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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA CIÊNCIA Lisa Bortolloti TRADUÇÃO JORGE BELEZA REVISÃO CIENTÍFICA AIRES ALMEIDA Gradiva Título original An Introduction to the Philosophy of Science © Lisa Bortolloti, 2008 Esta edição é publicada por acordo com Polity Press Ltd., Cambridge Tradução Jorge Beleza Revisão científica Aires Almeida Revisão de texto Maria de Fátima Carmo Capa Armando Lopes (arranjo gráfico)/©Michael Stones (ilustração) Fotocomposição Gradiva Impressão e acabamento Multitipo — Artes Gráficas, L.da Reservados os direitos para a língua portuguesa por Gradiva Publicações, S. A. Rua Almeida e Sousa, 21 r/c esq. —1 399-041 - Lisboa Tel. 213974067/8 Fax 213953471 geral@gradiva.mail.pt www.gradiva.pt l.a edição Novembro de 2013 Depósito legal 366 955/2013 ISBN 978-989-616-557-4 Colecção coordenada por AIRES ALMEIDA CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA Gradiva EDITOR GUILHERME VALENTE À Rita, que sempre me ajudou Índice Agradecimentos Introdução: O que é a ciência? 1. Demarcação 1.1 Ciência e não-ciência 1.2 Ciência e pseudociência 1.3 Ciências naturais e sociais 1.4 O que é a investigação científica? 1.5 Boa e má ciência 2. Raciocínio 2.1 Maneiras de raciocinar 2.2 O método científico: a indução 2.3 O problema da indução 3. Conhecimento 3.1 O que é uma teoria? 3.2 Confirmação de teorias 3.3 Modelos de explicação 4. Linguagem e realidade 4.1 Significado, referência e categorias naturais. 4.2 Implicações do descritivismo 4.3 Realismo 4.4 O debate sobre o realismo 5. Racionalidade 5.1 Revoluções 5.2 Mudanças de paradigma 5.3 Além das revoluções 6. Ética 6.1 Instrumentalização 6.2 Constrangimentos éticos aos objectivos da investigação 6.3 Constrangimentos éticos aos métodos de investigação 6.4 Constrangimentos éticos à investigação científica Conclusão: A ciência como actividade Glossário Bibliografia temática Indice de figuras Indice de quadros Agradecimentos Escrever este livro foi uma tarefa que contou com mais colaboração do que pode parecer à primeira vista. Ao longo dos capítulos que se seguem, passo em revista os debates clássicos em filosofia da ciência, mas também me debruço sobre argumentos específicos que desenvolvi com outros filósofos, em particular Matteo Mameli (sobre a ilusão metodológica na investigação em psicologia), Bert Heinrichs (sobre a delimitação do conceito de investigação) e John Harris (sobre a ética dos aperfeiçoamentos). Também estou em dívida para com Ángel Fernandez, Asja Portsch, Francis Longworth, Maggie Curnutte e Nigel Leary pelas suas muitas sugestões úteis. O Nigel foi uma ajuda absolutamente fantástica em várias fases do projecto, sendo inteiramente responsável pelo enriquecimento da bibliografia sobre os termos para categorias naturais, em especial sobre «jade». Fico muito grata pela sua competência, valorosa assistência e entusiasmo. Nunca teria escrito este livro sem o encorajamento de Keith Maslin (Esther College), Emma Hutchinson (Polity Press) e da maravilhosa directora do meu departamento, Helen Beebee. Escrever este livro teria sido muito mais difícil sem o constante apoio dos meus tão compreensivos pais e amigos. Agradeço a Yujin Nagasawa, Matteo Mameli, Matthew Broome, Dan López de Sa, Jordi Fernández, Edoardo Zamuner e Esa Díaz-León por terem estado sempre lá e por me terem ajudado amavelmente a atingir a meta. Também estou grata a todas as pessoas que me ensinaram a amar a filosofia em geral e a filosofia da ciência em particular: Maurizio Pancaldi, Eva Picardi, Maurizio Ferriani, Geoffrey Cantor, Donald Gillies, David Papineau, Bill Newton-Smith, Martin Davies, Kim Sterelny e John Harris (pela ordem em que tive o prazer de os conhecer). Tive a sorte de fazer parte de um ambiente de investigação muito estimulante quando trabalhei no Projecto EURECA (sobre a Delimitação do Conceito de Investigação e das Actividades de Investigação) no Centre for Social Ethics and Policy em Manchester, de 2004 a 2005. Desde que passei a fazer parte do Departamento de Filosofia da Universidade de Birmingham, pude usufruir de um apoio fantástico de todos, e testei versões prévias de capítulos deste livro em estudantes de licenciatura muito pacientes. Recentemente, tive também a oportunidade de visitar a Escola Europeia de Medicina Molecular (SEMM), na Fundação do Instituto de Oncologia Molecular em Milão, onde testemunhei os frutos inspiradores do casamento feliz entre a ciência e a filosofia. Muito antes de ter descoberto a filosofia, prometi que dedicaria o meu primeiro livro à minha irmã. Nem a Rita nem eu imaginávamos então que o livro seria uma introdução à filosofia da ciência, mas ei-lo. Espero que ela não fique muito desapontada. Introdução: O que é a ciência? Este livro é um guia para as questões filosóficas centrais levantadas pela prática da ciência. Não se destina apenas ao filósofo curioso pela ciência, mas também ao cientista que quer saber mais sobre filosofia. E também a todo aquele que se interessa pelo que confere à ciência um estatuto especial, pese embora a continuidade entre a investigação científica e as outras actividades humanas. Cada capítulo centra-se num conjunto de problemas e pretende dotar o leitor de ferramentas básicas para a apreciação dos debates clássicos numa área tradicional de exploração filosófica. No capítulo 1, sobre a demarcação, são revistas e avaliadas algumas das tentativas de resposta filosófica à questão do que torna a ciência algo de especial. No capítulo 2, sobre o raciocínio, são identificadas e comparadas algumas estratégias de aquisição e derivação do conhecimento científico. No capítulo 3, sobre o conhecimento, procede-se ao exame da estrutura das teorias científicas, da sua formação e confirmação, bem como da natureza da explicação. No capítulo 4, sobre a linguagem e a realidade, é analisada a linguagem usada nas teorias científicas, em especial a distinção entre termos observacionais e teóricos, e as potenciais barreiras linguísticas e conceptuais à compreensão científica. Também é tratada a questão da finalidade da ciência: ela visa descrever como as coisas realmente são, ou apenas dotar-nos dos meios para prevermos os fenómenos por que nos interessamos? No capítulo 5, sobre a racionalidade, é investigada a natureza da mudança de teorias e do progresso científico. No capítulo 6, sobre a ética, são discutidos alguns exemplos da relação complexa entre a ciência e a sociedade, e são colocadas questões sobre os constrangimentos éticos que devem ser impostos à investigação científica. A capacidade que a ciência tem de proporcionar benefícios moralmente relevantes aos indivíduos e às sociedades é também aflorada. O livro dá ênfase a duas áreas: (1) a aquisição, sistematização e revisão de conhecimento em ciência; (2) a complexidade da relação entre a ciência e o resto da sociedade. Irá ler sobre os debates clássicos e actuais acerca do raciocínio científico e a racionalidade na ciência, e será a todo o momento convidado a reflectir sobre a autoridade e as responsabilidades daqueles que promovem a ciência e abraçam a investigação científica na nossa sociedade. Poderá estar ainda a pensar: «Qual a vantagem de ler uma introdução à filosofia da ciência?» Embora sejamos bombardeados com informação sobre o que os cientistas fazem e como a ciência afecta todos os aspectos das nossas vidas, raramente paramos para reflectir sobreo peso da investigação científica, sobre o seu estatuto e sobre como difere das outras actividades humanas. Ao longo da nossa formação e na vida de todos os dias, ficamos apenas com uma vaga ideia do que é a ciência. Quando vemos um documentário sobre os fósseis nas Ilhas Galápagos, quando ouvimos a notícia de um surto recente de gripe das aves ou quando lemos sobre os buracos negros em livros de divulgação científica, ficamos a par dos esforços e dos resultados da investigação científica, aumentando o nosso conhecimento sobre a natureza. Mas quando somos confrontados com a variedade de métodos e objectivos da investigação científica, com os seus êxitos e os seus fracassos, é-nos extremamente difícil perceber o que torna a prática científica única. Em termos corriqueiros, se ninguém se tivesse dedicado de uma maneira sistemática à investigação empírica da natureza, hoje não beneficiaríamos dos muitos avanços tecnológicos que caracterizam os nossos estilos de vida, como a vacinação, as medidas preventivas para os terramotos, e os telemóveis. Quase tudo o que nos rodeia — o vestuário, os alimentos, os edifícios — não estaria aqui (pelo menos na sua forma actual) se não tivesse havido pessoas a investir o seu precioso tempo e os seus poucos recursos a fazer ciência. E, no entanto, a investigação científica não tem afectado apenas o estilo de vida de muitos seres humanos. Os seus resultados também moldaram as nossas crenças sobre o mundo, ao alterarem o que pensamos sobre nós próprios e sobre as diferenças entre os seres humanos e outros seres vivos na Terra. Influenciando os nossos sistemas de crenças, elementos importantes do chamado método científico alimentaram o estilo e a forma da nossa maneira quotidiana de pensar. Acreditamos que a racionalidade exige que prevejamos acontecimentos futuros com base nos conhecimentos actuais. Valorizamos explicações para os acontecimentos que observamos se estas