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Volume 01 FILOSOFIA 2 Coleção Estudo Su m ár io - F ilo so fia Frente A 01 3 O pensamento filosóficoAutor: Richard Garcia Amorim 02 15 A origem da FilosofiaAutor: Richard Garcia Amorim FRENTE 3Editora Bernoulli MóDULOFilosoFia O SER HUMANO – UMA SÍNTESE ENTRE NATUREZA E CULTURA Nascer é ao mesmo tempo nascer no mundo e nascer do mundo. Maurice Merleau-Ponty O que é o homem? Le on ar do d a V in ci Homem Vitruviano O que é o homem? Por meio dessa pergunta, começamos nossa investigação fi losófi ca acerca daquilo que distingue o homem dos outros seres da natureza. O que há de especial no ser humano que o faz ser capaz de buscar respostas sobre o mundo e sobre si mesmo? O que leva o homem ao questionamento sobre a origem e o funcionamento do universo? O que faz o homem tentar entender o que é o próprio homem? Se pretendemos compreender a Filosofi a, antes de iniciarmos nossa investigação, precisamos compreender quem é aquele que a produz, ou seja, o que é o homem. O que o faz tão especial e diferente dos outros seres? São muitas as defi nições sobre o homem encontradas tanto na Filosofi a e na Antropologia Filosófi ca quanto em outras áreas do conhecimento. Uma dessas defi nições é a de Blaise Pascal, que diz: o homem não passa de um caniço, o mais frágil da natureza; mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo; um vapor, uma gota d’água é sufi ciente para matá-lo. Mas quando o universo o esmagar, o homem será ainda mais nobre do que aquele que o mata, porque ele sabe que morre e o universo não tem nenhum conhecimento da vantagem que leva sobre ele. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É nele que devemos nos revelar e não no espaço e no tempo que não sabemos como ocupar. Trabalhemos para bem pensar [...] PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Por essa definição, percebemos que, segundo Pascal, a característica que marca definitivamente o homem é sua capacidade de pensar. O raciocínio, o pensamento, é o que sobreleva o homem em relação a qualquer outro ser no universo. Mas será que o homem é somente pensamento? Somos somente seres racionais? O pensamento filosófico 01 A 4 Coleção Estudo O animal homem O texto anterior, que relata um fato verdadeiro ocorrido ainda no século passado, instiga a discussão sobre o que distingue verdadeiramente o homem do animal. No caso relatado, as meninas não passaram pelo processo de humanização. Dessa forma, podemos afi rmar que o homem não nasce humano, mas assume essa feição com o processo de socialização permitido somente pelo contato com a cultura. No caso das meninas, alguns relatos afi rmam que elas não apresentavam ações tipicamente humanas, como chorar, sorrir e falar. Quando elas foram trazidas para o convívio social, foi iniciado o processo de humanização, afastando-as do mundo animal em que estavam inseridas. Mas como essas meninas aprenderam a se comportar como lobos? Seria possível o contrário? Um animal, de qualquer espécie, colocado desde o seu nascimento para conviver com outros de espécie diferente poderia adquirir os hábitos e comportamentos daqueles com os quais ele convive? É certo que não. No caso das meninas-lobo, temos o exemplo cabal de que somente o homem possui essa capacidade de adaptação que supera a natureza biológica da espécie e lhe confere essa plasticidade de se adaptar aos mais diferentes modos de vida. Nesse viés, ainda podemos citar o caso do menino selvagem de Aveyron. Em setembro de 1799, um menino, de cerca de 12 anos de idade, foi encontrado perto da fl oresta de Aveyron, sul da França. Ele estava sozinho, sem roupa, andava de quatro e não falava uma única palavra. Pelo que parece, foi abandonado pelos pais e cresceu sozinho na fl oresta. O menino, chamado a partir de então de Victor, foi levado para Paris, onde fi cou sob os cuidados do médico Jean-Marc-Gaspar Itard. Durante 5 anos, o Dr. Itard dedicou-se a ensinar Victor a falar, a ler, a se comportar como um ser humano. Porém, não alcançou grande êxito em sua empresa. Temos ainda um terceiro caso, o de Kaspar Hauser. Diz-se que ele surgiu em 1828, numa praça do centro de Nuremberg, Alemanha. O garoto tinha por volta de 16 anos e falava de modo pouco inteligível. Ninguém sabia de sua vida pregressa, mas, ao que tudo indica, parece que viveu sozinho dentro de um celeiro desde o seu nascimento. Teve pouco contato com outros seres humanos. Como nos casos anteriores, o menino foi acolhido e educado, aprendendo a ler e a escrever, o que permitiu que pudesse se comunicar, mesmo basicamente, com outras pessoas. Seu raciocínio, contudo, não foi muito adiante. Continuava a ser a mesma criança do dia em que fora encontrado. Não conseguia enxergar em perspectiva e também não aprendia conceitos abstratos. Esses estranhos casos nos propõem uma questão inicial: Quais são as diferenças entre o homem e o animal? as meninas-lobo Na Índia, onde os casos de meninos-lobo foram relativamente numerosos, descobriram-se, em 1920, duas crianças, Amala e Kamala, vivendo no meio de uma família de lobos. A primeira tinha um ano e meio e veio a morrer um ano mais tarde. Kamala, de oito anos de idade, viveu até 1929. Não tinham nada de humano e seu comportamento era exatamente semelhante àquele de seus irmãos lobos. Elas caminhavam de quatro, apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para os trajetos longos e rápidos. Eram incapazes de permanecer em pé. Só se alimentavam de carne crua ou podre. Comiam e bebiam como os animais, lançando a cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde foram recolhidas, passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa sombra. Eram ativas e ruidosas durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos. Nunca choravam ou riam. Kamala viveu oito anos na instituição que a acolheu, humanizando-se lentamente. Necessitou de seis anos para aprender a andar e, pouco antes de morrer, tinha um vocabulário de apenas cinqüenta palavras. Atitudes afetivas foram aparecendo aos poucos. Chorou pela primeira vez por ocasião da morte de Amala e se apegou lentamente às pessoas que cuidaram dela bem como às outras com as quais conviveu. Sua inteligência permitiu-lhe comunicar-se por gestos, inicialmente, e depois por palavras de um vocabulário rudimentar, aprendendo a executar ordens simples. LEYMOND, B. Le development social de l’enfant et del’adolescent. Bruxelles: Dessart, 1965. p. 12-14. Estátua de Rômulo e Remo, que se encontra no Museu Capitolino, considerado o museu mais antigo do mundo. Frente A Módulo 01 FI LO SO FI A 5Editora Bernoulli Liberdade e determinismo O mundo animal se caracteriza por ser um mundo fechado, em que os animais vivem em perfeita harmonia com sua natureza, uma vez que são dotados de instintos que determinam o comportamento de sua espécie. Muito se tem discutido sobre os limites da inteligência animal. Nesse sentido, pesquisas recentes demonstram que algumas espécies são capazes de elaborar raciocínios bastante sofi sticados, como se observa a seguir: Os animais pensam como nós? Será que o homem é realmente tão mais inteligente do que as outras espécies? Nenhum pesquisador duvida que o pensamento abstrato do Homo sapiens é um feito inédito no mundo animal. Mas, quanto mais os cientistas sabem sobre espécies como chimpanzés, gorilas, orangotangos, baleias e golfi nhos, mais eles chegam à conclusão de que a barreira intelectual que separa os homens desses animais é bem menor do que se imaginava. Dois estudos pioneiros, nas décadas de 1950 e 1960, foram fundamentais para diminuir essa distância. O primeiro, realizado na ilha de Koshima, no Japão, detectou que os macacos da região eram capazes de aprendernovas técnicas para se alimentar a partir da mudança do hábito de um dos seus pares. A pesquisa revelou que um jovem macaco provocara uma pequena revolução na ilha ao passar a lavar a batata-doce num pequeno braço d’água antes de comê-la, ato que passou a ser repetido por três quartos de todos os macacos jovens da ilha. A descoberta provou que o homem não era o único a transmitir um comportamento socialmente adquirido – não transmitido geneticamente nem aprendido individualmente. O segundo estudo foi o da inglesa Jane Goodall que, ao conviver com chimpanzés na Tanzânia, provou que esses primatas tinham uma complexa vida social, uma linguagem primitiva com mais de 20 sons e a capacidade de usar diversas ferramentas para obter alimento – algo considerado exclusivo da nossa espécie. Além disso, os pesquisadores sabem que mamíferos como baleias, golfi nhos e elefantes conseguem aprender e ensinar. CAVALCANTE, Rodrigo. Superinteressante. Edição 240. Disponível em: <www. super.abril.com.br/mundo-animal/ animais-pensam-como-446990.shtml>. Acesso em: 5 dez. 2010. Porém, mesmo que encontremos alguns exemplos de animais que possuem um maior grau de “inteligência” – um raciocínio mais desenvolvido que lhes permite algumas proezas, como é o caso dos chimpanzés, golfi nhos e algumas raças de cães – tal raciocínio não se compara ao raciocínio humano e sua capacidade de conhecer. Os animais vivem em harmonia com sua natureza. Isso signifi ca que eles vivem e agem de acordo com sua herança genética, biológica, herdada de sua espécie e que os faz sempre cumprir aquilo a que estão predeterminados. Dessa forma, os animais agem por instintos, o que torna possível prever seu comportamento em diferentes situações, pois