forma de analisar e de escrever a história, sem que necessariamente tenha o socialismo/comunismo como modelo de sociedade ideal. Nesse sentido, considera-se que a História, enquanto campo de produção de conhecimento tem diversas ramifi cações e entroncamentos e a perspectiva do Materialismo Histórico é apenas um, entre os vários caminhos de investigação histórica possível. Nessa perspectiva historiográfi ca (Materialismo Histórico), os elementos estruturais, ou seja, aqueles que direcionam a investigação, são os de ordem econômica e social, se afastando, portanto, da investigação política factual e linear, proposta pela perspectiva Tradicional. E, por conta do viés econômico e social da sua abordagem investigativa, conceitos como classe, luta de classes, modos de produção, mais-valia, práxis, entre outros, acabam por se tornar categorias analíticas, e sendo incorporadas ao vocabulário de diversos historiadores. Conforme destaca Barros (2014, p. 303) “uma vez que, para o Materialismo Histórico, a história é examinada como história das litas de classe e, antes disso, como história dos modos de produção sobre os quais se desenvolve essa luta, aqui não existe propriamente uma ‘Verdade Universal’ a ser encontrada pela historiador [...]”. Cardoso (2000) destaca que os pontos de partida de Marx, no sentido de pensar a história, são dois: o primeiro deles diz respeito à dialética, que existe fora do pensamento e independente dele, como leis universais que refl etem na consciência coletiva dos seres humanos. E o segundo ponto é o fato de que os homens são seres pensantes, porém, não apenas por refl exo ou instinto, mas em conformidade com a sociedade, que é historicamente produzida; ou seja, os 21 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 homens produzem a sua própria vida material e espiritual e o fazem em contato com a natureza, transformando-a. O trabalho é, para Marx, a ação humana sobre a natureza, portanto, é uma característica essencialmente humana, logo é condição essencial para a história. Assim, no cerne do Materialismo Histórico há, pelo menos três bases: dialética, materialismo e história, conceitos esses que não são exclusivos ao pensamento de Marx. Como desdobramento da vertente marxista (Materialismo Histórico), temos o trabalho de diversos historiadores que dialogaram com essa teoria. Como um dos exemplos do diálogo dos diversos historiadores com o Materialismo Histórico podemos citar os aglutinados em torno da chamada Escola de Frankfurt. O movimento conhecido como Escola de Frankfurt não se caracteriza exatamente como uma corrente historiográfi ca, mas sim, na perspectiva das Ciências Sociais e da Filosofi a. Entretanto, no diálogo com as diferentes áreas de conhecimento, há contributos desses pensadores/pesquisadores para a compreensão e para a escrita da História. Entre as principais personalidades da primeira geração podemos citar: Friedrich Pollok, Herbert Marcuse, Max Horkheimer e Theodor Adorno. Entre os expoentes da segunda geração está Jürgen Habermas. E, da terceira geração da Escola de Frankfurt está Walter Benjamin. Embora o movimento da Escola de Frankfurt tenha sido gestado entre as décadas de 1920 e 1930, foi somente após a década de 1950 que esses trabalhos tornaram mais conhecidos. As ideias apresentadas pelos pesquisadores da Escola de Frankfurt fi caram conhecidas como “Teoria Crítica”. São três os eixos de produção acadêmica que aglutinam os seus pesquisadores: a dialética da razão iluminista e a crítica da ciência, a cultura e a indústria cultural e, por fi m, o Estado e as suas formas de legitimação – discussão essa que tem as suas bases em Marx e que é renovada pelos pesquisadores da Teoria Crítica. A título de curiosidade, você sabe a origem nome “Escola de Frankfurt”,que está relacionado aos pesquisadores da Teoria Crítica? Essa ideia, a da formação da “Escola de Frankfurt” tem sua ancoragem na semana dos estudos marxistas, que ocorreu em 1922, em Thüringen, na Alemanha. Os membros desse grupo estavam todos vinculados ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, também na Alemanha. 22 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica Os historiadores ligados ao Materialismo Histórico começaram a surgir em maior quantidade no século XX. Nesse contexto, a Escola Marxista Inglesa “[...] apresenta uma abordagem na qual a dimensão empírica adquire uma estatura particularmente importante, o que se refl ete de modelo particular na metodologia, mas também na renovação de aspectos teóricos e do vocabulário historiográfi co”, conforme afi rma Barros (2013a, p. 150). Entre os materialistas históricos ingleses de destaque podemos citar Edward P. Thompson, Raymond Williams, Stuart Hall, entre outros. Os autores comprometidos com a renovação da abordagem marxista fi caram conhecidos como ‘nova esquerda’. Marczal (2016) afi rma que o viés historiográfi co apresentado Edward P. Thompson apresentou novos horizontes às investigações de cunho marxista, porém, mais do que isso, Thompson inaugurou o que chamamos de ‘história vista de baixo’, ou seja, o historiador foi um dos responsáveis por elaborar uma história focada nas pessoas comuns e não apenas nos fatos desencadeados por uma elite. Considerando que os historiadores são ‘homens do