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Ética e Política 7 - Kant

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moral universal - o Staastsrecht
Fernando Quintana
Refletir sobre moral no decorrer da Modernidade (século XVIII) não pode prescindir de uma importante tradição do pensamento filosófico que avalia os “assuntos humanos" a partir do rigoroso respeito de princípios morais universais, intouchables - a dignidade e a liberdade – que, como tentaremos mostrar, são compatíveis com normas legais e o Estado de Direito (Staastsrecht).
Para isso, escolhemos um importante expoente desta tradição do pensamento moral, Immanuel kant, cuja produção teórica se inscreve no contexto de importantes eventos históricos: 
(...) Kant, embora vivendo na distante Königsberg, longe de Paris e dos grandes centros, sempre teve plena consciência dos problemas sociais e políticos da época e tomou partido favorável à Revolução Francesa, na qual via não apenas um processo de transformação econômica, social e política, mas sobretudo um problema moral (Chauí, 1978: VIII).
Tal evento provoca no autor uma mistura de admiração e temor. Admiração, porque a revolução instaura o triunfo da razão que, segundo O que é o esclarecimento, significa do homem não ser tratado mais como criança (despotismo), mas como maior de idade (república). A maioridade (Muendigkeit), através do uso da razão, fazendo com que os homens assumam com coragem seu próprio destino reconhecendo não ser este ditado por forças externas, podendo eles mesmos tomar em mãos sua própria história (Freitag, 1986: 34).
Sapere aude! Ouse saber, atreva-se a saber, tal apelo à maioridade, ao uso da razão, encontra-se intimamente ligado ao exercício da liberdade, conforme declara o filósofo alemão na mesma obra: “Para o esclarecimento nada é exigido além da liberdade, e mais especificamente a liberdade menos danosa de todas: utilizar publicamente sua razão em todas as dimensões” (grifo do autor) (Marcondes, 2007:89), diferentemente da menoridade dominada pela preguiça e covardia.
Temor, porque a revolução traz consigo o perigo da “soberania popular inalienável” e que, em perspectiva rousseuaniana, pode trazer uma restrição à liberdade individual Por isso, como veremos, Kant exclui expressamente a participação direta do povo na elaboração das leis. 
Sobre a influência de Rousseau no filósofo alemão, convém registrar, rapidamente, o seguinte comentário: Kant tem admiração pelo pensamento de Rousseau, uma vez que lhe revelou como o homem, movido também por bons sentimentos e não apenas pela razão, deve agir em relação a seus semelhantes (Chauí, 1987: VII; VIII). Kant “descobriu (em Rousseau) a natureza do homem escondida no fundo da pluralidade das formas humanas manifestadas” (Salgado,1995:229), etc. Contudo, importa sublinhar que Kant racionaliza a moral rousseauniana baseada nos bons sentimentos: “as emoções dos sentimentos e os afetos subjetivos não são, para ele, mais que materiais que pugna para submeter de um modo cada vez mais enérgico ao império da ‘razão’ e ao mandato objetivo do dever” (Cassirer, 1993: 22). Para Kant, “o indivíduo deve ser benevolente por dever, não por compaixão” (Eagleton, 2010: 159). “É muito edificante (diz o autor) praticar o bem para com os homens por amor a eles e por benevolência compassiva (...), mas essa não é a verdadeira máxima moral” (Kant, 1993b: 86). 
A produção intelectual kantiana, em particular, os escritos morais, Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), são próximos tanto da Revolução Americana (1776) quanto da Revolução Francesa (1789). Tal situação dando à moral kantiana uma sintonia com o espírito e o impulso moral destas revoluções: a moral kantiana dá uma base consistente para o que os revolucionários do século XVIII denominaram direitos do homem (Sandel, 2021: 137). 
O “uso público da razão” leva Kant a criticar o sucessor de Frederico o Grande, Frederico Guillerme II (1787-97), o qual pratica uma política de Contra-Iluminismo: limita a liberdade de imprensa e não aceita argumentos contrários à Igreja e ao Estado. Duas instituições que, segundo o prefácio da Crítica da razão pura, não merecem o respeito da razão por serem incapazes de enfrentar a prova do exame, crítico, livre e aberto ou, como diz em O que é o esclarecimento, porque ambos são “guardiões” contrários à “liberdade de fazer uso público da razão pessoal em todas as matérias”. E acrescenta:[1: “Se ao governo apraz ocupar-se dos assuntos dos eruditos, então seria mais adequado à sua sabia solicitude para com as ciências e mesmo para com os homens favorecer a liberdade de uma tal crítica (...) pela qual as elaborações da razão podem ser conduzidas a pisar firmes (Kant, 1987: 20).]
(eles) derivam sua autoridade da usurpação do direito de pensar por outros, sejam eles clérigos, doutores, políticos, militares ou intelectuais. Sua autoridade não está sujeita ao teste público da razão, mas, pelo contrário, invalida o juízo do público ao tornar este passivo e incapaz de usar livremente sua razão (Gaygill, 2000: 267). 
A partir desta atitude, podemos dizer ser a filosofia kantiana uma filosofia crítica no sentido dos fatos históricos passarem pelo “tribunal da razão” com todo seu potencial emancipador. Mais especificamente, como a liberdade enquanto postulado moral-racional a priori permite questionar eventos que a contradizem e, também, estabelecer os alicerces de uma forma de estado compatível com o exercício deste direito. 
O humanismo kantiano parte de princípios morais universais cuja validade independe das condições históricas. Para nosso interesse, cabe destacar, sobretudo, o princípio da dignidade - age de tal modo que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca somente como um meio; o princípio da liberdade - age de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um. Ambos, por sua vez, sendo reforçados por outro princípio - o da universalidade - age de tal modo que a máxima da tua conduta se torne, por tua vontade, lei universal (Kant, 1990: 40-45): 
Kant introduz como critério fundamental do caráter ético de um ato, sua universalidade. Isto é, meu ato pode ser considerado ético se eu estiver disposto a aceitar que ajam comigo da mesma forma como eu ajo com os outros. Trata-se, no fundo, do famoso princípio: não faça ao outro aquilo que não queres que façam a ti. Na formulação clássica encontrada em Kant: “Age de tal forma que tua ação possa ser considerada lei universal” (Marcondes, 2007: 12).