forem abrangentes e consistentes com os indícios disponíveis. Quando nos deparamos com problemas, encontramos soluções que se baseiam na nossa experiência passada e, com o tempo, vamo-nos tornando melhores a resolvê-los. Até mudamos de ideias quando a experiência não apoia as nossas crenças iniciais. Ainda que raramente ou nunca reflictamos sobre a forma como formamos opiniões e explicamos os factos que são para nós importantes, registamos informações, aprendemos com os nossos erros, revemos as nossas crenças e melhoramos o poder preditivo e explicativo das nossas teorias. Num sentido fraco, todos somos — ou tentamos ser — cientistas no dia-a-dia. Estas observações imprimem uma tensão ao nosso conceito de ciência. Por um lado, a investigação científica parece ser única entre as actividades humanas, e investida de uma importância e de uma responsabilidade especiais. Há mesmo quem diga que os esforços e os feitos da ciência são a marca da humanidade. Em muitas sociedades contemporâneas, a ciência é uma autoridade, e os cientistas são os especialistas consultados pelos governos em estados de emergência, bem como no planeamento do futuro, na melhoria da qualidade de vida e na prevenção das catástrofes naturais. Por outro lado, os objectivos e os métodos da investigação científica estão de tal modo intrincados com outros objectivos e métodos, que se torna bastante difícil assinalar as características da investigação científica que fazem dela verdadeiramente única. Ao pensarmos sobre a ciência de uma maneira sistemática, podemos ficar em melhor posição para resolver a tensão entre o seu carácter único e omnipresente. Nesta introdução à filosofia da ciência, revisitaremos alguns dos debates clássicos em filosofia sobre a racionalidade e o raciocínio, a formação e a justificação de teorias e a natureza da realidade e do progresso. Também exploraremos os debates actuais sobre o modo como os nossos conceitos fraccionam a natureza, e sobre como a ética e a ciência se impõem mutuamente constrangimentos. Embarcar nesta viagem pode ajudar-nos a ficar com uma ideia mais informada e menos turvada do que é a ciência e porque ela é importante. Esta viagem destina-se ao principiante, que poderá encontrar ajuda sob a forma de perguntas e exercícios para avaliar a compreensão e orientar a pesquisa; quadros para facilitar a compreensão e ilustrar alguns pontos discutidos no texto; exemplos das ciências naturais, sociais e médicas; questões para convidar à reflexão, dar forma ao trabalho de grupo, estimular o debate ou orientar a redacção de ensaios; algumas sugestões de leituras complementares no final de cada capítulo; uma bibliografia temática exaustiva no final; um glossário substancial de termos técnicos, que também contém pequenos apontamentos biográficos de cientistas e filósofos importantes que vão aparecendo ao longo do texto. Espero que gostem! 1. Demarcação Há um grande cepticismo sobre a possibilidade de se distinguir efectivamente a ciência da não-ciência. A ideia de que não podemos ter um critério de demarcação satisfatório é motivada pelas tentativas falhadas de prover tal critério no passado, e pela observação da diversidade cada vez maior de métodos e finalidades das disciplinas que somos inclinados a considerar como científicas. Como podemos esperar oferecer uma explicação unificada do que faz da investigação uma investigação científica, em disciplinas tão diferentes como a física, a geologia e a economia? Ainda que a tarefa de delimitar a ciência possa parecer infrutífera, há muito boas razões para continuar a insistir. É importante saber em que especialistas se deve confiar, que projectos de investigação financiar, que teorias ensinar nas escolas. E as decisões sobre estas questões não podem ser tomadas apenas com base na consistência teórica ou na aparente adequação da teoria aos dados empíricos. Precisamos de uma explicação do que a ciência é, do que os cientistas fazem e de que metas e métodos caracterizam a investigação científica. Não é provável que a explicação bem-sucedida (se é que tal coisa existe) seja muito específica, pois é um facto que a especialização conduziu a uma série de conceitos diferentes de indícios e, além do mais, a diferentes critérios para o êxito nas ciências naturais e entre estas e as ciências sociais. As questões ligadas à delimitação da ciência adquirem grande importância na sociedade contemporânea, onde a ciência é investida de uma autoridade e responsabilidade especiais. Os cientistas são muitas vezes quem aconselha os governantes sobre as políticas a seguir, e as suas opiniões são amplamente solicitadas e ouvidas nos meios de comunicação. Em virtude dos seus conhecimentos especializados, do seu estatuto enquanto cientistas, alguns deles são chamados a encontrar soluções para muitos dos nossos problemas quotidianos, desde lidar com os efeitos das secas a evitar que novos programas de ensino produzam efeitos adversos nas crianças. Se é atribuída tanta responsabilidade quer aos cientistas quer à comunidade científica como um todo, parece que precisamos com alguma urgência de uma explicação sobre o que é uma disciplina propriamente científica, por oposição ao exercício de disciplinas que não partilham da mesma respeitabilidade e autoridade social, como a astrologia e a quiromancia. Além do mais, fazer investigação científica em muitas áreas (em biomedicina, agricultura, em recursos energéticos renováveis, por exemplo) pode trazer grandes benefícios às pessoas e às sociedades, e portanto é algo que deveria ser amplamente apoiado e promovido. Se a ciência tem algum valor num contexto de recursos públicos limitados,ele está em fazer pressão para que possamos ser capazes de identificar exemplos genuínos de investigação científica e projectos de investigação válidos. Na tradição, a discussão sobre o critério de demarcação entre a ciência e a não-ciência estruturava-se em torno da tentativa de explicar por que razão a física é uma ciência e a astrologia não, e de que maneira o método científico é diferente da magia ou da revelação divina. Hoje, porém, os filósofos que se interessam pelo critério de demarcação têm em mente um conjunto de questões inter-relacionadas, e não aspiram necessariamente a fornecer uma descrição da ciência que responda a todas elas de uma só vez. Eis uma lista provisória: •Será que o tema da investigação é importante para se saber se um projecto de investigação é considerado científico? •Podem a antropologia, a psicologia e a economia ser consideradas ciências legítimas mesmo não sendo governadas por leis? •O criacionismo tem a aparência superficial de uma ciência. Ora, por que razão não é visto por muitos como uma teoria científica legítima? •Qual é a diferença entre a filosofia e a ciência, uma vez que ambas pretendem chegar a uma melhor compreensão dos fenómenos à nossa volta? No século XX, filósofos inspirados por um movimento chamado Positivismo Lógico analisaram formas de obter e organizar conhecimento com vista a identificar diferenças importantes entre a ciência e a metafísica e entre a ciência e a ética. Os positivistas lógicos, muitos dos quais formados em ciências naturais, sociais ou matemática, acreditavam fortemente no valor da ciência (é por isso que se chamam positivistas lógicos), tentando justificar o seu estatuto de única fonte respeitável de conhecimento factual ao analisarem a estrutura lógica e a linguagem das alegações de conhecimento (é por isso que se chamam positivistas lógicos). Um dos objectivos deste capítulo é passar em revista e avaliar os pontos fortes e as limitações da sua explicação da demarcação entre a ciência e a não-ciência, antes de passar ao exame dos desenvolvimentos posteriores das suas ideias e das objecções que tal explicação originou. Algumas destas objecções podem ser encontradas nas obras de Karl Popper, Paul Thagard e Paul Feyerabend. Popper, que partilha alguma da ênfase dos positivistas lógicos no valor e na objectividade da ciência, segue uma linha de orientação diferente na sua procura de um critério de demarcação. Acredita que a ciência é a tarefa racional por excelência e procura activamente uma estratégia viável para distinguir as teorias científicas genuínas das teorias que à primeira vista parecem científicas, mas que não conseguem sê-lo (exemplos de pseudociência). Ao contrário de Popper e dos positivistas lógicos, Thomas Kuhn dá ênfase aos factores históricos e sociais que determinam o êxito de uma teoria científica ou de um projecto de investigação. Uma teoria ou um projecto podem ser considerados científicos num contexto histórico e social mas não noutro, pois os critérios que uma teoria ou um projecto precisam de satisfazer para poderem ser considerados ciência também variam. Com base na análise feita por Kuhn da ciência sensível à história, Thagard desenvolve um critério de demarcação dependente do contexto, que tenta explicar por que razão algumas disciplinas podem ver o seu estatuto mudar de científico para pseudocientífico ou vice-versa. Feyerabend adopta uma posição mais radical, negando qualquer espécie de estatuto especial à ciência. Argumenta contra a pretensa supremacia da metodologia científica sobre tradições alternativas de pensamento. Após esta breve história selectiva do critério de demarcação, apresentarei algumas conclusões sobre os desenvolvimentos recentes do debate e deixarei uma sugestão para a delimitação das actividades de investigação. No final deste capítulo o leitor estará habilitado para: •Assinalar algumas diferenças entre a ciência e a metafísica e entre a ética e a ciência à luz das considerações apresentadas pelos positivistas lógicos. •Explicar e avaliar a tentativa de Popper no sentido de prover um critério de demarcação entre ciência e pseudociência. •Estar ciente dos factores sociais que podem contribuir para a mudança de estatuto de uma teoria e discutir os méritos e as limitações de uma metodologia anárquica. •Discutir e classificar diferentes tentativas de demarcar a ciência com base em exemplos de pseudociência e má ciência. •Identificar os desafios que se apresentam ao projecto de delimitar as actividades de pesquisa. 