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Fundamentos Socioantropológicos da Saúde ( Aulas 6 a 10) Transcritas

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Aula 06: Cidadania e Globalização
Vimos, na aula anterior, que as políticas de assistência social têm por objetivo fundamental garantir os direitos sociais. Estes, juntamente com os direitos civis e os direitos políticos, constituem os direitos fundamentais do indivíduo em sociedade. 
Estes três direitos organizam o conceito de cidadania, sua conquista faz do indivíduo um cidadão.
Para Camargo (2012), “A cidadania esteve e está em permanente construção; é um referencial de conquista da humanidade, através daqueles que sempre buscam mais direitos, maior liberdade, melhores garantias individuais e coletivas, e não se conformam frente às dominações, seja do próprio Estado ou de outras instituições”.
Ser cidadão, portanto, é ter, legalmente e de fato, direitos civis, políticos e sociais, o que permite participar de forma equivalente do mundo social.
Esses direitos, em geral, não são generosamente concedidos, mas conquistados.
O conceito moderno de cidadania admite duas categorias.
Cidadania Formal: A cidadania formal diz respeito à maneira como a cidadania está descrita formalmente nos documentos e leis de um país, nas Constituições, e que garante direitos aos indivíduos. Estabelece uma relação de pertencimento de um indivíduo a um Estado Nação.
Cidadania Substantiva: A cidadania substantiva (ou cidadania real) diz respeito à maneira como a cidadania é vivida na prática, no dia a dia. Relacionam-se à posse efetiva de direitos civis, políticos e sociais.
A categoria cidadania substantiva possibilita avaliar se um indivíduo, apesar de ter garantido legalmente seus direitos, tem de fato os direitos preservados no dia a dia. Podemos notar que nem todos os indivíduos em uma comunidade são iguais socialmente, apesar das garantias legais. Frequentemente há uma estruturação da sociedade que disponibiliza de maneira desigual os bens e serviços produzidos, gerando sofrimento, necessidade e preconceito a diversos segmentos.
Cidadania e saúde
Se pensarmos nas políticas públicas de saúde, por exemplo, e lembrarmos um dos seus princípios – o da universalidade –, veremos que há um descompasso entre o que está formalizado e o que é praticado. Em temos legais, remetendo à cidadania formal, temos que todos os indivíduos têm direito à atenção à saúde, em todos os níveis de complexidade.
Certamente a cidadania “formal” foi conquistada; a lei garante acesso às ações em saúde a todos que delas precisarem. Entretanto, a cidadania “real”, “substantiva”, pode estar longe de ser atingida, uma vez que uma parcela significativa da população brasileira não tem à disposição um mínimo de atenção à saúde.
Assim, vemos que “No Brasil ainda há muito que fazer em relação à questão da cidadania, apesar das extraordinárias conquistas dos direitos após o fim do regime militar (1964-1985). Mesmo assim, a cidadania ainda está distante de muitos brasileiros, pois a conquista dos direitos políticos, sociais e civis não consegue ocultar o drama de milhões de pessoas em situação de miséria, altos índices de desemprego, da taxa significativa de analfabetos e semianalfabetos, sem falar do drama nacional das vítimas da violência particular e oficial.” (CAMARGO, 2012).
Globalização
Ao contrário do que muitos pensam, o chamado fenômeno da globalização não é algo novo. Na verdade, ela está presente há muito tempo nas sociedades ocidentais capitalistas.
 Vemos que a vida em sociedade é marcada por uma espécie de “mundialização”. 
Utilizamos mercadorias produzidas para um mundo globalizado, sustentado pelo capitalismo mundial.
Uma primeira definição de globalização dá conta de ser “um processo ainda em curso de integração de economias e mercados nacionais” (BRASIL ESCOLA, 2006). Entretanto, não se pode resumir a globalização a um fenômeno apenas econômico. Na verdade, é um processo de interdependência de países e pessoas em inúmeras áreas, apontando para uma espécie de uniformização de padrões também sociais e culturais. Assim, pode-se redefinir globalização como “um processo econômico, social e cultural que se estabeleceu nas duas ou três últimas décadas do século XX” (BUSS, 2007, p. 1576).
A Globalização em fases: 
Embora o termo globalização se refira a um processo típico do século XX, marcado pela aproximação das economias e pela revolução tecnológica, principalmente na área da comunicação, seus fundamentos estão presentes na história do ocidente desde os grandes descobrimentos. Pode-se distinguir três fases da globalização:
1450-1850 
A primeira fase, ou primeira globalização, de 1450 a 1850, é marcada pelas grandes navegações e pela expansão mercantilista. A procura de rotas marítimas para as Índias possibilitou o contato com novas civilizações e o estabelecimento de feitorias comerciais em novas terras. Juntamente com o comércio de especiarias, milhares de imigrantes atravessam o Atlântico e chegam às Américas. Formando colônias de exploração, os colonizadores se utilizam de mão de obra escrava africana ou indígena para as lavouras de café, açúcar, tabaco etc., ou para a extração de minérios.
 
A forma brutal com que os colonizadores lidavam com população nativa provocou uma enorme catástrofe demográfica, marcada pela destruição cultural e pela disseminação de epidemias, principalmente por causa do contato com os europeus.
 
Neste período, a globalização é caracterizada pelo comércio entre a Europa, África e América. Todo este processo possibilita ampliar a produção e o comércio de artesãos e industriais na Europa.
1850 a 1950
A segunda fase (ou segunda globalização), de 1850 a 1950, é caracterizada pelo expansionismo industrial-imperialista e colonialista. Profundas transformações no campo tecnológico e político marcam a transição da primeira para a segunda fase: industrialização da Inglaterra, seguida da França, Bélgica, Alemanha e Itália; utilização da máquina a vapor nos transportes marítimos e terrestres; interesses da indústria e das finanças; ascensão da burguesia industrial e bancária.
 
Diferentemente da primeira fase, onde a escravidão serviu de sustento para a exploração, na segunda fase ela se apresenta como impedimento à expansão do consumo.
 