tal comportamento será sempre direcionado àquilo que sua natureza determinar. Dessa forma, dizemos que os animais são seres determinados, uma vez que a programação biológica dita as regras de comportamento desses seres, não sendo possível que, por exemplo, um animal, por vontade ou por raciocínio voluntário e não por condicionamento, “decida” não fazer algo ou fazer diferente daquilo a que já está predeterminado em sua natureza. Nesse sentido, podemos afi rmar que os animais não são livres. Segundo o australiano Gordon Childe (1892-1957), os animais já nascem com todos os aparatos naturais necessários para a sua sobrevivência e, portanto, com a possibilidade de adaptação ao meio em que vivem. Suas ferramentas naturais, como asas, pelagem, garras, força, dentes e velocidade, além de tantas outras características, permitem-lhes superar os obstáculos e sobreviverem aos desafi os que se impõem. Dessa forma, os animais simplesmente se adaptam à natureza. Já o homem, ao contrário dos animais, não traz em sua constituição natural nenhuma característica física especial que o capacite a sobreviver aos desafi os da vida e das forças da natureza. Pelo contrário, se pensarmos com cuidado, observaremos que o homem, dos seres vivos existentes, é um dos mais frágeis e desprovidos de aparatos ou ferramentas naturais que garantam sua sobrevivência. Não podemos resistir ao frio, pois não temos a pelagem do urso para isso. Nem podemos fugir dos perigos de forma efi caz, pois não temos a velocidade de uma lebre para tal. No entanto, conseguimos superar todas as nossas limitações físicas pela capacidade de pensar. Assim, acompanhando o pensamento de Gordon Childe, podemos afi rmar que: Na história evolucionária, relativamente curta, documentada pelos restos fósseis, o homem não aperfeiçoou seu equipamento hereditário através de modifi cações corporais perceptíveis em seu esqueleto. Não obstante, pôde ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se infi nitamente O pensamento filosófico 6 Coleção Estudo mais depressa do que qualquer parente próximo entre os mamíferos superiores, e derrotar o urso polar, a lebre, o gavião, o tigre, em seus recursos especiais. Pelo controle do fogo e pela habilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde o Círculo Ártico até o Equador. Nos trens e carros que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz. Nos aviões, pode subir mais alto que a águia, e, com os telescópios, ver mais longe que o gavião. Com armas de fogo, pode derrubar animais que nem o tigre ousa atacar. Mas fogo, roupas, casas, trens, aviões, telescópios e revólveres não são, devemos repetir, parte do corpo do homem. Pode colocá-los de lado à sua vontade. Eles não são herdados no sentido biológico, mas o conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso legado social, resultado de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da fala e da escrita. CHILDE, V. Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. p. 40-41. Dessa forma, diferentemente dos animais que agem por instinto, vivendo em um mundo fechado e sem liberdade, simplesmente se adaptando à natureza e cumprindo o que a sua herança biológica determina, o homem pode superar suas limitações. O ser humano não apenas se adapta à natureza, mas adapta a natureza às suas necessidades. Esse é o traço característico da presença do homem no planeta. Dos seres vivos, portanto, o homem é o único que produz cultura e que tem possibilidade de transmiti-la aos seus descendentes por meio, principalmente, da linguagem simbólica. Dessa forma, compreendemos o pensamento de Pascal, citado no início deste módulo, quando ele diz que “toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento”. É o pensamento que, definitivamente, nos faz seres especiais, pois com ele podemos encontrar respostas novas aos desafi os da existência que se colocam diariamente e aos quais precisamos responder. Porém, o homem também é natureza. Na verdade, o ser humano é uma síntese entre aspectos naturais herdados de sua espécie e aspectos culturais obtidos por meio de seu convívio social. A síntese humana Como foi dito até aqui, percebemos que o homem não é somente natureza e nem é somente cultura. É inegável que nascemos com características próprias de nossa espécie, as quais podemos denominar instintos. Vejamos o texto de Freud que dirá sobre esses instintos: Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião, de que ela é o maior impedimento à civilização. [...] Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o signifi cado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de J. Octávio A. Abreu. In: Sigmund Freud. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Dessa forma, o homem é constituído de uma natureza que, em muitos aspectos, tende a determinar sua vida, tal como citado por Freud quando este fala do “instinto de morte”, que leva ao afastamento e à não socialização dos homens. Por outro lado, verifi camos que a cultura permite que o homem “controle” sua natureza. Por mais que os instintos atuem em seu interior, levando-o a agir desta ou daquela forma, podemos adaptar nossas ações de acordo com nossos valores e ideias,o que demonstra nossa humanidade. Ao contrário, os animais não podem controlar sua natureza, seus instintos, pois são determinados por eles. Outra característica que marca nossa diferença em relação aos animais é a possibilidade que o homem tem de projetar-se ao futuro, tomando como baliza o passado e as experiências do presente. Somente o homem é capaz de planejar e, portanto, tem ideia de fi nalidade. Frente A Módulo 01 FI LO SO FI A 7Editora Bernoulli Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fi m do processo de trabalho, obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1985, V.I. p. 149-150. Seguindo o raciocínio de Marx, podemos perceber que somente o homem pode, fora da realidade concreta, pensar, idealizar, formular mentalmente aquilo que será, no futuro, concretizado. Os animais não têm essa possibilidade de projetarem, pois, ao agir, o animal não o faz por meio de uma ideia antes concebida, mas segue seu instinto cego. Faz porque a natureza assim determinou e nada mais. Por exemplo, se observarmos os ninhos dos pássaros joão-de-barro, constataremos que, mesmo perfeitos à fi nalidade para a qual foram feitos, são sempre da mesma forma, construídos do mesmo jeito, não podendo ser diferentes, uma vez que o ato de construí-los e a forma como isso será feito são coisas que estão inscritas na natureza do animal. O homem é livre A ti, ó Adão, não te temos dado, nem um lugar determinado, nem um aspecto próprio, nem qualquer prerrogativa só tua, para que obtenhas e conserves o lugar, o aspecto e as prerrogativas que desejares, segundo tua vontade e teus motivos. A natureza limitada dos outros (seres) está contida dentro das leis por nós prescritas. Mas tu determinarás a tua sem estar constrito por nenhuma barreira, conforme teu arbítrio, a cujo poder eu te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que, daí, tu percebesses tudo o que existe no mundo. Não te fi z celeste nem terreno, mortal nem imortal, para que, como livre e soberano artífi ce, tu mesmo te esculpisses e te plasmasses na forma que tivesses escolhido. Tu poderás degenerar nas coisas inferiores, que são brutas, e poderás, segundo o teu querer, regenerar-te nas coisas superiores, que são divinas. [...] Ó suprema liberalidade de Deus, ó suma e maravilhosa beatitude do homem! A ele foi dado possuir o que escolhesse; ser o que quisesse. Os animais, desde o nascer, já trazem em si, no ‘ventre materno’, o que irão possuir depois. [...] No homem, todavia, quando este estava por desabrochar, o Pai infundiu todo tipo de sementes, de tal sorte que tivesse toda e qualquer variedade de vida. As que cada um cultivasse, essas cresceriam e produziriam nele os seus frutos. [...] MIRÀNDOLA, Pico Della. A dignidade humana. Tradução de Luis Feracine. São Paulo: Ed. Escala. p. 39-42. As palavras de Pico Della Miràndola representam o que até aqui falamos sobre a liberdade humana: só o homem é verdadeiramente livre. Enquanto os animais, nas palavras do fi lósofo, “desde o nascer, já trazem em si, no ‘ventre materno’, o que irão possuir depois”. Aqui é necessário que nos dediquemos a compreender adequadamente o que é liberdade, conceito que contrasta com a visão de liberdade utilizada no senso comum. Uma pergunta nos ajuda a esclarecer essa questão: quem é mais livre, o pássaro que voa de um lado para o outro, sem nenhuma limitação ao seu livre voo, ou o homem que está, muitas vezes, absorvido em suas tarefas e obrigações diárias? À primeira vista, poderíamos pensar que o pássaro é que é livre. Talvez, dentro de uma concepção de liberdade voltada para a possibilidade de locomoção, o pássaro seria livre. Porém, dentro de nossa refl exão sobre natureza e cultura, podemos afi rmar que o pássaro não é livre, pois ele está preso, determinado por sua natureza. Por mais que ele possa se locomover de um lado a outro, ele não o faz por planejar, por querer aquilo, mas tão somente obedece aos seus instintos e age de forma mecânica. A liberdade, como nós a entendemos na Filosofi a, diz respeito à possibilidade de o homem se autodeterminar, de controlar, inclusive, seus instintos, não sendo escravo de sua natureza, apesar de também possuí-la, de modo que ele possa ser dono de si mesmo. Dessa forma, concluímos que