1.1 Ciência e não-ciência A questão de quando os seres humanos começaram a fazer ciência é controversa, como veremos no capítulo seguinte, no qual iremos em busca das origens do chamado método experimental. Em todas as civilizações houve sempre pessoas interessadas em descrever e explicar acontecimentos naturais como o movimento dos corpos celestes, os nascimentos ou a ocorrência de cheias. Construíam hipóteses e tiravam conclusões após terem completado uma série de observações sobre os fenómenos que queriam explicar. Num sentido lato, estavam a fazer ciência. No entanto, a ideia comummente aceite é a de que a ciência moderna tem um carácter especial que não é passível de ser encontrado nas tentativas anteriores de explicar os fenómenos naturais. A questão de saber em que consiste este carácter especial é objecto de discussão, conquanto se pressuponha que para que uma hipótese seja considerada científica é preciso que se apoie em indícios. Desde a Física de Aristóteles (350 a. C.), o raciocínio científico tem consistido em formar hipóteses para explicar um acontecimento observado e em rever as hipóteses explicativas se as observações futuras não forem consentâneas com elas. Se este processo pode ser considerado como a disponibilização de um corpo de indícios também é uma questão aberta a interpretações. Será que a ciência moderna começou quando os humanos foram além da observação passiva da natureza e começaram a intervir activamente nos fenómenos naturais? Actualmente, a manipulação da natureza é comum em muitas das ciências nas quais os experimentadores criam condições especiais para a ocorrência de um evento para poderem controlar as variáveis e afinarem as suas hipóteses. Porém, durante muito tempo na história das investigações humanas sobre a natureza, a base para as teorias aceites era principalmente constituída por experiências mentais e observações a olho nu, pelo que a distinção contemporânea entre ciência e filosofia era, no melhor dos casos, difusa. Poder-se-ia argumentar que fiarmo-nos em indícios e que mesmo a manipulação activa da natureza não são critérios suficientes para distinguir a ciência moderna de outras teorizações com base em indícios. Uma série de hipóteses que explicam a ocorrência dos fenómenos por que nos interessamos não constitui conhecimento científico a menos que as hipóteses sejam coerentes. As hipóteses testadas têm de fazer parte de um sistema estruturado e coerente de modo a contribuírem para o corpo do conhecimento científico. A formulação de hipóteses explicativas, a manipulação da natureza com vista a afiná-las e a testá-las, bem como a formação de teorias coerentes, são algumas das coisas que os cientistas fazem. Ora, haverá uma lista de condições necessárias ou suficientes para que um corpo de conhecimento seja genuinamente científico ou para que uma actividade seja considerada investigação científica? No que se segue consideraremos com algum pormenor as razões pelas quais se pensa que os cientistas e os filósofos se ocupam de tarefas distintas. Exercício: Antes de prosseguir, tome nota de três diferençasentre ciência e filosofia, com base na sua compreensão dos respectivos métodos e objectivos. 1.1.1 Afirmações analíticas e sintéticas Há afirmações de vários tipos. Umas são sintéticas, ou seja, não poderíamos saber se são verdadeiras ou falsas ao reflectirmos sobre a sua estrutura lógica ou sobre o significado dos termos que contêm. «Hoje vai nevar» é uma afirmação sintética. Outras afirmações são analíticas, ou seja, são ou verdadeiras ou falsas em virtude da sua estrutura lógica ou do significado dos termos nelas contidos. «Um quadrado tem est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce quatro lados iguais» é uma afirmação analítica, uma vez que por definição os quadrados têm quatro lados iguais. «Hoje pode nevar ou não» é uma afirmação analítica, porque se trata de uma disjunção de afirmações que são mutuamente exaustivas (Isto significa que a disjunção de ambas as afirmações esgota os estados de coisas possíveis - N. do R.). Os positivistas lógicos pensavam que todo o conhecimento sintético tem de ser adquirido e verificado por meio da experiência (é por isso que também se lhes chama empiristas lógicos), ao passo que a experiência é irrelevante para a aquisição ou verificação do conhecimento analítico. Porém, nem todos os exemplos de afirmações sintéticas parecem funcionar assim. Há algumas afirmações sintéticas — aquelas a que chamamos normativas, como «matar é errado» — que não são sempre verdadeiras ou falsas por definição, mas cuja veracidade ou falsidade não pode ser facilmente definida por uma investigação empírica. Outras afirmações sintéticas há cuja veracidade ou falsidade depende de facto de como as coisas são, mas não nos é possível conceber uma maneira de a testarmos, de a verificarmos. «Ser filósofo era uma propriedade essencial de Aristóteles» — esta afirmação não satisfaz as condições da analiticidade, mas é difícil dizer que testes empíricos poderiam determinar a sua veracidade ou falsidade. Poderíamos basear-nos numa teoria sobre o que é uma propriedade essencial, mas não em algo de empírico (conquanto existam noções mais ou menos úteis sobre o que é uma propriedade essencial, dado o estado presente do mundo). A ideia tradicional é a de que existe uma diferença fundamental entre o descritivo e o empírico, por um lado, e o prescritivo e o normativo, por outro. As ciências naturais incidem em factos. Qual é a temperatura da água quando entra em ebulição? Quão rápida é a aceleração de um corpo em queda? Qual é a idade daquele fóssil? Porque é que os terramotos acontecem? O que causa uma reacção química? Porque é que os primatas usam sinais de alarme? Noutras disciplinas, contudo, também descrevemos e explicamos os factos. Quais são as metáforas mais comuns para a morte, e são partilhadas pelas diferentes culturas? Quais foram os efeitos da Primeira Guerra Mundial na Europa? Porque é que os pintores começaram a usar a perspectiva no século XV? Embora muitas disciplinas estudem aparentemente factos, descrever e explicar como as coisas são não é tudo o que fazemos. Por vezes queremos saber como as coisas deveriam ser com base num princípio ou numa norma. Será a democracia a melhor forma de governo? Matar é intrinsecamente mau? Descarregar música da internet deve ser considerado crime? As formas de governo e os exemplos de comportamento humano são objectos de avaliação e podem ser bons ou maus, adequados ou inadequados, certos ou errados. E pouco provável que estas afirmações normativas possam ser justificadas com base na mera experiência. Para os positivistas lógicos, o que distingue as afirmações científicas das da lógica, filosofia, religião, literatura, etc., é serem sintéticas e a sua veracidade poder ser definida por meio de testes empíricos (ou seja, são verificáveis). Na sua perspectiva, a possibilidade de conceber indícios que possam confirmar ou não uma afirmação é o que faz uma afirmação sintética ter significado. Por outro lado, as afirmações sintéticas que não podem ser confirmadas ou infirmadas por meio de indícios empíricos não têm significado algum. A experiência pode confirmar a afirmação de que a água na chaleira está a ferver, mas que observação directa pode confirmar a afirmação de que matar é errado? Os positivistas lógicos não se contentam com a maneira de pensar da tradição segundo a qual algumas afirmações não são nem analíticas nem verificáveis por meio da experiência, querendo encontrar uma maneira de explicar a natureza aparentemente inexplicável de tais afirmações. No que se segue passaremos em revista algumas das implicações da ideia de que só as afirmações sintéticas podem ser verificadas e têm significado, e reflectiremos sobre a maneira como os positivistas lógicos caracterizaram a diferença entre a ciência e a ética, bem como entre a ciência e a metafísica. est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce 1.1.2 A «eliminação» da ética Para Alfred Ayer (1936), que defendeu e divulgou muitas das ideias avançadas pelos positivistas lógicos sobre a distinção entre ciência e filosofia, as afirmações éticas não podem ser verificadas apelando à experiência. Segundo ele, isto explica por que razão as questões éticas geram discussões infindáveis que acabam por ser infrutíferas. Ayer diz que quando pensamos em afirmações éticas, temos a impressão de que precisamos de nos agarrar a como as coisas deveriam ser, à sua dimensão normativa. Mas essa aparência de normatividade nas afirmações éticas, diz ele, é