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Ética e Política 8 - Utilitaristas

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ética utilitarista e democracia
Fernando Quintana
Refletir sobre ética e democracia no decorrer da modernidade não pode prescindir de uma importante corrente do pensamento, o utilitarismo, que avalia as ações, normas, decisões e instituições não a partir de princípios morais universais, intouchables (Kant), mas conforme as circunstâncias e vantagens obtidas pelos indivíduos ou a sociedade. Trata-se de abordar um tipo de ética que se tornou “dominante - e, inter alia, a teoria da justiça mais influente - há bem mais de um século” (Sen, 2000: 77). [1: Ou seja, “algo” é útil se aumenta a felicidade da sociedade que decorre, por sua vez, do somatório dos interesses dos indivíduos. ]
Um tipo de ética que, vale insistir, se inscreve nas antípodas da moral kantiana: se você acredita em direitos universais, em que todos os seres humanos são merecedores de respeito, você, provavelmente, não é um utilitarista, não é errado tratar os seres humanos como instrumentos da felicidade coletiva (Sandel, 2012: 135). 
A partir destas observações iniciais, procuramos mostrar como do utilitarismo “radical’ de Jeremy Bentham dá-se uma “democracia protetora” ligada ao liberismo econômico, baseada no direito de propriedade privada e liberdade de contratar diferentemente do utilitarismo “humanista” de John Stuart Mill em que se dá outro tipo de democracia, a “d´épanouissement de la personalité” ligada ao liberalismo político, baseada na liberdade individual (Macpherson, 1985: 29-98). 
A reflexão de Bentham se inscreve num contexto dado pelo temor antecipado que provoca o avanço de setores menos abastados da sociedade inglesa que exigem maior participação política. Prova disso, a poussée democratique dada pela primeira Reform Act de 1832 que amplia o sufrágio e se intensifica com o movimento cartista (“Carta do Povo” de 1838), que exige o sufrágio universal e o voto secreto. Tal situação, como veremos, podendo trazer restrições ao direito de propriedade, base da riqueza, e que, na sua opinião, constitui uma “parcela” da utilidade ou felicidade.[2: Da evolução do voto na Inglaterra, conforme sucessivas Reforms Act, podemos registrar que, em 1832, houve: 40.000 eleitores; 1867: 2 milhões;1872: fim do voto secreto; 1884: direito de voto para os homens maiores de 21 anos, sem restrições de renda; 1919: direito de voto para as mulheres maiores de 30 anos; 1928: fim da desigualdade de idade entre homens e mulheres; e que, em 1969, houve o sufrágio universal para todos os maiores de 18 anos. ]
O utilitarismo emerge num ambiente intelectual de mal-estar que resulta da ausência de uma lei ou princípio capaz de dar conta, do ponto de vista gnosiológico, das profundas transformações políticas, sociais e econômicas da época e, isso à diferença do avanço das ciências naturais (lei da atração dos corpos de Newton). Este atraso pode ser ilustrado no fato de Bentham ter sido considerado o Newton da moral: “O princípio de utilidade é a lei fundamental da natureza humana como o princípio de gravidade é a lei fundamental da natureza física. Bentham teve a pretensão de ter sido o Newton das ciências sociais” (Prieto, 1996: 618). Sem esquecer o fato de o filósofo ter fundado uma escola (comparável à peripatética, kantiana, etc) que era inexistente, na Inglaterra:[3: A este respeito vale lembrar que as duas das principais obras de Bentham: Um fragmento sobre o governo e Uma Introdução aos princípios da moral e da legislação coincidem respectivamente com as datas da revolução nos EUA 1776 e da França 1789. No primeiro país, o autor troca correspondência com Adams e Madison, no segundo aporta ideias à Assembleia Nacional que o reconhece como “ilustre personalidade”. ]
Esse panorama modificou-se com o aparecimento dos utilitaristas ou radicais, como também foram chamados os membros de um grupo que, nos fins do século XVIII e começo do XIX, elaboraram um conjunto de teorias defendidas em comum aplicadas a vários campos de indagação filosófica e científica. O grupo dos utilitaristas trabalhava em vistas do mesmo fim e seus componentes uniam-se na reverência a seu mestre: Jeremy Bentham (Pesanha, 1989: VI).
A doutrina utilitarista pode ser resumida no afamado princípio: a maior felicidade possível para o maior número possível (Bentham, 1989: 3). A felicidade entendida, por sua vez, como prazer e ausência de sofrimento ou, como diz John Stuart Mil: entendo por ausência de sofrimento a privação do prazer (Mill, 1999: 45). A felicidade, então, pode ser definida como “qualquer coisa que produza prazer e que evite a dor”. Ambos, sofrimento e prazer, os dois “mestres soberanos”, que determinam o que fazemos e devemos fazer, o certo e o errado (Sandel, 2012: 48). 
Tal postulado é importante porque se encontra na base de uma moral que avalia ou, como diz Bentham, julga qualquer ação individual ou medida de governo como boa ou ruim. Uma máxima, portanto, que se inscreve nas antípodas da moral kantiana em que o cumprimento do dever moral é bom em si independente da felicidade ou bem-estar da sociedade.[4: Cumpre recordar que para Kant a república não se ocupa da felicidade dos cidadãos (à diferença do estado despótico ou eudaimonista que determina como os súditos devem ser felizes) mas deve, apenas, garantir a fruição da liberdade individual para cada um procurar a felicidade a sua maneira.]
A moral benthamiana tira seu fundamento na experiência: a natureza, afirma o autor, colocou a humanidade sob o domínio de dois senhores, a dor e o prazer, que sinalam o que devemos fazer; por um lado, as normas do bem e do mal (útil e não útil), e por outro lado, a cadeia de causas e efeitos que giram em torno deles. Com base nesta premissa, baseada na experiência, as condutas, decisões governamentais, etc, passam a ser avaliadas pelo “único critério racional e consistente” que dispomos, isto é, pelas consequências prazerosas ou dolorosas de qualquer ação ou decisão sendo que os significados das expressões valorativas (bom/mau, útil/não útil) só podem entender-se neste contexto (MacIntyre: 1994: 225). 