Esta segunda fase também é marcada pelas Grandes Guerras Mundiais e o fim dos impérios dinásticos. Após a II Guerra, restam apenas duas superpotências: os Estados Unidos e a União Soviética.
1989
A globalização propriamente dita (ou globalização recente) pode ser localizada a partir de 1989, marcada pelo enfraquecimento da União Soviética e pela queda do muro de Berlim, em 1989, o que possibilitou a reunificação da Alemanha, em 1990. Esta fase da globalização se estende até o presente, ainda que acrescida de novas características.
- Se na segunda fase duas potências disputavam o poder mundial, agora apenas os Estados Unidos figuram como superpotência. O sistema econômico mundial se rende definitivamente ao capitalismo e não há mais como deter a globalização. 
“Enquanto na segunda fase da globalização vivia-se na esfera da libra esterlina, agora é a era do dólar, enquanto que o idioma inglês tornou-se a língua universal por excelência. Pode-se até afirmar que a globalização recente nada mais é do que a americanização do mundo” (BRASIL ESCOLA, 2006).
“Enquanto que no passado os instrumentos da integração foram a caravela, o galeão, o barco à vela, o barco a vapor e o trem, seguidos do telégrafo e do telefone, a globalização recente se faz pelos satélites e pelos computadores ligados à internet. Se antes ela martirizou africanos e indígenas e explorou a classe operária fabril, hoje utiliza-se do satélite, do robô e da informática, abandonando a antiga dependência do braço em favor do cérebro, elevando o padrão de vida para patamares de saúde, educação e cultura até então desconhecidos pela humanidade.” (BRASIL ESCOLA, 2006).
Vemos que a globalização está presente desde muito na história da humanidade. Entretanto, ainda que tenhamos inegáveis progressos em inúmeras áreas da vida social, não podemos dizer que estas transformações atuamda mesma forma em todos os espaços.
Ao contrário, “o processo de globalização atual está produzindo resultados desiguais entre os países e no seu interior. Está criando riquezas, mas são demasiados os países e as pessoas que não participam dos benefícios [...]. Muitos deles vivem no limbo da economia informal, sem direitos reconhecidos e em países pobres, que subsistem de forma precária e à margem da economia global. Mesmo nos países com bons resultados econômicos, muitos trabalhadores e comunidades têm sido prejudicados pelo processo de globalização” (ILO apud BUSS, 2007. p. 1576).
Globalização e Saúde
Há um descompasso entre os altos níveis de desenvolvimento tecnológico e as condições de vida de significativos segmentos sociais por todo o mundo. 
As gritantes diferenças entre indivíduos e grupos, entre pobres e ricos se expressa também na área da saúde. A pobreza está vinculada não só a aspectos econômicos, mas a fatores como saúde, nutrição e educação, bem como condições sanitárias, sociais e ambientais, representativas das iniquidades sociais e de saúde.
“A abertura da economia e a globalização são processos irreversíveis, que nos atingem no dia a dia das formas mais variadas e temos de aprender a conviver com isso, pois existem mudanças positivas para o nosso cotidiano e que estão tornando a vida de muita gente mais difícil. Um dos efeitos negativos do intercâmbio maior entre os diversos países do mundo é o desemprego que, no Brasil, vem batendo um recorde atrás do outro” (BRASIL ESCOLA, 2006).
Lembra-se do princípio da equidade proposto pelo SUS? Pois é, apesar de todos os avanços que a globalização pode trazer, ainda convivemos com profundas desigualdades.
Em conclusão, estes dados nos mostram que a globalização tem empobrecido países e ampliado a pobreza, a exclusão e as iniquidades econômicas e sociais. Estas, por sua vez, repercutem pesadamente sobre a saúde de indivíduos e da população como um todo” (BUSS, 2007, 1579).
Temos uma relação imediata entre mortalidade infantil, renda, educação da mãe, condições do domicílio, local de moradia e situação social da família, além de aspectos vinculados à cor ou à etnia. Isto é, temos uma série de fatores que concorrem para o adoecimento (ou saúde) da população.
Ainda que a globalização possibilite, pelo compartilhamento de tecnologias e informações, o desenvolvimento de ações em saúde em nível transnacional ou mundial também abre espaço para a disseminação de doenças antes restritas a locais específicos. Um exemplo disso é o aparecimento de doenças transmissíveis, novas ou reemergentes.
A facilidade com que nos deslocamos através de rápidas viagens internacionais também facilita o trânsito de agentes infecciosos, como microrganismos, de um país para o outro, através de alimentos, animais, insetos etc. Este fenômeno foi percebido através da difusão da SARS (síndrome respiratória aguda grave), do vírus da gripe aviária e da dengue, das febres Marburg e Ebola na África, do vírus da AIDS etc.
Também, em alguns lugares, vemos o ressurgimento de doenças como a febre amarela, a poliomielite, epidemia de cólera, tuberculose etc.
Podemos também considerar o aumento de problemas causados pelo turismo sexual: “A globalização do comércio sexual implica na disseminação de doenças sexualmente transmissíveis e os danos mentais e afetivos resultantes do abuso sexual contra crianças, adolescentes e, mesmo, pessoas adultas” (BUSS, 2007, 1581).
É evidente que a globalização não traz apenas problemas para as populações. A área da saúde é, em muito, beneficiada pelos esforços coletivos postos em andamento por inúmeros organismos internacionais.
Como sustenta Buss (2007):
“Na realidade, para transformar a equação globalização → pobreza e exclusão → piora nas condições de saúde na equação globalização → equidade e inclusão → saúde, não existe uma receita única. O que se tem certeza é que soluções globais devem ser articuladas com iniciativas nacionais e locais específicas para o enfrentamento da expressão concreta que tomam, nestes planos, a globalização, a pobreza e a situação de saúde-doença.”
No Brasil, diversas ações sociais têm por objetivo diminuir as desigualdades históricas. Mas ainda há muito que fazer para que o irreversível processo da globalização seja, de verdade, um dispositivo de aproximação e equivalência entre povos e culturas, promotor de bem-estar e felicidade.
O processo de globalização admite, a partir da aproximação de economias, mercados, sociedades e culturas, maior divulgação de bens e serviços produzidos pelos diversos grupos sociais. Apesar disso, vemos uma imensa desigualdade entre os diversos segmentos sociais: desigualdades econômicas, sociais, de acesso a bens e serviços públicos etc. Na área da saúde ocorre o mesmo fenômeno. Mesmo com o importante desenvolvimento técnico-científico e com novas descobertas em biomedicina, nem todos os grupos usufruem igualmente do que é produzido. Ainda vemos uma parcela significativa da população excluída das políticas públicas de saúde, reafirmando as desigualdades sociais.
Aula 7: Pobreza, exclusão social e desigualdades sociais
A desigualdade como fenômeno humano: “Terá havido no mundo alguma sociedade realmente igualitária na qual as pessoas pudessem desfrutar de maneira semelhante os bens e as oportunidades da vida social?” (COSTA, 2005, p. 247).
Faz parte da natureza cultural humana a organização do espaço onde habita. Tal organização é o que permite a permanência do grupo, entendido como grupo social. No processo de organização do espaço, funções são atribuídas aos membros dos grupos, bem como formas específicas de ação.
 
A distribuição dos bens produzidos pelo grupo também se faz de acordo com algumas regras.
Desta forma, a resposta à pergunta inicial é negativa. Parece que em todas as sociedades humanas sempre existiram formas de discriminar indivíduos ou grupos de indivíduos. Portanto, a discriminação faz parte do um processo humano de classificação, o que permite a organização e a sobrevivência das sociedades.
Se a resposta à pergunta inicial é tão óbvia como nos faz parecer, por que insistimos nela e por que está atrelada às ideias de pobreza e exclusão?
 
Na realidade, o problema fundamental não é a discriminação no sentido classificatório, mas as consequências destas classificações. A questão se torna, de fato, um problema quando distinção e discriminação se tornam inequivalências.
Ao fenômeno da discriminação soma-se a função valorativa expressada pelo sentido de equivalência ou inequivalência atribuído a um elemento do sistema social. Ao que parece, à medida que as sociedades se tornam mais complexas, as fronteiras da igualdade pretendida vão se tornando cada vez mais distantes.
Por que a pobreza choca e incomoda?
Se, como vimos, não há sociedade (humana e não humana) sem organização, o que implica distinção e discriminação, por que algumas posições na estrutura da sociedade nos causam desconforto?
Se distinção e discriminação implicam em acessos desiguais aos bens produzidos pelo grupo, se são fenômenos presentes desde sempre nas sociedades humanas, por que nos incomoda ou nos choca a constatação de que parcelas da população não têm acesso a estes bens?
As sociedades modernas partem da ideia de uma totalidade que é a humanidade. Todos, homens e mulheres, em todos os espaços do planeta, fazem parte da humanidade. Nesse sentido, o pertencimento à humanidade nos iguala como sujeitos.
 
Todos os habitantes do planeta pertencem à família humana e, como tal, devem ser assistidos de forma igualitária ou equivalente. Devem ter acesso aos bens e serviços produzidos pelas sociedades.
As desigualdades são resultantes do não acesso aos bens e da aquisição do mínimo necessário para sua reprodução e manutenção biológica, social e emocional. Nas sociedades modernas e contemporâneas, a desigualdade é sinônimo de privilégio de alguns e de pobreza ou carência absoluta de outros. É este descompasso, que nega a família humana, quechoca e incomoda.
Curiosamente, a quantidade de bens produzidos no planeta seria mais do que suficiente para garantir a manutenção de toda a população. Mais do que isto, ainda restaria excedente. Apesar destas teóricas evidências econômicas, o mundo assiste a uma crescente monopolização dos bens econômicos e sociais, gerando crescente concentração de renda.
 