seu tempo’, os historiadores do século XX, corroborando com as ideias e transformações da sociedade, acabaram por se tornar um grupo de "reação" aos limites impostos pela perspectiva tradicional. Para além do Materialismo Histórico, outra corrente historiográfi ca que fi cou bastante conhecida foi a Escola de Annales, sobre o qual passamos a conversar a partir de agora. Sobre a Escola de Annales, embora ela seja nomeada como "escola," devemos considerar que é, na verdade um conjunto ou sistematização de uma proposta de fazer/escrever/produzir a História, que tem ancoragem na academia francesa. E, conforme destaca Marczal (2016), a Escola de Annales apresentou diferentes confi gurações, rupturas e reorganizações, porém, manteve-se fi rme em sua principal característica: a negação da história positivista. Temos, com os Annales, uma espécie de "abertura" na concepção de História, principalmente no que diz respeito à atuação do historiador, ou seja, daquilo que pode ser objeto e atenção do pesquisador, bem como a possibilidade de intercâmbio com outras áreas da produção do conhecimento, como as Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, etc,), por exemplo. Entre os protagonistas dos Annales podemos citar Marc Bloch e Lucien Febvre, seus fundadores. No entanto, não podemos nos esquecer outros representantes, afi liados à perspectiva dos Annales: Fernand Braudel, Peter Burke, Georges Duby, Jacques Le Goff, Pierre Nora, Marc Ferro, Jacques Revel, entre outros. 23 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 Sugerimos a leitura das seguintes obras, que dizem respeito especifi camente à produção do conhecimento por alguns, entre outros, historiadores que foram a pouco mencionados: “A constituição da História como ciência: de Ranke à Braudel” (por Julio Bentivoglio e Marcos Antonio Lopes – organizadores, publicado pela editora Vozes) e “Afi rmação da História como ciência no século XX: de ArletteFarge à Robert Mandrou” (por Julio Bentivoglio e Alexandre de Sá Avelar – organizadores, publicado pela editora Vozes). Voltando a falar do “conjunto da obra”, os Annales foram, além de um movimento de crítica à história tradicional, foi também uma possibilidade de abertura, como mencionado anteriormente, considerando principalmente os âmbitos da história econômica e social. Conforme diz Cardoso (1992), durante cerca de quatro décadas, esse grupo, mesmo que composto por pessoas bastante heterogêneas, havia diversas concepções em comum, concepções estas que permitiram a elaboração de uma nova concepção de História, em torno de algumas características essenciais, e que impactarão nas concepções de tempo, memória, narrativa, objeto e fontes, conceitos dos quais trataremos nas seções a seguir. Assim, entre as características comuns à Escola de Annales, podemos mencionar a passagem de História-narração para a constituição de uma História- problema, o estabelecimento do diálogo com outras ciências, inclusive no que diz respeito à utilização de métodos e técnicas para o desenvolvimento do trabalho do historiador, a insistência nos aspectos sociais (em detrimento aos aspectos políticos), a ampliação do conceito de fonte histórica (para além do uso de fontes escritas apenas), bem como o reconhecimento da estreita ligação entre passado e presente. A “história-problema” veio se opor ao caráter narrativo da história tradicional. A estrutura narrativa da história tradicional signifi cava isto: narrar os eventos políticos, recolhidos nos próprios documentos, em sua ordem cronológica, em sua evolução linear e irreversível, “tal como se passaram”. A história-problema veio reconhecer a impossibilidade de narrar os fatos históricos “tal como se passaram”. Por ela, o historiador sabe que escolhe seus objetos no passado e que os interroga a partir do presente (REIS, 2014, p. 21). 24 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica Assim, desde o lançamento da Annales, revista francesa que teve o seu primeiro exemplar publicado no ano de 1929, os historiadores/pesquisadores associados a ela se tornaram referência na historiografi a, dando base, ao longo do seu trabalho à formação do que chamamos das diferentes ‘gerações’ da Escola de Annales. March Bloch e Lucien Febvre foram aqueles que estivem a frente da fundação dessa ‘revolução’ na historiografi a, dando origem à primeira geração dos Annales, que, ao praticar o que foi chamado de ‘história-problema’, se opuseram à historiografi a tradicional. Bentivoglio e Lopes (2013), entre outros autores, atribuem à Bloch a responsabilidade sobre importantes refl exões sobre o método de fazer e ensinar história. O primeiro volume da revista, intitulada em 1929 como “Annales d'histoireéconomique et sociale” está disponível na internet e pode ser acessada por intermédio do seguinte link: <https://www.persee. fr/issue/ahess_0003-441x_1929_num_1_1>. Destaca-se que o texto se encontra no original, em francês. Bloch e Febvre acabaram por introduzir novas compreensões sobre o tempo e a temporalidade, consolidaram novos objetos, aperfeiçoaram métodos e abordagens, abrindo caminho para uma história mais social. Tem-se, assim, uma nova perspectiva historiográfi ca, que caminha ao lado do marxismo (Alemanha). Nesse contexto, ainda de acordo com Bentivoglio e