Para isso, o filósofo inglês elabora o “cálculo do prazer ou felicidade” que consiste em mensurar a soma de prazeres para definir a maior felicidade do maior número e, isso seguindo critérios objetivos tais como intensidade, duração, proximidade, certeza, pureza, fecundidade e extensão do prazer. Trata-se, em todos os casos, de dados que provêm da experiência que podem ser quantificados (Bentham, 1989:16; 18). 
Tal procedimento, mensurar prazeres individuais ou de grupos, não conseguiu contudo fazer de Bentham o “Newton da moral”, uma vez que a soma de prazeres tirados do cálculo hedonista da felicidade se assentam em premissas pouco sólidas: “uma ficção”, segundo o autor, “importante para o avanço do conhecimento”, mas, importa frisar, duvidosa quanto a sua comprovação empírica, por exemplo, como medir/mensurar objetivamente o felicific calculus dos estados mentais interpessoais da satisfação ou privação da felicidade? 
Apesar do utilitarismo benthamiano apresentar problemas no cálculo da felicidade não por isso abandona a pretensão de erigir o princípio de utilidade como lei universal: um intento de newtonismo aplicado às coisas da política e da moral, uma ciência que tem o caráter de ciência experimental e exata, análoga à física newtoniana (Halévy: 1901: 3). Uma regra, a maior felicidade do maior número, que vem à tona cada vez que somos confrontados a fazer avaliações da conduta do homem em geral mas também, como diz Bentham, das medidas ou decisões do governo ou, como destacam outros: 
A utilidade é uma tendência que se exerce em direção da felicidade (...) Nesse sentido, a utilidade é um princípio que preside à classificação de todas as instituições e que permite não apenas constituir teorias do direito, mas inspirar diretamente políticas e jurisdições (Cléro, 2003: 477). 
O utilitarismo se opõe ao jusnaturalismo e contratualismo. Com respeito ao primeiro, conforme Anarchical Fallacies de Bentham, porque o respeito incondicionalde direitos naturais imutáveis pode constituir um empecilho à consecução da felicidade. A crítica benthamiana aos direitos do homem das declarações americana e francesa deve-se ao fato de trata-se de direitos abstratos que não levam em conta a experiência e, por conseguinte a realização da utilidade. Sendo assim, tais direitos podem ser sacrificados em função da utilidade: as pessoas podem dizer que acreditam em alguns direitos absolutos, mas esses direitos valem na medida em que podem maximizar a felicidade (Sandel, 2012: 48-49). 
Para o positivismo benthamiano não há direito fora da norma legal. A compatibilidade entre direito e felicidade é possível porque o direito enquanto norma positivada (não natural) contribui para a felicidade, assim, por exemplo, a norma jurídica que garante o direito de propriedade, base da riqueza, que, como vimos, constitui uma “parcela de felicidade”. Para o autor não existem direitos naturais imprescritíveis porque não pode haver leis irrevogáveis. A meta da sociedade sendo a felicidade podem ser revogados aqueles direitos que não contribuam para tal fim. Toda lei, afirma, é uma limitação da liberdade, fazer desta última um direito sagrado e inviolável (Kant) pode arruinar a autoridade do legislativo, encarregado de fazer leis em favor da utilidade. 
O positivismo benthamiano implica uma separação da moral e direito pelo fato de que todo saber se origina na experiência - as normas jurídicas e condutas delas decorrentes são válidas na medida em que trazem vantagens concretas. Tal avaliação prescinde, portanto, de qualquer juízo supra sensível, de uma moral a priori, em que as normas são avaliadas a partir da sua conformidade com deveres e/ou direitos naturais. 
Para Bentham: os direitos naturais é uma “pomposa tolice”, uma “metáfora perigosa”: falar de direito natural é dar força à consciência, aos impulsos de cada um tomar as armas contra toda lei que não lhe agrade. O direito que vale é o direito que cada um possui efetivamente e torna possível àquelas ações que levam ao bem da sociedade (Bentham, 1993: 148-157). Assim, da perspectiva benthamiana:
(...) não pode haver lugar para direitos que tem como base a essência do homem já que todo conhecimento provém das realidades singulares através dos sentidos, o único que pode conhecer-se portanto do mundo do direito são as leis estabelecidas publicamente pela sociedade e conhecidas através da experiência sensível (Correas, 1994: 51-52). 
Em relação ao contratualismo, o estado como produto de contratus originarius (kant), o empirismo benthamiano o rejeita pelo fato da impossibilidade de ser provado historicamente e mesmo que comprovado ficaria o problema de saber por que os homens devem cumprir o pacto. Com base nesta observação, a única possibilidade de se admitir o contrato estaria dada pelo fato de trazer vantagens para a sociedade, contudo esta possibilidade é rejeitada pelo autor uma vez que a sociedade, como diz Bentham, ela já está sempre lá. 
Juntando ambas as críticas podemos dizer que não é porque os homens terem direitos naturais que os governos foram criados mas foram criados porque não tinham direitos, e no que diz respeito à criação do estado que ela não é resultado do contrato mas, ao igual que Edmund Burke, do costume: “um grupo de homens obedecer outro grupo de homens durante o transcurso do tempo” ou, como afirma o filósofo David Hume, contrário a teoria contratualista do estado, “os homens nascem necessariamente em uma familia”, sem esquecer, também, que para o filósofo inglês os governos, na sua origem, começaram pela força (Bentham, 1993: 157 -158).
Esta crítica aparece igualmente em Um fragmento sobre o governo quando afirma que a ficção dos direitos naturais e do contrato subtraem o poder do legislativo tido como a verdadeira e única fonte do direito, indispensável para a felicidade. Assim, do ponto de vista benthamiano, toda ideia de lei natural ou de contrato original é um ideia falsa: não existe direito natural anterior à criação ex nihilo de direitos e obrigações para o soberano, sendo que este último se encontra ligado pelo sistema dos interesses e das necessidades que consegue satisfazer (Laval, 1994: 30). 