“É em meio à sociedade da abundância que a pobreza adquire um caráter contraditório e até paradoxal” (COSTA, 2005, p. 249).
A quantidade de bens produzidos pelas sociedades contemporâneas relaciona-se diretamente com seu caráter consumista. Pobreza e muito consumo convivem – sem contradição? – em nossas sociedades.
 
“Consumismo e abundância fazem parte desse ideário do bem-estar social no interior do qual as populações carentes não param de crescer” (COSTA, 2005, p. 249).
Medindo as desigualdades:
As desigualdades, a pobreza e a exclusão social não se resumem apenas à falta de bens materiais. Na verdade, uma série de elementos presentes na dinâmica das sociedades concorre para a caracterização de um grupo em certa categoria. Índices são criados a fim de medir e comparar características presentes em diferentes populações e grupos sociais.
 
Assim ocorre com o IDH. Esta medida comparativa usada para classificar os países pelo seu grau de desenvolvimento humano é composta por uma escala de 0 a 1 e serve para demonstrar e analisar a qualidade de vida e desenvolvimento sem considerar apenas índices econômicos.
Múltiplas carências:
Podemos falar de diversas formas de pobreza ou despossessão: a psicológica, a social, a política. Cada uma delas, somadas às clássicas carências materiais e de sobrevivência, aprofundam as desigualdades e a vulnerabilidade social.
Despossessão psicológica: A despossessão psicológica aponta para um sentimento de autodesvalorização das populações pobres em relação às ricas, ou de um país pobre em relação a um país rico.
Despossessão social: A despossessão social relaciona-se à impossibilidade de parte da população de ter acesso a mecanismos que propiciem êxito social, permitindo a aquisição de prestígio e o desenvolvimento de relações sociais sólidas. Ela resume a exclusão de certos grupos sociais das escolhas e decisões na vida pública e nas ações políticas.
Despossessão tecnológica: Ainda podemos acrescentar outra forma de “despossessão” ou pobreza produzida pelo mundo contemporâneo: a despossessão tecnológica. “Pessoas que não possuem ‘alfabetização digital’ estão excluídas dos mais diferentes espaços e da comunicação globalizada e, o mais importante, do mercado de trabalho também. A pobreza tecnológica aflige, envergonha e exclui” (COSTA, 2005, p. 251-152). 
Teoria e explicações para as desigualdades e a pobreza: sistema e biologia
Diversas são as formas de tentar explicar as causas das desigualdades, da pobreza e, consequentemente, da exclusão social. De um lado, pode-se argumentar a favor de uma teoria que conceba estes fenômenos como parte de estruturas sociais ou econômicas e das maneiras particulares como as relações entre os sujeitos e as formas de distribuição de bens sociais se dão.
 
Por outro lado, pode-se pensar que as causas da pobreza e da exclusão estariam nos próprios sujeitos à margem, mais culpados de seu estado do que vítimas. Temos uma espécie de criminalização ou “culpabilização” dos sujeitos em condição de vulnerabilidade social.
Ora, ao que parece, estes dois modelos não são suficientes para fazer compreender a complexidade do fenômeno. Mas continuamos com interrogações. Por que, apesar de tantos avanços tecnológicos e mesmo sociais, a pobreza e a desigualdade permanecem, crescem e incomodam? Incomodam?
Dentre outras respostas possíveis, temos a ineficiência dos Estados em administrar racionalmente as produções e assistir de maneira equânime grupos e cidadãos.
Como ressalta Cristina Costa (2005, p. 254), “A educação se universaliza, mas a repetência, a evasão escolar e as taxas de analfabetismo decaem muito lentamente. A esperança de vida cresce em quase todas as partes do mundo, embora cada vez mais velhos sejam obrigados a trabalhar e o atendimento à população carente continue precário. As favelas se multiplicam, caracterizando a paisagem urbana; o desemprego aumenta, juntamente com a criminalidade e a mendicância”.
Pobreza e criminalidade
Seriam os pobres criminosos? Esta pergunta retoma um pensamento importante (e incorreto) que tende a associar pobreza e criminalidade. Na verdade, pobreza e exclusão social são fenômenos que não estabelecem relação necessária com a criminalidade.
 
Na verdade, à medida que é estigmatizada, a pobreza é vista por alguns como anomalia potencialmente capaz de fazer adoecer o restante da sociedade. Assim, é criminalizada, combatida com violência ou negada, escondida, mascarada.
Criminalizar a pobreza é mais uma estratégia (ideológica) para mantê-la afastada e excluída do convívio social, livrando os responsáveis pelo gerenciamento das instituições sociais de suas reais obrigações. “A pobreza gera distanciamento social, alienação e discriminação dos pobres” (COSTA, 2005, p. 257).
Corresponsabilizar toda a sociedade pelos processos de discriminação e exclusão dos segmentos mais vulneráveis da sociedade talvez seja um passo importante para a construção de novas (e mais humanas) formas de lidar com o outro.
 
Como lembra Costa (2005, p. 259), “Não podemos esquecer, entretanto, que a opção por um sistema político que favoreça uma integração maior da população em geral à sociedade ainda é a forma mais eficiente de combate à pobreza”.
 
E o que os profissionais de saúde têm a ver com isto?
A desigualdade como fenômeno estrutural na sociedade brasileira:
Na aula anterior, vimos como o fenômeno da globalização provoca importantes mudanças nos grupos e sociedades. Atuando sobre diversos setores da sociedade, a globalização aproxima grupos, intensifica a comunicação e o compartilhamento de informações, bens e serviços.
 
Entretanto, a distribuição dos bens e serviços possibilitados pelo processo de globalização não se dá de forma igualitária entre os diversos grupos que compõem a sociedade.
 
Mesmo antes da intensificação da aproximação dos mercados e economias, característico da globalização, os formadores da sociedade tinham acesso desigual aos produtos e serviços, bem como às políticas públicas.
O importante sociólogo brasileiro Octavio Ianni, falecido em abril de 2004, nos mostra como a história do Brasil está permeada por desigualdades econômicas, políticas e culturais (IANNI, 2004).
 
Para ele, “Desde o declínio do regime de trabalho escravo, ela [a questão social, isto é, as desigualdades sociais] passou a ser um ingrediente cotidiano em diferentes lugares da sociedade nacional. A despeito das lutas sociais que envolve, e das medidas que se adotam em diversas ocasiões, para fazer face a ela, continua a desafiar os distintos setores da sociedade. Ao longo de várias repúblicas formadas desde a Abolição da Escravatura e o fim da Monarquia, a questão social passou a ser um elemento essencial das formas e movimentos da sociedade nacional” (IANNI, 2004, p. 103).
Ao considerarmos a trajetória social e política do nosso país, vemos que a questão social, representada pelas desigualdades entre os grupos, está presente desde os primórdios de sua formação, estabelecendo-se como fenômeno estrutural. Até a Abolição, a questão social se mantinha mais ou menos sob controle, já que o escravo sequer podia dispor de si e as desigualdades eram claramente definidas em termos de grandes oposições.
 
A partir de 1888, com a emergência do regime de trabalho livre e os diversos desdobramentos sociais daí decorrentes, as diversidades e antagonismos sociais começam a ser debatidos e questionados, abrindo espaço para transformações e possibilidade de revolução.
Para Octavio Ianni, apoiado em um trabalho de Hélio Jaguaribe, de 1988, “Seriam duas sociedades superpostas, mescladas, mas diversas: ‘A característica fundamentalda sociedade brasileira é seu profundo dualismo’. A um lado ‘encontra-se uma moderna sociedade industrial, que já é a oitava economia do mundo ocidental e acusa um extraordinário dinamismo’. No outro ‘encontra-se uma sociedade primitiva, vivendo em nível de subsistência, no mundo rural, ou em condições de miserável marginalidade urbana, ostentando os padrões de pobreza e ignorância comparáveis aos das mais atrasadas sociedades afro-asiáticas’” (IANNI, 2004, p. 106).
 