Lopes (2013), foi Febvre quem empreendeu a chamada História das mentalidades, destacando que o campo de estudo das mentalidades, até o século XX, estava restrito aos campos de estudos a Etnologia e Psicologia. A história dos Annales era uma “nova história” porque era conduzida por construções teóricas elaboradas e explícitas. Foi por se tornar uma “empresa teórica” que ela se opôs à velha história dita positivista. O historiador mudou de posição e de disposição: se antes era proibido, em tese, de aparecer na pesquisa, o que é uma interdição impossível de ser cumprida, agora, ele é obrigado a aparecer e a explicitar a sua estrutura teórica, documental e técnica e o seu lugar social e institucional (REIS, 2014, 22-23). O contexto pós Segunda Guerra Mundial passou a representar aos historiadores um novo desafi o, conjuntura esta que permitiu a ampliação da historiografi a francesa, dando os contornos da segunda geração dos Annales. 25 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 Entre estes, o mais expressivo representante é Ferdinand Braudel,que foi “[…] um estudioso da formação dos espaços sociais, das relações entre os homens e a natureza, posto que sua visão da história ‘exige o estudo de uma série de imensa de evidências históricas no decurso’ da longa duração, onde as estruturas são formadas, mantidas, ou até refeitas […]” (BENTIVOGLIO; LOPES, 2013, p. 287). Além de Braudel, Ernest Labrousse e outros autores colaboraram com essa perspectiva de uma história que não perderia de vista os aspectos políticos, as abordagens econômicas e consideravam os antagonismos de classe, fundamentada no binômio "estrutura e conjuntura" e que acabou sendo caracterizada como "história serial." Sobre a História Serial, gostaria de compartilhar com você um pequeno trecho, de um artigo escrito por José D’Assunção de Barros: [...] A chamada História Serial introduzia na primeira metade do século XX uma perspectiva inteiramente nova: tratava-se de constituir “séries” de fontes e de abordá-las de acordo com técnicas igualmente inéditas. Temos aqui um novo campo histórico que é defi nido em relação à abordagem ou ao modo de fazer a História que a perpassa, uma vez que a História Serial se refere a um tipo de fontes e a um modo específi co de tratamento destas mesmas fontes. Trata-se, neste caso, de abordar fontes com algum nível de homogeneidade, e que se abram para a possibilidade de quantifi car ou de serializar as informações ali perceptíveis no intuito de identifi car regularidades, variações, mudanças tendenciais e discrepâncias reveladoras. Em outro sentido, a História Serial também lida com a serialização de eventos ou dados, e não só com a serialização de fontes, propondo-se, neste caso, a avaliar eventos históricos de certo tipo em séries ou unidades repetitivas por determinados períodos de tempo. Para já evocar a interconexão entre História Serial e História Econômica – que foi a combinação que alçou Ernst Labrousse a uma posição de destaque no movimento dos Annales – podemos lembrar que se enquadram neste último caso os estudos dos ciclos econômicos, a partir, por exemplo, da análise das curvas de preços, tais como as empreendidas por Ernst Labrousse nos anos 1930 e 1940. A História Serial foi de fato um campo que se abriu como nova ‘oportunidade de saber’ a partir de uma estreita parceria com a História Econômica, e que daí se estendeu à História Demográfi ca e à História Social no sentido restrito, expandindo-se depois (nos terceiros Annales) para os estudos relacionados à História das Mentalidades (BARROS, 2012, p. 206). 26 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica A terceira geração dos Annales tem o ano de 1968 como marco, quando as produções historiográfi cas da revista dos Annales concatenavam uma série de artigos, organizados em torno dos seguintes eixos temáticos: novos problemas, novas abordagens e novas temáticas. Entre os historiadores, autores desses artigos, estão os bastante conhecidos Jaques Revel, Roger Chartier, Paul Veyne, Michel de Certeau, Marc Ferro, bem como Jacques Le Goff e Pierre Nora. A respeito da terceira geração dos Annales, consideramos relevante destacar que há, no Brasil, a publicação de três volumes, pela Editora Vozes, a coleção intitulada “História”, organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora. Os livros trazem a mesma temática e artigos reunidos na revista, sendo que os três volumes são destinados às “Novas Abordagens”, “Novos Problemas” e “Novos Objetos”. Segundo Barros (2012), muitas pessoas veem no ano de 1968 o fi m do movimento dos Annales, visto que o que o se seguiu foi ‘um outro tipo de historiografi a’. No entanto, preferimos, assim como vários historiadores, crer que essa é apenas uma nova fase, a terceira geração do movimento dos Annales. Aliás, ainda conforme o autor, o ano de 1968 não marca apenas a transição da segunda para a terceira geração dos Annales, pois há um contexto mais amplo, que faz do período que se segue a esta data uma nova era. Havia vários acontecimentos impactantes ocorrendo nesse mesmo período, como o assassinato de Martin Luther King nos Estados Unidos e o movimento de Maio de 1968 em Paris, ondas de protestos pelos Estados Unidos, Europa e América Latina contra as políticas