Tais princípios correspondem, em linguagem kantiana, ao imperativo categórico que faz parte do conhecimento a priori (não empírico ou a posteriori), que expressa uma necessidade lógica, não um fato, que estabelece uma ordem à conduta humana, que prescreve uma ação boa por si mesma independente do resultado e, que se aplica a todo ser racional:
Como se me faz presente, então, o dever? Apresenta-se como a obediência a uma lei que é universalmente válida para todos os seres racionais. Como tomo consciência de ela? Tomo consciência de ela como um conjunto de preceitos que posso estabelecer para mim mesmo e querer coerentemente que seja obedecido por todos os seres racionais. A prova de um autêntico imperativo é que posso universalizá-lo, ou seja, que posso querer que seja uma lei universal (MacIntyre: 1994: 187-188) 
O imperativo categórico corresponde a um tipo de juízo “sintético a priori” (Kant, 1987 30; 1990: 52; 60). Do ponto de vista da “quantidade” é universal porque é puro ou a priori; do ponto de vista da “qualidade” é afirmativo porque determina uma ação a ser realizada; do ponto de vista da “relação” é categórico porque expressa uma ação boa em si; e, do ponto de vista da “modalidade” é apodítico porque expressa uma necessidade lógica. [2: O juízo “sintético” é uma proposição em que o predicado acrescenta algo novo ao sujeito da frase à diferença do juízo “analítico” em que o predicado se encontra contido no sujeito da frase. O primeiro tipo de juízo se funda na experiência, é a posteriori, enquanto o segundo tipo de juízo nãodepende da experiência, é a priori. A “grande descoberta de kant” é que funda a moral, o imperativo categórico, num juízo “sintético” e “a priori”. Pode-se perceber, com esta distinção, que a filosofia kantiana é “transcendental”: ela procura não só as condições a priori do conhecimento empírico mas também do conhecimento moral. Em outros termos: uma teoria transcendental do conhecimento (Habermas, 1986: 23;24). ]
Cabe destacar que o imperativo categórico prescinde de qualquer força ou autoridade que o prescreve a não ser a própria razão, ou seja, o autor da lei moral não está sujeito a ninguém acima dele, mas tão somente a si próprio. Ele está fundado no princípio de autonomia (auto: de si mesmo, nomos: lei) independente de mediação heterônoma (hetero: de outro, nomos: lei), sendo assim o imperativo categórico pode ser tido como a “ufanista declaração de independência da moral racional em que o homem como ser livre se liga a leis incondicionais sem necessidade de um terceiro”. A este respeito, cabe citar o Prefácio de A religião nos limites da simples razão:
Na medida em que (a moral) está fundada no conceito de ser humano como um ser livre que, justamente por isso, prende-se a si mesmo, através de sua razão, em limites incondicionados, (ela) não precisa nem da ideia de um outro sobre ele, para reconhecer seus deveres, nem de outro motivo que não a própria lei (moral) (Kant, 1793 apud Habermas, 2013: 17-18). 
Portanto, para descobrir a lei moral, a dignidade humana, e reconhecê-la como obrigatória, o homem não precisa de um terceiro, de um Deus criador nem a fé num Deus salvador, ou seja, o dever de respeitar a pessoa não responde ao fato dela ser “feita à imagem e semelhança do senhor”, a teologia, mas a um “amor prático” (Ricoeur, 2012: 8), que se funda na razão: 
 [...] a formulação kantiana da moral atribui à racionalidade moderna a tarefa de se abrir a um fim prático supremo. Sua interrogação específica, ‘que devo fazer?´, significa que nem a teologia tradicional nem a ciência moderna são fundadoras de certezas práticas (morais) e indica um vazio filosófico correspondente à questão dos objetivos fundamentais do uso da razão (Castillo, 2003: 5). 
O termo dignitas se remonta ao conceito romano humanitas forjado pelo estoicismo precursor, por sua vez, da concepção cristã da pessoa que afirma o valor inapreciável de cada alma humana. A laicização do pensamento, operada por Kant, significa a emancipação da razão e o ocaso de premissas teológicas, no caso, o imperativo da dignidade ser válido e obrigatório porque a razão o diz e não porque Deus o diz. 
Kant acredita na “imortalidade da alma” e “existência de Deus”, a crença na primeira por tornar possível um mundo supra-sensível no qual a virtude moral vai receber seu premio, na segunda por tornar possível um mundo no qual não há separação entre o real e ideal, entre o ser e dever ser (Chauí, 1978: XVI). Contudo, tais exigências sobre a alma e Deus, “condições necessária da moralidade” (Caygill, 2000: 310), não significa que os postulados morais sejam uma dádiva divina já que eles, importa insistir, se fundam na razão e não em dogmas religiosos (Sandel, 2012: 136) [3: Kant “era pietista, membro de uma seita protestante que enfatizava a vida religiosa interior e a prática da caridade” (Sandel, 2012: 136).]
O imperativo categórico fortalece, então, o uso da razão na medida em que exclui toda mediação divina, mas também, importa acrescentar, a experiência, uma vez que não precisa dela para ser válido. De fato, o imperativo moral enquanto proposição a priori não a posteriori exprime um princípio racional universal dirigido à conduta humana que, apesar de não ser cumprido, de as pessoas não agirem em conformidade com ele, continua vigente. 