É como se tivéssemos, pelo menos, “dois Brasis”: um da riqueza e outro da pobreza, da discriminação e da exclusão.
Pobreza, exclusão social e saúde: conexões:
Para encerramos esta aula, vale pensar em algumas relações entre os estados de saúde-doença e as condições de pobreza, discriminação e vulnerabilidade.
 
Diversos estudos apontam importantes relações entre mortalidade infantil e renda das famílias, nível de educação da mãe, as condições habitacionais, local onde se vive e situação social da família da criança.
Outros estudos estabelecem relações entre cor e mortalidade infantil; por exemplo: entre os negros, a mortalidade infantil média é de 34 óbitos por 1.000 nascidos vivos, contra 23 na população branca (BUSS, 2007, p. 1579).
Estas relações se multiplicam quando se considera escolaridade, região geográfica, acesso a serviços de saneamento básico e de saúde etc.
Podemos encerrar as discussões desta aula com um breve texto que nos coloca a responsabilidade de formular ações que minimizem as desigualdades e que promovam todos os seres humanos à categoria de cidadão incluídos, de fato, na chamada família humana.
 
“É muito importante a mobilização de profissionais de saúde em geral e de sanitaristas, em particular, de todo mundo na compreensão, crítica e luta contra a globalização injusta, a pobreza e a exclusão, contra a corrida armamentista e a violência, por um meio ambiente sustentável, pela equidade na saúde, pela paz e solidariedade entre todos os povos do mundo, para que alcancemos melhores condições de saúde e qualidade de vida não num futuro distante, mas hoje, aqui e agora!” (BUSS, 2007, p. 1588). 
Aula 8: Corpo e saúde na visão antropológica - corpo, cultura e subjetividade
O caso do Sr. Célio: 
Preste atenção na história a seguir. Quem contou diz que é verídica, mas isso não importa.
Corpo físico, corpo social:
Vamos começar perguntando o que é o corpo. Será o corpo uma evidência fisiológica, composta por células, tecidos, órgãos e sistemas? É o corpo uma expressão da natureza?
Sem dúvida, o corpo é – ou melhor, tem – uma evidência fisiológica, física ou orgânica, “natural”. Entretanto, esta característica universal do corpo não é suficiente para compreendê-lo quando consideramos a dinâmica social.
Como vimos no decorrer de nossas aulas, o ser humano é, necessariamente, um ser social. Sua existência só é possível a partir do convívio com outros seres humanos, em grupo, em sociedade. Assim, o corpo também é uma evidência social.
 
“Para os membros de todas as sociedades, o corpo humano é mais do que simplesmente um organismo físico que oscila entre a saúde e a doença. É, também, foco de um conjunto de crenças sobre seu significado social e psicológico, sua estrutura e função” (HELMAN, 2003, p. 24).
Nascemos uma evidência física. Mas o corpo – como já vimos, uma evidência fisiológica – é constrangido pelos imperativos da cultura. Isto é, sobre ele abatem-se regras, costumes, crenças, marcas sociais e culturais que o transformam em um corpo simbólico.
A influência da cultura:
Na verdade, desde sempre, somos um corpo social, um corpo simbólico. Já nascemos entidades sociais. Diferentemente de outros animais, não nascemos simplesmente machos ou fêmeas; nascemos meninas ou meninos, que deverão atender às expectativas do grupo ao qual pertenceremos.
 
Vestiremos rosa ou azul, brincaremos com bolas ou bonecas, usaremos este ou aquele acessório. Assim, nosso corpo será o portador e veículo de mensagens e disposições próprias de dada sociedade e dada cultura em certo contexto e momento historicamente determinado.
Ao apreendermos a cultura da sociedade da qual fazemos parte, construímos um entendimento de nós mesmos, dos outros e do mundo.
“A cultura na qual crescemos ensina-nos a perceber e a interpretar as diversas mudanças que ocorrem através do tempo em nossos corpos e nos de outras pessoas. Aprendemos a distinguir um corpo jovem de um velho, um corpo doente de um saudável, um corpo apto de outro deficiente; (...)” (HELMAN, 2003, p. 24).
Duas realidades:
O corpo apresenta, portanto, duas realidades que se complementam:
Realidade Social: A realidade social informa e localiza o sujeito na sociedade: seu papel, sua função, seu status, suas possibilidades e limitações como membro de um grupo. É uma realidade constituída pelas expectativas do grupo sobre o sujeito, a correta observância das regras e normas, limitações e privilégios vinculados à posição que ocupa na sociedade e pelo uso de distintivos que permitem classificar e reconhecer seus portadores (roupas especiais, adornos, marcas na superfície do corpo etc.).
Realidade Física: Por sua vez, a realidade física funciona como suporte concreto para a (necessária) organização simbólica.
Nesse sentido, “O corpo é um reflexo da sociedade, não sendo possível conceber processos exclusivamente biológicos, instrumentais ou estéticos no comportamento humano” (FERREIRA, 1994, p. 101). 
Corpo e cultura: 
Não se pode pensar o ser humano desvinculado do meio (necessariamente cultural) em que vive. Assim, todas as experiências que vivencia trazem as marcas da cultura, isto é, das regras, normas, valores e crenças produzidas pelo grupo.
 
Mesmo o que pode nos parecer, em um primeiro momento, absolutamente privado e individual, acaba por revelar-se determinado pelo contexto social.
 
Vejamos, por exemplo, as expressões dos sentimentos. Talvez fôssemos tentados a achar que os sentimentos, por serem expressões advindas de vivências internas, pessoais, estariam livres das influências das culturas; seriam os verdadeiros representantes na natureza humana.
 A cultura influenciando os sentimentos:
Ora, se olharmos com um pouco mais de cuidado, veremos que, desde o início da vida, comportamentos e também afetos vão sendo modelados pela sociedade. Os sentimentos vão sendo “culturalizados” à medida que vão se expressando, ganhando significado e sentido.
 
Por exemplo: quando dizemos à criança, que chora por ter caído e se machucado, que “não está doendo”, que “homem não chora” ou ainda que “é feio chorar”, nos colocamos como representantes dos valores da sociedade, reafirmando as expectativas do grupo com relação a determinado comportamento.
 
Então, não estamos mais falando unicamente de um corpo individual ou privado, mas de um corpo social, necessário à vida em sociedade.
Corpo, saúde e doença: 
Se nos voltarmos agora aos eventos de saúde e doença, e considerarmos o corpo um elemento que participa ativamente destas construções, veremos que a forma como é concebido é de vital importância para sua compreensão.
 
O entendimento que se tem do corpo, desde sua estrutura mais externa, como a pele, passando pelos segmentos anatômicos até os componentes internos, órgãos e sistemas, servirá de guia para a classificação dos eventos como expressão de saúde ou doença.
 
Os limites do corpo, externos e internos, irão variar dependendo da concepção que se tenha dele. Estes limites são simbólicos e podem ser estendidos ou diminuídos de acordo com o tipo de relação que se estabelece.
Por exemplo: uma marca social, como um tipo de vestimenta específica ou uma tatuagem, sinaliza o pertencimento de um indivíduo a um determinado grupo, ao mesmo tempo em que demarca o não pertencimento a tantos outros.
E a saúde onde entra?
A delimitação das fronteiras simbólicas do corpo, externas e internas, influenciará de maneira decisiva na percepção e compreensão que têm de seus estados de saúde e doença.
 