neoliberalistas, entre vários outros acontecimentos. Outro aspecto relevante a respeito da terceira geração, conforme menciona Burke (1991, p. 80-81) é que está é [...] a primeira a incluir mulheres, especialmente Christiane Klapisch, que trabalhou sobre a história da família na Toscana durante a Idade Média e o Renascimento; Arlette Farge, que estudou o mundo social das ruas de Paris no século XVIII; Mona Ozouf, autora de um estudo muito conhecido sobre os festivais durante a Revolução Francesa; e Michele Perrot, que escreveu sobre a história do trabalho e a história da mulher [...] Novas abordagens foram e continuam sendo exploradas por historiadores identifi cados com o movimento dos Annales, como a inserção de temas como mulheres, sexualidade, religiosidade, famílias, infância, entre outros, ou seja, 27 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 aquilo que foi chamado de ‘história das mentalidades’, numa inegável a ampliação dos temas e objetos passíveis de análise por parte do historiador. A noção de “mentalidades” [...] já havia sido enunciada por Lucien Febvre e Marc Bloch em algumas oportunidades, mas foi somente com alguns dos historiadoresda terceira geração dos Annales, – como Robert Mandrou, Philippe Ariès, Michel Vovelle e Georges Duby – que a expressão adquiriu uma centralidade, capaz de confi gurar um novo campo de estudos no espaço interdisciplinar da História (BARROS, 2012, p. 331). A terceira geração dos Annales acabou por infl uenciar a historiografi a brasileira, a exemplo de publicações como ‘História das mulheres no Brasil’, ‘História da vida privada no Brasil’, ‘História social da infância no Brasil’, ou seja, a terceira gerçação dos annalistas deu impulso a uma grande ampliação temática na historiografi a brasileira. 3 TEMPO, MEMÓRIA, NARRATIVAS Conforme já vínhamos conversando, a história tem uma continuidade, segue sempre um fl uxo, o qual é intitulado como “processo histórico”. As formas de abordagem desse processo, entretanto, dependem da metodologia do historiador, da vertente historiográfi ca adotada e do ângulo pelo qual se observam os fatos. Assim, após estudarmos sobre as correntes historiográfi cas, passaremos a discutir três conceitos que perpassam a historiografi a, mas que por vezes tem diferentes interpretações e compreensões: tempo, memória e narrativa. Desse modo, será necessário, em alguns momentos, resgatar noções estudadas e apresentadas anteriormente. Ressaltamos que essa discussão será breve e que os conceitos de tempo, memória e narrativa não serão abordados em separado, sendo que a centralidade do diálogo estará no conceito de tempo, uma vez que o tempo faz parte do nosso cotidiano, sendo essencial para todos nós e não apenas para a História, para o historiador ou professor de História. Somos, enquanto sociedade humana, regidos pelo tempo. Estamos condicionados pelos calendários, relógios, prazos e pelos conceitos de passado, presente e futuro. Datas de aniversário, compromissos, lembranças, feriados, entre outros; os horários de dormir, das refeições, de lazer, de estudar, são todos regidos pelo "tempo". Seja pelo relógio de sol, pela ampulheta, pelos ponteiros do relógio analógico ou pelo visor do celular ou do tablet… O modo como compreendemos o tempo e lidamos com ele é, entretanto, diferente nos diferentes períodos da história, assim como o é para as diferentes culturas, mas e hoje, de e sobre qual tempo vamos falar? 28 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica O tempo do qual falaremos é aquele com o qual trabalham os historiadores. E esse pode ser o tempo do passado, mas também pode ser o tempo presente, você sabia? Um dos materiais de análisecom o qual os historiadores atuam é o tempo; mais especifi camente os recortes temporais. É a partir desses recortes que são determinados os princípios e os términos, que são caracterizados os períodos e analisados os acontecimentos / fenômenos. E é pela perspectiva do tempo que determinamos as rupturas e as permanências. De acordo com Prost (2008, p. 96), “A questão do historiador é formulada do presente em relação ao passado, incidindo sobre as origens, evolução e itinerários no tempo, identifi cados através de datas. A história faz-se a partir do tempo: um tempo com plexo, construído e multifacetado”. Sobre isso, Hartog (2013, p. 7) afi rma o seguinte: Ninguém duvida de que haja uma ordem do tempo, mais precisamente, ordens que variaram de acordo com os lugares e as épocas. […] Na palavra ordem, compreende-se imediatamente a sucessão e o comando: os tempos, no plural, querem ou não querem; eles se vingam também, restabelecem uma ordem que foi perturbada. Jazem às vezes de justiça. Ordem do tempo vem assim de imediato esclarecer uma expressão, talvez de início um tanto enigmática, regimes de historicidade. Tem-se, portanto uma clara ligação entre tempo e história. O fato, entretanto, desses conceitos estarem relacionados, não signifi ca que não há, sobre eles, contradições ou polêmicas. Utilizamos atualmente, de modo quase que consensual, o modelo temporal infl uenciado pela concepção judaico-cristã, ou seja, um modelo no qual o tempo é organizado como uma linha reta, que segue do passado ao futuro. O tempo de nossa história está ordenado, ou seja, tem um a origem