O imperativo categórico corresponde a um tipo de liberdade negativa, uma vez que o homem, criador da lei moral, “diz não” a seus interesses, motivações ou inclinações particulares. A lei moral, afirma o autor, está fundada na “necessidade de agir pelo dever” e “pelo respeito à lei” e não pela inclinação ou desejo que as ações produzem (grifo do autor) (Kant, 1993b: 86). Assim, “quanto mais combatemos nossas inclinações espontâneas, mais nos tornamos moralmente louváveis” (Eagleton, 2010: 160). Mas também a um tipo de liberdade positiva, uma vez que o homem, criador da lei moral, “diz sim” a sua vigência. 
Em relação à igualdade, no imperativo moral, podemos dizer que ela não está ligada a uma igualdade jurídica ou material, mas a uma igualdade metafísica que acena com a possibilidade da lei moral ser produzida também por um sentimento de justiça, a “boa vontade” kantiana, em que todos cooperam para sua realização. Assim, os indivíduos além de livres e racionais para elaborar a lei moral são também iguais e razoáveis no sentido de compartilharem tal sentimento e contribuírem para sua consecução. 
Em termos montesquianos o imperativo moral corresponde à liberdade filosófica, também conhecida, segundo autores mais recentes, como liberdade positiva (Berlin); liberdade interior (Hayek); liberdade especulativa ou metafísica (Sartori), etc. Em todos os casos, ela assina para a possibilidade de cada pessoa pautar sua conduta de acordo com a moral, entendida como exercício da própria vontade. Toda pessoa enquanto agente moral e racional é capaz de criar leis morais fazendo que seja ao mesmo tempo legislador e juiz: elabora a lei e a aplica para si. 
Trata-se, em linguagem kantiana, da “razão prática”, de o que é justo para a moral vale também para a conduta humana. A razão prática diz respeito à ação humana, visto que torna possível a tomada de decisões e ações conforme princípios morais, ela responde ao seguinte interrogante: que devo fazer? Contudo, vale insistir que a lei moral é válida independentemente da pessoa agir conforme ao que ela ordena. 
Para entender o princípio humanitário kantiano, bem como os limites que apresenta, é necessário referir-nos à filosofia do sujeito, isto é, o ser humano fazendo parte de dois mundos: o mundo numenal (nóos: intelecto, razão, vontade; menós: vida) e o mundo fenomenal (fainóo: ser, aparência, existência; menós: vida). Em linguagem cartesiana: res cogitans e res extensa, uma antropologia dual em que o ser humano faz parte do mundo inteligível, suprasensível (sub specie aeternitatis) e do mundo concreto/ sensível (sublunar). O primeiro toma o homem como objeto pensado ou ser pensante, indeterminado, não condicionado e, assim livre e autônomo para elaborar leis morais, o segundo toma o homem como objeto de experiência ou ser natural, determinado, condicionado por fatores sociais, culturais, psicológicos, etc.
Kant se refere à dupla vida do sujeito como Sein, ser-fora-do-mundo, desencarnado, verdadeiramente humano, infinito e ilimitado, e Dasein, ser-no-mundo, encarnado, demasiadamente humano, finito e limitado. Definido o sujeito nestes termos, cabe dizer que a lei moral, que procura validade ou alcance universal, (erga omnis homines) se origina no Sein, ser abstrato, inteligível: ser numenal. Além do mais, para ter alcance universal o imperativo moral é desprovido de todo conteúdo. Assim, por exemplo, o imperativo da dignidade segundo qual o ser humano não é um meio ou instrumento, mas um fim em si, tem um valor em si, sem dizer em que consiste, especificamente, tratar as pessoas de forma digna. 
Proceder de outra maneira, isto é, colocar o ser fenomenal, demasiadamente humano, como autor da lei moral, a dignidade, implica que esta última adote um determinado conteúdo, conforme os valores, inclinações ou desejos do agente que a formula. Tal situação provoca a perda do alcance universal, ou seja, a lei moral não é aceita por todos. Daí, então, a necessidade de uma metafísica, princípios morais que residem a priori na razão diante dos costumes, sujeitos a mudanças, “perversões”, diz Kant sem uma norma suprema (a lei moral universal) que serve como exato julgamento.[4: Vale lembrar que uma das principais obras morais é Fundamentação da metafísicados costumes. ]
Do exposto resulta que o imperativo categórico se funda numa filosofia monológica capaz de estabelecer “sozinha” deveres morais verdadeiros para todo ser racional. O objetivo da Crítica da razão prática (como devo agir), junto com a Crítica da razão pura (como devo conhecer) e a Crítica da faculdade do juízo (como avaliar o belo), faz da filosofia Kantiana um projeto muito ambicioso: 
(Kant) confere à filosofia o papel de juiz supremo, papel que se estende ao conjunto da cultura. De fato, separando (as três críticas) em seus aspectos formais - o que Max Weber chamará mais tarde as esferas de valores culturais, da ciência e da técnica, do direito e da moral, da arte e da crítica da arte, legitimando-as em seus próprios limites, não é só diante das ciências que a filosofia se comporta como a mais alta instância judicial, mas também diante da cultura no seu conjunto (grifo nosso) (Habermas, 1986: 24-25). 
Tal projeto, mais especificamente, no que concerne aos deveres morais, suscitando reações virulentas como à de Nietzsche quando, em A gaia ciência, afirma: 
E agora não me fales do imperativo categórico, meu amigo! - Essa expressão faz cócegas em meus ouvidos e me faz rir apesar de tua presencia tão séria: me faz lembrar o velho Kant que, como punição por se ter apoderado subrepticiamente da “coisa em si” (a consciência moral) - coisa bastante ridícula! - foi apanhado subrepticiamente pelo “imperativo categórico” para se extraviar de novo com ele, no fundo de seu coração, em direção a “Deus”, a “alma”, a “liberdade”, a “imortalidade”, como uma raposa que, achando que está fugindo, retorna para sua jaula - e sua força e sua sabedoria é que tinham partido as grades dessa jaula (grifo do autor) (Nietzsche, 2008: 232). [5: Hegel critica o imperativo categórico kantiano baseado no juízo “sintético a priori” dando o seguinte exemplo: “todos os solteiros são homens” (juízo analítico), mas não “todos os homens são solteiros” (juízo sintético a priori). ]
Outras críticas foram feitas à Kant no seu intento de fundar uma moral universal, abstrata como a de Hegel que, em Princípios da filosofia do direito, procura ir além da moralidade subjetiva por entender que carece de concretude. Hegel questiona o a priori da moral kantiana na medida em que não aparece conciliado com o a posteriori da eticidade e isso apesar de reconhecer que “a principal virtude da filosofia kantiana está em ter despertado a consciência da interioridade moral”, contudo, trata-se para ele de “fazê-la mover”, que “ande pelo mundo”. Noutras palavras: a moral não existir só in vitro, mas in vivo. 