o homem é um ser biológico e cultural, integrando em si características hereditárias, recebidas de sua espécie, e também características adquiridas pelo contato com a cultura, com a sociedade. O homem se constitui, ao mesmo tempo, de características advindas da natureza e da cultura, isto é, é uma síntese entre os dois polos, o que possibilita que ele transforme a natureza, mas também seja infl uenciado por ela, sem, no entanto, ser determinado. É criatura e criador do mundo em que vive. O pensamento filosófico 8 Coleção Estudo O QUE É FILOSOFIA? A origem da palavra filosofia A u gu st e R od in O Pensador, 1881. Bronze 71,5 x 40 x 58 cm. Comumente utilizada e pouco conhecida, a palavra Filosofia, ao longo de seus 2500 anos de existência, foi tomando significados novos. Para definirmos melhor o que realmente é e do que trata a Filosofia, enquanto modo e tentativa de conhecer, iniciamos definindo o significado da palavra. A palavra filosofia vem do grego philosophia, que significa amor à sabedoria, amizade pelo saber. (Philos: amor, amizade; sophia: sabedoria). Filósofo, portanto, é aquele que ama o saber e por isso o busca constantemente. Mesmo não sendo um fato comprovado, acredita-se que o primeiro homem a utilizar a palavra filosofia foi Pitágoras de Samos (século V a.C.), ao se referir a si e àqueles que, entre a multidão que ia assistir aos jogos olímpicos, se dedicavam à observação de tudo e de todos, buscando o conhecimento sobre as pessoas, os fatos, enfim, sobre tudo o que faz parte da vida do homem. A partir desse fato, podemos compreender o dito pitagórico que resume o “espírito”, a “essência” da Filosofia e do ato de filosofar: “[...] a sabedoria pertence aos deuses, mas os homens podem desejá-la, tornando-se filósofos”. Portanto, Filosofia não é um conhecimento pronto e acabado transmitido por meio de lições e exposições exatas e matematicamente formatadas. Pelo contrário, Filosofia é uma atitude, um modo próprio de se posicionar frente à realidade, levando o homem ao questionamento constante dos fatos, ideias, acontecimentos, valores, enfim, tudo o que faz parte da vida humana. O que é Filosofia Ao longo do tempo, o termo filosofia foi utilizado de modos e com significados distintos ao de sua origem. Buscaremos agora a definição do que é Filosofia tal como estudamos nas escolas e faculdades e a diferença desta definição em relação aos demais usos do termo. Podemos apontar, pelo menos, três definições distintas de filosofia: 1. Modo de viver ou sabedoria de vida: entendida desta forma, a filosofia tem um caráter pessoal. É a maneira que um indivíduo particular tem de ver o mundo e de se portar diante das situações. Quando o sujeito afirma “esta é a minha filosofia de vida”, ele está dizendo que é desta ou daquela maneira que ele encara a vida e dá significado às ideias, aos fatos e a si próprio. 2. Pensamento ou origem das ideias: neste caso, a filosofia é tida comoo simples ato de pensar. Ao afirmar “estou filosofando”, o sujeito na verdade está dizendo que está pensando sobre algo, pura e simplesmente. Esta concepção de filosofia, por vezes, principalmente para o senso comum, leva à banalização do termo, pois dá a impressão de que filosofia é um pensamento não sistemático, um “viajar” desconectado da realidade e do mundo. Seria um pensamento que “sai de nenhum lugar e leva a lugar nenhum”, contrariando exatamente a própria filosofia. 3. Busca da verdade e fundamentação teórica sobre o homem e o mundo: a filosofia, vista em sua concepção mais correta, é um modo de pensar o mundo, buscando, através da análise, da crítica, do questionamento, da reflexão, a própria verdade sobre o homem, a sociedade, o pensamento, enfim, tudo o que pode ser pensado e que diz respeito à vida humana e à cultura. Nesse sentido, a filosofia sempre ocupou um lugar privilegiado, pois, além de constituir-se um conjunto Frente A Módulo 01 FI LO SO FI A 9Editora Bernoulli de ideias e teorias elaboradas desde seu surgimento na Grécia, no século VI a. C., até os dias atuais, é uma atitude frente ao mundo, tentando compreendê-lo de modo racional. Tudo o que diz respeito ao homem e à realidade que o cerca é objeto do pensamento filosófico. Nesse sentido, filosofia é a busca incessante da verdade, do conhecimento verdadeiro que, apesar de muitas vezes transitório, deve ser constantemente buscado, levando a significações sobre a realidade, o homem e o mundo. O que não é Filosofia Outro modo de entendermos as especificidades do pensamento filosófico pode ser trabalhado pela compreensão do que não é Filosofia. Filosofia não é ciência. Apesar de, em seu nascimento, com os pré-socráticos, Filosofia e ciência não se dividirem, logo depois desse período, já com Sócrates, a Filosofia e as ciências seguiram caminhos distintos, uma vez que, se estas têm um objeto de estudo determinado, aquela não o tem. Isso significa que a Física, a Medicina, a Química, a Engenharia, o Direito e todas as outras ciências têm seus objetos de estudo determinados, como o movimento dos corpos, caso da Física, as leis e o seu papel social, no caso do Direito. A Filosofia, porém, não tem um objeto de estudo determinado. Dizemos que a Filosofia busca a verdade e, nesse sentido, permeia os modos de conhecer de todas as ciências, servindo como fonte questionadora e crítica de todas as ciências. Por tudo isso, compreendemos por que a Filosofia era conhecida na Antiguidade como a ciência das ciências. Filosofia não é religião, embora seja uma forma de questionamento sobre as explicações religiosas e suas origens, levando o homem a olhar criticamente para as diversas formas de manifestação religiosa e suas particularidades. Filosofia se baseia principalmente na razão, e a religião, por sua vez, na fé. Ambas, Filosofia e religião, são formas distintas e legítimas de explicação do homem e do mundo, porém, com bases e fundamentos diferentes. Filosofia não é pensar em nada, não é um pensamento assistemático, sem objetivos e sem critérios. Pelo contrário, Filosofia é um modo de pensar sistemático, com começo, meio e fim. Uma busca teórica de fundamentar a realidade de forma racional e compreensível, utilizando argumentos lógicos que defendam suas conclusões e que possam ser inteligíveis a todos. Filosofia é, na verdade, um pensamento que busca as raízes do processo, busca um conhecimento profundo e rejeita a superficialidade do conhecimento. É um pensamento rigoroso, uma vez que busca formular um encadeamento de ideias que levarão a conclusões coerentes, não aceitando contradições e ambiguidades. É um pensamento de totalidade, de conjunto, pois busca um conhecimento que não fragmenta o real, proporcionando uma visão total da realidade em suas explicações e teorias. Enfim, Filosofia não se confunde com nenhuma outra forma de ser e compreender a realidade e o homem, mas está além de todas as formas de conhecimento quando questiona o que é o homem e a própria realidade. A atitude filosófica: questionar sempre e em todas as circunstâncias Quando nascemos, recebemos informações de todos os que nos cercam. Nossa família, a escola, os meios de comunicação, nossos vizinhos, enfim, todos os que participam do crescimento e desenvolvimento da criança contribuem, cada um a seu modo, para a formação dos valores, ideias, conceitos, preconceitos e tudo o que faz parte de nossa formação individual, moral e social. A isso chamamos educação. Esse processo é normal e acontece com todos os indivíduos de uma sociedade, sem exceção. Nesse sentido é que se justifica a frase que diz sermos frutos do meio cultural, social e moral em que vivemos. Porém, em um determinado momento de nossa existência, é necessário que todas essas ideias e valores, que até então foram recebidos passivamente, do exterior para o interior, se individualizem. O homem, já amadurecido intelectual e moralmente, deve encontrar um sentido próprio sobre o que até então ele apreendeu de forma espontânea e acrítica. A esse processo de crítica, de individualização, de busca do sentido dos valores, ideias, conceitos e preconceitos chamamos atitude filosófica. A atitude filosófica nos leva ao questionamento de tudo o que até então achamos natural. Aprendemos uma infinidade de coisas ao longo da vida e, geralmente, não as questionamos, pois cremos que aquilo existe ou que as coisas são como aprendemos. Vejamos um exemplo. Acreditamos que de fato a Terra gira em torno do Sol, pois dessa forma nos ensinaram na escola. Porém, nem sempre se acreditou nisso. O pensamento filosófico 10 Coleção Estudo Por mais de 1 000 anos, os homens acreditaram que o Sol girava em torno da Terra, e essa crença, durante esse período, era tida como verdadeira. Até que um dia essa convicção veio abaixo, com as descobertas científi cas de homens como o astrônomo e sacerdote católico Nicolau Copérnico (1473-1543). Mas o que aconteceu para que deixassem de acreditar que a Terra estava no centro do universo? Simplesmente questionaram aquilo com que os homens tinham se acostumado, aquelas crenças e verdades tidas até então como únicas e inquestionáveis. Isso é atitude fi losófi ca: questionar tudo e em todas as circunstâncias, buscando a fundamentação teórica dos fatos, ideias e valores, visando, sobretudo, ao entendimento correto e ao conhecimento verdadeiro das coisas. Essa atitude fi losófi ca deve assumir um papel fundamental na vida dos indivíduos, porém não é essa a realidade. Nem todos têm disposição