Para ilustraressa relação entre cultura e representação dos estados de saúde e doença, temos o caso que Cecil Helman (2003, p. 31) nos apresenta da mulher que, casada com um encanador, e também filha de encanador, sendo diagnosticada de edema pulmonar, exibe um comportamento de vômito e incontinência urinária.
Para essa mulher, a “água nos pulmões”, que julgava ser a causa de sua doença, poderia ser “escoada” vomitando ou urinando em grande quantidade, tendo em vista as conexões que ligavam o tórax à boca e a uretra, através de “tubulações” e “canos”.
 
Não resta dúvida de que exemplos como este são extremos e podem parecer raros ou cômicos. Entretanto, se observarmos nosso próprio grupo social, descobriremos uma infinidade de situações que irão corroborar estas relações. Sendo assim, consideramos que não se pode pensar o corpo sem levar em conta seus significados e usos sociais.
Saúde, doença e construção de sentidos:
Os estados de doença exigem que sejam classificados e esclarecidos. Para tanto, na construção diagnóstica, o profissional de saúde (médico ou outro) deve levar em conta os sintomas descritos pelo paciente, e também os aspectos constatados objetivamente – os sinais. Assim, sintomas e sinais, de forma complementar, fornecem os elementos que dizem respeito à semiologia em saúde, organizadora de significações e sentidos.
 
“As sensações corporais experimentadas pelos indivíduos e as interpretações médicas dadas a estas sensações serão feitas de acordo com códigos específicos a estes dois grupos” (FERREIRA, 1994, p. 102).
A observação da autora de O corpo sígnico é decisiva para a compreensão das relações que se estabelecem entre os profissionais de saúde e seus pacientes. Estão incluídos na categoria profissional de saúde: médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais, fonoaudiólogos, educadores físicos, biólogos, dentre outros.
 
Profissionais e usuários têm, ou podem ter, formas diferenciadas de significar suas experiências e compreender sinais e sintomas. Quanto maior a possibilidade de compreensão das significações e sentidos expressados por pacientes e profissionais, nos dois sentidos – isto é, do paciente para o profissional e do profissional para o paciente –, melhor a relação que se estabelece, mais inteligível o diálogo e, consequentemente, mais bem preparado estará o campo para acolhimento e atenção à saúde.
A noção de saúde é social:
“A noção de saúde e doença é também uma construção social, pois o indivíduo é doente segundo a classificação de sua sociedade e de acordo com os critérios e modalidades que ela fixa”, ressalta Ferreira (1994, p. 103). O que significa dizer que cada grupo social ou sociedade classifica os eventos de acordo com determinados critérios socioculturais, o que permite localizá-los em uma ou outra categoria.
 
O que é considerado doença em uma sociedade, em dado momento, poderá não ser em outro. Da mesma forma, o que é considerado sinal de saúde em grupo pode não ser considerado da mesma maneira em outro.
Do ponto de vista antropológico, a cultura fornece os elementos (significados) capazes de dar sentido a todas as significações sociais.
Os profissionais de saúde devem estar atentos e desarmados para compreender os sentidos que são produzidos por seus pacientes (ou clientes). Escutar atentamente suas queixas e significações, evitando descaracterizar ou considerar irrelevantes ou equivocadas suas percepções.
 
Ao colocar-se no lugar do outro, ao considerar as particularidades socioculturais de seu paciente, cria-se uma atmosfera de acolhimento e valorização onde se estabelece um diálogo, e não um monólogo. Talvez seja mais interessante dizer ao paciente que ele “tem o intestino preso” ou “prisão de ventre” do que enunciar um diagnóstico de “constipação intestinal”. E isto vale para um sem-número de exemplos. Certamente você pode pensar em vários.
As considerações anteriores não excluem a evidência dos estados de adoecimento físico ou psicológico; não se nega a concretude dos estados de doença: febre, dores, infecções, loucura, ferimentos etc. são reais e merecem atenção. Entretanto, devem-se considerar outros determinantes, além dos puramente fisiológicos ou orgânicos.
 
Ao nos aproximar das significações e sentidos atribuídos pelos pacientes ao seu corpo e aos seus estados de saúde e doença, estaremos mais próximos também do real sentido do que se denomina atenção à saúde.
Voltando ao caso do Sr. Célio:
Mas o que poderia ser feito com o Sr. Célio, tendo em vista a complexidade de sua visão de mundo, de suas crenças e de seus valores?
 
O que você acha? Como conduziria esta situação?
 
Não existe uma resposta certa.
 
Conta-se que, a partir de uma franca e amigável conversa entre os profissionais de saúde, Célio e sua família, ficou decidido que esta tentaria negociar, com os “guias”, alternativas para diminuição ou a suspensão de ingestão de bebidas alcoólicas.
 
Consta que o Sr. Célio segue com suas consultas espirituais e está gozando de ótima saúde.
Considere os seguintes comentários de dois trabalhadores sobre o significado de estar doente e procure esclarecer sua relação com o contexto sociocultural de cada um:
 
“Para mim, doença de verdade mesmo é aquilo que não me deixa levantar da cama e ir trabalhar. Um machucadinho, uma dorzinha de cabeça ou um resfriado bobo não é doença. Não posso ficar doente à toa porque tenho mulher e filhos para cuidar e comida pra botar na mesa” (Jonas, operário da construção civil).
 
“De vez em quando eu me permito não fazer nada. Se fico ansiosa, triste ou irritada, geralmente perto de ficar menstruada, aviso logo: ‘Ó, tô de TPM, tô doente e não posso ser incomodada’. Aí meu marido faz tudo pra mim, e meus filhos, como já sabem que pode sobrar para eles, ficam quietinhos...” (Regina, funcionária pública).
Gabarito: Podemos ver, nestes depoimentos, concepções diferentes de doença. Existe uma clara associação entre adoecimento e trabalho.
Para o operário, ainda que não ignore que um machucado ou um resfriado sejam condições indesejadas e incômodas, não as classifica como “doenças de verdade”, uma vez que não impedem o desenvolvimento de funções que ele julga obrigatórias, como o trabalho.
O segundo depoimento, da funcionária pública, amplia a concepção de doença e incorpora comportamentos e sensações que poderiam não ser justificativas para “não fazer nada”. Apesar de o seu estado físico e subjetivo ser marcado por experiências tradicionalmente menos valorizadas como indicativo de patologia, Regina as significa e define como uma situação legítima de adoecimento.
Em ambos os casos, parece evidente a relação entre o que se admite ser classificado na categoria doença e o contexto social. Jonas e Regina fazem uso de referências e sentidos sociais e culturais distintos, o que permite significar suas experiências também de maneira diferente.
Aula 9: Estética, cultura e sociedade - padrões e valores 
Corpo e Valor
A partir do texto A civilização das formas: o corpo como valor, de Mirian Goldenberg e Marcelo Ramos (2002), percebemos como uma série de fenômenos sociais e de saúde podem ser mais compreendidos.
Assim, dando continuidade às discussões da aula anterior, notaremos que o corpo pode assumir um lugar privilegiado nas análises sobre valores sociais, estética, moralidade, prestígio social, saúde e doença.
O texto de Goldenberg e Ramos, portanto, será tomado como modelo ou paradigma para nos fazer compreender inúmeras movimentações sociais no campo da saúde, da sociedade e da cultura.
O contexto social e a produção de identidades:
Desde que nascemos, fazemos parte de diversos grupos sociais. 
É a participação nestes grupos – por exemplo, na família – que nos permite sair da condição de simples animais, ou representantes genéricos da espécie humana, e nos tornarmos humanos em um sentido pleno.
Vimos nas primeiras aulas que o processo de socialização, ou endoculturação, possibilita tomarmos conhecimento do mundo do qual fazemosparte. Aprendemos as regras, valores, normas e padrões característicos de cada um dos grupos em que estamos inseridos.
Além da família, a escola, o clube, o grupo de amigos, o trabalho etc., nos fornecem modelos para a construção de nossas identidades e papéis que desempenharemos na vida social.
Dizemos que nossa identidade – social e psicológica – vai sendo construída à medida que estabelecemos relações com outros indivíduos nos diversos grupos. Cada um deles funciona como uma espécie de espelho no qual nos vemos refletidos e nos orientamos mais ou menos à sua imagem e semelhança.
O corpo como meio de expressão ou representação do eu:
Para Goldenberg e Ramos (2002), o mundo contemporâneo, pós-moderno, é marcado por um enfraquecimento das instituições sociais clássicas: família, escola, igreja etc. Para ela, à medida que estas instituições não têm mais a mesma importância que no passado, que, de certa forma, sua força e influência estão diminuídas, os sujeitos irão buscar em outro contexto os elementos essenciais à construção de suas identidades.
 