Prova disso, quando se refere à fonte política da felicidade em Um fragmento sobre o governo, sob o título: “A maneira como uma assembleia deve proceder na formação de suas decisões” (capítulo VI). Isto é, uma situação em que pessoas são avaliadas em função de medidas que tomam em prol da utilidade ou felicidade. 
 
Bentham acredita que a natureza humana é movida pelo desejo de poder, de cada um fazer valer seu interesse em detrimento dos outros. Tal premissa quando levada ao campo político faz que o detentor do poder coloque seu interesse pessoal por cima do interesse geral, como afirma Bentham em Constitucional Code:
Todo organismo composto de homens, incluso àquele que tem o poder de legiferar e de governar se deixa levar pela ideia que tem do seu interesse, no sentido mais estreito e mais egoísta do termo, e jamais pela menor consideração do interesse dos outros (Macpherson, 1985: 44). 
Com base nesta visão realista da natureza humana e dos detentores do poder, o autor propõe um remédio: a democracia que evita o triunfo do interesse dos governantes e impede dois males ligados ao exercício do poder - a corrupção e a opressão -, como destacam vários estudiosos: partindo de tais convicções e graças ao desenvolvimento do princípio de utilidade Bentham procura fundar uma adesão radical à democracia (Cléro, 2003: 479). 
Efetivamente, diante da monarquia inglesa que privilegia o interesse de poucos e cuja separação de poderes é insuficiente para realizar o bem-estar, o autor propõe alguns “mecanismos contra o mau governo” que permitam a junção de ambos os interesses: governantes e governados. A chamada “benevolência benthamiana” procura evitar o descompasso entre esses interesses, apesar da visão realista da natureza humana e dos detentores do poder.
Contra o aumento desigual na repartição das vantagens à sociedade que caracteriza à monarquia e em favor do aumento da democracia nas instituições políticas, defendido em Plan of parliamentary reform, Bentham prevê uma série de medidas, a partir das primeiras décadas do século XIX, que podem ser resumidas no seguinte comentário: 
O voto secreto, o sufrágio universal que queria estender às mulheres apesar dos preconceitos da sua época, a igualdade territorial dos distritos, as eleições anuais eram todas medidas necessárias para acabar (com o descompasso entre interesses dos deputados e dos eleitores). Sua reforma radical dava ao poder legislativo, que depende do povo, uma ‘omnicompetência’, que encontrava freio apenas na constituição. Não havia mais Câmara dos Lordes, mas só uma Câmara de deputados escolhidos pelo sufrágio universal que votam a lei e designam o primeiro ministro à frente do governo e da administração (Laval, 1994: 101-102). 
O voto universal e secreto é importante porque funciona como garantia contra o mau governo, ele produz autenticidade na manifestação do interesse do eleitor diante da pressão de grupos dominantes, além do mais a eleição periódica dos representantes e sua remoção contínua evita o triunfo de “interesses sinistros” (sinister interest) ou particulares. A vantagem do sistema representativo está dada pelo fato de assegurar que cada decisão do representante seja tida como decisão própria do eleitor, uma junção de ambos os interesses, que faria possível a felicidade do maior número. Sem esquecer a liberdade de opinião e de imprensa, defendida também por Bentham, que permite fiscalizar a atividade dos governantes, sendo que tal liberdade, importa frisar, não se funda no direito natural, mas na utilidade que possa trazer para o interesse geral (Prieto, 1996: 621). [5: Bentham em 1809 é favorável à limitação do voto: só para os proprietários que pagam impostos, exclui os pobres, os iletrados e as pessoas que se encontram na dependência de outras e, também as mulheres.Apesar de pronunciar-se em favor do sufrágio universal para os homens, em 1820, manifesta, em várias oportunidades, que o voto deve ser limitado aos proprietários, contudo era consciente que esta medida seria dificilmente aceita porque implicava uma privação para a maioria dos homens adultos. ]
O autor prevê também a criação de um “tribunal da opinião pública” cuja função é dar publicidade aos atos do governo. Tratar-se-ia, segundo comentadores, de uma versão democrática do Panóptico benthamiano em que os governantes são “submetidos ao olhar e expostos a critica do povo”. Uma instituição que não se limita a condenar moralmente a conduta dos representantes, mas com força suficiente para colocar e tirar deputados quando fazem valer seus interesses sobre os interesses da sociedade ou praticam a corrupção. 
Por último, defende uma burocracia em que a seleção dos funcionários é feita seguindo dois princípios: mínimo de confiança e máximo de controle, na sua relação com o governo. Única maneira, segundo Bentham, junto com o recrutamento por concurso e remuneração acorde com o cargo, de dar unidade ao estado e utilidade a cada função (Laval, 1994: 120). 
Exposto em grandes linhas o modelo benthamiano vale destacar certas discrepâncias que suscita no contexto em que foi elaborado: o nascimento e desenvolvimento de um tipo de sociedade, a sociedade do laissez-faire, laissez-passer, que se assenta numa concepção competitiva do homem centrado na realização do seu interesse particular (Macpherson, 1985: 31). Esta correlação é pertinente se levamos em conta a opinião de que o princípio de utilidade funciona corretamente de modo espontâneo no âmbito econômico, porque os interesses se encontram livremente conciliados pelo mercado (Prieto, 1996: 620). 
Sobre esse tipo de sociedade importa lembrar algumas premissas smithianas. Assim, em Teoria dos sentimentos morais, quando o autor declara que cada pessoa deve ser primeira e deixada ao seu próprio cuidado; cada pessoa é mais apta e capaz de cuidar de si do que qualquer outra pessoa. Tal posição, quando levada ao campo econômico, implica uma crítica a qualquer regulamentação do governo que procure proteger ou beneficiar certas atividades ou grupo de indivíduos, uma vez que se criam privilégios que impede de cada um cuidar de si (Singer, 1978: XI). 