A objeção de Hegel à ética kantiana diz respeito ao caráter formalista, universalista e deontológico do imperativo categórico: a abstração de todo conteúdo particular das máximas de conduta faz que o imperativo leve a juízos tautológicos; a separação entre o geral e o particular faz que o imperativo não leve em conta o contexto; a separação entre ser e dever (Sein und Sollen) faz que o imperativo não informe o modo como a moral pode ser transposta para a prática (Habermas, 1991: 14). Do que se trata, então, é fazer da moral uma moral social. Uma moral que se remete à pura razão (Kant), uma moral que se remete à realização da razão na história (Hegel). (Bouchindhomme, 1986: 15).
Com base na assertiva de que “a realidade é um produto da razão”, a chamada ruse de la raison hegeliana, a moralidade objetiva ou eticidade, à diferença da moral kantiana centrada no sujeito, aparece cristalizada em comportamentos, práticas e instituições concretas que culminam, parafraseando o autor, na “realidade em ato da ideia moral objetiva” (Hegel, 1940: 270), ou seja, o Estado que supera (Aufhebung) as instituições que o integram (familia, sociedade civil), o Estado como resultado de todo o processo da Sittlichkeit (eticidade) (Lefebvre; Macherey, 1999:65).[6: A universalidade hegeliana é distinta da proposta por Kant, na medida em que o conceito de universal é encontrado a partir do “desenvolvimento histórico”, uma realidade, e não uma abstração (o Estado). Para Hegel não há separação entre pensamento e realidade, pensar e agir; coisa-em-si e fenômeno. O método do autor é empírico e positivista: “Hegel olha o real e descreve o que vê, tudo o que vê e nada além do que vê” (Kojève, 2010: 426).]
A concretude da moral na ética dá-se, por exemplo, no pater familia que age movido pelo amor dos filhos; no produtor de bens que age movido pela necessidade e entra em relação com outros no seio da sociedade civil; e no cidadão que age movido pelo interesse geral e participa como membro do Estado. Pode-se perceber como Hegel vai além da moral subjetiva na medida em que a moralidade objetiva ou eticididade (as instituições da familia, sociedade civil e estado) é o locus concreto de comportamentos éticos, bem como da conciliação do interesse privado e o interesse geral. Ou seja, do interesse do sujeito político ou cidadão que, enquanto membro do Estado, consegue ir além do interesse do sujeito natural (pater familia) e do sujeito econômico (produtor de bens).
Na Fenomenologia do Espírito, Hegel também se afasta da moral kantiana, centrada no sujeito, na medida em que defende como traço distintivo da consciência o fato dela permitir o conhecimento do alter e, sendo assim, deste ser tratado efetivamente com respeito. O conhecimento ou, melhor, o reconhecimento (Anerkennung) do outro vai além do cognitivo (Kant), já que assinala para o desenvolvimento de uma conduta em favor de outrem. A expressão “luta pelo reconhecimento”, para autores que tomam como referência Hegel, procura evitar o desrespeito social, que se ignore a identidade de outro, ela aponta para uma ação que busque restaurar relações de reconhecimento mútuo (Nobre, 2003: 18). [7: HONNETH, A. Luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, ed. cit.]
O que interessa a Hegel não é a vida da interioridade subjetiva, fechada sobre si, mas a vida do mundo (Arantes, 1988: XII). Em suma: a concretude da moral, ou seja, do outro ser efetivamente reconhecido e respeitado como pessoa e não apenas o enunciado cognitivo, abstrato, do princípio moral da dignidade. Para finalizar com esta crítica, podemos dizer o seguinte: 
(...) a fenomenologia (hegeliana), sob o pretexto da finitude, da temporalidade e da historicidade, rouba da razão os seus atributos clássicos: a consciência transcendental (Kant) deve concretizar-se na prática do mundo da vida, adquirir carne e sangue em encarnações históricas (Habermas, 1990: 15). 
Críticas mais recentes destacam também não interessar à moral kantiana o alter, o destinatário do imperativo categórico e, por tanto, o efetivo cumprimento da lei moral. Tratar-se-ia de um humanismo desencarnado preocupado em dar ao princípio moral um fundamento sólido, racional, com validade universal, mas não interessado no alcance concreto do mesmo. A este respeito, destacam estudiosos: “Quem exclui o outro, que lhe permanece um estranho, em nome do universalismo, trai sua própria ideia” de humano (grifo do autor) (Habermas, 1989: 9).
Com base nestas limitações do imperativo categórico, Emmanuel Lévinas propõe, em Humanismo do outro homem, uma reflexão centrada no outro: o próximo. Entende que o humanismo kantiano é desencarnado porque reduz o ser a pura consciência ou inteligibilidade. A seu ver, Kant “aprisiona o sujeito” ao fazer dele uma pura imanência, isto é, “algo” interior, fechado em si, uma substância ou mônada moral, uma coisa-em-si. 
Sendo assim, o humanismo kantiano elimina a externalidade, a transcendência, a abertura do sujeito ao alter, ao próximo. Para Lévinas a subjetividade não pode ser tida como pura substância ou mônada moral, coisa-em-si, já que o traço principal dela é não coincidir consigo mesma, romper com a imanência, abrir-se ao mundo externo, à transcendência.