Substituindo os valores tradicionais das clássicas instituições sociais, para alguns, o corpo resume e passa a expressar ou representar suas identidades, seus “eus”. Não mais identificados com valores ou ideais, estes sujeitos atribuem ao corpo a obrigação de falar em seu nome.
Você já parou para pensar, por exemplo, no sentido de algumas “produções estéticas” que vemos no dia a dia?
Já ouviu falar em body building, body art e body modification? O que estas práticas significam? Por que as pessoas utilizam seus corpos, por vezes, de forma tão “estranha”? Alguns chegam mesmo às raias da bizarrice (ao menos à primeira vista).
Estas marcas não são simples desenhos sem sentido, mas expressões de aspectos subjetivos que “falam” do sujeito, de sua identidade social ou psicossocial. As escolhas das marcas estão vinculadas a valores e ideias presentes nos grupos aos quais os sujeitos pertencem e falam do lugar que eles ocupam ou desejam ocupar neste universo.
Controle versus exibição pública do corpo:
Goldenberg e Ramos (2002) analisam o lugar que o corpo ocupa nas sociedades ocidentais. Eles nos levam a compreender como os valores sobre o corpo e suas possibilidades de exibição pública vão sendo transformados ao longo do tempo.
Não resta dúvida de que o corpo, hoje, está muito mais à mostra do que antigamente. Ou melhor, podemos exibi-lo mais livremente hoje do que ontem. Será mesmo?
Ao que parece, houve um afrouxamento moral na sociedade, o que permite lidar com o corpo e suas derivações de forma mais livre e autônoma. Estamos mais permissivos e complacentes com a nudez, a sexualidade, as expressões afetivas, os arranjos familiares. Conquistamos nossos corpos. Nossos corpos nos pertencem?
Para Goldenberg e Ramos (2002), “um olhar mais cuidadoso sobre esta ‘redescoberta’ do corpo permite que se enxerguem não apenas os indícios de um arrefecimento dos códigos da obscenidade e da decência, mas, antes, os signos de uma nova moralidade, que, sob a aparente libertação física e sexual, prega a conformidade a determinado padrão estético, convencionalmente chamado de ‘boa forma’” (p. 25).
Novos padrões:
Ao contrário do que possa parecer, não nos livramos dos antigos códigos morais; apenas os substituímos por outros padrões. O mundo pós-moderno é marcado pela aparência, pela exterioridade, pela exibição, pelo espetáculo. E isto não é um problema em si mesmo.
No que diz respeito ao corpo e suas significações, os corpos modernos devem seguir novas regras para a exposição: “Devido à mais nova moral, a da ‘boa forma’, a exposição do corpo, em nossos dias, não exige dos indivíduos apenas o controle de suas pulsões, mas também o (auto) controle de sua aparência física. O decoro, que antes parecia se limitar à não exposição do corpo nu, se concentra, agora, na observância das regras de sua exposição” (GOLDENBERG; RAMOS, 2002, p. 25).
Uma nova moral:
Temos novos padrões de decência e indecência fundados na moral da “boa forma”, novas conformações estéticas, novos modelos e novas expectativas sociais. Decência e indecência estão agora remetidas, não ao corpo nu propriamente, mas à avaliação que se faz dele em relação a um determinado padrão estético.
Nesse sentido, dizem Goldenberg e Ramos (2002, p. 28): “A utilização de uma indumentária que deixa à mostra determinadas partes do corpo, ou mesmo a exibição do corpo nu, não é considerada, muitas vezes, tão indecente quanto a exibição de um corpo ‘fora de forma’ e o uso de roupas não condizentes com a forma física”.
Quem de nós já se pegou criticando alguém por utilizar uma roupa que julgamos não estar condizente com suas formas físicas? Você não?
Corpo sarado versus corpo doente:
O sentido de um corpo “em forma” aproxima-se da ideia de um corpo saudável. Temos aqui uma “nova” construção cultural que atribui valor a um determinado padrão estético produzido pela prática de atividade física. Para os adeptos da cultura da “malhação”, um corpo saudável é um corpo trabalhado, disciplinado.
Assim, como dizem Goldenberg e Ramos (2002, p. 30), “a gordura surge como inimiga número um da ‘boa forma’, quase uma doença, principalmente para aqueles que buscam ostentar um corpo ‘sarado’, ícone da ‘cultura da malhação’”.
Conceitos relativos de saúde:
Devemos ter claro que não estamos trabalhando com conceitos absolutos de saúde e doença. Temos que nos lembrar da perspectiva ampliada do conceito de saúde e de suas implicações e significações sociais.
 
Portanto, não cabe aqui o argumento de que “corpo sarado” não é sinônimo de saúde, de que pode estar aparentemente saudável por fora, mas doente por dentro. Para os grupos que têm na malhação um valor fundamental, corpo “sarado” é corpo curado, corpo saudável.
Um corpo fora de forma é um corpo simbolicamente morto: “A busca por um corpo ‘sarado’ funciona, para os adeptos do atual culto à beleza e à ‘boa forma’, como uma luta contra a morte simbólica imposta àqueles que não se disciplinam para enquadrar seus corpos aos padrões exigidos” (GOLDENBERG; RAMOS, 2002, p. 31).
Responsáveis pela aparência: 
Da mesma forma, o homem é o principal responsável por sua aparência física. A Natureza, que antes podia “justificar” os insucessos estéticos, agora é substituída pelo controle e disciplina dos sujeitos. Os que não conseguem dominar a natureza adversa de sua biologia são considerados preguiçosos, indolentes, fracos, perdedores.
 
“Só é gordo quem quer”; “Só é magro quem quer”; “Só é feio quem quer”; “Só fica velho quem quer”; “Só fica doente quem quer”. Deparamo-nos todos os dias com frases como estas na televisão, nas rádios, nos jornais, nas revistas, nos meios eletrônicos e nas redes sociais.
 
Certezas (ou ilusões) “bem fundamentadas” carregam atrás de si fórmulas e soluções, por vezes quase mágicas, que garantem o fim de todos os problemas e sofrimentos. Testemunhamos a veracidade das promessas anunciadas pela apresentação do “antes e depois” ou pela exibição do corpo esculpido da modelo pelo uso do aparelho tonificante, desenvolvido com a mais moderna tecnologia, depois de “anos de pesquisa”.
Corpo abstrato significado: 
Vimos que os padrões e valores em uma sociedade variam de acordo com o contexto e o momento histórico. Isto vale para todos os eventos humanos. Somos seres sociais e, como tal, sujeitos às significações culturais, às leituras ou representações que nos permitem estabelecer comunicação e troca.
 
Isto vale também para nosso corpo. Este é social; o uso que fazemos dele é social, é simbólico. “Não é um corpo indistinto dado pela natureza. É um corpo trabalhado, saudável, bem cuidado, paradoxalmente uma ‘natureza cultivada’, uma cultura tornada natureza (Bourdieu, 1987)” (GOLDENBERG; RAMOS, 2002, p. 38).
Um corpo simbólico:
É também deste corpo simbólico que o profissional de saúde deve se ocupar, ou chegará apenas pela metade ao sujeito que pretende acolher.
 