para questionar, criticar, buscar a verdade, pois essa tarefa é difícil, inquietante e desafi a o que é “normal”. Assim, por essa difi culdade, a maioria dos indivíduos se acomoda com o “normal”, o corriqueiro, o que todos pensam e fazem. A isso chamamos senso comum, que se caracteriza por ser um conhecimento superfi cial, acrítico, passivo, baseado em superstições e crenças, sem se preocupar com a verdade das coisas. O desafi o da Filosofi a é desenvolver essa atitude fi losófi ca. O questionamento do porquê das coisas, ideias, fatos e valores serem como são; o que são essas coisas, ideias, fatos e valores; como são e quais as consequências disso em nossa vida. Embora difícil, essa atitude fi losófi ca pode ser tomada por todos. De uma forma didática, podemos dividi-la em dois passos distintos, que levam a uma conclusão filosófica. O primeiro passo é a negação. Neste, o sujeito nega a ideia, o valor, o preconceito, afastando-se dele e dizendo “essa ideia, valor, preconceito não é meu pois não fui eu quem o pensou. Simplesmente o recebi e aceitei de forma passiva a acrítica”; o segundo passo é o questionar, perguntar, inquirir, criticar o que, como e por que essa ideia, valor, preconceito é, como é, buscando seu signifi cado,sua razão, sua fundamentação teórica e lógica. Como consequência desses dois passos, a negação e o questionamento, alcançamos então a conclusão, que seria o resultado do processo fi losófi co. Essa pode confi rmar ou negar a ideia, o valor, o conceito original, porém deverá proporcionar um sentido pessoal, individual e lógico para aquela ideia, valor, conceito ou preconceito. O mais importante: sábio x filósofo [...] a Filosofi a não é a revelação feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o diálogo entre iguais que se fazem cúmplices em sua mútua submissão à força da razão e não à razão da força. SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Tradução de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2. Dos deuses nenhum fi losofa, nem deseja tornar-se sábio, pois o é; nem se algum outro é sábio, não fi losofa. Nem, por sua vez, os ignorantes fi losofam ou desejam tornar-se sábios. Pois é isto mesmo que é difícil com relação à ignorância: aquele que não é nem belo nem bom nem sábio considera sê-lo o sufi ciente. Aquele que não se considera ser desprovido de algo não deseja aquilo de que não acredita precisar. PLATÃO. Banquete, 204A1-7. Sócrates, fi lósofo grego do séc. V a.C., reconhecido por alguns como um dos mais importantes pensadores da história, fazia uma afi rmação que resume o verdadeiro espírito do fi lósofo: “só sei que nada sei”. Por mais desconcertante que pareça tal afi rmação, essa é exatamente a postura do fi lósofo frente à realidade. Já dissemos que a Filosofi a é, acima de tudo, uma busca permanente pelo saber, pelo conhecimento do mundo e de si mesmo, atendendo à aspiração mais profunda do homem, que o diferencia essencialmente dos outros animais, que é a necessidade de conhecer. Conhecer o quê? Tudo. A sua própria essência, o mundo, a sociedade, a origem do universo, os sentimentos, o bem e o mal, se há vida após a morte, se Deus existe, etc. A Filosofi a nos leva, através da atitude fi losófi ca, a querer conhecer. Porém, esse conhecimento não é propriedade de uma pessoa ou dos mais inteligentes e cultos. A grande beleza da Filosofi a é que, através dela, compreendemos que o conhecimento não pertence a um homem ou a um grupo de bem-aventurados. Mesmo os grandes filósofos da história, como Platão, Aristóteles, Descartes, Pascal, Kant, Sartre, Wittgenstein, não encontraram respostas defi nitivas para todos os seus questionamentos. Aliás, o próprio conceito de verdade sofreu mudanças ao longo do tempo e é uma questão fi losófi ca. Assim, entendemos exatamente a diferença entre aquele que se diz sábio e o fi lósofo. O sábio acredita que a verdade é sua propriedade. Acredita que sabe tudo e, portanto, se fecha ao novo, ao questionamento, à crítica, pois crê que está certo em tudo o que diz. Frente A Módulo 01 FI LO SO FI A 11Editora Bernoulli Ao contrário, o filósofo acredita que não sabe nada, isto é, reconhece que tudo o que sabe pode ser transitório; que as verdades alcançadas não são últimas e que seu conhecimento é ínfimo diante de tudo o que há para conhecer. Por isso, sua postura é de abertura, de investigação, de busca constante da verdade, mesmo que não a encontre nunca. Isto é ser filósofo: reconhecer sua própria limitação, sua ignorância frente a tudo o que há para ser conhecido e buscar incessantemente o conhecimento da verdade. EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 01. Redija um texto justificando a seguinte afirmação: “Nascer é ao mesmo tempo nascer no mundo e nascer do mundo.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes. 1999. p. 608. 02. A partir de seus conhecimentos, explique a seguinte afirmação: o homem é o único ser que vive em um mundo aberto. 03. “[...] a filosofia não é a revelação feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o diálogo entre iguais que se fazem cúmplices em sua mútua submissão à força da razão e não à razão da força.” SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Tradução de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2. A partir desse trecho, justifique por que a Filosofia se baseia na “força da razão e não na razão da força”. EXERCÍCIOS PROPOSTOS 01. o homem não passa de um caniço, o mais frágil da natureza; mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo; um vapor, uma gota d’água é suficiente para matá-lo. Mas quando o universo o esmagar, o homem será ainda mais nobre do que aquele que o mata, porque ele sabe que morre e o universo não tem nenhum conhecimento da vantagem que leva sobre ele. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É nele que devemos nos revelar e não no espaço e no tempo que não sabemos como ocupar. Trabalhemos para bem pensar [...] PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo: Abril Cultural, 1979. A partir do trecho, Redija um texto respondendo à seguinte pergunta: o que é o homem? 02. explique por que, no caso das meninas-lobo, elas, mesmo que de forma parcial, foram capazes de se adaptar ao mundo humano. Algum outro animal teria a mesma capacidade? justifique sua resposta. 03. [...] o homem não aperfeiçoou seu equipamento hereditário através de modificações corporais perceptíveis em seu esqueleto. Não obstante, pôde ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura [...] Nos trens e carros que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz. Nos aviões, pode subir mais alto que a águia, e, com os telescópios, ver mais longe que o gavião. Com armas de fogo, pode derrubar animais que nem o tigre ousa atacar. CHILDE, V. Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. p. 40-41. De acordo com o fragmento do texto, explique as diferenças fundamentais entre os homens e os animais e como os homens podem superar suas determinações físicas naturais. 04. explique a seguinte citação de Freud: “[...] Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização.” 05. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho, obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1985, V. I, p. 149-150. De acordo com o texto de Marx, explique por que somente o homem pode trabalhar. 06. explique, com suas palavras, os vários significados da palavra filosofia e justifique por que somente um deles se enquadra no conceito de filosofia tal como a estudamos. O pensamento filosófico 12 Coleção Estudo 07. (UFMG / Adaptado) Leia o texto. Dos deuses nenhum filosofa, nem deseja tornar-se sábio, pois o é; nem se algum outro é sábio, não filosofa. Nem, por sua vez, os ignorantes filosofam ou desejam tornar-se sábios. Pois é isto mesmo que é difícil com relação à ignorância: aquele que não é nem belo nem bom nem sábio considera sê-lo o suficiente. Aquele que não se considera ser desprovido de algo não deseja aquilo de que não acredita precisar. PLATÃO. Banquete, 204A1-7. identifique e explique as duas atitudes em relação à sabedoria descritas nesse texto. 08. A citação socrática “Só sei que nada sei” representa a verdadeira atitude filosófica. explique, de acordo com o estudado, por que o princípio da verdadeira filosofia é o reconhecimentoda própria ignorância. SEÇÃO ENEM 01. Leia o texto a seguir: Em seu pequeno e brilhante livro Introdução à Filosofia, Jaspers insiste na idéia de que a essência da filosofia é a procura do saber e não a sua posse. Todavia, ela ‘se trai a si mesma quando degenera em dogmatismo, isto é, num saber posto em fórmula, definitivo, completo. Fazer filosofia é estar a caminho; as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas, e cada resposta transforma-se numa nova pergunta’. Há, então, na pesquisa filosófica uma humildade autêntica que se opõe ao orgulhoso dogmatismo do fanático: o fanático está certo de possuir a verdade. Assim sendo, ele não tem mais necessidade de pesquisar e sucumbe à tentação de impor sua verdade a outrem. Acreditando estar com a verdade, ele não tem mais o cuidado de se tornar verdadeiro; a verdade é seu bem, sua propriedade, enquanto para o filósofo é uma exigência. No caso do fanático, a busca da verdade degradou-se na ilusão da posse de uma certeza. Ele se acredita o proprietário da certeza, ao passo que o filósofo esforça-se por ser peregrino da verdade. A humildade filosófica consiste em dizer que a verdade não pertence mais a mim que a ti, mas que ela está diante de nós. Assim, a consciência filosófica não é uma consciência GAbARITO Fixação 01. O homem é resultado de uma junção de características herdadas biologicamente de sua espécie e de características adquiridas através da cultura. Dessa forma, ao contrário dos animais que nascem somente no mundo, e por isso são determinados por sua herança biológica inalterável, o homem, ao nascer do mundo, não é mais determinado exclusivamente pelos limites biológicos. Assim, o homem se autoconstrói, uma vez que será fruto daquilo que aprender de sua cultura de forma passiva e também ativa. Por isso, os homens seguem padrões morais distintos e são tão diferentes entre si no modo de falar, agir, sentir, etc. feliz, satisfeita com a posse de um saber absoluto, nem uma consciência infeliz, presa das torturas de um ceticismo irremediável. Ela é uma consciência inquieta, insatisfeita com o que possui, mas à procura de uma verdade para a qual se sente talhada. HUISMAN, Denis; VERGEZ, A. Ação. 2. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1966, v. 1, p. 24. A palavra filosofia é resultado da composição, em grego, de duas outras: philo e sophia. A partir do sentido dessa composição e das características históricas que tornaram seu uso possível, tal palavra indica A) que o homem não possui um saber, mas o deseja, procurando a verdade por meio da observação das coisas, da natureza e do homem. B) que qualquer homem pode ser incluído na lista dos filósofos, pois todos são dotados de um saber prático, o que lhe concede sabedoria para agir de forma correta. C) a posse de um saber divino e pleno, tornando os homens portadores de um conhecimento quase divino. D) que Filosofia é um saber técnico, possibilitando, pela posse ou não de uma habilidade, tornar alguns homens melhores do que outros. E) que a Filosofia, em sua essência, significa a atitude daquele que tem consciência de que sabe pouco e acredita que suas investigações o levarão à verdade completa sobre as causas e origem de todas as coisas. Frente A Módulo 01 FI LO SO FI A 13Editora Bernoulli 02. Viver em um mundo aberto, segundo o estudo sobre antropologia filosófica, significa dizer que o homem é o único “ser de possibilidades” e que é indeterminado. Os animais irracionais são seres que vivem em um mundo fechado, pois não têm outras possibilidades na medida em que são resultado única e exclusivamente das determinações da natureza. Não podem alterar um modo de viver nem tão pouco mudar os instintos e comportamentos de sua espécie. Por isso, vivem em um mundo fechado. O homem, ao contrário, pode superar suas determinações naturais utilizando sua inteligência, construindo para si aquilo que lhe falta naturalmente. Assim, viver em um mundo aberto significa viver de forma a poder se autodeterminar, o que em Filosofia representa a verdadeira liberdade. O homem adapta a natureza a si enquanto os animais irracionais simplesmente se adaptam à natureza. 03. O discurso filosófico se caracteriza fundamentalmente pela argumentação lógica e coerente. O que se pretende na discussão filosófica é que o argumento, a racionalidade, supere a força física ou da autoridade. Dessa forma, se em outras dimensões da vida humana o poder, a hierarquia, o autoritarismo e a força de quem manda ou exerce poder superam o pensamento, a razoabilidade, na Filosofia o que vale, o que vence é o poder, a força, a autoridade do argumento bem elaborado e inteligivelmente possível e entendido por todos. A razão é que exerce seu poder, fazendo dos homens iguais enquanto seres inteligentes e dispostos a discutirem para que a própria razão opere e estabeleça a verdade. A razão da força, enquanto representante da lógica da autoridade e do mando, não serve absolutamente nada à Filosofia. Propostos 01. Segundo Pascal, o homem pode ser compreendido em duas perspectivas: se por um lado é um dos mais frágeis seres da natureza, uma vez que uma simples gota-d’água é suficiente para matá-lo, ou seja, diante dos fenômenos naturais ele pouco ou nada pode fazer, por outro lado é um ser pensante, o que lhe dá toda dignidade e o eleva ao patamar de um ser superior. O pensamento, a razão é a característica humana mais elevada, que torna possível superar toda sua limitação e ter consciência do que faz, de planejar o futuro a partir do que foi vivido no passado. Então, apesar de ser um caniço, o homem é um caniço pensante. E por mais que tenha limitações e fragilidades que o fazem pequeno diante das forças da natureza, ele sabe que é fraco, o que torna possível, inclusive, pensar e criar alternativas e instrumentos que possam torná-lo maior e mais forte do que praticamente todos os outros seres da natureza. 02. O caso das meninas-lobo é curioso e emblemático, demonstrando com clareza as características que fazem dos seres humanos seres únicos e excepcionais. Qualquer outro animal, se levado ainda nos primeiros dias de vida para junto de outros animais que não sejam de sua espécie, não se adaptariam ao seu modo de viver. Se um cachorro crescesse junto a gatos, não significa, absolutamente, que ele adotaria os hábitos e instintos próprios dos gatos. No caso do ser humano é diferente. As meninas, criadas no meio de lobos, tomaram para si os hábitos e maneiras próprias desses seres. Uivavam, comiam carne crua, andavam sobre pés e mãos. Somente o homem, por sua capacidade de se adaptar advinda de seu pensamento, enfim, por ser também fruto da cultura, pode adquirir tais hábitos. As meninas somente se tornaram semelhantes aos lobos e depois puderam passar por um processo de humanização graças à capacidade única do ser humano de pensar e adquirir novos hábitos. Isso significa, claramente, que nós não somos determinados por nossa natureza, apesar de a termos como os outros animais. 03. O texto de Gordon Childe trata, especificamente, da diferença fundamental entre homens e animais: a capacidade elaborada de pensamento, exclusiva dos homens. Se os animais, condicionados por seus instintos já nascem prontos para a vida na natureza, possuindo garras, penas, pelo, força, etc., o homem, apesar de não possuir nenhuma dessas características naturais, pode superar suas limitações criando, pela adaptação da natureza às suas necessidades, objetos e instrumentos que atendam às suas demandas. Se não temos pelos suficientes que nos protejam do frio, podemos criar roupas que nos aquecem ainda mais que os pelos dos animais. Se o homem não tem a força do touro para realizar seus trabalhos, pode construir máquinas e outras ferramentas que substituama força bruta do animal. Dessa forma, ao adaptar a natureza às suas necessidades, o homem torna-se criador e criatura, superando suas limitações e transformando o mundo natural segundo suas necessidades. O pensamento filosófico 14 Coleção Estudo 04. O que Freud constata é que o homem é formado por características naturais e culturais que interagem entre si, e muitas vezes essas características naturais não são facilmente controláveis. Segundo Freud, o id representa as forças primitivas e mais íntimas do homem em busca do prazer e da satisfação dos instintos e deveria ser adequadamente administrado pelo ego, representante do eu, da consciência psíquica. Porém, o id não se apresenta como algo facilmente controlado. Pelo contrário, esses instintos, parte integrante da natureza humana, protestam contra o “programa de civilização”. Assim, a tentativa de controle, por meio da razão, da natureza humana e de adequação desta àquilo que se pretende correto e justo é tarefa demasiado difícil e em alguns casos mesmo impossível. 05. Os animais, por mais que realizem tarefas, algumas consideradas obras incríveis, devido a sua beleza e minúcia, não trabalham. Isso porque, por mais perfeito que seja um ninho de pássaro ou uma colmeia de abelhas, tais objetos não são pensados antes de serem executados, ou seja, os animais os constroem seguindo seus instintos e sem nenhuma consciência de finalidade. Eles não trabalham, mas somente realizam tarefas de antemão determinadas pela sua natureza. O homem trabalha, considerando que possui a capacidade de planejar o que será realizado e por ter consciência do porquê está fazendo determinada atividade, de qual a finalidade do feito. O trabalho é caracterizado, dessa forma, pela interferência do homem na natureza com o objetivo de construir alguma coisa que o auxiliará no desafio da própria existência. Assim, compreendemos a afirmação feita por Max de que o pior arquiteto é ainda superior à melhor abelha, pois esta não sabe por que faz, simplesmente obedece cegamente a seus instintos, aquele, por pior que faça, constrói o que de antemão já existia em sua mente. 06. A filosofia pode ser entendida como modo de viver ou sabedoria de vida, assumindo um caráter pessoal. É a maneira que um indivíduo particular tem de ver o mundo e de se portar diante das situações. Também se pode compreendê-la como pensamento ou origem das ideias, o que significa que a filosofia é vista como o simples ato de pensar, o que se percebe quando alguém afirma “estar filosofando”. Porém, o modo que corresponde ao conceito de filosofia tal como estamos estudando se refere à busca da verdade e fundamentação teórica sobre o homem e o mundo. O que significa que a filosofia busca através da análise, da crítica, do questionamento, da reflexão, a própria verdade sobre o homem, sobre a sociedade, sobre o pensamento, enfim, sobre tudo o que pode ser pensado e que diz respeito à vida humana. 