O ser humano em vez de coisa-em-si (Kant) deve ser tido como coisa-para-si, que tem consciência de si, da sua humanidade, que consegue abrir-se ao próximo e executara lei moral em favor do alter, pois, como diz o autor, “ninguém pode salvar-se sem o outro”. Trata-se, portanto, de inscrever a transcendência na imanência. Única forma do ser humano superar o ego fechado em si e ocupar-se do alter, do eu tornar-se responsável pelo cumprimento efetivo da lei moral diante do terceiro (Lévinas, 1993: 62). 
Ou, como sublinha em Entre nós, a relação do eu e o outro se revela na transcendência do para-o-outro e leva a descobrir a alteridade que tem até um ícone, sua pietà, o “rosto de outrem”, ou seja, do outrem ser tratado com respeito: 
Des-inter-essamento da bondade: outrem em sua súplica, que é uma ordem, outrem como rosto, outrem que me “diz respeito” [“me regarde”], mesmo quando não me olha, outro como próximo e sempre estranho - bondade como transcendência; e eu, aquele que é obrigado a responder, o insubstituível e, assim, o eleito e, desse modo, verdadeiramente único. Bondade para com o primeiro que vem, direito do homem. Direito do outro homem antes de tudo (Lévinas, 1997:266).
Ernst Bloch, por sua vez, critica a moral kantiana por levar o sujeito a uma atitude passiva/quietista ou contemplativa. Com base nesta limitação, propõe uma mudança do tópos, isto é, do lugar em que se origina a lei moral. De fato, em vez de insistir como faz Kant no autor ou produtor do princípio da dignidade (ser numenal), entende que o mais importante é o destinatário da lei moral - tornando-o responsável pelo cumprimento. 
Assim, o imperativo categórico em vez de domínio moral sobre si é uma exigência ética para outro. Ao trocar de lugar (tópos), no sentido de cada homem ser o destinatário, o responsável pelo cumprimento da lei moral, operar-se-ia uma mudança do ego moral para o alter ético, a atitude passiva em exigência ética, que requer um comportamento ativo (Bloch, 1976: 162). Uma conduta compromissada com o efetivo cumprimento da lei moral. 
Se a lei moral vale mais para o ser concreto (fenomenal) que a recebe do que para o ser abstrato (numenal) que a emite, se vale mais para a humanidade encarnada do que para a humanidade desencarnada, o corolário disto é que o princípio da dignidade se transforma em exigência ética para o destinatário. Única maneira, segundo Bloch, de cada um ser guardião do seu irmão, de cada um ser tratado efetivamente com igual respeito.
As críticas ao humanismo kantiano têm o mérito de destacar o alcance concreto do princípio categórico da dignidade. A filosofia kantiana baseada na figura do sujeito moral-racional tem o inconveniente de não incluir a dimensão ética exigida pela moral. Tal limitação provém, como tentamos mostrar, do princípio da dignidade ficar restrito a um problema cognitivo: a capacidade racional do sujeito, o ser numenal, de criar a lei moral. 
A moral fundada no sujeito desencarnado teria o inconveniente de ficar restrita a uma capacidade interna, elaborar leis boas, sem ir além da pura intenção. Sendo assim, a moral kantiana seria uma capacidade solitária, um sonho vazio, na medida em que não aparece cristalizada em comportamentos e instituições concretas de eticidade; que passa por cima do reconhecimento pelo outro (Hegel); que não se traduz em condutas as quais visem o cumprimento da lei moral (Lévinas, Bloch). Acompanhando estas críticas, podemos concluir pela diferença existente entre pensar moralmente e agir eticamente.
Apesar das críticas feitas a Kant, entendemos que a “teoria contratualista do estado”, desenvolvida em Metafísica dos costumes, dá um passo a frente ao mostrar ser o mundo intangível ou numenal compatível com o mundo tangível ou fenomenal, ou seja, serem as normas legais e o Estado de Direito, baseado na separação dos poderes, complementares aos postulados morais. Assim sendo, as questões levantadas pelo autor (moralidade, liberdade) fazem parte da filosofia moral e política: entender Kant não é um exercício meramente filosófico, ele implica examinar os pressupostos-chave implícitos em nossa vida pública (Sandel, 2012: 137).[8: A primeira parte da Metafísica dos costumes corresponde à Doutrina do direito, onde aparece a teoria contratualista do estado. ]
Com base neste entendimento, podemos dizer que a teoria em questão se inscreve no projeto kantiano no sentido de que o direito e a política não podem dar um passo sem antes prestar homenagem à moral (Terra, 1995: 172); de que não é possível entender a legalidade e a política sem passar pela moral (McCarthy, 1993: 147). Assim, diante do interrogante: uma moral universalista (Kant) tem probabilidade de ser transposta para a prática (Habermas, 1999: 30), tentaremos mostrar que é possível na medida em que existe complementaridade entre moral, direito e política em Kant.