Segundo Investigação sobre a natureza e causas das riquezas das nações Smith afirma que o bem-estar da nação depende de sua riqueza; o produto da riqueza está dado pela soma dos produtos dos habitantes; cada habitante tem interesse em maximizar seu próprio produto se é deixado em liberdade; na realização desse objetivo só pensa em seu próprio ganho e é conduzido por uma mão invisível a promover um fim que não estava previsto, isto é, o bem-estar da sociedade (Cropsey, 1992: 611). 
Tais postulados da economia política clássica, segundo críticos, servindo aos interesses dos manufatureiros primeiro e mais tarde dos industriais (século XIX): uma mudança em que os escritos benthamianos parecem antecipar o que vai acontecer - a revolução industrial (1850) que traz consigo uma poussée démocratique dos menos favorecidos da sociedade, que exigem maior participação política.
A benevolência benthamiana, a maior felicidade para o maior número, com o triunfo da sociedade do mercado ou laissez-faire, tendo o “infortúnio” de dar-se no contexto do liberismo econômico:[6: O termo liberismo é utilizado pela literatura italiana (Croce, Bobbio, Bovero, Sartori) para designar aquela “parte” do liberalismo relativo à economia, o laissez-faire, laissez-passer, uma sociedade livre, de mercado baseada na liberdade ou independência econômica. ]
O princípio de Bentham, com efeito, não possuía apenas um valore prescritivo, mas também um valor explicativo: aquele pelo qual ele reencontrava a economia política colocando à frente o egoísmo de cada agente orientado ao crescimento do seu proveito (...) a economia política tinha fixado seus princípios na ênfase dada a esse comportamento interessado. Ela sustentava que, na esfera da produção e da troca, os agentes econômicos são determinados unicamente pela busca de seus interesses sob a forma de proveitos materiais (grifo do autor) (Caillé; Lazzeri; Senellart, 2003: 31).
O triunfo do liberismo implica normas jurídicas e um regime político, a “democracia protetora” (Machperson), em que certos direitos devem ser protegidos, notadamente, a propriedade privada e liberdade de contratar. Assim, diante do dualismo: igualdade e proteção, no contexto da sociedade do laissez-faire, esta última tem prioridade sobre a primeira, a função da lei e governo é dar proteção a ambos os direitos - compatíveis com este tipo de sociedade. 
Os princípios da economia política clássica são endossados por Bentham em Defesa da usura, obra contemporânea aos escritos smithianos ao afirmar, por exemplo, que o homem é o melhor juiz de seus próprios lucros e que é desejável, do ponto de vista público, obtê-los sem interferência do governo. Trata-se da solution smithiana, da não regulamentação ou intervenção no andamento da economia, o mercado, que deve ser regido exclusivamente pela lei da oferta e da procura numa sociedade na qual cada segue seu interesse particular. 
Em reforço disto cabe insistir que os bens materiais ocupam um papel decisivo no utilitarismo benthamiano: “cada parte de riqueza, afirma, corresponde a uma parte de felicidade”; “o dinheiro é o instrumento que permite medir a dor ou o prazer” e quando arremata na mesma obra - “quem não entenda isso deve dizer adeus à política e à moral”.
Assim, a riqueza material baseada na propriedade privada é o principal instrumento na consecução da felicidade. Prova disso, Uma introdução aos princípios da moral e da legislação em que o filósofo pergunta: qual é a razão que faz com que a propriedade tenha valor? Resposta: os prazeres de todas as espécies que a propriedade capacita um homem a produzir (Bentham, 1989: 18).
Retomando premissas benthamianas: riqueza e poder andam juntos; cada um deseja fortemente empregar os serviços de seus semelhantes para aumentar seu próprio bem-estar, podemos dizer que os “remédios democráticos”, previstos pelo autor (supra), não se cumpriram, mais ainda que tais pressupostos fazem de ele o “precursor da sociedade de classe”. Uma sociedade em que a proteção da propriedade privada, a liberdade de contratar e o desejo por mais riqueza são os principais fatores para assegurar um máximo de produtividade - felicidade (Macpherson, 1985: 42), mas sem por isso, vale destacar, trazer mais benefícios para toda a sociedade: 
A economia política de Bentham resume-se ao célebre imperativo do “laissez-faire”, é a palavra-chave, a mensagem que deve ser dada claramente ao governo (...) Com esse regime se chegará a uma nação rica, portanto a nacionais enriquecidos! É difícil ver como dessa proposta política poderia sair o aumento da felicidade da maioria! Ou de que maneira a riqueza de um punhado significa a riqueza da maioria (Onfray, 2013: 116).
O predomínio do espírito aquisitivo de bens, numa sociedade marcada pela existência de classes, faz que os proprietários da riqueza (industriais) sejam os mais beneficiados em detrimento daqueles, proprietários da força de trabalho, que tem apenas esta “mercadoria” para oferecer no mercado. A este respeito, cabe lembrar, o “grupo manchesteriano” (grupo de industriais) que, no início da década do século XIX, exige “liberdade absoluta para seus negócios” e prática uma política contra os trabalhadores para reduzir custos (jornadas de 17 horas, emprego de mulheres e crianças, repressão de associações operárias, etc)- que levou a condições de miséria a classe trabalhadora diante dos avanços industriais (Prieto, 1996; 616).[7: Tal grupo põe em prática, também, o truck sistem que permite o empregador manter o empregado em trabalho de servidão por dívidas contraídas. ]
Tratar-se-ia, portanto, de uma sociedade em que o direito de propriedade e liberdade de contratar são colocados como invioláveisdiante das tendências democráticas e niveladoras da época (movimento cartista). O modelo político benthamiano, que visa teoricamente a felicidade do maior número, fica reduzido a um regime de proteção da propriedade que beneficia alguns. Em tal contexto, a sociedade de mercado, a tarefa do governo e função das leis não é outro que o de proteger este direito e a realização os contratos. Opinião esta que é endossada por outro importante representante do utilitarismo radical, James Mill, para quem a “propriedade é uma instituição que se legitima por sua utilidade, sendo função essencial protegê-la e deixar ao proprietário em liberdade para que possa perseguir seu interesse pessoal” (Prieto, 1996: 622). 