apenas uma ilusão. Não há uma dimensão normativa nas afirmações éticas; há apenas preferências que acabam por ser subjectivas e que frequentemente chocam com as preferências dos outros. Ayer defende que a ética enquanto disciplina normativa não tem razão de ser. O que está em causa nas discussões sobre ética é a expressão de preferências que são em parte determinadas por factos psicológicos e culturais sobre os indivíduos ou os grupos que as expressam. Quando defendo que matar é errado, tudo o que estou a dizer é que matar não é uma prática que aprovo porque tenho associada a isso uma emoção negativa («Matar é errado» quer dizer apenas «Matar nem pensar!», diria Ayer). E esta associação negativa é em parte determinada pelo facto de eu ter sido criado num contexto em que matar sem necessidade é condenado pela sociedade no seu todo. A conclusão de Ayer é que a ética não deve ser vista como uma disciplina independente que emite afirmações normativas, mas, ao invés, deve ser subordinada a ciências empíricas como a psicologia ou a sociologia. As ideias de Ayer sobre a ética são radicais e controversas. Para considerarmos algumas alternativas à sua posição, teríamos de explorar o vasto debate filosófico sobre a natureza dos factos éticos. Mas para o que aqui nos interessa, o que é relevante é que, na sua opinião: 1) as afirmações científicas são afirmações sintéticas que podem ser verificadas; 2) as afirmações éticas podem ser vistas quer como afirmações sintéticas que não podem ser verificadas (e que portanto são destituídas de significado e uma perda de tempo), quer como afirmações sintéticas sobre preferências individuais ou sociais que podem ser estudadas empiricamente pelas ciências psicológicas ou sociais. Exercício: Das frases seguintes, quais representam a realidade e quais expressam sentimentos ou preferências? • A ansiedade conduz à depressão. • Todos os acontecimentos têmuma causa. • Jogar às cartas é uma perda de tempo. • O sumo de cenoura faz bem porque contém vitamina C. • Entrar em guerra foi um erro. Hans Reichenbach (1951), outro positivista lógico, chega de maneira independente a uma conclusão muito semelhante à de Ayer, e também o faz reflectindo sobre a natureza daquilo que parecem ser afirmações éticas. Argumenta que estas expressões linguísticas não são afirmações genuínas, pois não descrevem como as coisas são, mas emitem directivas ou manifestam desejos e, portanto, não podem ser verdadeiras ou falsas. Dizer que matar é errado é ou equivalente ao imperativo «Não matarás!», uma elocução linguística que as pessoas usam para influenciar ou controlar o comportamento de outras, ou a expressão de uma preferência por um mundo onde matar não existe. Enquanto as afirmações que podem ser verificadas têm um significado empírico ou cognitivo, as directivas ou os desejos têm apenas um valor instrumental, est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce pois são uma maneira de o enunciador atingir algo que quer ou de expressar uma preferência. A ética não é a «ciência do bem último»: não contribui de modo algum para o conhecimento científico ou empírico e não é sobre o bem último, o que quer que este seja. É uma expressão da vontade de um indivíduo ou de um grupo de influenciar a conduta de outros. Os positivistas lógicos têm ideias muito radicais sobre o estatuto da ética porque tendem a ver toda a aquisição de conhecimento genuíno como uma tarefa fundamentalmente empírica, e impõem a verificabilidade como uma condição para o significado a todas as afirmações que não qualificam como analíticas. A normatividade das afirmações éticas é por eles interpretada como uma ilusão criada pela maneira como a linguagem é (quantas vezes impropriamente) usada. Na sua maneira de ver as coisas, a análise dos enunciados linguísticos é um meio de pôr a nu a alegada natureza das afirmações éticas, proporcionando uma demarcação entre estas e as afirmações científicas legítimas. 1.1.3 A metafísica enquanto poesia Como devemos pensar a distinção entre ciência e metafísica? Há um sentido no qual tanto as ciências naturais como a metafísica apontam para uma melhor compreensão da natureza. É interessante reflectir sobre a história da relação entre a ciência e a metafísica, uma vez que pensadores que contribuíram tão enormemente para o progresso da ciência como Isaac Newton ou Albert Einstein expressaram pontos de vista metafísicos e trabalharam com base em pressupostos metafísicos explícitos. Para os positivistas lógicos, a diferença entre a ciência e a metafísica está nos métodos pelos quais a investigação da natureza é conduzida e no significado das alegações formuladas no âmbito destas disciplinas. Tomemos por exemplo o filósofo grego Platão. Em muitos diálogos que escreveu, afirma que o mundo da nossa experiência, incluindo as cadeiras em que nos sentamos, o Sol que vemos a nascer e a pôr-se todos os dias, é apenas meio real. A realidade última é feita, não de objectos materiais, mas de formas, ou ideias, que não podemos ver nem tocar, pois habitam um mundo diferente do mundo da nossa experiência e não podem ser apreendidas pelos nossos sentidos. Mas se as formas não podem ser vistas ou tocadas, então não podemos saber com base nos nossos sentidos se existem e se têm os atributos que Platão lhes imputa. Os positivistas lógicos consideravam que alegações metafísicas como «O mundo das Formas não pode ser apreendido pelos nossos sentidos» não tinham significado empírico ou factual algum porque não eram analíticas e não eram de modo algum baseadas na experiência. O seu ponto de vista é o de que a maioria das alegações metafísicas não tem significado e conduz ao erro, uma vez que essas afirmações empregam palavras que se referem comummente a objectos que podemos apreender com os nossos sentidos para descrever objectos que, por definição, estão fora ou além dessa experiência. Rudolf Carnap (1935) compara uma afirmação sobre a existência das formas platónicas a uma afirmação sobre a existência de cangurus. Observa que quando os zoólogos afirmam que os cangurus existem, a sua asserção pode ser verificada, uma vez que dela se segue que, em certos momentos e lugares, podem ser observadas coisas de um certo tipo. A asserção de Platão segundo a qual as formas existem é diferente, pois as formas nunca podem ser apreendidas. Carnap pensa que afirmações metafísicas como «As formas existem numa esfera sem espaço e sem tempo» não representam a realidade, e que portanto não podem ser verdadeiras ou falsas. Ao contrário, elas expressam algo, como o desejo de acreditar em entidades que não estão tão sujeitas à alteração e à destruição como os objectos físicos. O desejo expresso por uma afirmação metafísica não tem conteúdo científico nem teórico, podendo ser comparado ao trabalho de um poeta. Há, contudo, uma diferença entre a atitude do metafísico e a do poeta. O poeta sabe quando está a descrever sentimentos e desejos nos seus escritos, ao passo que o metafísico está iludido, erroneamente convencido de que está a contribuir para uma forma de conhecimento factual. A prova desta ilusão está no facto de o metafísico se preparar para entrar numa discussão com outros est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce metafísicos sobre a verdade de alegações acerca de objectos ou propriedades que não podem ser experienciados. Para Carnap, as alegações metafísicas são expressivas e não representacionais, e apenas parecem ter conteúdo teórico para aqueles que as advogam. Discussão: A distinção de Carnap entre expressões de sentimentos e desejos e afirmações representacionais é convincente? É útil? Karl Popper (1959, 2002) discorda da ideia positivista lógica de que as afirmações metafísicas não têm mas hipóteses metafísicas tiveram uma importante influência no desenvolvimento de hipóteses científicas. Dá o exemplo do atomismo. A teoria de que toda a matéria é composta por partes indivisíveis («átomos») surgiu na Grécia antiga e foi primeiramente formulada por Leucipo (c. 500 a. C.) e Demócrito (460-370 a. C.). Esta teoria foi resultado da especulação filosófica, desenvolvendo-se como uma tentativa de resolver paradoxos sobre o movimento e a alteração. Permaneceu uma hipótese metafísica sobre a natureza da realidade durante muito tempo: no século xvii, foram articuladas diferentes versões a partir dela, pelos filósofos que se interessavam pela natureza e composição últimas da matéria. Pode dizer-se que a partir do século xix o atomismo passou a ser uma hipótese científica, desenvolvida por John Dalton na química orgânica e por James Maxwell no que respeita à teoria cinética dos gases. No século xx, a existência de átomos deixou de ser uma questão controversa. É claro que os átomos cuja existência nós hoje aceitamos são descritos de uma maneira muito diferente dos átomos de que Leucipo e Demócrito primeiramente falaram, mas pode dizer-se que o atomismo enquanto hipótese científica não teria surgido na ausência da tradição metafísica anterior. Popper considera isto como um caso difícil para quem insiste que as hipóteses metafísicas não têm um significado representacional. Defende que mesmo os mitos podem derivar em hipóteses que estão sujeitas ao teste empírico: o sistema copernicano, por exemplo, inspirou-se no fascínio neoplatónico pela luz emitida pelo Sol. O modo como a natureza de uma alegaçãometafísica