Sendo assim, discordamos daquela opinião segundo a qual: a moral kantiana prescinde da política seja porque se considera autosuficiente dentro de suas próprias muralhas, seja porque diante de suas consequências práticas, políticas, para além delas, mostram-se insignificante (Vázquez: 2006: 299). De fato, apesar de Kant entender que a moral não depende da sua realização concreta para ser válida, não por isso podemos descartar a complementaridade entre moral, política e direito. [9: O argumento pelo qual a moral não depende da sua realização concreta para ser válida é porque o cumprimento da lei moral depende da “boa vontade” que estando ausente, no mundo real, faz que o dever moral seja algo “contingente”, “incerto”, ou seja, que os homens atuem conforme com a lei moral mas também, de forma imoral. ]
Kant concebe o Estado como resultado do contratus originarius que é necessário fazer porque no estado de natureza, onde reina a liberdade externa ou livre arbítrio, “não há lei, nem governo”. Ao igual que Locke: é a falta de garantia ou segurança jurídica as responsáveis por levar os homens a entrar no estado civil. O problema do estado de natureza radica no fato de ser um estado “transitório”, daí a necessidade do pacto e de se entrar num estado “peremptório”, definitivo, o estado social, em que o direito, o meu e o teu externo, se encontram garantidos pela liberdade jurídica ou legal. [10: Para o autor o “livre arbítrio” é o desejo de produzir um objeto, as “manifestações mais evidentes” desse desejo são o contrato, a posse de bens, o casamento, a sucessão, isto é, como diz Kant: “o meu e o teu externo”. Além do mais, o direito natural à liberdade corresponde ao “direito privado” porque, no estado de natureza, a fonte do direto é vontade das pessoas e o tipo de obrigação é interno ou interior, consigo mesmo, em caso de não cumprimento das obrigações que resultam do exercício da liberdade inata. ][11: A “liberdade jurídica ou legal”, cujo conteúdo é igual à liberdade natural com suas manifestações mais evidentes: o contrato, etc, corresponde ao “direito público” porque, no estado civil, a fonte do direito é a vontade do legislador e o tipo de obrigação é externo ou exterior, diante de terceiros, em caso de não cumprimento das obrigações que resultam do exercício da liberdade jurídica. ]
[...] não se pode dizer que o homem em sociedade tenha sacrificado a um fim uma parte de sua liberdade exterior natural; mas sim que deixou inteiramente sua liberdade (...) sem freio para encontrar toda sua liberdade na dependência legal, isto é, no estado jurídico; porque esta dependência é o fato de sua vontade legislativa própria (grifo do autor) (Kant, 1993a: 155).
A passagem de um estado ao outro é feita de acordo com o seguinte preceito: o homem deve sair do estado natural e entrar num estado civil. O contrato social, uma ideia que possui uma “realidade”, é importante porque obriga o legislador a fazer leis como sendo da vontade de todos que intervêm no pacto ou, como diz Kant, considerar cada súdito, que quer ser cidadão, como se tivesse dado seu consentimento à norma do legislador. [12: O contratus originarius ou pactum sociale kantiano é uma “ideia regulativa”, isto é, um conceito que orienta o entendimento, mas que não se encontra em parte alguma na experiência. ]
A este respeito,convém esclarecer que, constituído o estado civil, é necessário supor terem as normas do legislativo apoio dos contratantes como se tivessem participado da sua elaboração. O “suposto” do qual fala Kant é a solução encontrada para evitar, como destacamos no início, o perigo da soberania popular na elaboração das leis, estas capazes de levar a uma diminuição ou restrição da liberdade individual. Assim, do ponto de vista kantiano: a soberania popular não é algo efetivo (Rousseau), funciona apenas como um padrão, cabendo a soberania totalmente ao governante (Terra, 1995: 9). 
Cumpre insistir que o homem ao ingressar em sociedade não perde a liberdade natural ou inata, na verdade, a reencontra na forma da liberdade jurídica ou legal: o meu e o teu externo, isto é, as manifestações evidentes da liberdade ou livre arbítrio passam a ser contempladas e recebem proteção jurídica através das normas do legislador. 
O contratus originarius constitui um ato através do qual os contratantes se submetem voluntariamente às leis que elaboram através dos representantes. O pacto kantiano não obedece a um cálculo instrumental, mas a uma exigência moral que ordena entrar em sociedade para gozar de um que é bom em si, de todos e cada um: a liberdade. 
A obrigatoriedade de entrar em sociedade não obedece a um cálculo (de meios a fins), baseado num juízo hipotético (se quero X devo fazer Y), mas a uma necessidade moral, baseado num juízo necessário (devo fazer X). Esta forma da obrigação (devo realizar algo como fim em si e não como meio) permite a Kant “superar todos os sistemas morais” da época notadamente aqueles sistemas nos quais a obrigação corresponde não a algo necessário moralmente e sim a algo conveniente, como meio, para obter outra coisa (a felicidade) (Hobbes). 
Trata-se do contraste: “preceitos obrigatórios fortuitos” (em que o fim pode ou não acontecer), precisando estes de uma demonstração empírica, e “preceitos obrigatórios necessários”, não demonstráveis empiricamente. O preceito kantiano segundo o qual devo entrar em sociedade não está sujeito a outro fim a não ser o dele próprio. Única forma de estabelecer valores morais absolutos, algo bom em si, a liberdade, que não está em função de outra coisa, a felicidade (Cassirer, 1993: 275; 276).
Em relação à complementaridade entre moral e direito, podemos dizer que ela se dá em nível do sujeito da norma, o tipo de obrigação e o fim a ser obtido. Com respeito ao sujeito da norma - quem prescreve a quem? - existe relação entre o produtor (sujeito ativo) e destinatário (sujeito passivo) da norma moral e jurídica, uma vez que o ser numenal enquanto ser fenomenal, o ser racional-moral enquanto cidadão, através dos representantes, intervêm na elaboração de leis que consagram o respeito da pessoa, bem como a liberdade individual. Além do mais, como destinatários de ambas as normas, moral e jurídica, ficam sujeitos (ao igual que os governantes) a sua obediência.[13: Basta lembrar as constituições modernas e contemporâneas, como a CFB, que estabelece a dignidade da pessoa humana dentre os Princípios Fundamentais (Art. 1º) e a liberdade dentre os Direitos e Garantias Fundamentais (Art.5º).]
A convergência entre o sujeito da norma moral e da norma jurídica está dada pelo fato de as normas legais serem produzidas por “um povo de juízo maduro” (Kant), ou seja, por cidadãos emancipados, livres de qualquer tutela, “maiores de idade”, capazes de elaborar leis condizentes com os postulados morais que são capazes de criar: as normas do legislativo por coerência racional coincidem com as normas autônomas morais no sentido de que umas e outras orientam a conduta numa mesma direção (Bovero, 1992: 152). 