Em reforço da crítica machpersoniana à “democracia protetora”, convém trazer mais uma vez a posição de James Mill segundo o qual a vantagem do exercício do sufrágio está no fato de cada indivíduo ficar protegido do poder dos outros e dos governantes. Tal assertiva pode ser interpretada no sentido do sufrágio ter uma função protetora e integradora já que a propriedade e liberdade de contratar são compatíveis com a sociedade de classe. Assim, cabe citar a proposta de James Mill: direito de voto para os homens maiores de 40 anos e, isso com o intuito de “não assustar” os proprietários e apaziguar as tendências niveladoras e democráticas dos menos favorecidos da sociedade que exigiam, como vimos, maior participação política e melhores condições de trabalho (Carta do Povo).[8: As reforma de James Mill excluía o direito de voto das mulheres e, quanto à limitação do voto a homens maiores de 40 anos tal medida podia significar uma diminuição do número de eleitores da classe operária em proporção maior daqueles da classe mais abastada, tendo em conta a menor proporção de pobres que atingem essa idade (Machperson, 1985: 50) ou, segundo opinião de outros críticos: a solução proposta por James Mill consistia simplesmente em estender a representação à classe média industrial, tida pelo autor como a parte mais sábia da comunidade (Sabine, 1984: 506). ]
Quanto ao perigo desta tendência acontecer convém trazer a posição de Bentham em Constitucional code: “Quando a prosperidade geral atinja o mais alto patamar, a grande massa de cidadãos não contará com mais recursos que os provenientes de seu trabalho e, assim se encontrará no limite da indigência” (Macpherson, 1985: 36).
Esta crítica ao utilitarismo encontra respaldo no fato de que a propriedade privada a pesar de trazer felicidade não implica uma distribuição mais equitativa da riqueza. Efetivamente, importa destacar que para a versão radical, canônica, do utilitarismo o bem-estar é independente da forma como são repartidos ou distribuídos os bens. A este respeito, o seguinte exemplo: uma sociedade de três indivíduos em que um deles obtém quatro unidades de totalidade de bem-estar e os outros nada é melhor que outra sociedade em que cada um de seus três integrantes tenha uma unidade de totalidade de bem-estar. O problema do utilitarismo é de ser meramente agregador (a soma de unidades de bem-estar) sem preocupar-se pela distribuição das unidades de bem-estar (Nino, 1989: 241; 242). Tal aspecto é destacado por vários autores: existe na concepção utilitarista da justiça uma indiferencia distributiva - “importa apenas a soma total, independentemente do quanto sua distribuição seja desigual” (Sen, 2000: 81).
Quanto à sociedade triunfante no século XIX ela se apoia em certos pressupostos que vale lembrar: aceitação da sociedade de mercado; concepção egoísta do homem na procura de bens materiais com interesses particulares e conflitantes entre si sendo sua meta obter o maior grau de prazer ou felicidade individual. 
Com base nestas premissas, o regime político passa a ser concebido na sua dimensão procedimental: o melhor arranjo institucional para escolha dos governantes cuja tarefa é resolver pacificamente os desejos e interesses conflitantes da sociedade, sendo que as decisões não devem interferir no livre funcionamento do mercado. O principal objetivo do governo é garantir certos direitos individuais, a propriedade privada e a liberdade de contratar que se encontram, vale reiterar, na base da riqueza e da felicidade. Em tal contexto, a liberdade assume um viés nitidamente negativo no sentido da ausência de interferências externas do governo no comportamento dos indivíduos. 
O problema do utilitarismo benthamiano, preocupado com o bem-estar da sociedade, radica no fato de colocar a riqueza, baseada na propriedade, como fundamental, tal situação faz que seja difícil conciliar tal direito com a felicidade do maior número, uma vez que numa sociedade de classe a propriedade da riqueza fica restrita a uma parcela da sociedade. Sem esquecer que a maximização do bem-estar pode levar a uma instrumentalização de indivíduos se o beneficio a ser obtido pelos mais abastados é superior, ou seja, se há um incremento da utilidade social. 
A democracia, baseada em premissas utilitaristas, parece dar munição à “sociedade de classe” já que no contexto da sociedade de mercado são os proprietários de bens e riqueza os maiores beneficiados porque contribuem mais que outros para o “bem-estar geral”. Tratar-se-ia de uma sociedade, segundo críticos, em que os valores “não vão além de um apêndice da riqueza”. Riqueza, aliás, que fica limitada a uma parcela da sociedade que, enquanto proprietária de bens materiais, se apresenta como porta-voz do interesse comum. 
O espírito benevolente benthamiano: cada indivíduo deve perseguir sua própria ideia do bem junto a outros com a finalidade de atingir o bem-estar geral converteu-se, com o decorrer da sociedade de mercado, em “espírito aquisitivo”, lembrando Aléxis de Tocqueville, uma sociedade que dá vazão à satisfação de prazeres pequenos e vulgares dos indivíduos que resultam da procura e aquisição de bens materiais. A benevolência benthamiana em vez de altruísta, de favorecer a felicidade ou bem estar de muitos, é substituída pela felicidade individual, voltada para si, que não se interessa pelo bem-estar do outro mas pelo bem-estar próprio, baseado na aquisição e gozo de bens materiais. 
Voltando ao confronto do início, kantismo-utilitarismo, vale destacar a “desconfiança” que suscita este último para os partidários do primeiro que, em nome do princípio de utilidade, bem-estar, a dignidade e liberdade, valores morais intocáveis, podem sofrer restrições. A justiça que acena o imperativo moral kantiano da liberdade não admite que fique à mercê de um princípio teleológico, empírico, a utilidade, que muda em função das circunstâncias e vantagens a serem usufruídas pela sociedade.
