Buscar

A Transformação Moderna do Sentido da Ética WILLIS SANTIAGO GUERRA

Prévia do material em texto

A Transformação Moderna do Sentido da Ética (assim com do Direito, da Política etc.)
Willis Santiago Guerra Filho
Professor Titular do CCJP-UNIRIO
Doutor em Direito e em Filosofia
Ética e Direito são repositórios de normas consagradas socialmente para orientação da conduta humana. A crescente complexidade da nossa sociedade, em ritmo vertiginoso, torna tais repositórios, em grande parte, obsoletos ou, no mínimo, insuficientes, na medida em que não oferecem soluções para os problemas radicalmente novos com os quais temos de lidar. São problemas desse tipo aqueles decorrentes da intervenção do homem no seu meio natural, incluindo aí o próprio material genético que o constitui, dando ensejo ao surgimento de novas ramificações tanto do Direito como da Ética, como são o Direito Ambiental e a Bioética. Recapitulemos o significado da ética, a partir de origem etimológica.
		O final da palavra, em “ka”, assim como em tantas outras, de origem grega, como lógica, matemática e, mesmo política, significa que se trata de um estudo – no caso da ética, o estudo do ethos, assim como na lógica se estuda o logos e na política, a polis. A palavra ethos, em grego antigo, quando escrita com épsilon (Ɛ), corresponderia ao latim mores, donde decorre a nossa palavra “moral”, significando um conjunto de normas concernentes à conduta política e socialmente regrada por normas costumeiras. Já quando escrita com êta (ƞ) remetia ao caráter, à natureza espontânea das pessoas, sua identidade, significando, literalmente, sua morada ou lar, onde nos sentimos à vontade, por corresponder ao que nos é próprio. O termo “moral”, de mores, proveniente da tradução de Cícero para o latim, costuma ser utilizado indistintamente como sinônimo do termo de origem grega “ética”, sendo comumente considerado que ambos possuem o mesmo significado, enquanto alguns autores os diferenciam, atribuindo um sentido mais amplo e coletivo ao segundo, e mais restrito e individual ao primeiro. De certa maneira, resolve-se a divergência com a distinção clássica, devida a Hegel, entre Moralität, subjetiva, e Sittlichkeit, objetiva. Também pode-se diferenciar “ética” e “moral” considerando esta última objeto de estudo da primeira, que seria um saber, saber sobre o que é devido, cabendo à moral determinar o que é devido, tornando-se, assim, objeto de estudo da ética. 
		Como essa “ciência do dever” assume um caráter igualmente normativo, a filosofia analítica contemporânea vai referir-se a uma “metaética”, formada por proposições meramente descritivas, que toma a ética ou “as éticas” como objeto de um estudo em que o conhecimento efetivamente possa se dar, desvinculado de compromisso com o aspecto prescritivo, apesar de estar lidando com a esfera do dever ser. Já na perspectiva clássica, greco-romana e, mesmo, naquela teológica medieval, a ética é sempre uma ética material, associada a outros aspectos da vida, em sua dimensão social, especialmente àqueles de natureza política, donde a indissociabilidade entre o comportamento recomendado a cada um individualmente e o que de cada um se espera enquanto membro da comunidade política: o comportamento ético seria igualmente justo e, como hoje se diz, “politicamente correto”, ou, em linguagem popular, conhecendo cada um o seu lugar. A ética, considerada desde esta perspectiva clássica - e que ainda hoje aponta para uma de suas dimensões fundamentais - seria a disciplina que nos conduz à felicidade, ao indicar o Bem supremo, e em razão da grande divergência entre filósofos e pessoas em geral sobre o que seria esse Bem supremo, o pensamento moderno, especialmente com Kant, vai se caracterizar pela adoção de uma ética formal, independente dos bens que desejam as pessoas e do modo como os distribuem no direito, na política, na economia etc. Aqui, os princípios orientadores da ação derivam de um imperativo categórico que requer obediência universal, caso queiramos instituir a autonomia da vontade e uma comunidade de homens livres. Na modernidade, portanto, especialmente a partir de Kant, os princípios orientadores da ação derivam deste imperativo categórico pelo qual optamos de “livre e espontânea vontade”, e por isso requer obediência universal, para assim instituir a autonomia da vontade e uma comunidade de homens livres. O caráter abstrato dessa concepção termina revelando-a inadequada para motivar ações e decisões concretas, em face da diversidade e singularidade de situações com as quais nos defrontamos atualmente. É assim que, hoje, nos defrontamos com uma ética dita “pós-convencional”, que recupera elementos da antiga ética material, fazendo convergir, por exemplo, a ética e a política em uma teoria da justiça, como em Rawls, onde se propugna mais um procedimento para se atingir soluções eticamente justificáveis para os problemas, do que princípios com base nos quais se possa deduzir tais soluções, ou ainda regras pré-estabelecidas em que já se oferecem tais respostas. Essa é a ideia que anima, igualmente, a chamada “ética do discurso”, associada a nomes como Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas, na qual se aponta para condicionamentos éticos necessários a todas as formas discursivas, se pretenderem desenvolver-se racionalmente. Aqui, a ética não seria nem (puramente) material nem (puramente) formal, mas sim procedimental ou, como também há quem a denomine, “procedural”.
	A origem da modernidade, em ética, em direito e, de um modo geral, enquanto forma ou estrutura diversa daquela antiga, pode ser situada em discussões tardo-medievais no campo da teologia, ou melhor, da onto-teo-logia, por versarem sobre questões a respeito de como conhecermos seja lá o que for, a partir de como conhecemos Deus, desiderato maior dos esforços humanos mais dignos de consideração.