São corpos com sentidos e sentimentos. Corpos com história,com passados, com presentes singulares, com expectativas para o futuro. Corpos desejados; corpos desejantes; por vezes, corpos sem desejo, mas corpos necessariamente significados, corpos sociais e socializados.
Quando vamos a um médico ou outro profissional de saúde, não levamos ou nos queixamos de incômodos de um corpo físico, ou somente dele. Levamos um corpo sígnico, marcado e distinguido, um corpo único, ainda que submetido às regras e normas da cultura da qual participa e ajuda a preservar.
Mulheres e homens não levam seus músculos e sistemas para serem investigados e tratados. Uma mulher não leva o glúteo ou a mama para avaliação ou modificação. Ela leva o “bumbum” ou o “peito”. Há muito tempo os cirurgiões plásticos descobriram isso. Um homem também não leva simplesmente seu peitoral ou seu abdome; leva o desejo de sobressair sobre seus pares, de ser como Apolo, brilhar como o sol.
A tribo Karen-Padaung, originária da Tailândia, é conhecida mundialmente por suas mulheres-girafas. Essas mulheres ostentam em seus pescoços, pernas e braços grandes anéis de latão que podem superar 20 quilos. Todas as mulheres da tribo, desde pequenas, são presenteadas com estas argolas e, à medida que crescem, outros aros são acrescentados.
Amplie a pesquisa sobre as mulheres-girafas da Tailândia e, com base na compreensão da perspectiva socioantropológica sobre corpo, estética e cultura, apresente uma breve discussão sobre esta prática.
Os corpos humanos, mais do que simples realidade fisiológica, são veículos de comunicação e expressão de valores e padrões sociais desenvolvidos ao longo da história das sociedades. As mulheres-girafas da Tailândia, assim como as mulheres (e homens) em nossa sociedade, expressam através dos seus corpos as concepções e modelos éticos e estéticos.
 
Por mais estranho que possa parecer, a prática de alongamento do pescoço pela colocação de aros deve ser visto como forma tão “normal” e possível quanto nos parece, por exemplo, a modelação dos corpos nas academias de ginástica ou por vias médico-cirúrgicas. Os corpos funcionam como signos capazes de comunicar sentidos e expressar ideais e valores sociais, morais e estéticos.
Aula 10: 
Chegamos à última aula de nossa disciplina. Ao longo de nove aulas, fomos construindo um panorama da saúde apoiado em conceitos e paradigmas próprios das ciências sociais. Buscamos estabelecer relações entre os processos que envolvem os fenômenos de saúde e doença, práticas profissionais e disponibilidades históricas, contextuais e socioculturais.
Aprendemos a considerar a multideterminação dos processos de saúde e doença e a olhar para eventos por vezes negligenciados ou pouco considerados nas análises mais “clássicas” em saúde.
Sabemos hoje que não é possível acolher adequadamente as demandas do paciente se não estivermos atentos para sua particularidade como sujeito sócio-histórico, produto e produtor de sentidos e significações culturais; um sujeito da linguagem e do símbolo, que se constitui para além de simples evidências orgânicas.
Temos que o mais simples fenômeno relacionado à saúde está marcado por crenças, hábitos e valores coletivos que informam modos particulares de atenção e cuidado.
Sempre que falamos dos estados de doença, ou quase sempre, nos reportamos a experiências que envolvem sofrimento, que tanto podem ser físicos quanto psicológicos ou morais. Não raro, tais eventos vêm acompanhados de significações sobre importantes processos (subjetivos) a que chamamos dor. A dor é um fenômeno sempre presente na vida cotidiana e aponta para transformações no corpo ou no “espírito”.
 
Dizemos que a dor é um sintoma, aspecto invisível ou subjetivo que indica a presença de processos de mudanças físicas ou psicológicas em operação na vida dos homens. Lembramos que estes homens vivem em sociedade.
 
Como sintoma, a dor pode ser expressão de mudanças fisiológicas normais, como a gravidez ou a menstruação, bem como indicativo de anormalidades como ferimentos ou doenças.
Doença: reflexo de um repertório sociocultural:
Seja de que maneira for, temos que a dor não é um mero evento físico ou neurofisiológico, mas que a significação e a atenção a ela dispensada serão “escolhidas” de um repertório sociocultural particular. O que significa dizer que os grupos sociais lidam com este fenômeno universal, bem como com outros fenômenos mais restritos, de forma distinta.
Para Helman (2003, p. 170), ao considerarmos também os fatores sociais, psicológicos e culturais associados ao fenômeno da dor (e outros), teremos que:
 
1. Nem todos os grupos sociais e culturais reagem à dor da mesma forma.
 
2. A maneira como as pessoas percebem e reagem à dor, tanto em si como em outras pessoas, pode ser influenciada pela sua origem e formação cultural e social.
 
3. A maneira como as pessoas comunicam a dor – se é que o fazem – aos profissionais de saúde ou a outras pessoas também pode ser influenciada por fatores sociais e culturais.
Ainda que possamos admitir que, como dispositivo filogenético, a dor seja um indicativo de alerta e proteção que independe da cultura (será?), quando presente nos eventos reais, nas interações sociais, assumirá formas particulares de expressão.
Dor e outros sintomas como dados privados:
Como um “dado privado”, a dor deve ser comunicada na forma de expressão verbal ou não verbal e se torna pública e carregada de sentido. Entendemos que não só a dor passa por este “crivo” social e cultural, que organiza a forma como pode ou deve ser expressada, mas todos os outros eventos humanos estão submetidos a processos semelhantes.
 
Assim, os sintomas passam de uma perspectiva privada e tornam-se públicos, comunicados, significados: “A dor privada se transforma em dor pública.” (HELMAN, 2003, p. 171).
A dor passa por uma codificação cultural:
Esta é uma questão importante para o profissional de saúde. Ao se tornar pública, a dor e outros eventos relacionados à saúde passam por uma codificação cultural que deverá ser compreendida (decodificada) nas relações entre usuários e profissionais. As mudanças físicas e psicológicas tomarão uma forma típica do grupo na qual os sujeitos estão inseridos, isto é, serão significadas.
 
Além disso, algo como um “filtro” subjetivo determinará o que se tornará ou não público:
 
“Parte da decisão de tornar pública ou não a dor privada depende da interpretação individual da significância da dor, por exemplo, se a dor é considerada normal ou anormal. A dor vista como anormal tem maior probabilidade de ser levada ao conhecimento de outras pessoas” (HELMAN, 2003, p. 171).
 
A maneira como a sociedade está organizada, seus valores, crenças, ideais, sua história e contexto preparam o solo para a publicização (ou não) dos eventos ligados à dor e seus correlatos.
Relativização da dor e outros infortúnios:
A dor, como outros sintomas, é apenas um tipo de sofrimento humano no rol dos infortúnios possíveis. “Embora a dor seja um sintoma particularmente vívido e emocionalmente intenso, só pode ser compreendida como parte de um espectro mais amplo de infortúnios. A dor, como as enfermidades em geral, é apenas um tipo específico de sofrimento humano.” (HELMAN, 2003, p. 172).
A dor e outras expressões de infortúnios são compreendidas como resultado de inúmeras causas naturais ou sobrenaturais: processos degenerativos, disfunções fisiológicas, desequilíbrio emocional, punição divina, transgressões morais, feitiçarias, bruxaria etc. Cada uma destas causas, ou a combinação delas, admite uma forma de exibição e prescrições de ação com vistas a combatê-la.
 
Da mesma maneira, a melhor ou pior forma de acolher e tratar os eventos estará na dependência de como o profissional (curandeiro, médico, enfermeiro, sacerdote etc.) será aceito pelo “doente” e de sua disponibilidade em compreender os sentidos expressados por ele sobre seus infortúnios.
Manifestar ou não a dor?
Assim, segundo Helman, “A personalidade e as idiossincrasias do médico [ou outro profissional de saúde]e o fato de ele pertencer ou não a uma cultura semelhante à do paciente podem influenciar a decisão de manifestar ou não a dor” (p. 173).
 