é considerada é parcialmente explicado pela maneira como ela é justificada. Metafísicos da Grécia antiga como Demócrito e Platão não conduziram experiências nem basearam as suas ideias numa série de observações exaustivas. Chegavam às suas conclusões unicamente pela razão, com argumentos para os seus pontos de vista que normalmente não incluíam afirmações empíricas como premissas. Os metafísicos contemporâneos estão menos virados para a especulação sobre um mundo de objectos e propriedades inobserváveis, preferindo compreender a realidade de uma maneira que seja compatível com as teorias físicas actualmente aceites, e que por vezes até funcione como um auxiliar conceptual para as mesmas. Um exemplo desta interacção entre a metafísica e a física é o estudo da natureza do tempo, que foi informado e inspirado pela teoria da relatividade, e as suas importantes consequências para a noção de realidade do senso comum. est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce Ainda que em metafísica não esperemos que os investigadores montem experiências e encontrem confirmação empírica para todas as afirmações nas suas teorias, a verdade é que alguns metafísicos iriam ter em conta o que a física deu a conhecer sobre a estrutura da realidade, elucidariam os conceitos envolvidos na explicação dada pelas teorias científicas aceites e aprofundariam a nossa compreensão desses conceitos (Ladyman et al. 2007). Pese embora isto, o debate sobre o papel da metafísica é ainda extremamente acalorado, e as tradições filosóficas diferem no que respeita à maneira como a relação entre a ciência e a metafísica é concebida. Exercício: É capaz de dar exemplos de hipóteses que são consideradas científicas mas que não têm bases empíricas? Deveriam estas hipóteses ser consideradas científicas? 1.2. Ciência e pseudociência Os positivistas lógicos proporcionaram o critério de verificabilidade como um critério para o significado das afirmações: uma afirmação tem significado se for sintética e puder ser verificada por meio da experiência ou se for analítica. As afirmações científicas genuínas (por exemplo, «Fumar muito aumenta a probabilidade de se contrair cancro do pulmão») parecem satisfazer o critério, pois são afirmações sintéticas que podem ser verificadas, mas muitas alegações éticas e metafísicas parecem sintéticas e no entanto não podem ser verificadas por meio da experiência, pelo que falham no teste do significado. As coisas são mais complicadas do que a clara distinção avançada pelos positivistas lógicos podia sugerir. Segundo Schlick, nas suas conferências «Forma e Conteúdo» (1938), a afirmação de Descartes de que «Só os seres humanos são dotados de consciência» não pode ser empiricamente verificada. No entanto, a questão de querermos considerar as afirmações sobre a consciência como metafísicas ou outra coisa depende do tipo de justificação que podemos dar para as aprovarmos. Se temos uma definição de consciência que torna impossível a outros seres que não os humanos serem conscientes, então a alegação é uma afirmação analítica. Mas se a definição de consciência não exclui a priori que os seres não humanos podem ser conscientes, a alegação de Descartes é considerada sintética e podemos facilmente imaginar formas cientificamente respeitáveis de lhe dar uma justificação. Suponhamos que pensávamos que algumas regiões do cérebro humano estavam envolvidas em alguma experiência que consideramos consciente, e que também soubéramos que tais regiões eram est19 Realce est19 Realce est19 Realce significativamente diferentes nos cérebros dos animais não humanos, ou que estes não as tinham de todo. Em tais circunstâncias, teríamos algumas bases empíricas para avaliar a verdade de alegações sobre a consciência em seres não humanos. A alegação de Descartes passaria a ser uma afirmação sintética verificável. Schlick pensou que este era um bom exemplo de uma afirmação metafísica não verificável porque assumiu que o filósofo que a tinha avançado, Descartes, não a justificou com base em dados empíricos que podia ter verificado (embora Descartes fosse um vivisseccionista nato e tivesse muitos conhecimentos práticos de fisiologia animal). O exemplo mostra, porém, que a distinção entre o que pode ser verificado e o que não pode ser verificado não é algo estabelecido de forma definitiva, e que problemas aparentemente intratáveis podem tornar-se mais abertos à investigação empírica graças aos avanços da ciência e da tecnologia. Foram feitas outras críticas ao critério de verificabilidade enquanto critério de significado, e também enquanto critério de demarcação. Há dúvidas de que o critério possa ser suficiente para distinguir afirmações que pertencem a teorias genuinamente científicas de afirmações que não lhes pertencem. Por exemplo, o critério parece não ter os recursos para discriminar as afirmações sintéticas que fazem parte de uma teoria física respeitável das de um horóscopo semanal. A maioria das alegações dos astrólogos é indubitavelmente sintética, e algumas alegações são até sujeitas a verificação. Estas afirmações satisfazem o critério do significado, e no entanto resistimos a aceitá-las como científicas, considerando muitas vezes que são falhas em justificação e base empírica. Portanto, temos de procurar noutro lado uma maneira de delimitar o abismo que se considera existir entre a física e a astrologia. Exercício: Antes de continuar a ler, tome algumas notas sobre as principais diferenças entre a física e a astrologia. 1.2.1. Será a astrologia falsificável? Um contributo fundamental para o problema clássico da demarcação foi dado por Popper (1959, 2002), que era da opinião de que a ciência é diferente da pseudociência no sentido em que visa a produção de hipóteses falsificáveis. Popper não está convencido de que, no contexto da demarcação, fazer apelo à possibilidade de verificação seja satisfatório. A sua sugestão de uma estratégia alternativa é baseada na observação de que as afirmações gerais nunca podem ser verificadas pela experiência, uma vez que seria necessário um número infinito de observações. Quantas observações de cisnes brancos são necessárias para verificar a afirmação «Todos os cisnes são brancos»? Afirmações gerais na forma «Todos os X são Y» dizem respeito a casos passados, presentes e futuros de X, e portanto nenhum número de observações de X constituiria prova suficiente para estabelecer com certeza a verdade dessa afirmação geral. E claro que se eu observo cem cisnes e são todos brancos, é razoável que espere que o próximo cisne que vou observar também seja branco. Porém, como sabemos, a observação de um cisne negro numa viagem à Austrália pode ser reveladora. A existência de apenas um caso em que X não é Y prova que afinal de contas a afirmação geral é falsa. O ponto de partida para a introdução da noção de falsificação é o de que uma única experiência pode contradizer a previsão baseada numa hipótese geral, e que isto é suficiente para provar que a hipótese é falsa. Segundo Popper, só as hipóteses científicas são falsificáveis desta maneira, ao passo que as teorias pseudocientíficas e as teorias metafísicas são imunes ao fracasso empírico. Por este motivo, pensava que o apelo à falsificabilidade era a forma mais promissora de distinguir a ciência da não-ciência. Ora será que esta maneira de ver as coisas pode explicar o estatuto pseudocientífico da astrologia? Popper (1963) defende que há uma diferença importante entre a) prever indícios observacionais com base numa dada teoria e b) modelar os indíciosde modo a serem compatíveis com a teoria. A primeira est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce prática caracteriza os empreendimentos científicos saudáveis, ao passo que a última é típica das pseudociências. Segundo Popper, uma boa teoria científica é incompatível com a ocorrência de certos eventos, e por conseguinte impede que certas coisas aconteçam. Neste sentido, a ciência é uma coisa arriscada. Popper ilustra este argumento com o exemplo da teoria da relatividade de Einstein. As previsões que a teoria nos permite fazer são passíveis de confirmação e infirmação, e se forem infirmadas a teoria não terá um futuro risonho. Eis outro exemplo de uma previsão arriscada. Suponha que está a considerar um modelo de flutuações do mercado de acções segundo o qual de cada vez que há instabilidade política num país, os preços das acções caem. Com base neste modelo, prevê que da próxima vez que haja instabilidade política em Itália, os preços das acções na Bolsa de Milão cairão. Se a sua previsão não se verificar, o modelo foi falsificado. Ao contrário de uma teoria científica, que faz previsões arriscadas, as teorias pseudocientíficas são praticamente irrefutáveis. Não há indícios que possam ir contra estas teorias e levar-nos a rejeitá-las, pois são formuladas de uma maneira ambígua ou podem ser modeladas de modo a acomodar todos os indícios aparentemente contrários. Um dos exemplos preferidos de Popper é a psicanálise. Qualquer observação clínica pode ser interpretada à luz da teoria, e nenhum exemplo de comportamento humano poderia claramente contradizer as hipóteses construídas com base na teoria. A astrologia também encaixa nesta descrição: as suas previsões são frequentemente formuladas em termos tão gerais, que nenhum acontecimento futuro poderá claramente contradizê-las, o