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FERNAND-LUCIEN MUELLER Professor da Universidade de Genebra História da PSICOLOGIA, Da Antigüidade aos dias de hoje 29 edição, acrescida e revista I IIIII I N 1 56 1 Tradução de ALMIR DE OLIVEIRA AGUIAR J. B. DAMASCO PENNA LÓLIO LOURENÇO DE OLIVEIRA MARIA APARECIDA BLANDY COMPANH1ÁT NACIONAL Do original francês Histoire de la psychologie tome premier De l'antiquité à Bergson tome 2 La psychologie contemporaine publicado na Bibliothê que Scient editada por PAYOT (Paris, 1976) A primeira edição deste livro foi publicada em co-edição com a EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela COMPANHIA EDITORA NACIONAL Rua dos Gusmões, 639 01212- São Paulo, SP que se reserva a propriedade desta tradução 1978 Impresso no Brasil TÁBUA DA MATÉRIA Notas da Editora: i. à segunda edição brasileira XI ii. à primeira edição brasileira XI Prefácio à segunda edição brasileira XIII Prefácio à primeira edição brasileira XIV Prefácio da quarta edição francesa XV Prefácio da primeira edição francesa XVII PRIMEIRA PARTE A noção de alma entre os gregos 1 - A Grécia primitiva 3 1. O animismo 2. O mundo homérico 5 3. O culto de Dioniso 6 4. O mito órfico 7 II - O nascimento da exigência racional 9 1. Osprimeirosjônicos 9 2. Heráclito e o devir 10 3. Parmênides e o Ser imóvel 13 4. Alcmeão de Crotona 14 v 5. Os quatro elementos de Empédocles . 6. O Nou de Anaxágoras 7. Diógenes de Apolônia III - A psicologia médica na Antigüidade 21 1. As origens da medicina hipocrática 2. As causas e a cura das doenças 3. A energia vital e o papel do cérebro 4. O homem no universo 5. A sabedoria hipocrática 6. Aspectos psicoterapêuticos 7. De Hipócrates a Galeno IV - O ensinamento dos sofistas e o método socrático 29 1. A descoberta da subjetividade 2. O relativismo de Protágoras 3. Górgias e a linguagem 4. A pesquisa socrática V - A psicologia de Platão 35 1. A espiritualidade da alma e seu destino 2. O processo do conhecimento 3. Uma psicofisiologia finalista 4. As perturbações psíquicas e os fatores inconscientes VI - A psicologia de Aristóteles 41 1. Aristóteles e seus predecessores 2. A oposição a Platão 3. A alma como "forma" do corpo 4. O próprio do homem 5. O primado ontológico 6. O objeto da psicologia 7. As sensações e a percepção 8. A imaginação, a memória, os sonhos 9. O princípio de perfeição VII - A psicologia do epicurismo e do estoicismo 52 1. A exigência imanentista 2. As condições históricas 3. Os átomos e o clinâmen 4. A materialidade da alma e o conhecimento 5. A "psicoterapia" epicuréia 6. O panteísmo estóico 7. O pnezima divino 8. O mundo, a alma, a liberdade SEGUNDA PARTE A crise do mundo mediterrâneo e a Idade cristã VIII - A irrupção do pensamento hebraico 65 1. O sincretismo alexandrino 2. Filo e a tradição judia 3. A alma e o mundo exterior 4. A vida espiritual 5. A mudança de perspectiva IX - O acme do "neoplatonismo": Plotino 71 1. Plotino e seu tempo 2. A alma universal 3. O domínio da psicologia 4. A imaterialidade da alma e opneiima 5. O organismo e as sensações 6. A imaginação, a memória, a consciência 7. A inspiração de Plotino X - A psicologia cristã 79 1. A nova intuição do mundo 2. São Paulo 3. A psicologia dos apologistas 4. Tertuliano 5. Clemente de Alexandria 6. Orígenes 1. O contexto metafísico 2. O homem do pecado original 3. A evidência imediata da alma 4. Os graus e as funções da alma 5. Os sentidos, a razão, a memória 6. A influência do agostinismo - 15 18 19 21 22 23 24 25 26 27 54 56 57 58 59 29 30 31 32 65 66 67 68 70 35 36 37 39 71 72 73 74 75 77 78 41 42 43 44 45 45 46 49 51 79 80 83 83 85 86 XI - Santo Agostinho 88 52 53 53 VI 88 89 90 92 94 96 VI XII - Santo Tomás de Aquino . 98 1. A orientação metafísica . 2. A alma e suas potências 3 Os sentidos externos 4. O senso comum 5. O papel das imagens 6. O papel do intelecto agente 7. O dualismo tomista TERCEIRA PARTE A idade moderna X - A ruptura com a tradição e a constituição do mundo moderno 109 1. A grande crise do século XVI 2. A nova imagem do universo 3. A Reforma e a demonologia 4. O homem como objeto de pesquisas concretas XIV - As idéias psicológicas no Renascimento 118 1. Leonardo da Vinci 2. Paracelso 3. Pietro Pomponazzi 4. Bernardino Telésio 5. Giordano Bruno 6. Michel de Montaigne 7. Francis Bacon XV - O dualismo cartesiano 151 A revolução metodológica O dogmatismo das duas substâncias O espírito e o corpo As imagens e a percepção A psicologia concreta de Descartes A psicoterapia cartesiana A nova problemática XVJ - As reações a Descartes 163 A psicologia religiosa de Pascal e Malebranche Spinoza ou o paralelismo de identidade Locke ou a exigência empirista Leibniz ou a descoberta do inconsciente As pesquisas experimentais XVII A psicologia no Século das Luzes 188 1. O progresso das ciências humanas e a sobrevivência do espírito mágico 2. A psicologia subjetiva de Berkeley 3. O mecanismo de La Mettrie 4. O homem dos enciclopedistas 5. A alma para Voltaire e Rousseau 6. A psicologia espiritualista de Condillac 7. O "sonho ousado" de Charles Bonnet 8. A psicofisiologia de Cabanis 9. A fenomenologia de Hume 10. A psicologia racional de Chrístian Wolff XVJIJ - A psicologia no pensamento alemão do século XJX 240 1. A importância do pensamento germânico 2. As condições do conhecimento em Kant 3. A ilusão da psicologia racional 4. O caráter prático da psicologia 5. As dificuldades de uma psicologia como ciência 6. A intuição da alma como atividade 7. 1-legel e o universal-concreto 8. O inconsciente na filosofia alemã XIX - De Maine de Biran a Bergson 251 1. O "fato primitivo" do eu e a primazia do esforço voluntário 2. A tarefa da psicologia 3. A liberdade e a vida afetiva 4. A exigência de uma psicologia espiritualista 5. O aparecimento do pensamento de Bergson 6. Os "dados imediatos" da consciência e o "eu profundo" 7. As duas memórias 8. A influência do bergsonismo QUARTA PARTE A "nova" psicologia XX - A origem e o desenvolvimento da psicologia científica 267 1. O clima positivista 2. O empirismo inglês 3. A psicologia experimental na Alemanha 4. A obra de Théodule Ribot (1839-1916) 5. As ciências psicológicas em 1900 6. A reabilitação da introspecção 98 99 100 102 102 103 104 188 192 195 203 214 221 224 229 233 239 109 111 113 114 118 124 127 130 132 138 144 240 240 241 243 244 245 246 249 1. 2. 3. 4. -*5. 6. 7. 151 152 155 156 158 160 161 1. 2. -17 3. 4. 5. 251 253 254 257 258 258 260 262 163 167 173 180 186 267 268 270 274 276 278 V lx XXI - A formação de escolas no século XX. 1. A psicologia "das profundezas" a) Origens da psicanálise b) O desenvolvimento do freudismo c) A "psicologia individual" de Alfred Adler d) A "psicologiaanalítica" de C. G. Jung 2. A reflexologia e o behaviorismo 3. A "Gestalttheorie" XXII - Os principais campos das pesquisas O problema dos critérios O uso dos testes e seus limites A psicofisiologia A psicologia animal A psicologia genética A caracterologia XXIII - A psicologia social 1. Os primórdios da psicologia social 2. O "culturalismo" norte-americano a) Etnologia e psicanálise b) Os "novos caminhos" segundo Karen Horney c) O humanismo de Erich Fromm d) O extremismo critico de Herbert Marcuse 3. A abordagem experimental a) A "facilitação social" segundo Floyd H. Allport b) A noção de "atitude" e sua extensão c) A pesquisa sexológica de Kinsey d) As experiências de Sherif e) A "dinâmica dos grupos" de Kurt Lewin f) Moreno e a "sociometria" 4. Psicologia social, ciência e filosofia XXIV Fenomenologia e psicologia 1. Husserl e a psicologia 2. A influência da fenomenologia 3. A psicologia fenomenológica a) na obra de Jean-Paul Sartre b) na obra de Maurice Merleau-Ponty Conclusão Bibliografia sumária Indice onomástico 280 280 280 284 293 297 302 307 1. 2. 3. 4. 5. 6. 313 313 314 321 323 336 351 362 362 364 364 370 372 375 380 380 381 383 386 387 388 394 401 401 404 407 407 419 427 433 435 x NOTAS DA EDITORA i. À SEGUNDA EDIÇÃO BRASILEIRA Como se vê do prefácio do Autor para a quarta edição francesa de seu livro, base desta edição que ora estamos a publicar, ocorreram alterações no texto, particularmente na quarta parte. Toda a considerável porção assim acres cida ao original, bem como tudo quanto nele veio a ser alterado, foi agora traduzido por Almir de Oliveira A guiar, a quem por igual se devem algumas notas, marcadas com suas iniciais. O restante do texto da primeira edição brasileira foi mantido, na conformidade da outra Nota da Editora. ii. À PRIMEIRA EDIÇÃO BRASILEIRA Os primeiros quinze capítulos deste livro foram traduzidos pelo Professor Lálio Lourenço de Oliveira; os demais, pela Professora Maria Aparecida Blandy. Com vistas à desejável uni forrnidade da terminologia, todo o texto foi revisto pelo Professor J. B. Damasco Penna, que também redigiu algumas notas, assinaladas com suas iniciais. X A GRÉCIA PRIMITIVA 1. O animismo 2. O mundo homérjco 3. Oculto de Dioniso 4. Omito órfico A idéia de alma nasceu sem dúvida de experiências fundamentais: nascimento e morte, sono e sonhos, síncopes, delírios, etc., inerentes a uma primeira e obscura tomada de consciência, pelo homem, de sua própria reali dade no mundo. Se hoje, com a bagagem de longo passado, ela se encontra dentro de um contexto teórico de articulações precisas, o mesmo não se dava, evidentemente, quando as representações das coisas se encontravam ainda confusas no espírito