Tal postura, de inspiração kantiana, é acompanhada por vários críticos que condenam o utilitarismo por não levar os direitos humanos em sério ou, ainda porque sacrifica ou instrumentaliza as pessoas em nome de um suposto bem coletivo (Carvalho, 2000: 99). Em reforço desta crítica, cumpre lembrar, que o utilitarismo benthamiano não aceita que a felicidade fique atrelada a princípios abstratos, imutáveis, os direitos naturais, à diferença do direito positivo que é avaliado em função do resultado que pode trazer: a felicidade. 
Diferentemente de “doutrinas kantianas” que defendem a primazia do justo (fair), do direito (right), o utilitarismo defende a primazia do bem (good). Sendo assim, a justiça é tida como resultado de um cálculo racional que, através de meios adequados, torna possível a maximização do bem-estar total ou médio do grupo sobre o qual incide. Em contraposição da tradição kantiana que, baseada numa racionalidade deontológica, ou seja, no dever irrestrito ao cumprimento de postulados morais não admite que fiquem sujeitos a uma finalidade: o bem-estar. Tratar-se-ia da regra da prioridade em que o justo e o direito tem prioridade sobre o bem. 
A continuação vale deter-nós na importante contribuição de John Stuart Mill (filho de James Mill) ao utilitarismo. Mais especificamente como a partir da defesa rigorosa que faz da liberdade individual é possívelum utilitarismo qualitativo e uma democracia desenvolvimentista, no sentido d´épanouissement de la personalité (Macpherson). 
Em contraste com o utilitarismo dos antecessores (Bentham e James Mill), John Stuart entende que não há “coincidência entre felicidade pessoal e à do maior número”, tal constatação faz que abandone a ideia que a comparação entre prazeres é ou pode ser estritamente quantitativa (MacIntyre: 1994:-228). O utilitarismo milliano representa uma mudança considerável na avaliação da felicidade: um utilitarismo qualitativo (não quantitativo) em que a felicidade não pode ser reduzida à soma do bem-estar de indivíduos ou grupo de indivíduos, mas ao desenvolvimento das capacidades humanas que passam pelo exercício da liberdade individual. Neste sentido, o bem-estar não pode ser assimilado à prosperidade econômica já que este conceito inclui outros aspectos que não são econômicos. Tratar-se-ia do famoso debate, até os dias de hoje, entre bem-estar, vida boa e liberdade. 
Para John Stuart há uma hierarquia dos prazeres sendo que os “prazeres superiores”, intelectuais e espirituais, tem precedência sobre os “prazeres inferiores” ligados ao corpo (Epicuro) ou “puramente materiais”. Apesar de admitir que melhoras materiais são importantes para a felicidade, o autor vai mais longe ao sustentar que a liberdade individual é fundamental para o desenvolvimento da pessoa. Tal posição faz com que a liberdade não possa ser sacrificada em nome do bem-estar, uma vez que ela torna possível o desenvolvimento das capacidades humanas que se encontram na base da felicidade. Para o utilitarismo qualitativo: desenvolver o próprio caráter e capacidade pessoal (que passa pelo exercício da liberdade) não é um meio para a felicidade, mas uma parte substantiva da felicidade (Sabine, 1984: 518). [9: A este respeito cabe contrastar o exemplo de Bentham: “o jogo de alfinetes é tão bom como a poesia se produz o mesmo prazer” diante de John Stuart que diz: “é melhor ser Sócrates infeliz que um bobo ou idiota infeliz”. Importa lembrar que os dois principais educadores do filósofo inglês (Bentham e seu pai) lhe proibiam de ler poesia: “obra da idiotece” e de “erros humanos”. Contudo, a hierarquização ou qualificação dos prazeres, defendida pelo autor, traz problemas porque a prática de qualquer jogo pode trazer mais prazer do que ler uma poesia, apesar desta ser considerada mais valiosa ou elevada (Sandel, 2010: 70).]
Sendo assim, o tratamento dado aos direitos muda no sentido de não terem apenas uma relevância instrumental num contexto legal (Bentham), mas um valor normativo intrínseco (J.S.Mill). Tratar-se-ia de duas formas de ver os direitos. Na perspectiva benthamiana - a coerção nessa área será ou não aceitável dependendo totalmente de suas consequências em relação à utilidade ou, em perspectiva milliana - o respeito aos direitos é prioritário em relação a qualquer cômputo de consequências (Sen, 2000: 244). Utilitarismo consquêncialista versus utilitarismo normativo. 
O que preocupa a John Stuart é que “Bentham e James Mill não queriam outra coisa que o prazer obtido pelo método mais eficaz” fazendo com que a moralidade fique reduzida a um problema de fins e meios e esqueçam o mais importante: a capacidade do homem escolher a melhor forma que leve à felicidade. Assim, diferentemente de os dois autores, o mais relevante é o exercício da liberdade individual que supõe, vale reiterar, o desenvolvimento das capacidades humanas:
(...) quanto mais variadas sejam as formas (de escolher a felicidade) tanto mais ricas serão as vidas dos homens; quanto mais amplo seja o campo de interseção entre os indivíduos, tanto maiores serão as oportunidades de coisas novas e inesperadas; quanto mais numerosas sejam as possibilidades de alterar seu próprio caráter para uma direção nova ou inexplorada, tanto maior será o número de caminhos que se abrirão para cada indivíduo e tanto mais ampla será sua liberdade de ação e pensamento (Berlin: 1993: 15). 
Importa acrescentar que a visão da natureza humana milliana não se reduz ao desejo pelo poder e fazer valer o interesse pessoal sobre os outros (Bentham). Esta concepção estreita da natureza humana teria o inconveniente de não levar em conta os ideais comuns, as lealdades, o caráter nacional que, em sua opinião, fazem possível manter uma sociedade unida. Sem esquecer outra crítica milliana: Bentham não entende de honra, dignidade, de amor à beleza, somente compreende o aspecto negócio da vida (Berlin: 1993: 18).