07. atitude 1: A atitude dos deuses que não filosofam, pois já são sábios e por isso não necessitam buscar o conhecimento. Se entendemos a filosofia como caminho para o conhecimento, aqueles que já o possuem não necessitam da filosofia, uma vez que não têm o que buscar. atitude 2: A atitude dos ignorantes que não filosofam, pois acreditam já possuir o conhecimento sem o tê-lo de fato. Tal como os deuses, os ignorantes não buscam o conhecimento. Porém, diferente dos deuses, os ignorantes acreditam ter o conhecimento, mas não o possuem. Segundo Platão, esse é o pior estado em que o homem pode se encontrar: acreditar ser sábio, sendo tão somente um ignorante, e por isso não se dedicar à Filosofia por achar que não lhe falta nada. 08. A Filosofia é antes de mais nada uma atitude. Atitude daquele que reconhece que não sabe e por isso se põe a investigar, criticar, questionar todas as coisas em busca de respostas que se apresentem ao homem coerentes e inteligíveis. Entendida dessa maneira, a Filosofia exige do filósofo a atitude de abertura, de busca, de reconhecimento de que o conhecimento é inesgotável e por mais que se tenha algum saber, esse saber é pouco em relação a tudo o que há para se conhecer. Podemos dizer que a afirmação “só sei que nada sei” de Sócrates é a encarnação da própria Filosofia: ao reconhecer que não sabe nada, o filósofo se dedica ao exercício do saber, busca conhecer. Se ao contrário, o sujeito acredita saber tudo, ele se fecha à possibilidade do conhecimento e não pode conhecer mais nada. Seção Enem 01. A Frente A Módulo 01 FRENTE 15Editora Bernoulli MóDULOFilosoFia O NASCIMENTO DA FILOSOFIA A origem existencial da Filosofia A origem da Filosofia data dos séculos VII e VI a.C. Foi na Grécia, na região da Jônia, na cidade de Mileto, que esse modo de conhecimento ganhou forma e se estabeleceu como maneira de compreender o mundo. Portanto, pode-se afirmar que a Filosofia é fruto do gênio helênico, ou seja, é fruto da genialidade dos gregos. É por causa do nascimento da Filosofia na Grécia que costumeiramente se diz que a “Grécia é o berço da civilização ocidental”. De fato, a Filosofia apresenta-se como a “rainha das ciências”. Tal característica se deve exatamente ao fato de a Filosofia ter sido o primeiro modo de conhecer o mundo e os homens de forma estritamente racional. As influências dos povos orientais O início da civilização grega, que foi a primeira a se desenvolver na Europa, se dá por volta do século XX a. C., com a junção ou encontro das culturas minoica e micênica. Tal civilização habitou a Península Balcânica, a mais oriental do sul da Europa, rodeada de inúmeras ilhas. Graças ao seu relevo montanhoso, inúmeras comunidades isoladas e autônomas se desenvolveram, formando, a partir do século VIII a.C., as pólis gregas ou cidades-estado. Isso significa que, antes dos gregos, vários outros povos já contavam com uma história de vários séculos. Mas por que a Filosofia nasceu com os gregos, mesmo sendo estes antecedidos por civilizações bastante desenvolvidas, como a dos egípcios, dos babilônios, dos caldeus, dos chineses e dos persas, por exemplo? Há de se considerar, para compreendermos a genialidade dos gregos na origem da Filosofia, o caráter não puramente quantitativo, mas qualitativo de suas pesquisas, o que representa uma absoluta e extraordinária novidade. Somente através dessa constatação é possível compreender por que a civilização ocidental, sob influência dos gregos, portanto, da Filosofia, tomou uma direção completamente diferente da civilização oriental. Assim, podemos compreender como, por exemplo, os gregos tomaram dos egípcios alguns conhecimentos matemático-geométricos sobre a natureza. Tais conhecimentos possuem para os egípcios um caráter claramente prático, como a utilização de cálculos para medir a quantidade de gêneros alimentícios, para medir a área dos campos após as inundações do Rio Nilo, para se realizar medidas e projeções na construção das pirâmides. Tais usos são claramente racionais. Mas vejamos a matemática sob a ótica da Filosofia, quando foi apropriada pelos gregos. Reelaborados pelos gregos, os conhecimentos matemáticos adquirem um caráter qualitativo. Com o trabalho desenvolvido pelos pitagóricos, os gregos transformaram o uso da matemática com fins práticos em uma teoria geral e sistemática dos números e das figuras geométricas. De modo mais simples: enquanto o conhecimento matemático dos egípcios usava o cálculo com fins práticos, Pitágoras (o primeiro a utilizar a palavra filosofia) buscou alcançar a realidade matemática que existia por detrás daquilo que é perceptível aos sentidos humanos. Se o mundo, aparentemente, é aquilo que está posto às experiências humanas, a filosofia pitagórica (e boa parte da Filosofia, pelos menos até Descartes,no século XVII) vai buscar aquilo que está para além da aparência, procurando compreender ou apreender a causa primeira, a essência última das coisas. Perceba que o pensamento pitagórico busca compreender a natureza numa generalidade muito mais ampla do que daquilo que se apresenta aos nossos sentidos. Pitágoras investiga a estrutura invisível da natureza que, para ele, é de tipo matemático e alcançada apenas pela atividade puramente racional. Enfim, a Filosofia é um modo de pensar a realidade, um modo de compreensão do mundo, que surge com os gregos dos séculos VII e VI a.C. e que, devido a razões históricas e políticas, posteriormente se tornou o modo de pensar o mundo de toda a cultura europeia ocidental, da qual, como povo colonizado, nós participamos. A origem da Filosofia 02 A 16 Coleção Estudo A origem histórica da Filosofia E di to ri a de a rt e MACEDÔNIA ÉPIR O TESSÁLIA ÁSIA MENOR LID IA CRETA PELOPONESO Esparta Atenas Éfeso Mileto RODES Cnossos MAR EGEU MAR JÔNICO Cumae Nápoles Magna Grécia Taranto Siracusa Mapa da Grécia: a civilização grega desenvolve-se no Mediterrâneo Oriental Dissemos que a Filosofia tem data e local de nascimento: Grécia, fins do século VII e início do VI a.C., na região da Jônia (nas colônias da Ásia Menor), na cidade de Mileto. Uma das grandes questões em relação ao nascimento da Filosofia é saber o porquê de seu nascimento e por que ela nasceu especificamente com os gregos. Duas foram as teses levantadas: a do “milagre grego” e a do orientalismo. A tese do “milagre grego” defenderá que a Filosofia surgiu na Grécia como um verdadeiro milagre, ou seja, que não houve qualquer precedente para o seu surgimento. Foi um acontecimento espontâneo e não há um contexto original que justifique sua origem. Considera-se, assim, que esse modo de pensar e conceber o mundo e o homem simplesmente apareceu, e uma das razões para seu aparecimento é a genialidade dos gregos. Outra explicação, a do orientalismo, dirá que a Filosofia nasceu com as transformações realizadas pelos gregos sobre conhecimentos advindos dos povos orientais, como a agrimensura dos egípcios, a astrologia dos babilônios e outros. Hoje, ambas as teorias, “milagre grego” e orientalismo, foram superadas. Acredita-se atualmente que a Filosofia foi fruto das condições históricas da Grécia dos séculos VII e VI a.C., que proporcionaram condições favoráveis ao surgimento desse novo modo de pensar. Por isso, alguns estudiosos da Filosofia, se referindo ao nascimento dessa forma de pensamento, dirão que ela é “filha da pólis”. Porém, que condições são essas? Podemos destacar os seguintes fatores: 1. Viagens marítimas: a pouca fertilidade do solo acidentado, característica marcante do território no qual viviam as comunidades gregas, foi compensada pela presença de excelentes portos naturais, o que permitiu o grande desenvolvimento das viagens marítimas. Tais viagens ajudaram no desencantamento do universo, na desmistificação da natureza, quando os homens, viajando em alto-mar, percebem a inexistência daquilo que os mitos narravam como monstros marinhos, abismos e terras dos deuses, os quais faziam parte do imaginário do povo daquela época. Dessa forma, as viagens marítimas são como o estopim que detona um gradativo descrédito das explicações mágico- imaginárias da natureza. É interessante notarmos a estreita ligação que unia os gregos ao mar e a importância deste para o progresso daquela civilização. Diante do aumento expressivo da população nas principais cidades-estado, como Atenas, os gregos se viram obrigados a fundar muitas colônias na região do Mediterrâneo em busca de terras férteis para a agricultura e o sustento da população. 2. Invenção do calendário: a invenção do calendário concede aos gregos o “domínio” do tempo. Se no contexto dos mitos eram os deuses que determinavam o tempo e eventos da natureza, como as estações do ano, agora, com a divisão do tempo e o modo de calculá-lo, os homens tornam-se capazes de identificar a sua regularidade, não necessitando da interferência e vontade dos deuses. 3. Surgimento da vida urbana: com o crescimento do comércio, impulsionado pelas trocas comerciais, possíveis graças às viagens marítimas, algumas cidades se despontam como centros comerciais. A primeira dessas cidades é Mileto, que não por acaso é a cidade natal da Filosofia. Tal crescimento faz surgir uma nova classe constituída de comerciantes e artesãos, que representam um outro polo de poder, opondo-se à aristocracia de sangue e proprietários de terra que, até então, representavam e detinham o poder na cidade. Essa nova classe, como uma espécie de mecenas da Antiguidade, investiu e estimulou as artes, o desenvolvimento das técnicas e o conhecimento, o que proporcionou um ambiente propício ao surgimento da Filosofia. 