humano, estreitamente submetidas ao jogo dos senti mentos e da imaginação, sem o cuidado daquilo que veio a tornar-se a "obje tividade". Ingênuo seria, pois, pretender noções claras e distintas naquelas eras remotas. No pensamento primitivo, a alma aparece numa correlação mágica - variável segundo os povos - com as forças da vida, e é atribuida ao animal e ao homem pelo fato de que eles respiram e podem sangrar; pois morrer é visi velmente exalar o últjmo suspiro ou dessangrar-se. Ora, esta alma misteriosa, habitante do corpo, no que se tornará ela quando este não passar de cadáver? A esta pergunta as mentalidades primitivas responderam com toda a espécie de representações imaginárias: reino dos espíritos, migração das almas, fan tasmas de almas do outro mundo, etc. Sabe-se, agora, que a Humanidade, onde quer que apareça, se mani festa, inicialmente, por uma atitude animista. Parece que as primeiras socie dades humanas atribuíam seus êxitos e seus malogros a misteriosas potências, onipresentes, capazes de modificar o curso das coisas. Tal concepção provo- CAPÍTULO 1 1. O animismo 3 2. O mundo homérico cava o desejo de conciliar ou domesticar essas forças por meio de práticas religiosas ou mágicas, as quais se encontram, assim, na própria origem da vida mental. Os estudos modernos, tanto sobre a mentalidade infantil quanto sobre a mentalidade primitiva, têm esclarecido de maneira satisfatória esse estado de espírito que consiste em projetar no exterior desejos e temores, em conferir poderes ocultos aos seres e coisas do mundo ambiente. Todos nós, adultos ocidentais, na primeira infância, acreditamos nos contos de fada, e daquele mundo poético e miraculoso de então resta-nos muitas vezes uma vaga nostal gia, sempre reavivada por ocasião das festividades do Natal. A psicologia própria a essa mentalidade animista apresenta formas variadas e longe está de ser tão simples quanto poderiamos crer à primeira vista. Por exemplo, não é fácil saber em que medida a alma particular atri buída por certos povos africanos a partes do corpo (olhos, sangue, coração, fígado...), representa, para eles, a sede de uma potência vital experimentada como substancialmente una, ou se corresponde a um pluralismo radical do homem. Este problema, aliás, não está inteiramente elucidado nem sequer para o mundo homérico, no qual os indivíduos falam de si próprios dizendo: "meu caro coração" ou "minha cara cabeça". De qualquer maneira, o agrupamento em categorias das crenças manifestadas por certos povos primi tivos nos faz distinguir diversas espécies de alma: uma alma-vida, que aban dona o corpo durante o sono, vagueia e encontra, então, outras almas e após a morte procura outro corpo, e nele pode originar doenças (cabe, então, ao feiticeiro, expulsá-la e mantê-la no mundo dos mortos); uma alma-sombra, que acompanha o corpo no estado de vigília (para não perdê-la, os negros da Africa Ocidental evitam expor-se ao sol do meio-dia); uma alma- reflexo-do- corpo, que aparece nas águas e objetos brilhantes; e, por fim, outra espécie de alma, que o indivíduo tem em comum com um animal, por exemplo, e que acarreta uma identidade de destino e, até, de certas propriedades físicas e morais. Os gregos primitivos concebiam também a atividade vital sob as diver sas formas de sombra, de imagem, de simulacro, de espectros dos mortos, e depois deles os romanos distinguirão ogenius, a umbra (que aparece em redor do tumulus), do spiritus (que astra petit = sobe aos céus), e dos manes (que descem ao orco, reino subterrâneo das sombras). Significa isso que sua idéia de alma, que já parece implícita nas mais antigas concepções gregas do homem e seu destino, não difere fundamentalmente da que se encontra entre os povos primitivos em geral, e que constitui o animismo em suas diferentes formas. A idéia da alma semelhante ao corpo que ela ocupava, embora mais esmaecida e tênue, acrescenta-se a da alma como um sopro exalado no instante da morte. Freqüentemente, as decorações dos vasos gregos ilustram essa concepção pela imagem de uma borboleta('), mosca, ou outro inseto alado, a escapar-se pela boca do moribundo. Seria preciso lembrar que a vida do homem, na própria Bíblia, tem por origem um sopro de Jeová? (2) (1) O mesmo termo (psyche) designa borboleta e alma. (2) "E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o liontem foi feito alma si, ente.'' (Gê,ss'ss.s , 11. 7.) Não é fácil fazer idéia precisa do que tenha sido a fé religiosa na Grécia antiga, e excelentes humanistas discutem ainda sobre isso. Razão por que é difícil ligar as concepções presentes nos poemas homéricos às que se eviden ciamnos mistérios gregos, pois o mundo homérico, onde prevalece o heroís mo, é regido por deuses cheios de vida. E quase certo que a religião de Homero se afasta das tradições populares e é provável também que não excluísse uma corrente mística bastante mais profunda, vinculada especial mente ao culto de Deméter. Rohde julga que os poemas homéricos, prece didos por longa elaboração de legendas poéticas, e que descrevem um estado social avançado, manifestam antes um fim do que um começo. E pelo fato de nos apresentarem gregos muito evoluídos e ricos de experiência, o desenrolar dos funerais de Pátroclo parece-lhe sobrevivência de culto mais antigo. Tem- se observado freqüentemente que esses poemas exprimem um sentimento muito vivo da realidade concreta, bem mais objeto de interesse do que o desti no da alma separada do corpo: "ser como um deus na terra é ter suficiente mente todas as riquezas e todas as fontes de gozo material que faltam à maior parte dos homens( l)". Esse gosto pela vida, o homem o experimenta enquanto é, ao mesmo tempo, alma e corpo e essa união preside as suas atividades. "Se os homens da época homérica não falam expressamente da doçura e das alegrias da vida, é porque ela se apresenta muito naturalmente sob cores riso nhas a um povo vigoroso, em vias de desenvolver-se, dentro de condições sociais pouco complicadas e onde os fortes encontram facilmente as condições da felicidade no prazer e na ação. Pois, verdadeiramente, o mundo homérico não é feito senão para os fortes, os hábeis, os poderosos( Na Ilíada, os dois móveis essenciais da vida moral são o temor ao julga mento alheio e a utilidade coletiva da coragem, que ganha todo seu valor nos combates. Não se trata de recompensa ou de castigo no Além, nem mesmo de um poder - cuja noção surge na Odisséia - capaz de proteger por vezes o justo neste mundo. Tanto quanto o corpo que abandona, a psique não explica o mistério do homem como ser dotado concretamente de sentimentos, de desejos, de vontade, de pensamento. Esse homem ativo e consciente morre quando a alma, que é da natureza do vento, abandona o corpo pela boca, ou com o sangue de um ferimento, para dirigir-se ao Hades lamentando seu destino. Quando Pátroclo, ferido de morte por Heitor, morre predizendo que este também não viverá muito tempo, suas últimas palavras são assim pon tuadas: "Ele diz: a morte que tudo acaba já o envolve. A alma abandona seus membros e se vai, voando, para o Hades, lamentando seu destino, deixando a força e ajuventude... (3)" A sorte dos mortos não é invejável, ainda quando possamos imaginá-la privilegiada para as grandes almas mortas. Quando Ulisses saúda a inigua lada felicidade de Aquiles, que exerce agora - após ser honrado como um deus - seu poder sobre os mortos, o herói lhe responde amargamente: "Oh! Não pintes a morte com cores agradáveis, nobre Ulisses!... Antes preferia, (1) Fernand ROBERT. h'omère, P.U.F., 1950, pág. 46. (2) Erwin ROHDE, Psvché. edição francesa por Auguste Reymond, Paris. 1928. pág. 2. (3) Iliade, XVI, 850. tradução de Paul MAZON, coleção Universités de France. 4 5 encarregado do cuidado dos bois, viver servindo a um pobre proprietário agrícola, nada famoso por sua mesa, do que reinar sobre estes mortos, sobre todo este povo extinto! (1)" No reino de Hades e de Perséfone, para além do Oceano e do rio Aque ronte, a alma desencarnada volta a encontrar seus semelhantes, as almas dos mortos, que se agitam inconscientes nesse reino das sombras, impalpáveis, inconsistentes como o fumo, ou como a imagem refletida pela água, livres das agítações dos vivos, embora esses fantasmas conservem os mesmos traços daqueles. Quando Aquiles, ao cair da noite, se encontra na presença da alma de Pátroclo que implora sepultura, identifica-a pela forma e até pelo olhar. E essa alma, ela também, chora a vida perdida: "Sepulta-me logo, para que eu passe as portas do Hades. Lá estão almas que me afastam, me expulsam, sombras de defuntos. Não me permitem transpor o rio e a elas unir-me, e cis me a errar em vão de um lado a outro das grandes portas da morada do Hades. Vai, dá-me tua mão, peço-te chorando. Não sairei mais do Hades quando me tiveres dado uma parte de fogo. Não mais nos reuniremos em conselho, vivos, sentados longe dos nossos: o odioso trespasse me devorou. Aliás, tal era meu destino, desde o dia em que nasci... (2)" Os poemas homéricos nada nos ensinam acerca da origem desse corpo invisível, duplo do corpo visível, que a ele sobrevive como sua sombra; somen te sabemos que todo retorno é defeso aos mortos, separados dos vivos pelo Oceano e pelo Aqueronte. Por isso, os homens que vivem sobre a terra, nada têm que temer desses defuntos, nem se preocupam em obter-lhes favores ou render-lhes culto. 