e um sentido. Neste aspecto, ele desempenha um a primeira função, essencial, de colocar em ordem, permitindo classifi car os fatos e os acontecimentos de maneira coerente e comum. Essa unifi cação fez-se com a chegada da era cristã, ou seja, nosso tempo está organizado a partir de um acontecimento fundador que o unifi ca: o nascimento do Cristo (PROST, 2008, p. 97) Assim, nós temos desde a criação do mundo uma série de acontecimentos e consequências desses acontecimentos. Assim, a vida presente costuma ser compreendida como consequência das ações tomadas no passado. Essa é uma versão do tempo que tem servido tanto para a perspectiva religiosa quanto para 29 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 a historiografi a. Mas nem sempre foi assim! Conforme destaca Prost (2008), foi necessário aguardar até o século XI para que a chamada “Era cristã”, ou seja, aquela datada a partir do nascimento de Cristo, se tornasse dominante e, posteriormente imposta à todos, tendo por referenciais a expansão dos impérios coloniais, tais como o espanhol, o britânico e o francês, entre outros. Ainda assim, embora tenhamos convenções que nos auxiliam nas defi nições temporais, as datações, bem como período de rupturas, eras ou períodos históricos não obedecem a critérios únicos, tampouco universais. Essas defi nições dependem também das vertentes historiográfi cas e posicionamentos epistemológicos assumidos pelo historiador, afi nal, como afi rma Fontoura (2016, p. 125), “Historiadores manejam o tempo de modo que seus objetos possam se tornar mais evidentes, seus temas se sobressaiam e suas explicações históricas tenham fundamento”. De acordo com Hartog (2013), nessas tramas da sucessão dos tempos, por muito tempo, na história ocidental, os historiadores operaram com o humanismo, dividindo os tempos em Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna. Essa divisão se associa ao estudo das instâncias humanas, como menciona Barros (2013b). A História, portanto, é compreendida na perspectiva do tempo – passado, presente ou futuro – e pela narrativa, no sentido de designar/descrever/apresentar os eventos que constituem a trajetória percorrida, ao longo dos tempos, pela humanidade. Entretanto, nem sempre a História foi compreendida a partir da perspectiva de Tempo. Koselleck (2006) nos auxilia a entender tal fato, afi rmando que a história já esteve ancorada no espaço da "experiência" e, portanto, não se tinha em mente os diferentes tempos. Assim, presente e passado eram unidos, circundados pelo mesmo horizonte em comum. Sobre os modos de contagem do tempo, Prost (2008, p. 97-98) assevera que: A generalização da era cristã implicou o abandono de uma concepção circular do tempo que estava extremamente disseminada, inclusive, na China e no Japão, regiões em que a datação se fazia por anos do reinado do Imperador: a data origem é o início do reino. No entanto, os reinos se encadeavam em dinastias ou eras, cada um a das quais segue a mesma trajetória, desde a fundação por um soberano prestigioso até sua decadência e ruína. Cada dinastia correspondia a uma das cinco estações, uma virtude cardeal, uma cor emblemática, um dos cinco pontos cardeais; assim, o tempo fazia parte da própria ordem das coisas. O tempo cíclico era também, por excelência, o do Império Bizantino. Com efeito, tendo retomado do Império Romano 30 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica um ciclo fi scal de quinze anos, a indicação, os bizantinos estabeleceram a datação em referência a esse ciclo, a partir da conversão de Constantino (ano 312). As indicações se sucediam e se enumeravam de tal modo que uma data era o ano de determinado ciclo: por exemplo, o terceiro ano da 23a indicação. No entanto, apesar de saberem em que indicação se encontravam, os contemporâneos nem sempre se preocupavam, ao datarem um documento, em indicar seu número exato; aliás, a exemplo do que ocorre conosco que, ao datar nossas cartas, nem sempre mencionamos o ano. De algum modo, tratava-se de um a espécie de tempo circular. Ainda segundo Kosellec (2006), até aproximadamente o ano de 1500, tinha-se uma concepção atemporal da história, a exemplo da representação realizada por Altdorfer, que numa linha estatística buscava registrar a participação dos homens na Batalha de Alexandre. Altdorfer o fez em colunas, mais especifi camente em dez colunas de algarismos, sem registrar o tempo, ou seja, na elaboração de suas colunas ele renunciou à indicação do ano. Em 1500, temos, portanto o “limiar de uma época, que conferiu ao "novo tempo" subsequente a sua unidade relativa” (KOSELLECK, 2006, p. 280). Temos, assim, até o século XVI, a história ancorada nas experiências vividas, mas que também repousava na contínua expectativa "do fi m dos tempos." Pelo próprio contexto, a história ocidental e o seu registro são também uma histórica judaico-cristã. Assim, a periodização do tempo histórico encontra na Bíblia o seu fundamento. Deste modo, o tempo era compreendido como linear, ou seja, no entendimento da sequência de acontecimentos que inevitavelmente levaria ao "fi m dos tempos." Como afi rma Koselleck (2000, p. 24), nesse contexto, a História é também, “a história dos repetidos adiamentos desse […] fi m do mundo.” É no século XVII, no rol de