4. Escrita alfabética: se até então a tradição mítica se sustentava sob uma tradição exclusivamente oral, transmitida de geração para geração pela fala, fato que justifica o aparecimento de várias versões para o mesmo mito, com a invenção da escrita alfabética, o mito é colocado no papel, é escrito, o que contribuiu decisivamente para que se pudesse identificar seus pormenores e suas contradições internas. Frente A Módulo 02 FI LO SO FI A 17Editora Bernoulli 5. Política: sem dúvida, a política foi um dos aspectos mais importantes para o nascimento da Filosofia, que tem como uma de suas características mais importantes a presença do discurso racional, o logos como sustentação, por meio de princípios lógicos, de suas verdades e argumentos. A política traz consigo dois aspectos importantíssimos: A – Com a formação da pólis, agora governada democraticamente pelos cidadãos, surge o espaço para as discussões políticas, que são o modo de organização e administração da cidade. A Ágora, ou praça pública, é o coração da cidade, lugar onde são feitas discussões e deliberações sobre as leis e outros assuntos importantes para o bem da cidade. Há de se destacar que, com a contribuição e a consolidação da cidade-estado, da pólis, o grego descobriu-se como verdadeiro cidadão (pertencente à pólis). Tal posição não é mera contingência, mas faz parte e constitui a própria essência do homem grego que se vê somente como pertencente a um todo coletivo. Dessa forma, o estado tornou-se o horizonte ético do homem grego e assim permaneceu até a era helenística. Os cidadãos sentiram os fins do estado como seus próprios fins, o bem do estado como seu próprio bem, a grandeza do estado como sua própria grandeza e a liberdade do estado como sua própria liberdade (REALE, Giovanni. História da Filosofia: Filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus, 2003. V. I. p. 10). B – Ao conceberem por conta própria e segundo seus próprios critérios as leis da cidade, tais leis passam a coincidir com a vontade dos homens e não mais são impostas pela tradição e autoridade religiosas. A lei torna-se, então, expressão da coletividade humana que, pela racionalidade, tenta reproduzir na legislação da cidade a própria ordem do cosmos. Desse modo, a política, com a discussão das leis e a tomada de deliberações importantes à vida da pólis, estimula e exige um pensamento, um discurso racional, uma discussão política que necessariamente precisa de alto grau de inteligibilidade, coerência, permitindo a comunicação clara entre os cidadãos e seus pares. Tal necessidade faz surgir a semente do pensamento filosófico que, obedecendo a regras e princípios lógicos, não admite uma explicação que não se fundamente na razão livre ou que tenha como base as explicações misteriosas e incompreensíveis do mito. Aqui se encontra a justificativa para a afirmação de que a Filosofia é “filha da pólis”. MITOLOGIA O mito: uma forma especial de explicar o universo e o homem Ja co b Jo rd ae n s PrometheusComo foi dito, a civilização grega não nasceu junto à Filosofia nos séculos VII e VI a.C. Esse povo tem suas origens no século XX a.C. Também dissemos que o homem não se contenta em não saber as coisas, ou seja, faz parte da natureza humana buscar o conhecimento. Nas palavras de Aristóteles, “por natureza, todos os homens aspiram pelo saber”. Se a Filosofia nasce treze séculos depois do surgimento da civilização grega, como os homens respondiam à pergunta “de onde veio o mundo” durante esse período? As duas “ferramentas” básicas que o homem tem para explicar o universo são a razão e a imaginação. Logo, podemos dizer que, antes de utilizar a razão, manifestada no conhecimento filosófico, os gregos procuraram, como todos os povos do mundo, explicar a origem do universo e para tal utilizaram da imaginação a fim de compreender o funcionamento da natureza, da sociedade e o próprio homem. Enfim, como forma de compreender o cosmos, foi elaborada uma cosmogonia (tentativa de explicar o nascimento, a origem do universo ou do cosmos por meio de narrativas imaginárias que remetem à fantasia, às formas religiosas e míticas de expressão). A origem da Filosofia 18 Coleção Estudo O que é o mito A palavra “mito” vem do grego mythos, que significa um modo particular de discurso que é fictício, proveniente da imaginação, sendo que de certo modo é identificado como uma “mentira”. O mito é uma forma particular de ver e tentar compreender o mundo baseada na imaginação. Voltado mais para os afetos e sentimentos humanos do que ao rigor lógico-científico, ele não se preocupa com a coerência de seus discursos e argumentos, tampouco com as provas que poderiam torná-lo verdadeiro. O mito é uma forma de o ser humano se situar no mundo. Nas sociedades tribais, o mito apresenta-se como um modo fantasioso, acrítico e ingênuo de explicação utilizado como maneira de estabelecer algumas verdades que explicariam tanto os fenômenos naturais quanto a própria vida, os hábitos, os sentimentos e a moral dos homens dentro de uma sociedade cultural. Diferentemente da Filosofia, que se pauta em um raciocínio elaborado e empiricamente comprovado na realidade, o mito nasce como uma forma de expressão que se constrói no imaginário de determinada comunidade, quando esta se vê diante da ferocidade e dos mistérios da natureza, dos fenômenos naturais, como o dia e a noite, o trovão, o terremoto, o nascimento e a morte de homens e outros seres. Dessa forma, o mito exerce o papel de “porto seguro”, ele dá segurança e protege os homens contra aquilo que é incontrolável e desconhecido. Assim, há uma qualificação da natureza e de seus fenômenos que se apresentam então como bons ou maus, amigos ou inimigos, aliados ou contrários aos homens e às sociedades. Se a natureza ganha vida própria com os mitos, é necessário que, por meio dos ritos, as forças e vontades da natureza sejam aplacadas ou cultuadas. Dessa forma, os ritos, que são tão somente manifestações de mito realizadas em práticas cerimoniais, têm como finalidade interferir na “vontade” da natureza, que agiria sempre de forma intencional, a favor ou contra os homens. Dessa forma, o mito está intimamente ligado à magia, aos sentimentos, bons ou maus, à fantasia e às forças sobrenaturais que interferem, inexplicavelmente, na vida dos homens e da sociedade e nas manifestações da natureza. A função do mito Pelo que foi dito, o mito tem, dentro das sociedades primitivas e tribais, a função de acomodar e tranquilizar o ser humano diante de um mundo misterioso e assustador. Encarnado nos ritos, o mito é para os homens uma forma de apaziguamento das forças sobrenaturais e serve como baliza que garanta um comportamento linear e moral, possibilitando a ordem social. Dessa forma, o mito é a forma primeira de explicar o mundo, a natureza e o próprio homem, tanto em sua dimensão interna quanto em sua dimensão externa. Nesse modo de conhecer, a imaginação exerce papel predominante como forma de levar o homem a uma harmonia com o mundo que o cerca e de dar sentido à vida, à própria existência humana e também encontrar um sentido no mundo. A mitologia grega Hércules e Atena A religiosidade grega, como na maior parte dos povos da Antiguidade, era politeísta. Os deuses gregos eram antropomórficos (antropo: homem; morphos: forma). Dessa forma, tais divindades possuíam características tipicamente humanas: sentiam prazer, iravam-se, maquinavam para se vingarem dos deuses ou dos homens, se apaixonavam, traíam, sentiam ciúmes. Enfim, os deuses possuíam todas as características e sentimentos que identificamos como humanos, quer sejam bons ou maus, qualidades e defeitos. Porém, por serem deuses, tinham poderes sobrenaturais, além de serem imortais, motivo por que permaneciam eternamente jovens. Tais deuses habitavam o Monte Olimpo, a montanha mais alta da Grécia. No alto da montanha, eles se reuniam para se divertir, dançar, comer, cantar, etc. Cada um dos deuses tinha uma condição ou atributo especial, sendo responsável por determinado fenômeno natural ou por algo concernente à vida dos homens em aspectos econômicos, políticos, sociais ou culturais. Entre os mais importantes, citamos: Zeus, o chefe dos deuses e o mais poderoso entre eles, que possuía o poder do raio com o qual castigava todos os que por ventura o desafiassem ou se opusessem às suas determinações; Afrodite, a deusa do amor; Frente A Módulo 02 Larah Highlight FI LO SO FI A 19Editora Bernoulli Apolo, deus da música e da poesia; Ares, deus da guerra; Ártemis, deusa das montanhas, bosques e caça; Atena, deusa da sabedoria e da estratégia militar; Caos, deus do indefi nido, da desordem, daquilo que havia antes do cosmos; Cárites, deusas da beleza; Eros, deus do amor; Hades, deus do mundo dos mortos; Gaia, deusa da Terra. Além dos deuses, na mitologia grega também há a presença de semideuses, heróis responsáveis por feitos extraordinários, nascidos da relação amorosa entre deuses e humanos. Entre os mais importantes, citamos: Teseu, que derrotou o minotauro. Hércules, que teve de cumprir doze tarefas dadas a ele pelo oráculo de Delfos; Perseu, famoso por ter decapitado a medusa. É importante ressaltar que os deuses e os mitos diziam