que garante imunidade à teoria. Suponha que ainda está interessado em prever o comportamento do mercado de acções. Desta feita usa um modelo diferente, que lhe diz que de cada vez que há estabilidade política num país, o custo das acções altera-se — mas não lhe diz se sobem ou descem. Este modelo ainda é arriscado (pois seria falsificado se os preços das acções continuassem exactamente os mesmos durante um período de instabilidade política), mas é menos arriscado do que o modelo que antes considerámos, pois não especifica como os preços mudam, e por conseguinte é imune a alguns casos de infirmação empírica. Para Popper, o modelo seria pseudocientífico se não houvesse circunstâncias nas quais pudesse fazer previsões que acabariam por ser falsas. Resumindo, para Popper, as pseudociências não estão genuinamente abertas à falsificação, uma vez que é óbvio que nenhum evento é por elas excluído. Exercício: Faça alguma investigação sobre duasdas seguintes actividades — homeopatia; frenologia; arqueologia; ovnilogia; psicologia evolucionária —, e em seguida decida se satisfazem os critérios de pseudociência de Popper. Os críticos de Popper puseram em causa a falsificabilidade enquanto critério de demarcação entre ciência e pseudociência com base no facto de alguns elementos de uma teoria científica (como as leis na física teórica) não serem directamente falsificáveis, ao passo que uma pseudociência como a astrologia pode gerar afirmações falsificáveis. Se estes críticos estiverem certos, então a falsificabilidade não é nem suficiente nem necessária para a demarcação. Não é suficiente porque parece haver hipóteses falsificáveis que não são científicas. Por exemplo, Paul Thagard (1978) relata algumas tentativas de confirmar empiricamente, por meio de métodos estatísticos, a ideia de que a posição dos planetas no momento do nascimento está correlacionada com a escolha da actividade da pessoa na sua vida futura. Ora, descobrir que o nascimento de uma pessoa não está correlacionado com a sua posterior ocupação, como as teorias astrológicas indicam, pode em princípio constituir uma falsificação da teoria. A falsificabilidade não é sequer um critério necessário da demarcação. Alan Chalmers (1999) recorda- nos que o fracasso de uma previsão nem sempre indica que uma teoria científica está afinal errada. Como veremos quando discutirmos as teorias científicas nos capítulos 3 e 5, mesmo que as observações est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce pareçam contradizer os princípios de uma teoria, na prática da ciência por vezes é perfeitamente aceitável conservar a teoria, e, ao invés, modificar as hipóteses auxiliares que precisamos de combinar com a teoria, de modo a torná-la testável (Lakatos 1970; Kuhn 1962,1970; Kuhn 1996). Pode haver hipóteses científicas que, de tão acerrimamente defendidas pelos cientistas que as testam, são feitas para resistir a tentativas de falsificação perante previsões inexactas. 1.2.2 Factores dependentes do contexto na demarcação Inspirado pela análise histórica e social da ciência feita por Kuhn, Thagard concorda com Popper no ponto em que a astrologia é uma pseudociência, mas defende que as razões pelas quais a astrologia é uma pseudociência não se esgotam na aplicação do critério de falsificabilidade. Para determinarmos o estatuto de uma disciplina, também precisamos de examinar algumas características da comunidade daqueles que a praticam, bem como o contexto histórico no qual estas investigações são conduzidas. Uma disciplina científica saudável possui uma comunidade de praticantes que, em grande medida, concorda com os principais princípios e métodos que a caracterizam. Os praticantes ficam seriamente preocupados com indícios aparentemente infirmantes, tentam encontrar soluções para a inadequação entre a teoria e os dados e envolvem-se activamente no teste rigoroso da teoria. Quer o estádio do desenvolvimento da disciplina, quer o reconhecimento da existência de uma competição, são importantes para o seu estatuto enquanto ciência. Será que a teoria dominante se tem estado a debater há muito com aparentes contra- provas? Haverá outras teorias que possam explicar os fenómenos relevantes de uma maneira mais satisfatória? Segundo Thagard, a razão pela qual a astrologia está em má forma hoje em dia deve-se ao facto de os seus praticantes não terem feito progressos significativos durante algum tempo e de agora termos formas mais bem-sucedidas e fiáveis de explicar o comportamento humano no âmbito da psicologia cognitiva e social. Thagard não exclui que, em certo momento no passado, como por exemplo antes do desenvolvimento da psicologia, a astrologia pudesse ser considerada capaz de proporcionar uma explicação e uma previsão científica genuínas sobre o comportamento humano. Actualmente, porém, os praticantes da astrologia não fazem esforço algum para desenvolver soluções para os problemas que a disciplina enfrenta, não se empenham no teste rigoroso das suas teorias, parecem ser selectivos na maneira como consideram os indícios que apoiam ou contrariam as suas alegações e não comparam o seu enquadramento explicativo com enquadramentos explicativos alternativos. Segundo Thagard, estes sintomas sugerem que hoje em dia a astrologia não consegue obter o estatuto de ciência. Discussão: Concorda com a ideia de que o contexto n/ histórico é importante para se saber se uma disciplina é considerada genuinamente científica? A título de exemplo, considere a química e a psicologia. 1.2.3 «Vale tudo» Na edição de Setembro/Outubro de1975 da revista The Humanist surgiu uma declaração sobre a astrologia subscrita por 186 cientistas e eruditos. Nela, defendiam que os conceitos modernos da astronomia e da física, bem como a ciência da psicologia, não sustentavam de modo algum a ideia de que a posição dos planetas pode afectar a vida e o comportamento dos seres humanos. Paul Feyerabend (1979) defende que a declaração não contém argumento algum convincente que apoie a ideia de que a astrologia é menos respeitável do que qualquer outra das disciplinas mencionadas. Feyerabend admite que, em grande parte, a prática contemporânea da astrologia tem como objectivo «impressionar o ignorante» e não constitui um exemplo de investigação progressiva, mas contesta a est19 Realce est19 Realce est19 Realce maneira como os cientistas proeminentes envolvidos na declaração tentam ridicularizá-la. Na declaração, defende-se que a astrologia surgiu da magia, e que os seus princípios originais não são de modo algum confirmados pela ciência contemporânea. Feyerabend responde que se isto é uma objecção, então é uma objecção ao estatuto científico não apenas da astrologia, mas também de muitas outras disciplinas que são normalmente consideradas exemplos paradigmáticos de ciência. A alquimia, que não era desprovida de referências mágicas, é a precursora da química moderna. Feyerabend (1975) defende um ponto de vista segundo o qual a ciência é apenas uma tradição de pensamento entre muitas outras, e que não é caracterizada por um qualquer tipo de regras metodológicas próprias e rígidas. O desenvolvimento histórico da ciência mostrou que foram feitos vários tipos de abordagens a questões a que hoje chamamos científicas, e que foi precisamente esta variedade de métodos que tornou o progresso possível. Referindo-se a alguns exemplos de prática científica em diferentes disciplinas e em diferentes épocas, Feyerabend tenta mostrar que estamos enganados quando pensamos que um único método unifica todos os empreendimentos da ciência. Ao invés, defende que as Leis da Razão que comummente consideramos como parte do método científico, incluindo a ideia de que as teorias científicas estão estreitamente relacionadas com a realidade por via da observação e das experiências, são apenas uma reconstrução racional post hoc (Locução latina que significa literalmente «depois disso». Não confundir com a falácia post hoc ergo propter hoc [depois disso; logo, por causa disso], por vezes abreviadamente referida como post hoc - N. do R.) da metodologia científica e são divulgadas para fins de propaganda política. Nas nossas sociedades, argumenta Feyerabend, os cientistas têm um poder que lhes é conferido com base no facto de serem depositários de um método racional para investigar a realidade. Para conservarem o seu poder, dão uma imagem distorcida da sua maneira de pensar como superior, pondo de parte tradições de pensamento alternativas. No capítulo 5, passaremos em revista e avaliaremos os argumentos a favor e contra a racionalidade do progresso científico, e discutiremos estes assuntos com maior pormenor. Em especial, pensaremos sobre a questão de saber se pode haver critérios objectivos para classificar diferentes metodologias, e se a ciência contemporânea nos dá realmente um estilo de pensamento que é superior ao de outras tradições de pensamento. Para a presente discussão, porém, será suficiente dizer que pensadores como Feyerabend são da opinião de que não é possível encontrar um critério de demarcação coerente e satisfatório entre ciência e não-ciência. Exercício: Enuncie três razões a favor e três razões contra a negação de Feyerabend da supremacia metodológica da ciência. 