3. O culto de Dioniso Se o mundo homérico é um mundo heróico, para o qual a verdadeira vida é esta cá de baixo, pouco mais tarde- quando já se exerce a especulação racional dos pensadores jônicos - surge, ou ressurge, na Grécia, uma tendên cia religiosa e mística, fundada na crença em profundo desacordo entre a alma, investida de valor sagrado, e o corpo. A alma guarda nostalgia do Além, de onde procede, e o corpo lhe parece prisão ou túmulo. E de duvidar que as impressões produzidas pelos sonhos, pelos acontecimentos graves da exis tência, ou pelos fenômenos meteorológicos ou cósmicos, tenham bastado para originar tal crença; as emoções ligadas às práticas de certos cultos, particular- mente o de Dioniso, aí desempenharam, provavelmente, importante papel. Parece que esse culto nasceu muito cedo; talvez já existisse na Trácia na época pré- helênica. Sabe-se que seus adeptos, agrupados em associações secretas, em tíasos, o celebravam à noite, nas montanhas. Danças frenéticas, à luz de tochas, acompanhadas de gritos e ritmadas ao som de tambores e de flautas, suscitavam aquele delírio coletivo de que, ainda hoje, podem dar idéia as cerimônias sagradas de certas tribos negras( Tivessem tais cultos, como móvel original, um desejo de conciliar as misteriosas forças da natureza, (1) Odvssée, XI, 490, tradução de Victor BÉRARD. (2) 1/jade, XXIII. 70, tradução de Paul MAZON. (3) Elj}tIFlI)ES descreve esse euI em Li /,mrhu,,,o Á 'hr li r, Ii do por Mário Paris, l'ayot. 1923.) ou a celebração de mitos consagrados à memória dos avoengos, suscitavam eles uma exaltação delirante, cuja lembrança devia permanecer intensa e duradoura. Essa experiência pôde levar à convicção de que aquela misteriosa emoção de plenitude, despertada pelo deus e com ele identificada, era muito superior à vida mesquinha e quotidiana da terra e que, assim sendo, o corpo não possuía sentido senão como invólucro dessa alma revelada a si mesma( 1). Pensa-se tenha cabido aos órficos, cuja seita parece ter aparectdo na Grécia em meados do século VI antes de nossa era, dar ao culto de Dioniso certa con sistência e disseminá-lo na Atica, na Sicília e no sul da Itália. Sem que se possa estabelecer um contato absolutamente certo, revela-se espantosa seme lhança entre essa vaga mística e as crenças então existentes na India( 4. O mito órfico Sua doutrina, obra dos participantes da seita, era atribuída a Orfeu. Tinha por centro a lenda de Dioniso, filho de Júpiter e de Perséfone, que procurava fugir aos cruéis Titâs por meio de todo tipo de metamorfoses, e que, transformado em touro, foi por eles retalhado. Os Titãs foram queima dos pelo raio de Zeus. E como houvessem absorvido a vida do deus, ao devorá lo, o gênero humano, nascido de suas cinzas, traz dentro de si o duplo princí pio do bem e do mal. Nessa lenda, nascida para explicar o esquartejamento ritual do touro que representa o deus,transparece um motivo metafísico: a pluralidade - isto é, o mundo - nasceu de um crime cometido contra a unidade do deus, e o objetivo final é, portanto, o retorno à unidade indevidamente quebrada. O corpo (elemento títanesco) é um túmulo para a alma (elemento dionisiaco): libertar-se dele torna-se o fim supremo. Mas como é possível essa libertação, uma vez que a alma não deixa um corpo senão para introduzir-se em outro, segundo a dura lei de Anánke, a dolorosa "roda dos nascimentos"? Pela purificação, pela ascese. E só quem se submete aos preceitos da vida órfica e repudia os prazeres do corpo e as atrações da vida terrena pode conhecer semelhante libertação. Após a morte, purificada, a alma participa de um banquete em que se embriaga; depois, voa para os astros a fim de ai desfrutar vida eterna. Parece que o ensinamento dos pitagóricos terá devido muito ao dos órfi cos, mas que deste se distingue por preocupações científico-racionais ligadas àquela ascese que deve assegurar a purificação da alma. Sabe-se que o pitago rismo constituiu um movimento tanto religioso, moral e político, quanto inte lectual. A documentação referente a isso é duvidosa, e nela se encontra sem pre a lenda de mistura com uma história que nos foi transmitida indireta mente. Essa história se refere a duas épocas diferentes. A primeira, que vai da fundação da escola de Crotona (cerca de 530 a.C.) até a morte de Platão (cerca de 350 a.C.); a segunda, neopitagórica, iniciada no primeiro século de (1) DURKI-IEIM. em Les fomises llémentaires de/a eje reíigieuse, trata da reflexão que se exerceu sobre as emoçães do culto. Sua interpretação sociotógica foi abundantemente comentada e discutida. Qualquer que seja seu valor, não poderia, evidentemente, ser decisiva quanto à própria natureza da alma humana, cnadora desses cultos que os macacos antropóides ignoram... - (2) Tem-se observado que. ao tempo de PITAGORAS. os delegados das cidades gregas da Asia Menor puderam encontrar os das provincius ocidentais da India na corte do rei dos persas, senhor de umas e de Outras. 1 6 7 nossa era. As doutrinas atribuídas aos pitagóricos do primeiro período, cujo conhecimento exige freqüentemente a utilização de textos do neopitagorismo, são muita vez contraditórias, e é impossível atribuí-las todas apenas a Pitá goras. Por outra parte, se é considerável a bibliografia de obras e artigos con sagrados aos mistérios órficos, não é menos certo que nada sabemos de seguro quanto a seu surgimento e organização; todas as informações propaladas a este respeito são duvidosas. No que se refere aos mistérios de Elêusis, dados mais sólidos não deixam nenhuma dúvida quanto à organização a eles relacio nada, e nem por isso é menos difícil representarmos com certeza as cerimônias que presidiam às iniciações. Parece, contudo, que nessa cidade, onde as gran des famílias partilhavam as principais funções religiosas, os iniciados eram mergulhados nas trevas, aterrorizados por visões de morte, depois subita mente inundados de luz ofuscante; em suma, a cerimônia de iniciação com portava realmente o simbolismo de um chamado a uma vida nova. 8 era. As doutrinas atribuidas aos pitagóricos do primeiro período, cujo cimento exige freqüentemente a utilização de textos do neopitagorismo, auita vez contraditórias, e é impossível atribuí-las todas apenas a Pitá Por outra parte, se é considerável a bibliografia de obras e artigos con dos aos mistérios órficos, não é menos certo que nada sabemos de seguro to a seu surgimento e organização; todas as informações propaladas a espeito são duvidosas. No que se refere aos mistérios de Elêusis, dados sólidos não deixam nenhuma dúvida quanto à organização a eles relacio e nem por isso é menos difícil representarmos com certeza as cerimônias residiam às iniciaer P," - ae Iutclaçao com - de uni chamado a urna vida nova O NASCIMENTO n 1. °5Priznejj. 3. Parmj 5quatr 4 c men Diógenes de4f JÔfljCOS No momento em que florescia na Grécia a corrente mística de nasceriam os mistérios uma primeira forma de pensamento racional apai na Jônia, por obra de homens cuja originaji e Poder de espírito cati de novo o interesse dos filósof de Nietzsche a Heidegger Em vez de p do problema da alma, cuja individualidade é misteriosamente Postulada mito Ó de sua origem e de seu destino osjônicos indagam sobre om como naturalistas. Com eles o problema da situação do homem no unive fl é abordado exp!icitamet como irá acontecer quand o pensarne humano (já com os Søfistas) tomar consciência por uma distância interior, complexidade do ato de conhecer Nessa época, tudo se passa como se o es I do investig sobretudo impressionado pelos aspectos variados universo o questi0n nele englob de imediato o ser humano Parece deverse a Tales, o primeiro desses gran homens da Jônia, noção dephy no sentido de um Princípio de Unidade que, sob o movimeni e a transformação das qualida diversas do real, produz e faz envolver Coisas Pou importa assim, que Tales tenha assimilado essa phys ess elemento fundament à água, talvez após refletir sobre as enchentes do Nilo O essencial é que tenha enunciado pela primeira vez, a exigênc de u realidade natural objetiva - existente independentemente do homem e tenha aberto assim caminho a toda investigação científica Em Anaximan dro, autor de um tratadoD natureza do qual resta um frag inte uma realidade origjn indeterminada e ilimitada o riao mundo por meio de urna ptura CA? 8 CAPÍTULO 2 O NASCIMENTO DA EXIGÊNCIA RACIONAL 1. Os primeiros jônicos 2. Heráclito e o devir 3. Parmênides e o Ser imóvel 4. Alcmeão de Crotona 5. Os quatro elementos de Empédocles 6. O Nous de Anaxágoras 7. Diógenes de Apolônia 1. Os primeiros jônicos No momento em que florescia na Grécia a corrente mística de que nasceriam os mistérios, uma primeira forma de pensamento racional aparecia na Jônia, por obra de homens cuja originalidade e poder de espírito cativam de novo o interesse dos filósofos, de Nietzsche a Heidegger. Em vez de partir do problema da alma, cuja individualidade é misteriosamente postulada no mito órfico, de sua origem e de seu destino, osjônicos indagam sobre o mundo como naturalistas. Com eles o problema da situação do homem no universo não é abordado explicitamente, como irá acontecer quando o pensamento humano (já com os sofistas) tomar consciência, por uma distância interior, da complexidade do ato de conhecer. Nessa época, tudo se passa como se o espí rito do investigador, sobretudo impressionado pelos aspectos variados do universo, o questionasse, nele englobando de imediato o ser humano. Parece dever-se a Tales, o primeiro desses grandes homens da Jônia, a noção dephysis, no sentido de um princípio de unidade que, sob o movimento e a transformação das qualidades diversas do real, produz e faz envolver as coisas. Pouco importa, assim, que Tales tenha assimilado essa physis, esse elemento fundamental, à água, talvez após refletir sobre as enchentes do Nilo. O essencial é que tenha enunciado, pela primeira vez, a exigência de uma realidade natural objetiva - existente independentemente do homem - e tenha aberto, assim, caminho a toda investigação científica. Em Anaximan dro, autor de um tratado Da natureza, do qual resta um fragmento, intervém uma realidade originária, indeterminada e ilimitada, o dpeiron, de que provi- ria o mundo por meio de uma ruptura, seguida de diferenciações progressivas. 