No relativo ao tipo de obrigação - qual é a forma da prescrição? - a norma moral obriga no foro interno e a norma jurídica no foro externo, a primeira não tem força vinculante enquanto a segunda sim, a primeira está motivada pelo estrito cumprimento do dever moral enquanto a segunda por motivos sensíveis: o medo de sofrer uma sanção pelo não cumprimento da norma jurídica. Tal distinção é apresentada pelo filósofo alemão nos seguintes termos: toda legislação compreende duas partes: uma que representa objetivamente necessária a ação que deve ser cumprida, faz da ação um dever, e outra o móbil que liga o sujeito com um principio de determinação do arbítrio em geral (Kant, 1993a: 48). A mola propulsora da obediência à norma moral está dada pelo cumprimento do dever pelo dever enquanto a mola propulsora da obediência à norma jurídica está dado por outro móbil, sensível, não sofrer uma sanção. A diferença entre ambos os tipos de normas, moral e jurídica, é apenas formal, diz respeito à forma de obrigação. 
A complementaridade entre moral e direito acontece porque ambas se relacionam com a liberdade. Aquela sob a forma do imperativo categórico: age de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um. Esta sob a forma de ato legislativo, a liberdade legal ou jurídica, garantindo o exercício do livre arbítrio: o meu e o teu externo. Em reforço desta interpretação, vale citar mais uma vez Kant: o direito é o conjunto de condições segundo as quais a liberdade de cada um pode coexistir com a liberdade de outro segundo uma lei universal da liberdade. Tal convergência tornando possível o aparecimento do postulado moral da liberdade cristalizado em condutas éticas, concretas, baseadas no respeito do direito à liberdade individual.[14: Ou seja, a liberdade, como exercício do livre arbítrio no estado de natureza (supra), recebe no estado civil a devida proteção jurídica através da liberdade legal.]
No que tange ao fim das normas, existe complementaridade entre moral e direito na medida em que a norma moral visa o aperfeiçoamento da pessoa, enquanto a norma jurídica o goze do livre arbítrio, cujo único limite é não interferir no arbítrio de outrem. Em reforço disto, importa lembrar que o “conflito de opiniões”, segundo Kant, baseado na liberdade individual, é a mola do progresso, isto é, do desenvolvimento da pessoa. O aperfeiçoamento da pessoa, fundado na moral, requer, portanto, o respeito de normas jurídicas garantidoras da liberdade. Finalmente, existe compatibilidade porque o fim das normas jurídicas (e da república) é a convivência dos indivíduos que requer, por sua vez, a realização da universalidade própria das normas morais (Bovero, 1992: 160). 
Tal finalidade nos leva a abordar a complementaridade entre moral e política. Segundo a “teoria contratualista do estado”, a liberdade como postulado moral e como norma jurídica pode dar-se no Estado de Direito, a república, que se assenta na divisão ou separação dos poderes. Única forma para Kant, ao igual que Montesquieu, dos homens gozarem efetivamente da liberdade individual. Já o despotismo, para ambos os autores, é a concentração do poder nas mãos de um só, no qual, como diz o filósofo francês, “tudo estaria perdido”, isto é, a liberdade individual. Ou, seguindo o filósofo alemão: “o despotismo é uma constituição que anula a liberdade dos súditos”, nele “não têm liberdade absolutamente alguma” (Kersting: 2012: 387). 
Para Kant, a república trata os cidadãos como maiores de idade diferente do estado “paternalista” ou “eudaimonista”, o despotismo, que trata os súditos como menores de idade, dizendo como devem viver, ser felizes, etc. Para o autor é impossível definir um fim válido e estável sobre a felicidade, visto que as condições históricas e representações da vida boa mudam, à diferença da moral a qual é sempre a mesma - a dignidade e a liberdade. A felicidade se encontra atrelada a avaliações particulares, a preferências pessoais, as quais não podem “fornecer escala idêntica para medir o bem ou mal”. A precedência da dignidade e liberdade sobre a felicidade obedece ao fato de a moral kantiana ter seu princípio no sujeito e não num bem objetivo cambiante que visa à felicidade (Alquié, 1993b: VI). [15: O despotismo, destaca o filósofo alemão Leibniz, se ocupa não só da felicidademas também dos bons costumes, ele é “mestre e sacerdote, empresário econômico, treinador esportivo, pedagogo, confessor e comerciante” (Bobbio, 1992: 138). ][16: Para Kant, a felicidade depende da natureza empírica de cada sujeito particular (por isso muda), à diferença das leis morais que não dependem de nenhum estímulo empírico e são válidas para todos (Chauí, 1978: XV). ]
A república, como vimos, aplica o princípio da separação dos poderes, enquanto o despotismo é a execução arbitrária das leis, neste a vontade pública é substituída pela vontade particular. Tratar-se-ia do contraste entre o Estado de Direito (Staatsrecht), que garante a fruição pacífica das liberdades individuais e o “governo dos homens” (despotismo) que, em nome de um “fim qualquer” tangível, pode restringir a liberdade individual. 
Quanto à forma de governo o que vale é o modo do exercício do poder e não o número de titulares (um, alguns, muitos): nada impede, declara Kant, existir um Estado ou República monárquica, aristocrática ou democrática porque o importante é o “método de governo”, isto é, a divisão dos poderes:
Parece então que, para Kant, o que distingue um governo despótico de um governo não despótico, seja a separação dos poderes. Isso é muito importante porque o estado liberal moderno afirmou-se inclusive introduzindo a técnica da separação dos poderes como remédio contra o arbítrio de quem detém a autoridade suprema no Estado, para garantir o indivíduo contra abusos eventuais dos governantes. Kant, considerando a separação dos poderes como elemento característico do estado republicano, ou seja, do estado não despótico, aceita no seu sistema um outro princípio fundamental da tradição liberal (Bobbio, 1969: 141-142). 