respeito tanto à ordem do universo e da natureza quanto aos aspectos da vida do homem, da condição humana, como os sentimentos, as habilidades, por exemplo, do artesanato, da construção, da fala e argumentação, da sedução, e também a vida em sociedade, etc. As histórias míticas na Grécia Antiga não são fruto da capacidade imaginativa de um só autor ou autores, mas são produtos de uma tradição cultural de um povo, a qual tem seu início impossível de ser determinado. Os principais poetas, considerados os grandes responsáveis pela maior parte do conhecimento sobre a mitologia grega que temos em nossos dias – Homero, que escreveu Ilíada e Odisséia (século IX a.C.) e Hesíodo, que produziu a Teogonia (século VIII a.C.) –, na verdade não são os autores desses mitos, mas o que fi zeram foi registrar os relatos orais da tradição dos muitos povos que habitaram a Grécia desde o século XV a.C. A trajetória do mito ao logos É comum encontrarmos autores que dizem que na passagem da consciência mítica à consciência fi losófi ca, ou seja, na passagem de uma visão imaginária para uma visão racional da realidade, houve uma ruptura radical com a tradição e cultura gregas marcadas, antes, pelas explicações religiosas, e agora pela Filosofi a. Tal posição deve ser considerada em duas perspectivas: a da forma e a do conteúdo. Se analisarmos a forma de explicação própria da mitologia em contraposição à da Filosofi a, perceberemos que há sim uma ruptura dos primeiros fi lósofos com essa forma imaginária de conhecimento, baseada na fantasia, no sobrenatural, no mistério, no sagrado e na magia. A Filosofi a buscarásuas explicações com fundamentos na razão, na observação da natureza, da phisys, justamente como fi zeram os primeiros fi lósofos, os pré-socráticos, que estudaremos em seguida. Por outro lado, analisando o conteúdo, veremos que a Filosofi a não rompe defi nitivamente com o mito, uma vez que, em grande parte, os problemas tratados pela Filosofi a são os mesmos que os mitos buscavam responder. Por exemplo, a questão da origem do universo e de seu funcionamento, antes explicada pela mitologia sempre por meio de alusões ao campo divino, a Filosofi a tentará explicar com base na busca pré-socrática pelo princípio primeiro e unifi cador da natureza, denominado por eles de Arché. Dessa forma, é incorreto afi rmar que a Filosofi a rompeu radicalmente com os mitos. De alguma maneira, o que se observa, principalmente no início do pensamento fi losófi co, no período pré-socrático ou cosmológico e também no período antropológico ou socrático, é uma complementaridade de mito e Filosofi a na tentativa de conhecer e explicar a realidade. Não há de se pensar em mito como uma mentira e Filosofi a como uma verdade. [...] mito e logos são as duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida do espírito. O logos, sendo uma argumentação, pretende convencer. O logos é verdadeiro, no caso de ser justo e conforme à “lógica”; é falso quando dissimula alguma burla secreta (sofi sma). Mas o mito tem por fi nalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou não nele, conforme a própria vontade, mediante um ato de fé, caso pareça “belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se quer acreditar. O mito, assim, atrai em torno de si toda parcela do irracional existente no pensamento humano; por sua própria natureza, é aparentado à arte, em todas as suas criações. GRIMAL, Pierre. A mitologia grega. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 8-9. Como dito, por se tratar de formas de conhecimento distintos, mito e Filosofi a não podem ser colocados como opostos ou pensados sob uma lógica de verdadeiro ou falso, certo ou errado. Trata-se de modos de conhecer diferentes e particulares. A aceitação do mito se fundamenta na autoridade de quem diz, pois pressupõe uma adesão daqueles que o recebem. Já a aceitação da Filosofi a se concentra naquilo que se diz, pois admite, ao contrário do mito, uma atitude crítica e investigativa. O mito é dado aos homens pela revelação ou visão dos videntes (poetas rapsodos que tinham o dom da vidência e transmitiam aos homens as mensagens dadas pelos deuses). Ele se baseia na fé / confi ança daqueles que o recebem como verdade e não necessita de justifi cativa nem de provas para ser aceito e seguido. A Filosofi a, ao contrário, deve ser justifi cada racionalmente, pois, se assim não for, o argumento torna-se inválido e não será aceito. O mito aceita contradições internas em seu discurso, já a Filosofi a não aceita contradições, uma vez que deve ser inteligível e coerente com os princípios básicos do pensamento lógico. A origem da Filosofia 20 Coleção Estudo A FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA OU NATURALISTA Os filósofos pré-socráticos ou filósofos da natureza Recebem o nome de pré-socráticos os pensadores fundadores da Filosofia, que, cronologicamente, são anteriores a Sócrates, sendo que alguns chegaram a ser seus contemporâneos. A marca principal do pensamento desses primeiros fi lósofos é sua preocupação com a natureza e sua origem. Veremos adiante a importância de Sócrates para a Filosofi a, que representa uma reviravolta devido à sua preocupação com o ético-político, ou seja, o seu foco será o homem e a sociedade, ao contrário dos pré-socráticos, que se preocupavam com a origem do cosmos ou da physis. Diante das inúmeras transformações históricas, políticas e sociais ocorridas na Grécia dos séculos VII e VI a.C., como já tratamos anteriormente, as explicações míticas foram se tornando cada vez mais insufi cientes como forma de compreensão do mundo, do homem e da natureza. As explicações míticas que se fundamentam na autoridade do poeta ou vidente que as contava, com a perda gradativa do poder por parte deste, também vão perdendo sua força e, consequentemente, vão se tornando distantes das aspirações dos gregos ao conhecimento. De fato, desse ponto de vista, o pensamento mítico tem uma característica até certo ponto paradoxal. Se, por uma lado, pretende fornecer uma explicação da realidade, por outro lado, recorre nesta explicação ao mistério e ao sobrenatural, ou seja, exatamente àquilo que não se pode explicar, que não se pode compreender por estar fora do plano da compreensão humana. A explicação dada pelo pensamento mítico esbarra assim no inexplicável, na impossibilidade do conhecimento. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997. p. 21. Uma interessante e importantíssima transformação ocorrida na Grécia dos séculos VII e VI a.C. nos ajuda a compreender como pouco a pouco o mito vai perdendo sua força explicativa da realidade. Essa transformação se deu com a interação ocorrida nas colônias gregas da Jônia, principalmente Mileto (onde nasce a Filosofi a), de várias culturas diferentes. Por se tratar de cidades que tinham importantes portos e entrepostos comerciais, para lá se dirigiam inúmeras caravanas provenientes de vários locais, principalmente do Oriente, que traziam a essas cidades suas mercadorias para depois serem levadas a outros locais e regiões do Mediterrâneo. Consequentemente, movidos por interesses comerciais, várias culturas que aí se encontravam trocavam as mais variadas informações, inclusive sobre as tradições culturais míticas próprias de cada um desses povos, o que fez com que eles percebessem as inúmeras formas e histórias diferentes com um só objetivo, o de explicar a realidade. Qual história estaria correta? Qual seria a verdadeira? As inúmeras variações míticas levaram os gregos a perceber que poderia haver uma relativização dos mitos, e, consequentemente, que nenhum deles poderia ser absolutamente verdadeiro. Dessa maneira, a Filosofi a ou, nesse primeiro período, as explicações fi losófi co-científi cas vão se despontando com a tentativa dos gregos de explicarem o universo, a natureza e o próprio homem de forma diferente. Agora, o universo passa a ser visto não como algo secreto e misterioso, passível de ser decifrado somente por poucos escolhidos. Ao contrário, todas as coisas são encaradas como possíveis de serem conhecidas pelo homem que, apoiado em sua própria capacidade racional e em sua curiosidade observadora, se põe em busca da explicação do mundo pela própria observação das coisas, não se encontrando mais em uma realidade sobrenatural e inacessível. O cosmos se abre à possibilidade do conhecimento. Os mistérios são descartados e o homem põe-se a pensar. Enfi m, nasce a Filosofi a. O mito ainda sobrevive É comum, quando falamos em sala de aula sobre o nascimento da Filosofi a, algum aluno fazer a seguinte pergunta: mas e os mitos, eles foram descartados? Ou, quando estamos lendo algum trecho da obra de Platão em que Sócrates se refere aos deuses, o aluno perguntar: mas os mitos não foram superados? Por que Platão, sendo um fi lósofo, continua a se referir aos deuses? Aqui, faz-se necessária uma observação sobre o processo de modificação da função social do mito a partir do nascimento da Filosofi a. Com o aparecimento das explicações fi losófi co-científi cas, os mitos vão gradativamente perdendo sua força enquanto única e inquestionável forma de explicação da realidade. A ruptura com a forma do mito não se dá de maneira brusca e radical. Observe que o mito ainda ocupa um lugar de destaque nas sociedades atuais como forma de manifestação da fé de determinadas pessoas ou como maneira de explicar aquilo que até
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