transformações econômicas, culturais e sociais que há um deslocamento nessa concepção de história atemporal, para a possibilidade de um tempo histórico sem limites, ou seja, sem as amarras do "fi m." O desenvolvimento científi co, a ideia de "progresso" e a exploração do Novo Mundo, entre outros aspectos, foram fatores que contribuíram para o desenvolvimento de outra concepção de historicidade. Essa, entretanto, se efetiva no século XVIII, com o advento da chamada história natural (em detrimento da história cristã/escatológica). Assim sendo, essa mudança na concepção do tempo histórico mudou também os próprios modos de se conceber a História. Nessa conjuntura, convém sublinhar, a história desempenhou um papel decisivo: havia necessidade de historiadores ou, no mínimo, de cronistas, para fazer emergir essa ideia de uma comunidade formada pela humanidade inteira. Em vez de ser dada na consciência imediata, ela é a obra de uma 31 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTESCapítulo 1 vontade recapitulativa, cuja primeira forma será o quadro de concordâncias. A aparição da era cristã respondeu a um segundo motivo: a necessidade de fazer coincidir o calendário solar, herdado dos romanos, com o calendário lunar, oriundo do judaísmo, e que organizava a vida litúrgica [...] (PROST, 2008, p. 99). A partir do momento em que temos, portanto, estabelecida a noção de progressão temporal, o passado tornou-se objeto de estudo, para ser reconstruído pela narrativa do historiador. Nesse contexto, cabia ao historiador, conforme destacam Cadiou et al. (2007, p. 160), “[…] avaliar as causas dos acontecimentos, reconstruir os elos de causalidade de um longo período, dispor do início e o fi m de uma história, adotando, fi nalmente, um ponto de vista que respeitasse as fontes”. Assim, compreende-se que a historiografi a somente poderia ser possível ao fi nal de um longo intervalo de tempo, ou seja, do estudo do passado. Conforme destaca Koselleck (2006, p. 120), “a questão essencial sobre as estruturas temporais deve possibilitar a formulação de questões especifi camente históricas, as quais, por sua vez, tem como objeto fenômenos históricos […]”. Temos, portanto, o tempo como uma das ferramentas de trabalho do historiador, a ser escolhido de acordo com o objeto de pesquisa/estudo, passando a infl uenciar o direcionamento que o historiador da às narrativas, ou seja, à escrita da história. Scarpim e Trevisan (2018, p. 37-38) relembram que as discussões em relação ao tempo não são de exclusividade da história e do historiador, pois, “a natureza do tempo representa uma questão sobre a qual se indagam todas as culturas humanas e, em nossa sociedade, esse questionamento engloba diferentes áreas do conhecimento, tais como arte, fi losofi a, psicologia, teologia, antropologia, [...] ciências exatas e naturais”. Na História, entretanto, é sempre importante relembrar que na perspectiva positivista e tradicional, o enfoque das narrativas se mantém mais aos acontecimentos, feitos, heróis e conquistas, e menos às questões cronológicas. Aliás, essa perspectiva historiográfi ca toma a sequência dos fatos como linear, desconsiderando detalhes e subjetividades, sendo que a medida do tempo não é essencial ao trabalho do historiador, que deve narrar a história na sequência dos acontecimentos (história-relato). O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal. Ou, […] o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo: em compensação, a narrativa é signifi cativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal (RICOUEUR, 1994, p. 15). 32 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica A hierarquização das temporalidades, enquanto ferramenta de trabalho do historiador, está ligada à Escola de Annales, mais especifi camente ao trabalho de Fernand Braudel, no que ele chama de decomposição da história em planos escalonados. E esse escalonamento se faz necessário, uma vez que Como a própria vida, a história se nos aparece como um espetáculo fugidio, movediço, feito do entrelaçamento de problemas inextrincavelmente misturados e que pode tomar, alternadamente, cem aspectos diversos e contraditórios. Como abordar e fragmentar essa vida complexa, para poder apreendê-la ou ao menos aprender alguma coisa nela? (BRAUDEL, 1978, p. 22). Assim, Braudel nos apresenta o desdobramento das temporalidades, permitindo ao historiador a pesquisa de temas e objetos na perspectiva do que chamou de "longa duração", permitindo aprofundar os conhecimentos nas conexões existentes entre tempo histórico e mudança social. O trabalho do historiador, portanto, se aproxima e dialoga também com as Ciências Sociais. Sobre isso, Bentivoglio e Lopes (ano, p. 287) afi rmam: […] Braudel é um estudioso da formação dos espaços sociais, das relações entre o homem e a natureza, posto que sua visão da história "exige o estudo de uma série imensa de evidências históricas no decurso" da longa duração, onde as estruturas são formadas, mantidas, ou até refeitas (inclusive, por novas que tomam o lugar das anteriores). Além do trabalho desenvolvido por Braudel, a ampliação dos objetos e métodos de estudos históricos desenvolvidos, permitiu novas abordagens e concepções do tempo histórico. Assim, a história passa a abarcar as diversas