A. Na estrutura transcendente, a que também se pode referir como antiga, a da ortodoxia aristotélica, concebe-se uma causalidade por ordem recíproca de diversas causas, sem que haja hierarquia entre elas, sendo a divisão entre as que se privilegiará feita em função do tipo de investigação a ser levada a cabo. Daí que as quatro causas, a saber, a eficiente, a final, a material e a formal, intercambiarão seus papéis, a depender do ângulo que se examine a fixação das mesmas, em relação ao seu substrato comum, o hypokheimenon, que sempre se fará presente e atuará como unidade homogênea inalterável pelos movimentos recíprocos das causas que sobre ela incidem. Assim, a alma, para os antigos, ou Deus, para os medievais, podem ser consideradas como causas eficientes, quando iniciam, respectivamente, o movimento da abstração ou da criação, ou então como causas finais, já que as formas anímicas aperfeiçoam o ser das coisas, assim como Deus é tido como o objeto a que aspira o intelecto e deseja a vontade. Alma e Deus podem operar ainda, indistintamente, como causa formal e material, e isso não porque possuam forma e matéria, mas sim por haver neles as formas que serão adquiridas na mudança do ente considerado como potência (causa formal), em sua passagem ao ato, movido materialmente por uma alma ou por Deus (causa material).
B. Na estrutura transcendental, a que já na Baixa Idade Média se chamava de via moderna, introduzida de maneira sub-reptícia por John Duns Scot (aprox. 1266 – 8/11/1308), julgando-se um aristotélico da mais estrita observância, ocorre o que André de Muralt considera “uma revolução filosófica que se ignora, quando se trata, certamente, da única revolução doutrinária digna deste nome que se produziu na história do pensamento ocidental”. Esta revolução, responsável maior, no plano das ideias, pelas transformações radicais que resultaram no mundo tal como hoje o temos, com o que nele há de melhor e pior também – e, assim, tanto em um caso como no outro, o que nele há de grandioso -, mostra-se em toda evidência na doutrina da causalidade concorrente não recíproca das causas parciais, a qual minará os fundamentos da construção do saber antigo e medieval, de cunho propriamente aristotélico, criando as condições subjetivas para o aparecimentoda ciência e de tudo o que é mais característico da modernidade, também em termos políticos, éticos ou jurídicos.[2: 	 L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes et grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993, esp. p. 118.; v. tb., do mesmo A., Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico, trad.: Paula Martins, São Paulo: 34, 1998. Já para a filosofia prática e política, a referência é a obra publicada originalmente em 2002, La estructura de la filosofia política moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: Valentín Fernández Polanco, Madri: Istmo, 2002.][3: 	 Cf. id., L´enjeu de la philosophie médiévale, pp. 39 s.]
A inovação na estrutura de pensamento “escotista”, como a este segundo tipo de estrutura fundamental costuma aludir de Muralt, em termos de concepção de causalidade, decorre da consideração do ser como diverso de um tertium quid na composição de todo ente, assim como no transcurso de todo movimento, e Deus já não possui nenhuma função material, tornando-se uma hipótese metodológica, não-necessitarista, por inescrutável e contingente, para nós, a sua vontade soberana. As causas, então, passam a ser ordenadas formalmente, quer em uma hierarquia que se considera estabelecida de potentia absoluta Dei, ou seja, pela onipotência absoluta de Deus, quer de acordo com uma ordem estabelecida arbitrariamente pela vontade de conhecer – ou de poder. Se sujeito e mundo já não estão vinculados naturalmente, só restam para serem conhecidos os objetos, a forma de ambos. Se a vontade e o fim por ela almejado não estão mais unidos pelo amor, só resta um desejo arbitrário que pode se dirigir a objetos quaisquer, seja para conhecê-los, seja para dominá-los, o que na modernidade, por exemplo, em um Francis Bacon, logo será considerado como praticamente o mesmo. Se o poder já não tem constrangimentos impostos pelo bem como fim que justifica o seu exercício, só resta a lei que obriga sem limitações ou necessidade de maiores justificativas, já que sua força arbitrária provém do simples fato de estar na lei mesma a sua origem. Isso porque objeto do conhecimento, vontade arbitrária de agir e lei imposta do agir são, afinal, considerados efeitos do concurso simultâneo de causas indiferentes ao que causam, nas quais já não é possível discernir o que é forma e matéria, eficiência e finalidade, estando todas reduzidas a uma só causa, que é formal, mas não como aquela que corresponde a uma matéria determinada, e é eficiente, nem como aquela que corresponde a uma certa finalidade, pois é a causalidade mecanicista, dos impulsos, choques e trajetórias que quando conhecidos enquanto causas explicam que (oti) e como (ti), se deu algo, mas não porque (dioti) se deu. Eis que a explicação científica se apresenta como a única confiável, mas ainda não a temos em campos que tratam dos valores, como são os da ética, o do direito e da política – nem é seguro que as tentativas de estabelecê-la, até o momento, sejam satisfatórias.[4: 	 Cf. id. ib., pp. 32 ss.; 321ss.; 331 ss.; passim.][5: 	 (terceiro elemento não conhecido que é combinação de dois já conhecidos) Wikipedia][6: 	 Princípio de Contingência: O princípio de contingência afirma que aquilo que é pode ser diferente. A vida pode ser outra. Podemos fazer diferente, interferir no resultado.]

Continue navegando