A posição de John Stuart encontra eco no kantismo já que ambos os autores defendem a liberdade como um direito intouchable, porém existem diferenças: kant defende a separação da liberdade e felicidade, a primeira faz parte do mundo supralunar e não depende da segunda, que faz parte do mundo sublunar, para ser válida, enquanto para o filósofo inglês ambas são indissociáveis, se reforçam mutuamente, “no mundo”. Uma diferença que opõe empirismo versus transcendentalismo (kant) (Berlin, 1981: 179). 
Além do mais do rigorismo moral kantiano resulta uma “ética do sofrimento” para ganhar a eternidade - da ótica kantiana: tempo de viver é tempo de sofrer, a “moral kantiana não mostra o caminho da felicidade, mas, pelo contrário o sacrifício e o esforço, que nos farão dignos ao final de ser felizes” (em outro lugar). Em reforço disto vale lembrar que kant defende a “imortalidade da alma” como prêmio da pessoa respeitar os imperativos categóricos diferentemente da moral utilitarista da qual resulta uma “ética da felicidade” para este mundo - da ótica milliana: ética é arte de viver (grifo do autor) (Guisán, 1999: 10; 11). 
 
John Stuart propõe um compromisso entre liberalismo e democracia: uma conciliação da liberdade individual e a integração progressiva dos menos favorecidos da sociedade através do “voto plural” que cumpre uma função didática - dada pelo grau de instrução do eleitor. A democracia milliana visa à possibilidade de cada indivíduo desenvolver suas aptidões ou qualidades através do exercício da liberdade individual e também da participação política, o voto, cujo peso vai depender do preparo do eleitor. Tal medida, o voto plural, tendo como objetivo que maiorias mal preparadas, poucas instruídas, façam valer seus interesses em detrimento das minorias. 
As principais obras do autor - Considerações sobre o governo representativo, Sobre a liberdade, e O utilitarismo - mostram que forma de governo, liberdade individual e prazeres superiores andam pari passu, são indissociáveis. A importância da democracia representativa não se deve ao fato de ser o instrumento mais eficaz para o bem-estar (Bentham, James Mill) mas, porque permite o exercício da liberdade individual e por tabela o desenvolvimento das capacidades, sem esquecer que o voto plural tem como objetivo evitar que interesses das minorias sejam sufocados pelos da maioria. Trata-se do contraste “despotismo da maioria” e “governo por meio do debate”, que supõe não apenas o respeito das minorias mas ter representantes com suficiente preparo moral e intelectual.
Quanto ao tipo de liberdade defendida pelo autor ela diz respeito à conhecida fórmula de Benjamim Constant da liberté des modernes ou, “liberdade negativa” que consiste na “área em que um homem pode agir sem sofrer a obstrução de outros”, sendo que a “coerção é a deliberada interferência de outros seres humanos na área em que eu poderia atuar” (Berlin, 1981: 136). Tal concepção da liberdade pode ser ilustrada no seguinte comentário que aparece na Introdução Sobre a liberdade:
Mill acredita na liberdade, ou seja, numa rigorosa limitação do direito de coerção, porque está seguro de que os homens não podem desenvolver-se e chegar a ser completamente humanos ao menos de encontrar-se livres de interferências por parte dos outros homens de uma esfera mínima de suas vidas, que ele considera - ou deseja tornar - inviolável (Berlin: 1993: 30). [10: Apesar de Berlin discordar de John Stuart de que a coerção seja algo “ruim emsi”. ]
No que concerne à propriedade, cumpre destacar que John Stuart diverge da opinião dos fundadores do utilitarismo: a propriedade como um direito exclusivo. O “princípio equitativo” da propriedade, proposto pelo autor, significa que a propriedade deve assegurar aos indivíduos “os frutos de seu próprio trabalho” e não “os frutos do trabalho dos outros”. Assim, a propriedade pode ser aceita sempre e quando exista uma repartição dos frutos do trabalho entre assalariados e os detentores do capital (Macpherson, 1985: 70). 
A democracia milliana se funda no governo de expertos, isto é, um governo, não eleito, formado de pessoas com experiência e bom preparo cabendo ao povo controlá-los através de deputados escolhidos periodicamente. A importância do legislativo é que funciona como um Congresso de Opiniões, que discute diferentes pontos de vista que se relacionam com os negócios públicos, e Comitê de Queixas diante das demandas da sociedade. A este respeito afirma em Considerações: 
Ao “ter uma mostra proporcional de cada grau de intelecto que tem direito a uma voz nos negócios públicos”, sua função seria “indicar as carências, ser órgão das demandas populares e usar de discussão adversa de todas as opiniões relacionadas com os assuntos públicos” (Magid, 1992: 746). 
O “voto plural”, cada voto depende do grau de instrução ou formação do eleitor, faz com que a escolha dos mais preparados seja unificada - a representação pessoal. Tal medida, junto com o “voto não secreto” fazendo possível uma maior responsabilidade do eleitor. As propostas de John Stuart não visam apenas dar uma resposta à poussé democratique da época, que exige maior participação política, mas um regime político que, de forma progressiva, paulatina, consiga incorporar cidadãos mais preparados à vida política. [11: John Stuart é favorável à exclusão do voto daqueles que dependiam da assistência pública e dos que não sabiam ler nem escrever, mas era favorável ao voto das mulheres sem explicar, contudo, porque o voto das mulheres com menos preparo ou instrução devia valer mais. Tal atitude pode ser justificada, talvez, pelo fato do filósofo inglês ser um defensor do feminismo sobretudo depois de conhecer sua mulher Harriet Taylor, da qual recebeu forte influência. Ambos defendiam a igualdade do homem e da mulher no casamento e também a necessidade de equiparar os direitos deles na vida pública. ]
Prova disso é que a sociedade “deve dar educação básica para todos àqueles que o desejam”. Tal proposta sendo compatível com o desenvolvimento das capacidades da pessoa uma vez que se trata de formar eleitores com preparo suficiente para participar das deliberações públicas: 
Ser deixado de fora da Constituição é um grande desencorajamento para um indivíduo e ainda maior para uma classe; bem como ser obrigado a implorar aos árbitros de seu destino, sem poder tomar parte da deliberação. O ponto máximo do efeito revigorante da liberdade somente é alcançado quando o indivíduo por ela ativado (e, também pela educação) tornou-se, ou está procurando tornar-se, um cidadão de privilégios tão plenos quanto qualquer outro (Mill, 1989: 222). 