temporalidades. E então se torna possível estudar não só o passado, mas também a história presente (numa perspectiva de curta e média duração); não apenas as grandes civilizações, mas também a história regional e local. As maiores descobertas promovidas pelos Annales, o seu maior legado para as gerações de historiadores contemporâneos, relacionam-se aos novos modos de conceber o tempo, de representá-lo, de utilizá-lo como aliado para produzir inovadoras leituras da história, pensar inusitados objetos e mobilizar novos tipos de fontes históricas. Com os Annales, o estímulo a criar novos modelos de relacionamentos entre os historiadores e o tempo elevou-se ao patamar de um dos mais poderosos itens pragmáticos da escolar (BARROS, 2012, p. 142). O que devemos ter sempre em mente é que a medida do tempo como hoje conhecemos nem sempre foi a mesma e as concepções que temos a respeito das temporalidades são construções, características derivadas da experimentação 33 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 cultural, social, econômica e política. Então os "sentidos" dados ao tempo, envolvem sempre alguns interesses e são atravessados por infl uências externas a nós. Entretanto, ao trabalho do pesquisador, seja ele o historiador ou o docente, o conceito de tempo é importante, pois, é ferramenta de trabalho. O historiador vive quotidianamente o tempo, mas mesmo que ele não mais se interesse, no dizer de Benjamin, pelo tempo linear “homogêneo” e “vazio”, ele corre o risco de simplesmente instrumentalizar o tempo. Constitui também tarefa do historiador tentar pensar sobre o tempo, não sozinho, é óbvio. Diante de nós, houve vários momentos em que o tempo foi objeto de uma intensa refl exão, especulações, medos, sonhos [...] (HARTOG, 2003, p. 10). Devemos, entretanto, estar atentos que o nosso trabalho envolve as diferentes temporalidades e que as diferentes concepções de História utilizam distintas concepções de tempo. Desse modo, as análises dos objetos e os recortes temporais são também diversos, assim como as compreensões de passado, presente e futuro. Sobre isso, Delgado (2010, p. 9-10) afi rma: […] O tempo e seus ritmos, o tempo e as representações coletivas sobre seu processar relacionam-se aos movimentos históricos e à construção de interpretações sobre esses processos específi cos. As representações sobre o tempo também são construções concretas, pois referenciadas na realidade material. Assim, em conjunturas diferentes da história os homens constroem análises e representações específi cas sobre o acontecido e sobre o vivido. Pois, apesar dos acontecimentos e processos históricos serem imutáveis, os historiadores, os sujeitos e as testemunhas da história constroem análises naturalmente infl uenciadas pelo tempo no qual estão inseridos. Não se trata de relativismo, mas sim de manifestações cognitivas inseridas na realidade do tempo presente de cada uma dessas pessoas. Portanto, para que o trabalho do historiador se desenvolva, é necessária a realização e criação de um ‘recorte temporal’, ou seja, é preciso defi nir marcos em relação ao objeto e às questões que serão estudadas / investigadas. Hartog (2003) se refere a esse recorte a partir dos conceitos de “regime de historicidade”. Segundo o autor, o regime de historicidade difere das noções de “época”. Época signifi ca [...] apenas um corte no tempo linear (de que frequentemente se ganha consciência após o fato e bem depois ela pode ser usada como um recurso de periodização). Por regime, quero signifi car algo maisativo. Entendidos como uma expressão da experiência temporal, regimes não marcam meramente o tempo de forma neutra, mas antes organizam 34 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica o passado como uma sequência de estruturas. Trata-se de um enquadramento acadêmico da experiência (Erfahrung) do tempo, que, em contrapartida, conforma nossos modos de discorrer acerca de e de vivenciar nosso próprio tempo. Abre a possibilidade de e também circunscreve um espaço para obrar e pensar. Dota de um ritmo a marca do tempo, e representa, como se o fosse, uma “ordem” do tempo, à qual pode-se subscrever ou, ao contrário, e o que ocorre na maioria das vezes, tentar evadir-se, buscando elaborar alguma alternativa (HARTOG, 2003, p. 11-12). Nesse contexto, o recorte temporal marca um início e um término, delimitando, portanto, do estudo a ser realizado. Esse início e término, entretanto, podem ter diferentes durações, de modo que se encaixe no estudo da longa duração, média duração ou curta duração, sem que a análise realizada desconsidere as categorias de sucessão, transformação, ruptura, mudança, permanência, entre outras. No âmbito mais amplo da longa duração, o tempo se apresente estrutural; em seu interior ocorrem mudanças. Estas, todavia, podem se resolver no interior na estrutura (um período de determinadas características) por conta de repetições, ciclos, regularidades. Outros tipos de eventos, ainda, os agitados acontecimentos não repetíveis dos quais o mundo político mais superfi cial nos fornece os melhores exemplos, pouco mais seriam do que “espumas” formadas nas cristas das grandes ondas históricas. Com essa possibilidade teórico- prática de articular diferentes ritmos de mudanças históricas, os