9 Teve o pressentimento de uma evolução das espécies vivas, a partir do limo do mar; e também a idéia - caberia ver nela a expressão filosófica das crenças órficas? - de uma espéciede pecado ligado à ruptura da unidade original. Quanto a Anaxímenes, seu discípulo, crê que o elemento essencial é o ar, entendido provavelmente num sentido que engloba tanto os ventos, os vapores e as nuvens, quanto o espaço e o ar respirável. Cronologicamente, sua teoria é a primeira de todas aquelas, singularmente florescentes na Antigüidade, que atribuem papel privilegiado a esse elemento indispensável à vida. Dela se originará a noção de pneuma, sopro criador da vida e animador dos organismos. Essas primeiras filosofias são de admirar pelo cuidado novo de uma visão racional da realidade, pela reivindicação audaciosa de uma verdadeira explicação desligada dos mitos. Por esta razão, e provavelmente sem que isto fosse deliberado, transformaram completamente a noção homérica da alma que, de simples duplo do corpo visível, apenas capaz de contemplar as vicissi tudes da existência, se vê elevada à dignidade de princípio cosmológico, fonte e motor do movimento e da vida. Tal promoção implicava o abandono de sua individualidade após a morte, embora esta conseqüência, a julgar por certos textos, tenha, provavel mente, escapado aos pensadores jônicos. Pois, se a alma individual não é mais do que parcela da alma universal aplicada a um corpo particular e de idêntica natureza, seu destino só pode ser o de a ele retornar após a morte, como a vaga retorna ao mar. 2. Heráclito e o devir A filosofia jônica atinge o ponto culminante com o pensamento de Heráclito. Dele (morto talvez por volta de 480 a.C.) possuímos certo número de sentenças lapidares, algumas das quais têm sua autenticidade posta em dúvida( 1). Esse pensador genial, hoje considerado o pai do método dialético, teve uma intuição das coisas que dele faz quase um moderno, tanto é verdade que nossa civilização, mutatis mutandis, se increve sob o signo dessa mobili dade universal a que seu nome permanece ligado. A visão heraclítica do mundo, e a de Parmênides, seu contemporâneo, constituem os dois pólos entre os quais o pensamento ocidental oscilará constantemente. Pode-se dizer que suas doutrinas antagônicas se nos apresentam, na perspectiva histórica em que nos achamos, como as colunas de Hércules de toda a nossa tradição. Para Heráclito, a mobilidade, inscrita no próprio coração do universo, engendra incessantemente a multiplicidade de suas formas. A energia funda mental, animadora e ordenadora desse eterno devir, tem sede num elemento quente e seco, concebível unicamente em termos de movimento, a que se refe rem todos os processos orgânicos e naturais, e que Heráclito chama de fogo. Chama de "caminho para o alto" e "caminho para baixo" o que seriam as leis das transformações constantes do real. Admite-se que por isso deve entender- se um processo de contração e de dilatação, a condensação extrema do fogo a (li A interpretação dos pré-socráticos suscita ittúmeros probletttas filológicos delicados e. tnuifas vezes. controvertidos. Encontra.se a tradução integral dos fragtstentos originais e doxografias referentes a 1-IERACLITO (e também a PARMÊNIDES e a EMPEDOCLES). no volume de Yses BATTISTINI, Troitco,t e,oporaio,. col. Les Essais, Galli,nard. 1955. 10 produzir a terra, que ela própria se dissolve em água, enquanto as exalações desta última produzem o ar, donde novamente nascerá o fogo. Continuamen te, as mudanças da temperatura acarretam mudanças de estado dos corpos orgânicos e fazem passar os sólidos ao estado líquido ou gasoso. Parece, igual mente, que Heráclito, teria tido a idéia do Eterno Retorno, presente nos estói cos e em Nietzsche ("O fogo, progredindo, tudo julgará e arrastará"). Seus discípulos, pelo menos, lhe atribuíram a crença de que o mundo, em datas regulares e fixadas pelo destino, é inteiramente absorvido pelo fogo de que emana, para voltar a renascer, e isso eternamente. E muito difícil fazer idéia do que poderia ser a "psicologia" de Herá dito, tão poeta quanto filósofo. E bem verdade que existe, a esse respeito, significativo texto de Sexto Empírico('), consagrado a uma exposição das idéias heraciticas por Enesidemo; não se sabe, contudo, até que ponto este último acrescentou de si próprio. Atribui a Heráclito a idéia de que "o que nos rodeia é dotado de consciência". Semelhante opinião parece confirmada por outros fragmentos do próprio Heráclito, que designam o fogo universal como o Logos. Registra, também, Enesidemo que a razão humana, segundo Herá dito, se deve ao fato de que "aspiramos a razão divina pela respiração". Se nos esquecemos durante o sono, para nos tornarmos de novo conscientes ao despertar, é porque "durante o sono, quando se fecham as aberturas dos sentidos, o espírito que está em nós perde o contato com o que nos circunda, e apenas conservamos nossa relação com o meio através da respiração, como uma espécie de raiz". Ao despertar, esse espírito "olha pelas aberturas dos sentidos como por janelas. e retoma, reunindo-se ao espírito que o circunda, a faculdade da razão". Finda o fragmento por uma afirmação que testemunha a indissolúvel solidariedade postulada por Heráclito, entre a alma universal e a alma humana: "Assim como o carvão que muda e se torna ardente quando o aproximamos do fogo, e se extingue quando dele o afastamos, a parte do espírito circunjacente que reside em nosso corpo perde a razão quando dele é desligada, e de igual maneira recu pera uma natureza semelhante à do Todo, quando o contato se estabelece pelo maior número de aberturas." Como a existência da alma humana é atribuída a uma parte da reali dade universal, parece realmente que os problemas a ela relacionados são, para Heráclito, os mesmos que ele se propõe relativamente a toda a realidade. Se o homem é capaz de respirar, de sentir e de raciocinar, é porque no universo existem ar, qualidades e razão. "O homem é naturalmente privado de razão"; "O homem não possui razão. Apenas o ambiente é provido dela". E como as qualidades estão em oposição constante, deve-se deduzir que a oposição é requerida pela própria sensação, ligada a certo tipo de relação estabelecida entre contrários. Quanto à passagem da sensação ao raciocínio, assinala-se, para ele, por uma distinção entre a opinião e o conhecimento. ("A multidão não medita sobre nada do que lhe acontece; e ainda, uma vez instruída, não o compreende; apenas se imagina a respeito.") O homem, esse microcosmo, combina em si os elementos que lutam no universo e, como eles, está sujeito ao caminho para o alto" e ao "caminho (1) Ade. math. (contra os que ensinam as ctênctas), VII. 11 Á para baixo". As comparações heraclíticas entre a vida e o rio são por demais conhecidas para que seja necessário insistir sobre elas: Não podes descer duas vezes nos mesmos rios; pois novas águas correm sempre sobre ti. Descemos e não descemos nos mesmos rios; somos e não somos. Ser e não ser, eis o incessante devir; e, nesse fluxo universal, seres e coisas mudam de lugar eternamente: "E são em nós a mesma coisa o que é vivo e o que é morto, o que está desperto e o que dorme, o que é jovem e o que é velho; aqueles são mudados de lugar e se tornam nestes, e estes, por sua vez, são mudados de lugar e se tornam naqueles." O corolário desta absoluta mobilidade é a relatividade universal: "As coisas frias se tornam quentes e o que é quente se resfria, o que é úmido vem a secar, o que secou se faz úmido. A água do mar é a mais pura e a mais impura. Os peixes podem bebê-la, para eles é saudável; não pode ser bebida e é funesta para os homens." E como os contrários coexistem em toda parte, transformando-se uns nos outros; o próprio homem é teatro de contradições permanentes: "Não é bom para os homens obtertudo quanto desejam. A doença é que torna agradável a saúde; mal, bem; fome, saciedade; fadiga, repouso." O fogo e a água não podem equilibrar-se por muito tempo numa alma e, quando um dos dois elementos aí adquire demasiada predominância, a morte sobrevéni: "Para as almas é morte tornar-se água, e morte para a água é tornar-se terra. Mas a água provém da terra e a alma, da água." prazer: A morte pela água espreita as almas que se deixam dominar pelo "É prazer para as almas tornarem-se úmidas", enquanto o fogo, manifestado pela tensão interior, lhes confere valor moral singular. "A alma seca é a mais sábia e a' melhor." Nem por isso é menos evidente que a excessiva