Para o autor, a liberdade de pensamento, opinião, discussão são fundamentais para o funcionamento do regime representativo porque, cumpre reiterar, a existência de vários pontos de vista enriquece a atuação do legislativo encarregado de atender as demandas da sociedade. O pluralismo, a diversidade de opiniões, além de fundamental para o “progresso do conhecimento e da civilização”, enriquece a vida política: 
Na política é quase um lugar-comum que um partido da ordem ou da estabilidade e um partido do progresso ou da reforma sejam elementos necessários ao estado saudável da política; até que um ou outro tenha alargado tanto seu poder intelectual que possam ser ao mesmo tempo um partido da ordem e do progresso, distinguindo o que merece ser conservado e o que dever ser descartado. Cada um destes modos de pensar deriva sua utilidade das deficiências do outro, mas é, em grande medida, a oposição do outro que mantém cada um dentro dos limites da razão e da sanidade (...) A verdade, nos grande domínios práticos da vida, é de tal modo uma questão de conciliar e combinar contrários (Mill, 1993:113).
A este respeito, cabe lembrar um ponto em comum entre Kant e John Stuart Mill: a importância do governo representativo. Um tipo de governo que, à diferença do “ditador benévolo”, a “ditadura da maioria”, mesmo promovedores da felicidade, tratam os indivíduos como “minores de idade” (Kant), incapazes de “desenvolver as capacidades humanas” (Mill). 
À diferença do despotismo que implica passividade: “Um homem de atividade mental sobre-humana dirigindo todos os afazeres de um povo mentalmente passivo”, a democracia supõe “indivíduos livres” (“maiores de idade” diria Kant), em que os altos objetivos que devem cultivar, excelência intelectual, prática e moral, requerem um caráter ativo (Magid, 1992: 745): 
(...) dentre os dois tipos comuns de caráter, qual seria desejável que predominasse - o ativo ou o passivo - aquele que combate os males, ou aquele que os suporta: aquele que se curva às circunstâncias, ou aquele que se esforça para que as circunstâncias se curvem (...) Não pode haver nenhuma dívida de que o tipo passivo de caráter é preferido pelo governo de um ou de poucos e que o tipo de ativo e independente é preferido pelo governo da maioria (popular) (Mill, 1989: 221). 
O “progresso da coletividade” tão almejado por John Stuart deve ser compreendido no contexto da sua reflexão: a exigência de maior participação política proveniente dos setores menos preparados e abastados da sociedade. Sendo assim, a proposta de “ampliação da instrução básica” pode ser entendida no sentido da sociedade contar, paulatinamente, com cidadãos cada vez mais qualificados para participar da política e fazer uma “boa escolha” através do voto. A melhor formação do eleitorado permitindo ademais que o voto seja paulatinamente mais igualitário - frente ao “voto plural”. 
O utilitarismo qualitativo milliano segundo o qual a felicidade e o desenvolvimento das capacidades humanas caminham pari passu encontra eco no liberalismo democrático - uma democracia progressivamente mais inclusiva respeitosa da liberdade individual, que exige cidadãos preparados intelectual e moralmente. Caso contrário, a maioria pouca instruída e menos abastada da sociedade escolher representantes pelo sufrágio igualitário que faça prevalecer seus interesses sobre a minoria, a chamada “tirania da maioria”, baseada na soberania popular:
Foi contra este tipo de tirania que Stuart Mil escreveu as páginas veementes de sua obra Sobre a liberdade, denunciando a propensão do povo à homogeneidade dos gostos, valores e interesses, além do ódio persecutório por toda sorte de diversidade moral ou mesmo pela mera opinião (Ostrensky, 2013: 51). 
Trata-se de uma situação, o “despotismo da maioria”, em que o respeito da liberdade individual, base do desenvolvimento da pessoa e do progresso civilizatório, pode sofrer restrições.
Talvez, o mais importante que deixa o utilitarismo “humanista” de John Stuart é a não instrumentalização dos direitos (liberdade de pensamento, opinião, etc) que têm valor intrínseco na consecução da felicidade. Tal aspecto sendo endossado por economistas contemporâneos que, seguindo a trilha inaugurada pelo filósofo inglês, resistem ver no crescimento econômico um fim em si mesmo, a principal senão a única condição para Desenvolvimento como liberdade (Sen, 2000: 29). 
A liberdade como “processo de expansão das liberdades reais” implica um conjunto de liberdades substantivas (liberdades políticas; facilidades econômicas; oportunidades sociais; garantias de transparência; segurança protetora) (Sen, 2000:11) sem as quais não é possível “ampliar e reforçar a capacidade geral de uma pessoa” (Kuntz, 2000:4). Em termos millianos: l´épanouissemente de la persolanlité (Macpherson). 
Ou, ainda, acompanhando o economistaindiano, em A ideia de justiça, uma sociedade justa no pode dar-se fora de o governo por meio do debate - “para cuja promoção John Stuart Mill muito contribuiu”. Um governo, em que as liberdades das pessoas (opinião, etc) enriquecem o debate através das “melhorias da disponibilidade informacional” e da “factibilidade de discussões” (Sen, 2010: 15). Lembrando o filósofo inglês: pelo nível de preparo dos cidadãos e pela discussão adversa das opiniões relacionadas com os assuntos públicos. 
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