1.3 Ciências naturais e sociais A questão do estatuto das ciências sociais, de saber se são exemplos genuínos de ciência, parece girar em torno da comparação entre a sua metodologia, dada a natureza dos fenómenos que estudam, e a metodologia da física. Ora, será que podemos realmente encontrar elementos de continuidade suficientes entre a economia e a física para considerarmos ambas ciências? Popper (1957) distingue duas abordagens à distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais: o naturalismo e o antinaturalismo. De acordo com a perspectiva antinaturalista, há um abismo entre as metodologias da física e da sociologia. Eis uma listagem parcial de alguns dos factores que sugerem uma profunda desanalogia: • Generalizações. Nas ciências físicas fazemos generalizações a partir de factos particulares para chegarmos a verdades universais com base no pressuposto de que existem algumas regularidades na natureza. Na sociologia, porém, este procedimento não é frutífero, pois as circunstâncias são peculiares de um momento histórico no tempo, e ignorar este aspecto seria ignorar o facto de a sociedade estar em constante evolução. est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce • Experiências. Na física, as experiências representam uma maneira de isolarmos um fenómeno para podermos controlar algumas variáveis e nos centrarmos num número limitado de factores relevantes. Na sociologia, este método não funcionaria, uma vez que não há um princípio para decidir que factores são relevantes para as questões a que se deve responder numa investigação. Além disso, em física as experiências podem ser repetidas em diferentes laboratórios e podem obter-se os mesmos resultados, ao passo que na sociologia as observações sãosempre únicas, pois dependem das características do facto observado. • Complexidade. Os factos sociais são complexos, não só porque as variáveis não podem ser facilmente controladas em situações artificiais, devido à sua contingência histórica, mas também porque as vidas mentais são importantes para o desenvolvimento da sociedade, e para se compreender o papel explicativo das vidas mentais têm de ser invocados factos psicológicos e biológicos. • Previsão. O ponto é: embora seja possível fazer previsões em sociologia, é extremamente difícil, devido à complexidade dos factos sociais, mas também ao efeito que o fazer uma determinada previsão pode produzir no facto que será previsto. Por exemplo, prever que um banco enfrentará uma crise financeira produz um efeito nos consumidores que confiaram as suas poupanças a esse banco. E provável que retirem o seu dinheiro do banco com medo de o perderem, comprometendo assim ainda mais a situação financeira da instituição. • Objectividade. Toda a relação entre a pessoa que observa aquele facto e o facto observado é uma questão que, até certo ponto, também diz respeito às ciências naturais, mas que parece mais premente no caso das ciências sociais. O sujeito que tenta dar uma explicação para um facto social não está fora do facto, numa posição de neutralidade; muitas vezes, está incorporado nele. Uma consequência extrema desta alegação é que, diferentemente da física, na sociologia o objectivo do cientista não é revelar verdades, mas originar uma nova fase de desenvolvimento social. • Holismo. A partir do que os antinaturalistas dizem sobre a complexidade e a inadequação das experiências nas ciências sociais, há uma outra questão que afecta a esfera da previsão e da explicação: o holismo. A ideia é que, em física, um agregado pode ser apenas a soma das suas partes, mas um grupo social é sempre mais do que a soma dos seus membros, porque as relações pessoais podem facilmente alterar a dinâmica e o comportamento do grupo. O próprio grupo terá a sua história, que não se esgota na história pessoal dos seus membros. Isto significaque quando tentamos dar uma explicação ou fazer uma previsão em ciências sociais temos sempre de tomar atenção a como acontecimentos ou interacções particulares, que parecem ter consequências muito limitadas e confinadas, determinam alterações em toda a estrutura do fenómeno social a estudar; e não podemos oferecer explicações ou previsões localizadas, mas temos sempre de analisar a totalidade dos factos sociais relevantes. • Compreensão. Como fazemos quando queremos compreender factos? Se os factos forem naturais, provavelmente procuraremos o que os causou. Se forem factos sociais, diz o antinaturalista, procuraremos o significado e a finalidade. Enquanto o primeiro objectivo, a explicação causal, pode ser posto em prática pela observação de regularidades e generalizações, o último, a compreensão, requer imaginação e empa tia. Exercício: Que outras possíveis diferenças metodológicas entre as ciências naturais e sociais consegue imaginar? 1.3.1 Leis e experiências nas ciências sociais Popper discorda fortemente da posição antinaturalista, defendendo uma maior continuidade entre as metodologias das ciências naturais e sociais. Argumenta convincentemente que a comparação est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce antinaturalista entre a física e a economia, ou entre a física e a sociologia, se baseia numa imagem positivista cândida e demasiado simplificada de como a comunidade científica se dedica ao estudo da natureza. Ainda que possa ser verdade que as generalizações em sociologia assumem uma forma diferente das da física, também é verdade que ambas podem ser interpretadas como leis ou hipóteses que estabelecem uma proibição. Eis dois dos exemplos do próprio Popper: «Não se pode construir uma máquina de movimento perpétuo», ou: «Não se pode ter emprego para todos sem inflação.» Exercício: Consegue imaginar outros exemplos de proibições estabelecidas por generalizações nas ciências sociais? Popper também defende que a ênfase no holismo está mal pensada, da mesma maneira que a rejeição da metodologia daquelas experiências que pretendem encontrar regularidades em alguns aspectos do desenvolvimento social em vez de na sociedade como um todo. Refere que há exemplos bem-sucedidos de experiências fragmentárias que são relevantes para a articulação de teorias sociológicas. Pensemos na famosa experiência sobre a obediência à autoridade conduzida por Stanley Milgram em 1974 (a que voltaremos no capítulo 6). Num cenário experimental, mostrou que as pessoas estão fortemente inclinadas a obedecer a figuras de autoridade que lhes dizem o que fazer, mesmo que esse pedido implique agir de uma maneira considerada moralmente objectável. Milgram queria compreender melhor o que tinha acontecido na Alemanha nazi, onde ocorrera uma indignação relativamente moderada quanto à maneira como as pessoas e as comunidades judaicas tinham sido perseguidas. A sua hipótese é muito geral, uma vez que pode ser aplicada a diferentes pessoas em diferentes sociedades e em diferentes contextos históricos: as pessoas têm dificuldade em desobedecer a ordens dadas por figuras de autoridade. E, no entanto, a experiência foi conduzida num laboratório, com a metodologia de investigação da psicologia social do seu tempo. Os resultados experimentais confirmaram a hipótese e geraram um debate acalorado sobre as constantes do comportamento humano, contribuindo assim para uma melhor compreensão da dinâmica da obediência e da resistência em regimes autoritários. Exercício: Conhece outras experiências que tenham sido importantes para as ciências sociais? Experiências como a de Milgram podem contribuir para a aquisição de conhecimento generalizável. O método utilizado, diz Popper, é o método que recomenda para todas as ciências: tentativa e erro. Tentamos resolver um problema dada uma certa hipótese e podemos falhar ou ser bem-sucedidos, mas o que realmente importa é que aprendemos com os erros que cometemos. Se a hipótese não parece funcionar, é revista ou rejeitada, e são feitos novos testes. A dificuldade de abordarmos as experiências de uma maneira holística é que se testamos hipóteses que dizem respeito à sociedade como um todo e fracassamos, torna-se extremamente difícil saber exactamente qual foi o erro. Ao invés, isolar variáveis, quando isso é possível, parece ser útil tanto nas ciências físicas como nas sociais. Há também outros elementos de continuidade no que respeita à questão da experimentação. Tanto na física como noutras ciências, há experiências potencialmente muito reveladoras que não podem ser conduzidas devido a limitações metodológicas ou tecnológicas. Nestes casos, os cientistas têm muitas vezes de fazer as experiências na sua cabeça e usar a sua imaginação para prever o que poderiam ser os resultados, em vez de conduzir as experiências propriamente ditas (como veremos no próximo capítulo). Nem mesmo no que respeita ao uso comum de experiências mentais parece haver um abismo entre as ciências naturais e sociais. Harold Kincaid (2004) defende um ponto de vista naturalista, alegando que pode haver leis nas ciências sociais. Porém, a sua perspectiva é diferente da de Popper. Em vez de identificar as leis com afirmações est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce que estabelecem uma proibição, descreve-as como afirmações que identificam factores causais relevantes. A complexidade dos fenómenos sociais não parece ser um obstáculo à identificação de factores causais que contribuem para uma explicação de factores sociais. Para Kincaid, não há uma boa razão para pensar que a noção de compreensão em ciências sociais tem de ser concebida como marcadamente diferente