predominância do fogo acarreta, igualmente, a morte. Os fragmentos relativos a esse fim da alma são dos mais sibilinos e mal permitem conhecer-lhe os caracteres específicos: "Deuses e homens honram os que tombam na batalha. Os maiores mortos ganham as maiores porções." Do fato de a alma humana ser identificada com a força animadora do universo, veio a idéia de inferir que seu destino é voltar ao principio, ordenador 12 do universo e que o ser humano nada mais é quando o fogo, sabedoria do mundo que lhe confere a razão, o deixou; Mais vale jogar cadáveres que esterco." Certos fragmentos, contudo, parecem infirmar essa conseqüência: "Os mortos têm sensações no Hades. Após a morte, aguardam os homens coisas que eles não esperam, nem mesmo imaginam." Se a consciência da complexidade dos problemas envolvidos pelo que os modernos chamarão "teoria do conhecimento" está forçosamente ausente em Heráclito, não se poderia atribuir-lhe, sem risco de erro, unia visão do mundo obnubilada por materialismo ingênuo, pois, se, para ele, tudo é matéria - embora fosse necessário saber exatamente o que entende Heráclito por Logos (1) - trata-se de matéria em movimento, a tal ponto que não dissocia os dois termos. E seu sentimento profundo, e até trágico, do mundo como siste ma eterno de relações onde nada está em repouso levou-o, certamente, a pensar que o que chamamos sensibilidade e razão, como produto de uma rela ção, não pertence exclusivamente mais ao sujeito do que ao objeto - para dizer as coisas em linguagem moderna. Não poderíamos, porém, estender-nos em conjeturas sem forçar as coisas. Por outro lado, é lícito observar que a escolha do fogo como elemento primordial assinala progresso relativamente às especulações anteriores, pois, a água e o ar não entram em todas as mudanças da natureza. Conhece-se a importância que a filosofia hegeliana e o materialismo dialético voltaram a dar à visão heraclítica do mundo, com sua preocupação comum de ultrapassar os limites, considerados por demais estreitos, das evidências fundadas numa rígida aplicação do princípio de identidade. (*) 3. Parmênides e o Ser imóvel Enquanto Heráclito fundara sua concepção do mundo na verificação das mudanças qualitativas que nos oferece a percepção sensível, dissolvendo F todas as formas do real no eterno devir, Parmênides é o autor de uma doutrina que constitui a primeira reivindicação intransigente do pensamento racional, com a exigência da identidade como único fundamento e critério da Verdade. Segundo ele, uma coisa é, ou não é. Para salvaguardar a permanência, reque rida pelo exercício do pensamento através das variações dos dados sensoriais, fez do devir pura aparência, sem consistência possível nessa realidade una e idêntica a si mesma, tomada pela sua razão como evidência lógica irrecusável. Pois um objeto, para mover-se, deve, ao mesmo tempo, estar e não estar em (1) Só enisle uma sabedoria conhecer o Pensamento que dirige todas as coisas por meio de todas as coisas. 'As fronteiras da alma não poderás atingi-las, por mais longe que, por todos os caminhos, te conduzam teus passos: tão profunda é a Palavra que a habita. (*) V., a respeito da influência de HORACLITO: Fêticien CHALLAYF. Pequena história das grandes /tIvsss/is trad. port. de Lut, DAMASCO PENNA ei, B. DAMASCO FENNA, sol. 91 ,l "Atual Posta gôgtcas". São Pauto. 1966, pí,gs. 19-20. (1. tI. O. 1'.) 13 dado lugar. É impensável, porque é contraditório; e, uma vez que é contra ditório, é falso. Como o pensamento exige isto: o que é (to eon), é absoluta mente, mister se faz afirmar que não há senão uma só realidade, incriada e indestrutível, cuja unidade, plena e indivisível, exclui todo movimento real, isto é, toda mudança real. Fora dessa verdade absoluta, não pode haver senão aparências. opiniões sujeitas à ilusão e ao erro. Por isso, não se pode admitir nem geração, nem destruição, nem devir. A escassez das fontes e seu caráter duvidoso não permitem saber que destino essa doutrina todo lógica reservava ao domínio da psicologia, necessa riamente colocada do lado da ilusão própria àquela opinião que Parmênides subordina à verdade. Pensa ele que o homem saiu do limo da terra e que a alma, enquanto princípio de vida, é um composto de calor e de frio em equili brio. A proporção desses elementos num indivíduo lhe determina o caráter do pensamento, e a velhice decorre de uma perda de calor. A sensação, enquanto é, jamais pode desaparecer completamente; e o próprio cadáver experimenta o frio, o silêncio e a obscuridade. Parmênides parece haver atribuído a diver sidade das sensações a eflúvios que trazem aos poros as imagens dos objetos, e parece ter admitido que o sujeito também é, de certo modo, ativo, conside rando que o olho, por exemplo, emite raios que entram em contato com os objetos exteriores, O que parece certo é que a alma, enquanto princípio motor, foi de por Parmênides, de toda consistência ontológica, em proveito da alma entendida como sujeito de conhecimento. Pois sua dignidade não está na vida - que é movimento e não- ser - e sim no pensamento, que coincide com a existência absoluta. 4. Alcmeão de Crotona O motivo de inspiração em Pitágoras revestia duplo aspecto: místico e científico. Um homem eminente, Alcmeão, desenvolveu de tal maneira o últi mo deles, que pode ser saudado como fundador da psicofisiologia experimen tal. Ligado à escola médica de Crotona - anterior, talvez, à confraria pitagó rica nessa cidade - e discípulo de Pitágoras, era, a crer em Aristóteles, muito jovem ainda, quando o mestre atingia idade avançada. Anatomista e fisio logista, dedicou-se à dissecaçãQ de inúmeros cadáveres de animais. Permi tiram-lhe essas experiências descrever duas espécies de vasos no corpo hu mano: as veias ph/éhes), que conduzem o sangue, e as artérias, que encon trou vazias de sangue. Essa distinção se perdeu depois, e por muito tempo se confundiram todos os vasos. Alcmeão se entregou, igualmente, a pesquisas sobre o funcionamento dos órgãos sensoriais. Neste campo, parece ter-se dedicado a investigações sistemáticas, indagando, principalmente, a propó sito da visão, qual o papel desempenhado pelo próprio olho e pela imagem nele refletida; e, a propósito do ouvido, que papel se poderia atribuir ao ar. Levaram-no seus trabalhos a descobrir certos canais ou "passagens" (os nervos ainda não se consideravam como tais) que unem os diferentes órgãos ao cérebro, e a reconhecer no cérebro uma função de primeira importância, quando ficou patente que, por meio de lesões de certas "passagens", poderia impedir-se que certas sensações lhe chegassem. Parece ter feito distinção - não se sabe, porém, como - entre as sensações e o pensamento. Dc qualquer modo, teve o mérito de ver que o cérebro desempenhava papel privilegiado, uma vez que. antes dele, se admitia que o sensorium conimune era o coração. Hipócrates e Platão lhe conservarão a importante descoberta, mas Empédo eles, Aristóteles e os estóicosretornarão à idéia antiga. Alcrneão, que realizou também pesquisas embriológicas. investigou a natureza do sono e as condições que presidem à saúde. Alguns dos seuS pontos de vista parecem integrar as doutrinas hipoeráticas. Pois consideras a que a Díke, a justiça, representa o estado normal do mundo, que a saúde se deve ao equilíbrio das potências (isonomia) e às justas proporções das qualidades (crase): úmido, seco, frio, quente, doce, salgado... Quando algumas dessas qualidades predominam injustamente, instala-se o estado anormal, que acarreta a doença. A importância de Alcmeâo, pelo primado que estabelece da experimen tação sobre a teoria, da antropologia sobre a cosmogonia, não poderia ser superestiniada: é provável que sua influência tenha siclo considerável( ). 5. Os quatro elementos de Empédocles Extraordinária figura é a de Empédocles, filósofo, poeta, médico e mago inspirado. Em sua obra lírica - escrita em verso, a exemplo de Parmê nides - se reencontra a maior parte dos elementos presentes nas doutrinas de seus predecessores: a água, de Tales, o ar, de Anaxímenes, o fogo e o devir, de Heráclito, o Ser Absoluto de Parmênides, num contexto de inspiração, por outro lado, estreitamente aparentada à da corrente órfico- pitagórica. Pois. sua concepção de alma, onde reaparece a intuição órfica da vida, diverge da concepção, inteiramente cosmológica, dos jônicos. Ele vê na alma uma reali dade decaída de uma Idade de Ouro, e cuja essência, origem e destino são sobrenaturais. As almas, "demônios imortais", foram expulsas da morada dos felizes em conseqüência de um erro nascido do Odio. Precipitadas sobre a terra, entram no turbilhão dos elementos, obrigadas a transmigrar de um corpo a outro, até a libertação final. Para renascer ao lado dos deuses, libe rado da roda dos nascimentos, é preciso viver em pureza e ascetismo. Empé docles acredita lembrar-se de suas existências anteriores: "Já fui, outrora, menino e menina, moita e ave, mudo peixe do mar." (Frag. 117.) Estende a metempsicose também às plantas, primeiras criaturas vivas surgidas cá embaixo, e invoca a lei da transmigração das almas para condenar o sacrifício dos animais, quer para oferenda aos deuses, quer para alimentação. Esta concepção mística da alma, convocada a tão alto destino, vem acompanhada de visão muito naturalista do mundo, mistura de quatro elementos: o fogo, o ar, a terra e a água. Esses elementos, "raízes" de todas as coisas, ao mesmo tempo materiais e dotados de consciência, se agregam e se desagregam inces santemente, sob a dupla ação do Amor e do Odío, e condicionam as quali dades fundamentais dos humores: quente, frio,.seco, úmido. Há, pois, na Ii Quan tu Se r,Ililrrttaç(Iee Sue urúfjeas e SiNt rúftc,te. ef. Jt,hrt RL'RNET, L 'aurore dr Ia p/,,Io.vophu 'e utltçüu frattueea de Atttt. RLVMONe P.ttie, 'ueut. SUS. puxe. 225227. 