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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA MODOS DE HABITABILIDADE DOS GRUPOS CERAMISTAS: DISPERSÃO E DINÂMICA DUNAR NA PRAIA DE FLECHEIRAS, EM TRAIRI, NO CEARÁ EVERALDO GOMES DOURADO Laranjeiras (Se) 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA MODOS DE HABITABILIDADE DOS GRUPOS CERAMISTAS: DISPERSÃO E DINÂMICA DUNAR NA PRAIA DE FLECHEIRAS, EM TRAIRI, NO CEARÁ EVERALDO GOMES DOURADO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em ARQUEOLOGIA como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Arqueologia. Orientador: Prof. Dr. Jenilton Ferreira Santos Co-orientadora: Profa. Dra. Suely Gleyde Amancio Martinelli Agência financiadora: FAPITEC; CNPQ; CAPES Laranjeiras (Se) 2015 Dedico essa pesquisa a minha avó Ana Gomes da Costa (in memoriam) que além dos primeiros passos me ensinou o gosto pela história. AGRADECIMENTOS Muitas pessoas colaboraram com essa pesquisa, direta ou indiretamente e foi graças a cada um delas que essa pesquisa amadureceu, ganhou formas e atingiu os objetivos. Ligia Holanda, o teu apoio tem sido fundamental dentro e fora dessa pesquisa. Do “empurrão” para inscrição na seleção do mestrado, passando pelas idas ao campo para prospecção e desenho de croquis, do carinho nos momentos mais difíceis frente à pesquisa ... Muito obrigado pela paciência, pois teu companheirismo e amor foram fundamentais para a pesquisa e para o pesquisador. Aos meus pais, D. Maria e ao S. Geraldo, que desde o princípio acreditaram nessa empreitada e sempre me apoiaram em todos os momentos, fossem bons ou ruins. Pela orientação do Prof. Dr. Jenilton Ferreira e a sua paciência frente as minhas limitações e angústias com essa pesquisa. Ao acolhimento da Profa. Dra. Suely Amancio Martineli durante esse trabalho, com as suas sugestões e entusiasmo. A Profa. Dra. Marcélia Marques pelo apoio desde o início da pesquisa, pelas sugestões e a vibração durante todo esse processo. Obrigado a todo o PROARQ – UFS pelo meu amadurecimento como arqueólogo, com as discussões acadêmicas em sala com o Prof. Dr. Paulo Jobim, Profa. Dra. Márcia Barbosa, Dra. Profa. Olívia Carvalho e ao auxílio e paciência da ‘Leli’ no dia a dia do campus. Aos amigos de turma: Carlos Eduardo (Kadu), Janaina Coutinho, Bruno Barreto, Daiane Pereira, Luiz Rocha, Luiz Pacheco, Vani Piaia e Fernanda Libório, assim como as demais amizades que fizeram a minha estadia em Sergipe ter mais brilho, petiscos e muitas risadas. Aos amigos Railson Cotias, Jeanne Dias, Michel Platini e Luiz Angélico (Luizinho), fica um muito obrigado por tudo que vocês fizeram e que representam em minha vida. Não poderia deixar de agradecer aos amigos de longa data e que também me apoiaram: Dudé e Nenzinha, sem os meus padrinhos de casamento até a logística de campo dessa pesquisa não teria tido êxito, obrigado pela força e pelas boas risadas; ao Rafael Ricarte pelo companheirismo desde a faculdade de História e pela ajuda com a rara documentação enviada da Europa; ao João Correia pelos textos, a ida a campo e as dicas em Geomorfologia litorânea; Rafael Agostinho grato pela ajuda com a Biologia Marinha e o entusiasmo; ao Dr. Jefferson Lima, pelos mapas, as dicas em Geologia e pela amizade sincera; ao amigo Pedro Manoel Lima pela ajuda com a tradução e o companheirismo; à Uiara Garcia pela ajuda com as correções e a formatação; aos camaradas Agnelo Queiroz, Vitor Rafael Sousa e o Dr. Paulo Tadeu Albuquerque pelas sugestões bibliográficas e a identificação do material arqueológico. Agradeço ainda à Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe – FAPITEC, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, pela Bolsa concedida durante grande parte dessa pesquisa e em momentos distintos. RESUMO Na praia de Flecheiras, Ceará, foram identificados quatro assentamentos, resultantes das atividades de Arqueologia Preventiva na região. Esses assentamentos possuem características bastante similares quanto à implantação na paisagem e sua cultura material. Nos sítios arqueológicos Trairi I, II, III e IV, ocorre a predominância de cerâmicas filiadas à Tradição Tupiguarani e outra denominada de Cabocla, restos de lascamento, núcleos pouco utilizados e percutores na maioria em quartzo, além de malacológicos. Nesse contexto, todas as concentrações arqueológicas estão inseridas em meio a dunas móveis de origem holocênica. Nosso objetivo é realizar