Do exposto se depreende que o bem comum, a fruição pacífica da liberdade individual, requer o Staatsrecht. Seguindo o autor, uma justa constituição civil - uma unidade com funções ou órgãos diferentes (a separação dos poderes):
(...) esses poderes são em primeiro lugar coordenados entre si, no sentido de que um é a complementação necessária dos outros para a perfeição da constituição do Estado; em segundo lugar, subordinados, no sentido de que nenhum pode usurpar as funções dos outros dois; em terceiro lugar, unidos no sentido de que somente pela síntese de suas funções singulares é dado ao cidadão o que lhe pertence de direito (grifo do autor) (Bobbio, 1992: 142). [17: Tal passagem lembrando àquela do Espírito das leis segundo a qual: “os três poderes devem caminhar em concerto” (Montesquieu, 1982: 109). O “principio da separação dos poderes de Montesquieu no qual Kant insiste” levando comentadores a dizer que “sua obra é em tudo simétrica ao Espírito das leis” (Cicco, 1993:7).]
Na tripartição dos poderes cumpre ao legislativo fazer leis que garantam a liberdade individual; ao poder executivo, a administração do estado e ditar “ordens-decretos” (não leis) que se relacionam a casos particulares; e ao poder judicial, aplicar a lei conforme o princípio “dar a cada um o seu”, ou seja, em caso de litígio, estabelecer o que corresponde a cada um de obrigações resultantes do contrato, a propriedade de bens, o casamento, etc. Importa frisar que o poder legislativo, como representante da vontade coletiva, é o órgão mais importante já que é o encarregado de fazer leis que garantam “o meu e o teu externo”. “É preciso dizer desses três poderes, considerados na sua dignidade, que a vontade do legislador (legislatoris) com respeito ao que concerne ao Meu e o Teu exterior é irrepreensível” (grifo do autor) (Kant, 1993a:156). 
O contrato social enquanto “ideia regulativa” (supra) consegue projetar sua realização, nunca totalmente perfeita, para pontos indeterminados do decurso histórico (Duarte, 1996: 6). Isto é, uma forma de estado, baseada na separação dos poderes, que, no decorrer do tempo, teria conseguido garantir o que pertence de direito a cada cidadão - a liberdade individual. 
No que tange à felicidade, no contexto da república, importa dizer que cada um deve procurá-la pela via que lhe pareça a mais apropriada com a única condição de que não prejudique a liberdade de outro: 
Por um lado a felicidade não é levada em conta no pensamento político kantiano, que não pode visá-la nem como fundamento nem como objeto da sua prática; por outro lado, preservada dessa forma da usurpação do político, ela é restituída plenamente ao indivíduo, sob condição de compatibilidade com a felicidade dos outros (...) A felicidade não poderia ser senão individual (não coletiva), sensível e mesmo empírica (...) Ela não é um motivo nem daquilo que existe de moral na vida moral nem daquilo que existe de político na vida política (Sève, 2003: 474). 
Tal entendimento faz o autor estabelecer o alicerce da argumentação liberal, isto é, a incomensurabilidade das opiniões acerca da vida boa ou feliz, que compete a cada indivíduo (não ao Estado) procurá-la pela via que lhe pareça mais conveniente. A “felicidade do homem da rua” (Kant) depende das inclinações e/ou desejos de cada indivíduo e, sendo assim, nenhum poder político pode assumir a responsabilidade de satisfazê-la (Caillè; Lazzeri; Senellart, 2003: 19-20). 
Do exposto podemos apreciar o papel fundamental da liberdade individual, princípio intocável, que, não pode ser substituído por outro: a felicidade. Prova disso a seguinte assertiva kantiana: a ideia da formação do estado não é o princípio da felicidade universal, mas a liberdade segundo leis universais. Assim, se depreende do humanismo kantiano que a liberdade tem absoluta prioridade sobre a felicidade ou, parafraseando mais uma vez o autor, o bem sobre o agradável. Tal prioridade, vale insistir, obedece ao fato do postulado moral da liberdade - age de tal modo que teu livre arbítrio seja compatível com o livre arbítrio de outrem -, (bem como a dignidade), ser um valor em si independente de qualquer fim tangível que visa a felicidade:
O problema do princípio utilitarista (a felicidade para o maior número) radica no fato de os direitos ficarem vulneráveis, uma vez que dependem de um cálculo sobre o que produzirá a maior felicidade (Sandel, 2012: 139). A moral, para Kant, não depende da experiência, das circunstâncias, desejos, interesses, os quais mudam para se chegar à felicidade. Segundo Fundamentação da metafísica dos costumes: o “falso” princípio empírico da felicidade não permite fundar a leis morais porque o bem-estar contradiz o bem agir. Fazer um homem feliz não é mesma coisa que fazer um homem bom, torná-lo esperto não é a mesma coisa que torná-lo virtuoso (Kant, 1990: 53). 
Tal postura faz que Kant relegue a felicidade ao telão de fundo de sua filosofia moral (Heller, 1991: 100), que a felicidade seja imprópria para fundar a moral, o direito e a política (Sève, 2003: 469), cabendo isso apenas à liberdade. Tratar-se-ia da “regra da prioridade”, da precedência absoluta da liberdade sobre a felicidade, defendida por filósofos deontológicos e liberais (Rawls, etc.). Procedendo assim, Kant contribui para a consolidação de um bem muito caro à tradição do pensamento liberal na medida em que o Estado e a lei devem limitar-se a garantir o goze pacífico da liberdade individual. 
O humanismo kantiano pode ser considerado um “liberalismo compreensivo” porque se apoia numa doutrina moral profunda que dá por verdadeiras algumas teses fortes acerca da natureza humana e se compromete com valores específicos sobre o que dá valor à vida (Silveira, 2003: 92). Ou seja, assentada numa concepção numenal da pessoa através da qual é possível chegar a valores morais inquestionáveis (liberdade e dignidade). Tais valores sendo compatíveis com normas legais (a liberdade jurídica) e arranjos político-institucionais (a divisão dos poderes), permitindo, por sua vez, que seres fenomênicos em sociedade gozem de um bem que é bom em si, de todos e cada um: a liberdade individual. 
 
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