14 15 origem, pluralidade de princípios imutáveis e específicos. Para conciliá-la com a unidade, Empédocles faz intervir sua teoria da mistura, atribuindo a esses elementos fundamentais - invariáveis em quantidade e em qualidade - o caráter de agrupar-se em virtude de duas leis: a atração dos semelhantes pelos semelhantes e a repulsão dos contrários. Essas leis são por ele invocadas em favor de uma forma de evolucionismo, a qual não vemos muito bem como conciliar com seus pontos de vista místicos sobre a alma: pois relaciona com os quatro elementos a vida e a forma dos corpos, e ao limo elevado a certa temperatura, a capacidade de produzir animais. No início, a Terra era povoada de monstros: "Sobre a Terra nasceram jnúmeras cabeças sem pescoço, e braços vagavam nus e sem espáduas. Olhos vagueavam, desprovidos de frontes." (Frag. 57.) Ao acaso dos encontros, esses corpos incompletos tendiam a unir-se em virtude da lei cIa afinidade, e muitas criaturas nasceram com rostos e peitos voltados em direções diferentes; algumas geradas de touro com face de homem; outras, ao contrário, geradas por homens com cabeças de touro, e criaturas nas quais a natureza dos homens e das mulheres se mistu ravam, e providas de partes estéreis." (Frag. 61.) Entre esses primeiros seres, houve os que foram, casualmente, capazes de conservar a vida e reproduzir-se. Inicialmente haste sólida e unida, a coluna vertebral fragmentou-se em vértebras por desarranjos acidentais e fraturas, enquanto, através do corpo, no decorrer de sua gênese, correntes de água criavam as cavidades abdominais, os intestinos, o sistema urogenital, e uma corrente de ar centrífuga formava as narinas. Os órgãos da respiração e da nutrição foram os primeiros em surgir nas primeiras formas animais; vieram depois os órgãos sexuais, diferenciados segundo a quantidade de calor. O papel deste último é essencial à vida; sua diminuição acarreta o sono; seu esgotamento, a morte. Devem-se a Empédocles, que se dedicou à dissecção, as primeiras noções positivas de embriologia. Descobriu que o embrião se nutre pela placenta e, não, como cria Alcmeão, pelo corpo todo. Na matriz, o embrião está envolvido numa membrana que contém também as águas, o âmnio (o nome foi conservado). A alma se forma com o embrião e é insepa rável do sangue: "Nutrido de altas vagas do sangue estridente, o coração traz aos homens o pensamento nas espirais de seu fluxo. O sangue que banha o coração é pensamento." (Frag. 105.) Como todas as partículas infimas das coisas, ela se move pelos canais denominados poros (pómi). Admitindo ser o coração a sede das sensações, Empédocles representa um recuo em relação a Alcmeão; o coração é também, para ele, por não distinguir entre sentir e pensar, a sede da vida mental. A formação dos músculos resulta de uma mistura igual dos quatro elementos. Uma superabundância de fogo e de terra produz os ligamentos (neíira), e uma superabundância de água e de terra, os ossos. Quanto às unhas, são neüra que receberam ar. Existe um texto muito significativo de Empédocles (Frag. 100) a res peito do ar no fenômeno da respiração. Viu muito bem que esta interessa a todo o organismo, por intermédio dos poros disseminados na superfície da pele, e não apenas aos órgãos incumbidos dessa função. Para explicar que o ar penetra pelos poros ao retirar-se o sangue para o interior do corpo, e é expulso quando o sangue retorna à periferia, recorre Empédocles à analogia com uma clepsidra mergulhada em água. Esta, quando o tubo superior está fechado, não pode entrar pelos pequenos orificios de baixo, mercê da presença do ar; mas, assim que o dedo obstrutor do tubo se ergue, a água penetra à medida que o ar escapa. Desempenham os poros importante papel na concepção de Empédocles. Pois, é por eles que se transmitem as partículas que se destacam dos objetos para suscitar a percepção. Os órgãos sensoriais correspondem a esses objetos, em virtude da afinidade que une seus elementos comuns. Pelos eflúvios emanados e captados, uma porção da coisa percebida vem unir-se à mesma substância contida no sujeito percipiente. Em outros termos, o conhe cimento é atribuído por Empédocles (cujos fragmentos revelam um senso patético das "correspondências" entre tudo que existe) a uma ação do semelhante sobre o semelhante: "Pela terra, pela água, pelo ar em nós, conhecemos a terra, a água e o éter divino, e pelo fogo, o fogo devorador, e o amor, pelo amor, o ódio, pelo ódio maldito." (Frag. 109) É o produto de uma relação de simpatia entre as emanações e os órgãos receptivos. O que é aparentado às partes constitutivas do indivíduo produz nele, ao mesmo tempo que o conhecimento, um sentimento de prazer. O que lhe é oposto, origina a aversão. Essas afinidades explicam, segundo ele, todas as percepções. No querespeita à visão, existe no universo uma luz aderente a todo objeto sensível, cujos raios atingem o olho. Tais emanações luminosas, formadas de partículas ínfimas, têm afinidade com a luz interna do olho. Quando um raio toca o olho, as partículas do fogo interno deste saem ao encontro das partículas do raio e se produz a imagem. De sua atribuição de partículas à luz, já inferia Empédocles ser necessário um certo tempo para que ela se desloque dum ponto a outro. No referente ao som, é ele captado pelo labirinto do ouvido e depende dos poros ao longo dos quais se move. Empédocles descreve a cartilagem do caracol, a qual julga ser, no ouvido interno, o próprio órgão da audição. Como já observei, a dificuldade é conciliar, nesse pensador genial, a concepção mística da alma e seus pontos de vista naturalistas. Pois não é muito de duvidar que o Amor e o Odio, são, para ele, tão corpóreos quanto os demais componentes do universo: o fogo, o ar, a terra e a água. O indivíduo é gerado pela união transitória de tais elementos, daí resultando que a dosagem deles explica suas qualidades particulares. Pode-se ver nisso como que o rudimento de uma caracterologia: a idéia de que o corpo, sua estrutura e seu funcionamento influenciam a vida psíquica e mental. A teoria de Empédocles, sob seu aspecto hiozoísta e alquimista, exerceu, por certo, grande influência. No plano médico, voltamos a encontrá la na escola hipocrática, sob a dupla forma do princípio homeopático: sitnilia similibus curantur, e da teoria dos quatro temperamentos. 16 17 6. O Noõs de Anaxágoras À idéia dos jônicos de que a matéria contém em si mesma a força que a anima, opõe Anaxágoras( 1) uma concepção que preludia o idealismo platônico: a de um princípio ordenador do universo, independente dos elementos que o compõem e do que ele contém. Este princípio é o Nous, isto é, a Inteligência ou o Espírito, embora convenha, sem dúvida, não atribuir a este termo o sentido absolutamente imaterial que reveste desde Platão. Pois se Anaxágoras pretende realmente significar com ele uma espécie de razão ou de inteligência universal, um princípio de organização cósmica, é sob a forma de um fluido universal. Identifica esse Noíis à divindade, e sua cosmogonia atribui-lhe a forma ção de mundos inumeráveis. E esse fluido cósmico, em ação por toda parte, que confere à matéria um movimento giratório do centro para a periferia e anima tudo quanto vive: plantas, animais e homens. Entre essas diferentes formas de vida, não vê Anaxágoras senso diferença de grau. Parece admitir que as próprias plantas são providas de consciência, experimentam prazer quando crescem e sofrem quando as folhas tombam( Vale dizer que não distingue, aparentemente, a consciência das funções vitais e que a generali zação deve entender-se ao nível do movimento e dessa atividade que hoje chamamos biológica. Parece não se ter proposto o problema de urna consciêri cia própria ao ser humano como tal, origem de sua ação especifica. Por isso, é difícil compreender como este princípio ordenador - a um tempo espírito, sopro, alma, conhecimento - pode, simultaneamente, I separado do mundo e explicar o movimento e a vida. Os seres vivos, originários do limo da terra, estão plenos do espírito que toma consciência dos fenômenos mediante os órgãos imperfeitos dos sentidos. Parece que o desenvolvimento maior ou menor do Noíis em suas manifestações particulares deva ser atri buído à mistura dos elementos constitutivos dos organismos. Porque. diz-nos Anaxágoras, se ele permanece separado das substâncias que a ele se misturam sem cessar no universo, 'Todas as outras coisas participam em certa medida de cada coisa, enquanto o Noãs é infinito e autônomo, e a nada se mistura, mas é só, e só ptr si." (Frag. 12.) ele nem por isso deixa de estar ligado a esses organismos que variam em função dos elementos que a ele se misturam. Assim, nele, como em Empé docles, aparece certa noção da influência da vida orgânica sobre o psiquismo. A sensação decorreria de modificações sobrevindas no organismo por contatos ou por impressões com elementos diferentes. Pois Anaxágoras, em oposição à concepção empedóclia da percepção do semelhante pelo semelhante, introduz a idéia de uma percepção do contrário pelo contrário. Do princípio de que "em cada coisa há uma porção de cada coisa" (Frag. 11), deduz que qualquer organismo contém todas as diferenças possíveis de qualidade e, por conse guinte, elementos opostos aos de todo objeto possível de percepção. Assim., a visão, por exemplo, é produto de uma imagem projetada sobre a parte da (1) Nascido em Clazômena, talvez por volta de 460 a.C., ANAXÂGORAS foi o primeiro filósofo que se fixou em Atenas. Daí veio a ser enpulso mais tarde, por impiedade, por obra da instigação dos adversártos de PERICLES, de quem era mestre e amigo (PLATAO, Phv 269 Médico, dedicou-se a pesquisas sobre os animais e as plantas, muito provavelmente a dissecções. (2) D,e Fragmente der Vorsokrat,ket. de Hermann DIELS. 