da noção de explicação causal nas ciências físicas. O ponto de vista antinaturalista afirma que nas ciências sociais os «objectos» investigados são pessoas com livre-arbítrio e com a sua maneira de conceptualizar o mundo, não são matéria inerte. E isto que determinará o tipo de explicação procurada para o comportamento estudado. O comportamento humano, diz ainda este ponto de vista, não pode ser explicado com os mesmos princípios do comportamento dos objectos físicos, requerendo um esforço de interpretação que tem em conta as perspectivas das pessoas cujo comportamento é estudado (Taylor 1971). Kincaid não pretende excluir que alguns factos sociais (como um ritual, por exemplo) sejam mais bem explicados fazendo referência ao seu significado em vez de àquilo que os originou, mas isto não significa que a procura das causas esteja condenada ao fracasso ou seja irrelevante para as finalidades da explicação nas ciências sociais. Afinal de contas, o que as ciências sociais procuram estudar é não apenas o comportamento de alguns indivíduos em algum momento, mas também a natureza das instituições e o desenvolvimento de fenómenos em larga escala (e frequentemente recorrentes). Por vezes pode ser necessária uma compreensão empática para ver uma determinada situação da mesma maneira que as pessoas que estão nela incorporadas, mas esta actividade interpretativa não exclui outros métodos para averiguar a perspectiva de um sujeito, que se baseiam na psicologia humana, por exemplo, e que podem conduzir a conclusões em certa medida generalizáveis. 1.4 O que é a investigação científica? Abordaremos agora a questão da demarcação a partir de um ângulo diferente. Em vez de procurarmos uma explicação da ciência como um corpo de conhecimento unificado e estático ou uma explicação do que fazuma disciplina ser científica, consideremos outro projecto de demarcação. O que caracteriza uma actividade humana como uma instância de investigação científica? Três conjuntos distintos de questões parecem surgir quando consideramos respostas possíveis para esta pergunta. Primeiro, uma actividade considerada como investigação possui uma dimensão metodológica e é sistemática em vez de aleatória. Segundo, uma actividade considerada como investigação tem uma função específica e visa contribuir para um corpo de conhecimento. Terceiro, as actividades consideradas investigação científica possuem alguns aspectos sociológicos em comum, tais como o papel que os cientistas desempenham na resolução de disputas sobre questões empíricas ou a maneira como as novas gerações são formadas em ciências. Exercício: A dimensão sociológica da investigação não será aqui explorada, mas poderá reflectir e discutir sobre as seguintes questões: 1) A investigação é acessível a qualquer pessoa, ou será necessário algum tipo de formação ou estatuto? 2) É importante o local onde a investigação é conduzida, o modo como é financiada ou se se enquadra num projecto mais alargado que é reconhecido por uma comunidade de investigadores? 1.4.1 Questões processuais Há várias questões processuais que são relevantes para a demarcação das actividades de investigação. As actividades de investigação tendem a ser sistemáticas e a seguir um método cujas prescrições dependerão em muito da disciplina no âmbito da qual a investigação é conduzida. Enquanto as ciências est19 Realce est19 Realce est19 Realce naturais e sociais podem requerer testes empíricos rigorosos, outras disciplinas podem requerer que as suas práticas correntes sejam apenas transparentes e abertas à crítica racional. Quando pensamos nas questões de procedimentos tradicionais, parece que encontramos uma tensão reflectida no desenvolvimento da filosofia da ciência do século xx. Por um lado, a ciência está de tal modo compartimentada e os procedimentos científicos variam tanto, que talvez só as comunidades científicas especializadas possam determinar se uma actividade particular se conforma às exigências tantas vezes abstractas da metodologia actualmente aceite. Por exemplo, Max Black (1954, cap. i) observa que quando falamos em metodologia científica em geral tendemos a abstrair a partir do que sabemos sobre física, mas que na astronomia não há experiências e que a geografia é em grande medida descritiva. Tal sugere que não se espera encontrar uma descrição muito pormenorizada do método científico que se adeqúe a todas as ciências. Por outro lado, para a compreensão por parte do público e para a delineação de políticas, torna-se necessária alguma espécie de critério de demarcação. Embora não seja realista aspirar a descrever um método definitivo para todas as disciplinas que possa ser considerado científico, existem elementos metodológicos aparentemente essenciais que nos ajudam a distinguir a investigação de outras actividades. Falar de uma metodologia científica parece erróneo não apenas devido à diversificação das disciplinas científicas, mas também porque o método usado na investigação científica, assim como as teorias científicas a que se chegou por via desse método, podem ser passíveis de revisão. Em termos muito genéricos, há duas exigências metodológicas que parecem aplicar-se a toda a actividade que gostaríamos de considerar investigação científica. Primeiro, a investigação científica deve ser conduzida de uma maneira que permita o cotejo com a realidade, ou seja, os testes devem fazer parte do processo de chegar a conclusões e de justificá-las. Segundo, quer as conclusões a que se chegou, quer os passos do raciocínio necessários para a elas se chegar, devem ser transparentes e passíveis de serem criticados. Estes dois pontos parecem adequar-se a alguns dos requisitos sugeridos por Popper e Thagard no que toca às diferenças percebidas entre a prática da física e da astrologia. Mas note-se que enquanto os requisitos de sensibilidade aos dados empíricos, de transparência e de abertura à crítica racional eram tradicionalmente explicados nos termos da distinção entre disciplinas ou corpos de conhecimento, agora tentamos identificar se algumas actividades serão instâncias de investigação científica. Exercícios: 1) Ilustre com alguns exemplos a maneira como os requisitos processuais antes descritos são aplicados pela ciência natural ou social com que está mais familiarizado. 2) Consegue imaginar outras actividades que se adeqúem a estes requisitos processuais mas que não sejam manifestamente exemplos de investigação científica? 1.4.2 Questões funcionais É completamente incontroverso que a principal finalidade da investigação seja contribuir para um corpo de conhecimento, mas nem todos concordam na definição com maior pormenor do tipo de conhecimento que a investigação pretende produzir. Por exemplo, quando anteriormente falámos sobre as possíveis diferenças entre as ciências naturais e sociais, perguntámos se os resultados produzidos no decurso de uma investigação da estrutura ou da história da sociedade humana podiam ser generalizados. Uma ideia comum é que, para que a investigação seja considerada um exemplo de investigação científica genuína, os seus resultados precisam de ser generalizáveis, e que toda a investigação que não produz resultados generalizáveis não consegue ser científica. Focar-nos-emos aqui noutro requisito: a novidade. est19 Realce est19 Realce est19 Realce est19 Realce Parece ser consensual classificar a confirmação de resultados e a reorganização de dados anteriormente conhecidos como investigação quando a confirmação é necessária e quando há um elemento de originalidade ou novidade na actividade. Este elemento de originalidade pode ser esgotado pela possibilidade de se tirar mais conclusões ou de se fazer mais generalizações a partir do mesmo corpo de dados, reorganizando ou reinterpretando os dados à luz de novos pressupostos teóricos. Para Imre Lakatos (1970), que retrata a ciência como a sucessão dinâmica de programas de investigação e não como o agrupar de afirmações teóricas, um programa de investigação é científico se for progressivo. Para que seja progressivo no que respeita a um estádio prévio de desenvolvimento científico, o programa de investigação tem de ter pelo menos o mesmo conteúdo empírico e tem de ser capaz de proporcionar uma explicação para os mesmos fenómenos de uma maneira pelo menos igualmente satisfatória. Além disso, tem de fazer novas previsões que possam ser confirmadas pela experiência. Um programa de investigação é degenerativo (isto é, é ainda ciência, mas não uma ciência muito boa) se as novas previsões que são feitas não são confirmadas pela experiência. Embora a perspectiva de Lakatos tenha sido até agora extremamente influente no âmbito do estudo da metodologia científica, têm sido levantados alguns problemas no que respeita à noção de novos factos e novas previsões. Os factos e as previsões devem ser novos em relação a quê? A literatura apresenta respostas diferentes, que variam entre a novidade temporal e a novidade da interpretação. As consequências do tipo de novidade que escolhemos são muito importantes para a definição dos programas de investigação progressivos. A novidade temporal requer apenas que os factos que antes não eram considerados prováveis possam agora ser previstos. Ao contrário, a novidade da interpretação é bastante mais fraca, requerendo apenas que os factos antigos
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