Annales abrem espaço para se pensar o tempo em termos de um enquadramento de diferentes “durações” – projeto que assumiria sua forma mais sofi sticada com a arquitetura historiográfi ca que Fernand Braudel chamaria de “dialética das durações” [...] (BARROS, 2012, p. 155). Quando os historiadores escrevem a partir da perspectiva da “curta duração”, podemos compreender que estão falando do o tempo dos eventos, dos acontecimentos do cotidiano, que mudam com rapidez, como por exemplo, acontecimentos da vida política, de um campeonato esportivo etc. Barros (2006, p. 467) defi ne a curta duração como aquela que “[...] rege a história dos acontecimentos, formada por perturbações superfi ciais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas”. A “média duração” está relacionada com as conjunturas, com o tempo que pode variar desde décadas até meio século. A média duração, portanto, diz respeito à acontecimentos que não são percebidos de imediato, pois abrangem ciclos econômicos e transformações sociais. Barros (2006, p. 467) defi ne a média duração como perspectiva “[...] que rege os destinos coletivos e movimentos 35 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 de conjunto, trazendo à tona uma história das estruturas que abrange desde os sistemas econômicos até as hegemonias políticas, os estados e sociedades [...]”. Já os acontecimentos de longa duração remetem às estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais, sendo a análise centrada mais nas permanências e lentidão do que nas mudanças sociais. O exame da longa duração se desenrola sobre uma estrutura onde os diversos elementos, sejam eles econômicos, sociais, políticos, geográfi cos, climáticos, entre outros se inter-relacionam. O tempo, enquanto conceito elaborado e compreendido pelos humanos é sempre um tempo social, sobre o qual Le Goff (1990, p. 7) afi rma que “[…] para domesticar o tempo natural, as diversas sociedades e culturas inventaram um instrumento fundamental, que é também um dado essencial da história: o calendário”. Interessa-nos, portanto, o tempo social e histórico, de modo que possamos relacionar passado, presente e futuro, articulando essas noções e concepções de tempo, não esquecendo que: O calendário é o produto e expressão da história: está ligado às origens míticas e religiosas da humanidade (festas), aos progressos tecnológicos e científi cos (medida do tempo), à evolução econômica, social e cultural (tempo do trabalho e tempo de lazer). Ele manifesta o esforço das sociedades humanas para transformar o tempo cíclico da natureza e dos mitos, do eterno retomo, num tempo linear escandido por grupos de anos (LE GOFF, 1990, p. 13). A matéria fundamental para o historiador é, portanto, o tempo. Não o tempo fi xo, estanque, mas o tempo compreendido na perspectiva do funcionamento da sociedade. E sempre considerando que a oposição entre passado e presente não é um dado natural, mas uma elaboração conceitual. E, nesse contexto, não podemos nos esquecer que “o tempo histórico encontra, num nível muito sofi sticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta” (LE GOFF, 1990, p. 13). Le Goff (1990), assim como outros historiadores, nos alerta para a relação que existe entre história e memória. História e memória, entretanto, estão longe de serem sinônimo. Sobre as diferenças que existem entre elas, Nora (1993, p. 9) afi rma: A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática 36 Ensino, Pesquisa e Realidade histórica e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou mutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória é parte essencial de nossa existência, como bem destaca Fontoura (2016). Segundo o autor, a memória é aquilo que nos permite lembrar de nós mesmos, dos nossos familiares e amigos, de nosso papel e lugar no mundo. É a memória que nos permite a localização no tempo e no espaço, bem como saber o que estamos fazendo e o que já fi zemos. “Acessamos continuamente nossa memória em busca da necessária construção de sentidos para o presente” (FONTOURA, 2016, p. 159-160). Foi Maurice Halbwachs (1877-1945), sociólogo francês, o primeiro pesquisador a demonstrar que a memória individual seleciona, registra e interpreta, mas também distorce os dados testemunhados, com base no contexto social em que as pessoas estão inseridas. Embora Halbwachs tenha sido o primeiro a pesquisar aspectos importantes sobre a memória individual, ele afi rma ainda que “nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós” (HALBWACHS, 1990, p. 23). Destacamos, ainda, que a memória exerce um papel bastante distinto nas sociedades orais, em comparação com as sociedades escritas. De acordo com Fontoura (2016, p. 162), nas sociedades orais: a memória recupera e reaviva a identidade do grupo (por meio dos mitos de origem, por exemplo), estabelece uma conexão e reverência a antepassados, constrói genealogias fundamentais para a ordem social, além de ser a maneira pela qual as práticas e as técnicas são armazenas e retransmitidas. É muito comum nas sociedades orais existirem pessoas responsáveis por guardar e transmitir a memória do grupo. 37 DAS POSSIBILIDADES DE PESQUISA EM HISTÓRIA: OBJETO, MÉTODOS E FONTES Capítulo 1 Então, quando
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