2t ed., fragmentos 46 a 117, Berltm, 1906. pupila de cor oposta à do objeto percebido. Conhecemos o frio pelo quente, o fresco pelo salgado, o doce pelo amargo, em virtude de contraste entre os elementos coexistentes, em grau diverso, no sujeito e no objeto. Anaxágoras observa, a esse propósito, que a percepção se torna dolorosa quando sua fonte é muito intensa, para deduzir daí que "toda sensação implica sofrimento", atenuado pelo hábito('). 7. Diógenes de Apolônia Segundo Diógenes de Apolônia( procedente da escola de Anaxí menes, o ar é o princípio universal do cosmos, cuja coesão assegura; é, ainda, o sopro vital presente no indivíduo como a fonte unificadora de suas funções fisiológicas e psíquicas. Tão médico, quão filósofo, é na experiência imediata que Diógenes encontra as "grandes provas" dessa supremacia do ar: Os homens e os outros seres animados vivem do ar, respirando-o, e ali estão sua alma e sua inteligência...; porque se lho retiramos, morrem, e sua inteligência se extingue." (Frag. 4.) Eternamente móvel, o princípio primeiro está na origem de todo movi mento. Por um processo de rarefação e de condensação, produz a diversidade das coisas e dos mundos, em número infinito. Suas múltiplas transformações bastam para explicar os fenômenos variados do universo. Diógenes teve clara mente essa idéia, que Leibniz desenvolverá: há sempre entre as coisas um elemento diferencial, por menor que seja, e sua semelhança jamais constitui identidade perfeita: não é possível às coisas... serem exatamente iguais umas às outras até o ponto de se tornarem, uma vez mais, a mesma coisa." (Frag. 5.) A alma dos viventes é composta de um ar mais quente que o da atmos fera ambiente, mas muito mais frio do que o que envolve o sol, esse calor não é o mesmo em quaisquer duas espécies de criaturas vivas, nem, por conseguinte, em dois homens quaisquer; não difere muito, porém, na medida apenas em que isso seja compatível com sua semelhança." (Frag. 5.) Sob a provável influência de Anaxágoras, Diógenes de Apolônia atribui a esse "ar" todos os caracteres do Noi E "algo que considera como um deus" (Frag. 5), ao mesmo tempo "grande e poderoso, e eterno e imortal e de grande saber" (Frag. 8). Parece que Diógenes terá reduzido todos os fenômenos fisiológicos e psíquicos a condições do ar circulante com o sangue no organismo. Se (1) Quanto à donografia sobre a percepção segundo ANAXÁGORAS, cf. John BURNET. op. c págs. 314-16. - (2) Nascido por volta de 469 a.C., contemporâneo de ANAXAGORAS, DIOGENES de Apolônta, que ensinou em Atenas, é autor de um tratado Da natureza, que comporta, provavelmente. uma meleorologtae uma antropologia, e do qual restaram alguns fragmentos. 18 19 encontra obstáculos, se é comprimido no peito, o pensamento se torna mais difícil. As percepções são tanto mais claras quanto mais seja o ar seco e puro, enquanto sua umidade, que preside à embriaguez, ao sono, às pletoras, é prejudicial também ao exercício do pensamento. Particularmente importante é o papel do ar que envolve o cérebro e o coração, pois esses órgãos são sede de sua união com o sangue no sistema vascular, e essa união preside às funções sensoriais. Diógenes ofereceu, dos vasos sanguíneos, sobretudo das artérias, uma descrição que constitui importante documento dos conhecimentos anatômicos da época( 1). Julgava que o exame da língua, situada no entronca mento dos vasos, pode fornecer preciosas indicações sobre a maneira por que o ar e o sangue se misturam no organismo. Uma mistura harmoniosa se lhe afigurava a condição do bem-estar e da saúde, e o excesso de sangue, fonte de perturbações patológicas. É provável que a noção de pneilma, no sentido de fluido vital idêntico ao ar, já presente na escola hipocrática de Cós, deva muito à obra de Dióge nes, ela própria uma retomada, mais elaborada, da teoria de Anaxímenes. E provável também que as idéias de Diógenes de Apolônia (por intermédio de Diocles de Caristo, contemporâneo de Zeno de Cítio) irão influenciar o fundador do estoicismo, para quem a doutrina do pneüma adquire impor tância essencial. (1) ARISTÓTELES, IAs A,s., 1, 2, 311 b 30. 20 CAPÍTULO III A PSICOLOGIA MÉDICA NA ANTIGUIDADE 1. As origens da medicina hipocrática 2. As causas e a cura das doenças 3. A energia vital e o papel do cérebro 4. O homem no universo 5. A sabedoria hipocrática 6. Aspectos psicoterapêuticos 7. De Hipócrates a Galeno 1. As origens da medicina hipocrática Embora não se trate, aqui, de história da medicina, não é muito fácil ignorar o movimento ao qual permanece ligado o nome de Hipócrates e que encerra, a respeito do homem, na época de Platão, conhecimento científico e psicológico em que se descobrem elementos de psicoterapia, de caracterologia e, até, de fisiognomonia. A medicina anterior na Grécia era sacerdotal. Píndaro relata que "o herói curador de todas as doenças, nutrido por Quiron em seu antro de rochas", Asclépios (o Esculápio dos latinos), cujo culto remonta, provavel mente, a uns dez séculos antes de nossa era, tratava por meio "de doces feitiços", de "poções benfazejas", por aplicações ou pela cirurgia( Os templos que lhe seriam mais tarde consagrados, em Cós, Trica, Cnido e Epidauro, tornaram-se lugares de peregrinação e neles se encontraram an ,nas ou ex- votos dos doentes curados. Liga-se o movimento hipocrático a essa medicina sacerdotal, mas dela se distingue ao mesmo tempo, por uma preocu pação de racionalidade comparável à da filosofia em relação ao mito. Não se duvida, aliás, de que tenha sofrido, em suas origens, influência das escolas filosóficas, a dos jônicos e, com certeza, dos pitagóricos, além das contribui ções orientais, difíceis de determinar, particularmente do Egito e da India. Por outro lado, é bem evidente que a escola hipocrática incorpora as aquisições de certa medicina clínica praticada desde muito tempo em Cós e Cnido, embora envolta em magia. (1) Terceira Neméiae Terceira Putica. 21 Mescla-se a lenda constantemente à história no que concerne à figura do próprio Hipócrates('), e o problema histórico do "pai da medicina" suscitou numerosos trabalhos. Não importa muito, porém, seja ou não ele próprio o autor dos perto de setenta tratados do Corpus hippocraticum a nós retransmi tidos pela escola de Alexandria, e cujas datas não é possível determinar, O essencial é que constitui documento excepcional da vida médica e científica no século V a.C. Porque o Corpus, a despeito de certos textos discordantes, apresenta constantes referentes à orientação da medicina e aos tratamentos recomendados em certos casos. 2. As causas e a cura das doenças A Medicina antiga, por exemplo, nos ensina como se formou a famosa teoria hipocrática dos humores, exposta na Natureza do homem, que atribui ao ser humano - considerado como um todo submetido ao ritmo quaternário que preside a todas as coisas( - quatro humores: o sangue, a fleuma (chamada também linfa ou pituíta), a bílis amarela, a bílis negra ou atrabílis, cada uma das quais relacionada a um órgão particular: o coração, o cérebro, o fígado, o baço. Sabe-se que essa teoria serviu de fundamento à outra, caracte rológica, dos quatro temperamentos: o sanguíneo, o linfático, o bilioso e o atrabiliário (conforme predomine um dos quatro humores), considerados como o produto da reação do organismo ao meio, algo como o ponto de junção entre o indivíduo e o universo. O equilíbrio dos humores é a crase, e sua ruptura (doença), a discrasia. O equilíbrio comprometido possui uma tendên cia natural para restabelecer-se, por meio de uma operação de química orgânica que modifica, corrige, "coze" os humores para expulsá-los (a cocção). Os humores cozidos são expelidos pelo suor, as expectorações, a urina, as fezes, os vômitos.., e esta é a crise, que ocorre em dias fixos, chamados dias críticos. Por falta disso, pode verificar-se um depósito em alguma parte do organismo, que produz uma doença local, e esta, de certa forma, resolve a doença geral do organismo (abscesso, articulação tumefacta, gangrena local...). A harmonia é, assim, considerada como a condição da saúde, e a cura das doenças como obra da natureza; o médico não pode senão ajudá-la em sua luta para restabelecer o equilíbrio comprometido. Esse desequilibrio pode ter causas diversas: internas (superabundância de humores, de preocupações ou estafa) e externas (súbita mudança de clima, presença de miasmas no ar ou traumatismo acidental). Mas o hipocratismo atribui papel essencial ao "terreno", muita vez considerado decisivo para a evolução de uma doença. A escola atribui grande