Assim, a dor e a doença deixam de ser fenômenos puramente objetivos e passíveis de intervenções técnicas universais para transformarem-se em eventos relativos e contextualizados. Ao considerar a dor como um fenômeno sociocultural, tomamos o corpo como uma realidade que não existe fora do social e nem tem existência anterior a ele.
 
“O social não atua ou intervém sobre um corpo pré-existente, conferindo-lhe significado. O social constitui o corpo como realidade, a partir do significado que a ele é atribuído pela coletividade. O corpo é “feito”, “produzido” em cultura e em sociedade” (SARTI, 2001, p. 4).
 
Sentir e expressar a dor, nesta perspectiva é, menos que uma função “natural”, uma expressão simbólica, elemento distintivo da Humanidade.
A culturalização dos sentimentos:
Se, inicialmente, a dor e outras expressões de infortúnio são elementos de constituição subjetiva ou privada, ao figurarem como parte necessária nas relações entre profissionais de saúde e usuários (ou pacientes), devem ser enunciadas, faladas, representadas.
 
A passagem de um estado privado para um estado público das percepções dos estados de saúde e doença é marcada por uma espécie de culturalização, isto é, a expressão dos estados subjetivos, dos sintomas, estará submetida aos padrões disponíveis na sociedade. Assim, podemos afirmar que, como em outros eventos, temos a culturalização dos sentimentos.
A sociedade tem expectativas de como os sujeitos devem lidar com seus estados internos e interpretará ou julgará as expressões afetivas de acordo com os padrões construídos.
Crenças como a que “homem não chora” e que “mulheres são mais sensíveis do que homens” expressam expectativas sociais que contribuem para moldar formas concretas de comportamento.
“Uma vez que o comportamento de dor verbal ou não verbal é, em geral, padronizado dentro de uma cultura, ele é aberto à imitação por aqueles que desejam ser bem-recebidos ou atrair atenção, ou seja, uma dor pública pode ser apresentada sem que haja dor privada subjacente” (HELMAN, 2003, p. 175).
Modelos sociais de expressão dos afetos:
O importante texto do sociólogo francês Marcel Mauss, A expressão obrigatória dos sentimentos, datado de 1921, nos permite compreender claramente a construção de modelos sociais de expressão dos afetos. Desta maneira, temos que os sentimentos, ao serem submetidos às expectativas da sociedade e da cultura, tornam-se mais um aspecto importante a ser considerado na compreensão dos estados de saúde e doença.
 
Helman (2003, p. 75) nos dá um bom exemplo de como as sociedades e culturas lidam com questões subjetivas como o sofrimento. Ele diz que em Taiwan não é bem vista a explicitação do sofrimento emocional.
 
Assim, na impossibilidade social de expressão “natural” deste afeto, é comum a utilização de uma linguagem somática ou física. Vemos, neste caso, que a ênfase sobre os problemas de saúde recai mais sobre aspectos somáticos do que psicológicos.
A linguagem da dor:
Podemos concluir que os eventos envolvendo processos de saúde e doença são mais do que meras evidências empíricas e universais. Falamos, antes de tudo, de fenômenos relacionais, dialógicos e multifatoriais. Assim, precisamos estabelecer um processo de comunicação adequado, inteligível, se quisermos desenvolver boas ações em saúde.
 
A dificuldade em compreender a linguagem e o discurso do outro, tanto por parte do profissional quanto do usuário ou paciente, pode transformar-se em um entrave significativo nas práticas em saúde.
 
Como alerta Helman (2003, p. 175), “Um médico [ou outro profissional de saúde] cuja atenção está direcionada para as explicações puramente físicas dos problemas de saúde, por exemplo, poderá reconhecer apenas os sintomas somáticos, ao contrário do que faria outro colega mais interessado nos processos dinâmicos ou sociais”.
Dor como punição:
Como nos lembra Sarti (2001, p. 9), “Um paciente que experimenta sua dor como punição, mesmo que procure um profissional de saúde, pode recusar-se, ainda que inconscientemente, ao tratamento. O entendimento pelo profissional desta concepção moral e de seu lugar estruturante na experiência da dor é decisivo para o cuidado e a “cura”, porque a dor e a doença não se separam de seu significado”.
 
O modo como a dor e outros estados de sofrimento é descrito está atrelado às experiências individuais e culturais, às crenças, aos valores individuais e grupais, ao conhecimento sobre o funcionamento do corpo, ao domínio de uma linguagem técnica etc.
Vemos, portanto, uma relação dinâmica e indissociável entre indivíduo e sociedade no que tange às significações dos processos de dor e outros infortúnios e as possibilidades de ações voltadas ao tratamento e a cura.
 
“Os tipos de comportamento de dor permitidos numa sociedade são aprendidos na infância” (HELMAN, 2003, p. 176).
 
Quem de nós já não ouviu ou falou: “levanta daí porque não está doendo, deixa de bobagem”; “não foi nada, já passou”; “pode chorar porque faz bem, alivia”; “não chora, pois ele não merece suas lágrimas”? Assim, dizemos que entendemos a dor e o sofrimento do outro e que sabemos como curá-los. Entendemos? Sabemos?
Fatores culturais em saúde:
Para finalizar nossas discussões, reafirmamos a existência de expressivas relações entre os estados de saúde e doença e as produções sociais e culturais.
 
Portanto, é preciso que haja um diálogo entre os aspectos mais propriamente fisiológicos envolvidos nos estados de adoecimento, e que são explicitados pela epidemiologia, e as significações socioculturais em circulação em dada sociedade ou grupo.
 
Admitimos assim a necessidade de considerar, para a compreensão dos estados de saúde e doença, bem como a consequente formulação de respostas para a cura, determinantes de diversas ordens e de diversas origens.
Gostaríamos de terminar este curso parafraseando Cynthia A. Sarti (2001, p. 11), em algumas de suas indagações sobre a experiência da dor. Entretanto, ampliamos o questionamento para além deste fenômeno e incorporamos outras queixas e demandas dirigidas aos profissionais de saúde. 
Demandas físicas, psicológicas ou morais, mas sempre demandas sociais, já que assim nos constituímos.
Gilson é operário da construção civil e vai à consulta médica com queixa de dor abdominal persistente há mais de um mês. Mesmo tendo se servido de chás e outros expedientes caseiros, além de analgésicos indicados pelo “farmacêutico”, não conseguiu resolver o problema.
Ele expressa sua dificuldade em buscar auxílio médico em função de seu trabalho, além de temer ser visto por seus companheiros como um homem fraco ou “fresco” (sic), que não quer trabalhar e prefere inventar doença para “ficar encostado”.
 
Acredita não haver, de fato, necessidade de atenção especial, uma vez que é forte o suficiente para suportar este pequeno incômodo, que será resolvido de imediato. Gilson não parou de trabalhar, embora tenha se ausentado do serviço para ir à consulta.
 
Considerando os determinantes sociais e culturais presentes nos eventos em saúde, como compreender o relato do caso de Gilson?
Podemos perceber claramente como Gilson significa seus estados de saúde e doença. Tomando como relevantes fatores culturais seu trabalho, situação econômica e papel de gênero, faz uma leitura particular do seu estado de saúde, minimizando sua gravidade e postergando a busca por auxílio profissional.
 
Vemos que o fator trabalho ocupa papel de destaque em suas representações de sujeito (homem) e que um “pequeno incômodo” de saúde não é suficiente para pôr em risco sua reputação frente aos demais personagens componentes de seu universo social.
 
Reafirma-se aqui a multiplicidade de leituras possíveis sobre estados de saúde e doença e a relevância de considerarmos os condicionantes socioculturais na elaboração de respostas frente às demandas de atenção e cuidados.

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