importância ao regime, que deve ser adaptado a cada caso, levados em conta hábitos instalados no doente e condições particulares: (1) É lícito admitir que HIPÓCRATES nasceu em 4é0 a.C. na pequena ilha de Cós (uma das Espórades). onde seu pai, sacerdote de Asclépios, lhe ensinou a medicina; e que, no decorrer de longa existência entrecortada de viagens de estudos ou de excursões de conferências ao Egito, à Grécia e à Asia Menor., assegurou pelo seu gênio o triunfo da escola de Cós sobre sua rival de Cnido. Teria aprendido retórica com GORGIAS, repudiando-lhe o agnosticismo; e teria conhecido diretamente DEMOCRITO, SOCRATES e EURIPIDES. Certos autores lhe atribuem a salvação de Atenas, por meio da instalação de fogueiras nas ruas da cidade, quando da epidemia de peste em que pereceu Péricles, em 429 a.C. (2) Há quatro pontos cardeais, quatro estações, quatro idades na vida, quatro etemenlos fundamentais no universo. idade, sexo, temperamento, resistência, etc. A medicina hipocrática não ignorava tampouco que certos indivíduos são "alérgicos", como dizemos hoje, a determinados alimentos. O tratado Regime das doenças agudas contém uma polêmica com a escola rival de Cnido. Esta é criticada pela falta de amplitude e segurança no pensamento, o recurso a remédios fáceis e uniformes (muitas purgações, leite e soro lácteo...), incapacidade de elevar-se acima dos fatos imediatamente dados e de prever os sintomas do paciente. Pois, a escola hipocrática se preocupa em estabelecer um diagnóstico da doença e tem por melhor médico aquele que se mostra capaz de prever. Em suma, o tratamento requer um saber empírico, fecundado pela observação e pela reflexão. O adágioda escola é freqüentemente lembrado: "Faz-se mister ligar a medicina à filosofia, pois o médico filósofo está em igualdade com os deuses." Trata-se, no caso, de certa filosofia, imbuida de um simbolismo realista dos números, que atribui importância essencial a certos ritmos, particularmente quaternários e septenários, e que não separa o homem-microcosmo do Universo. O ser humano é concebido como ligado ao cosmos por todas as fibras de seu ser físico e psíquico. O Corpus quase não assinala essa ruptura com o mundo que caracteriza o surgimento da consciên cia humana e que, naquela época, os sofistas foram os primeiros em pôr em evidência. 3. A energia vital e o papel do cérebro De maneira geral - ainda que inserida num contexto metafísico - uma modalidade de empirismo é preconizada, atenta à influência exercida sobre o ser humano pelo clima, as estações, a natureza do solo, e em geral por todos os elementos do mundo ambiente. O ar, muito particularmente, é considerado como elemento essencial, e seu papel objeto de uma obra, Os ventos. O motivo é análogo ao que existe em filosofia desde Anaxímenes: a importância primeira do ar, que devemos respirar para viver. Os organismos vivos são condicionados por três elementos: a nutrição, a bebida e uma energia vital invisível (opneíima), cujo papel é primordial tanto no homem como no universo. Enchendo "o intervalo imenso que separa a terra do céu", essa força vital anima e faz moverem-se os corpos celestes, assegura a coesão e os movimentos de tudo quanto existe. Alimento do fogo, ela está presente até na água do mar, que doutra forma não poderia conter os animais aquáticos. O princípio fundamental é o ar fora do corpo e o sopro vital dentro dele; ele dá vida aos homens e aos outros seres e organiza as defesas naturais contra as doenças('). A importância atribuída ao ar pela escola hipocrática está diretamente ligada ao papel que, segundo ela, o cérebro desempenha no organismo. No tratado da Doença sagrada, as teorias que localizam a inteligência no coração ou no diafragma são refutadas em favor do cérebro, verdadeira sede da inteli (1) Esse principio de "força vital" (que DESCARTES rejeitará, para atribuir todas as funções do orga nismo a fatures mecânicos e físico-químicos) leva a admitir a intervenção de "imponderáveis" puramente qualita tivos e, por conseguinte, não mensuráveis. 22 23 gência. Dele é que partem ramificações para todas as partes do corpo e é para ele, igualmente, que convergem os diversos canais dos sentidos. Ele influencia os humores do corpo; se ferido, a conseqüência é a paralisia ou a morte; se demasiado úmido, a confusão dos sentidos acarreta a loucura. Ora, se o cérebro é investido de tão alta dignidade pela escola hipocrática, isso se dá na medida em que o ar, por meio dele, comunica sua natureza ao organismo, portanto na medida em que desempenha o papel de intermediário. Basta substituir o ar pelo "impulso vital", por exemplo, para que a concepção pareça mais profunda do que ingênua. 4. O homem no universo No tratado das Carnes, o autor deduz, do esboço de uma espécie de cosinogonia, os conhecimentos anatômicos e fisiológicos indispensáveis ao médico('). Trata-se, ali, do fogo cósmico, do "fogo inato" que possui a inteli gência de tudo, que vê e ouve, que conhece o presente e o futuro. Por ele se explicam o nascimento das diversas partes do mundo, a formação dos seres vivos e também a natureza da saúde e da doença. Porque o homem, já que é formado de partículas de elementos que compõem o universo, pode ser encarado como um microcosmo. Ao fim da obra, uma teoria setenária se liga estreitamente às espeçulações pitagóricas sobre os números: a resistência do homem normal ao jejum é de 7 dias, as crianças possuem dentes ao cabo de 7 anos, etc. Dois pequenos tratados: o Feto de sete meses e o Feto de Oito meses, confirmam a virtude atribuída a esse número; igualmente o das Semanas, onde uma organização setenária intervém na formação do mundo, no desenvolvimento do ano, na estrutura geográfica da terra, na disposição do corpo humano. O conhecimento da saúde e da doença se reduz ao das relações entre os elementos que compõem o ser humano e entram em ação no comércio deste com o universo, uma vez que a doença nasce de seu desequilíbrio; e é conside rando que a alimentação e o exercício atuam sobre tais elementos, aumen tando ou diminuindo o poder de alguns dentre eles, que a escola lhes atribui tamanha importância. Representam, a seus olhos, fatores cuja influência é mais facilmente controlável que a de outros (climáticos ou geográficos, por exemplo) cuja ação sobre o ser humano é igualmente admitida. Numerosas anotações constituem como que o embrião de uma climatologia; relacionam- se com a ação do clima que, regular e equilibrado, favorece a beleza física e exerce influência feliz no caráter; com as estações que, quando nitidamente marcadas, permitem a formação de maior variedade de tipos humanos, ao mesmo tempo que reforçam a robustez do organismo, sua energia natural e a (1) O cuidado de informação da escola hípocrática é surpreendente em amplitude, na medtda em que se pode julgar por esta passagem das Epidemias: "No que concerne às doenças, eis como as distinguimnos. Nosso conhecimento se apóia na natureza humana universal e na natureza própria de cada pessoa: na doença. no doente. nas substãncias administradas, em quem as administra e no que se pode daí concluir de bem ou de mal: na consti tuição geral da atmosfera e nas constituições particulares, segundo as diversidades de céu e de lugar: nos hábitos. regime de vida, ocupações, idade de cada um: nas palavras, nas maneiras, nos silêncios, nos pensamentos, nos sonos, nas insônias, nas qualidades e momentos dos sonhos: nos gestos desordenados das mãos, vos pruridos e nas lágrintas; nos paroxismos, nas fezes, urina, escarros e vômitos: na natureza das doenças que se sucedem umas às Outras e nos depósitos anunciadores de ruína ou de crise: no suor. no resfriantenlo. no arrepio. na tosse. no espirro, no soluço, no arroto, nos gases, sitenciosos ou ruidosos, nas hemorragias e nas hemorróides. Esses dados, e tudo quanto permilens captar. devem ser examinados com cuidado" acuidade de inteligência; com suas variações, que repercutem no processo de formação dos indivíduos, diferente no inverno e no verão, durante as secas ou as chuvas; com as diversas conseqüências de um clima uniformemente frio ou quente. Os fatores sociais também não foram ignorados pela medicina hipo crática. Observa que o trabalho físico e certos hábitos desempenham papel na saúde ou na doença; e, até, que as instituições e as leis, segundo o valor do ideal que propõem, têm repercussões psicológicas. A este respeito, apurou-se uma diferença entre habitantes de cidades gregas em terras asiáticas, que se administram livremente, e os de Estados submetidos a autoridade despótica (tratado Ares, águas, lugares). 5. A sabedoria hipocrática Em suma, os tratados do Corpus consideram o homem solidário, sob o duplo aspecto físico e moral, com seu meio natural e social. Pôde-se qualificar de humanismo médico a doutrina daí resultante, uma vez que não comporta somente o enriquecimento de conhecimentos particulares dentro de uma técnica, mas também um ideal do homem a pron'over e uma verdadeira sabedoria humana a salvaguardar. O médico.da escola é instado a jamais perder de vista o bem e a utilidade de seus semelhantes, a evitar empreender o que quer que lhes possa ser nocivo. O autor dos Preceitos recomenda aos médicos "não se entregarem ao fausto, desprezarem o supérfluo e a fortuna, assistirem doentes às vezes gratuitamente, preferindo
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