uma abordagem sobre o padrão de assentamento nesses sítios, com estudos em uma macroescala, abrangendo a relação dessas comunidades com o bioma em que estão inseridas, e em uma escala semi-micro, compreendendo os aspectos tecnológicos e os fatores pós-deposicionais ocorridos nos sítios, de modo a perceber como podem influenciar na análise arqueológica. As variáveis ambientais que compõem a área de estudo, tais como os corais, as lagoas interdunares, nascentes e foz de rios, a Formação Barreiras e as dunas permitem, a priori, inferir que haja uma possível exploração sistemática desses biomas para a manutenção desses grupos. Dessa forma, essa pesquisa visa contribuir para a compreensão dos processos de ocupação que ocorreram no litoral cearense em épocas pretéritas. PALAVRAS-CHAVE: Padrão de assentamento, Arqueologia Espacial, dunas holocênicas, praia de Flecheiras. ABSTRACT In Flecheiras Beach, Ceará, four settlements were identified, which they had resulted from the activities of Preventive Archaeology in that region. Those settlements have very similar characteristics as the implementation in the landscape and its material culture. Ceramic affiliated Tradition TupiGuarani and another called Cabocla, chipping remains, underutilized cores and strikers, mostly of quartz and malacologicals, are prevalent in archaeological sites Trairi I, II, III and IV. In this context, all archaeological concentrations are inserted among mobile dunes of Holocene origin. Our objective is to make an approach to the settlement pattern in these sites, with macro scale studies, that covers the relationship between these communities and the biome where they are inserted, and in a semi micro scale, including technological aspects and post-depositional factors which occurred at the sites in order to understand how they can influence the archaeological analysis. The environmental variables that compose the study area, like corals, interdune ponds, springs and river mouths, the “Formação Barreiras” and the dunes, they allow, in principle, to infer that there is a possible systematic exploration of these biomes to maintain these groups. Therefore, this research aims to contribute to understand the occupation processes that had occurred in Ceará in past times. KEYWORDS: settlement pattern, spacial archaeology, holocenedunes, Flecheiras beach. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................. 17 CAPÍTULO 1 – UM HORIZONTE SOBRE O HISTÓRICO DAS PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS EM ASSENTAMENTOS DE GRUPOS CERAMISTAS NA COSTA NORDESTINA.................................................................................... 22 CAPÍTULO 2 – O APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO................................ 30 2.1 UMA ARQUEOLOGIA DE ASSENTAMENTOS................................... 30 2.2. SOBRE OS PADRÕES DE ASSENTAMENTO E A IMPORTÂNCIA DA PAISAGEM EM SUA ANÁLISE................................................................. 33 2.3 SISTEMATIZANDO A PESQUISA: OS MÉTODOS DE ANÁLISE PARA OS SÍTIOS NA PRAIA DE FLECHEIRAS............................................ 36 CAPÍTULO 3 – PRAIA DE FLECHEIRAS: A CONSTRUÇÃO DE UMA PAISAGEM.................................................................................................................... 43 3.1 UM AMBIENTE EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO...................... 44 3.1.1 Da evolução paleoambiental do litoral noroeste do Ceará até a atualidade........................................................................................... 44 3.2 O PANORAMA ARQUEOLÓGICO NO LITORAL DE TRAIRI.............. 57 3.2.1 Bloco Boa Esperança............................................................................. 58 3.2.2 Bloco Mundaú......................................................................................... 60 3.2.3 Sítio Guajiru II....................................................................................... 65 3.3 A CONTRIBUIÇÃO DA ETNOHISTÓRIA................................................ 68 CAPÍTULO 4 – REFLEXÕES ARQUEOLÓGICAS SOBRE A HABITABILIDADE E OS EFEITOS DA DINÂMICA DUNAR NA PRAIA DE FLECHEIRAS............................................................................................................... 77 4.1. SÍTIO TRAIRI I......................................................................................... 79 4.2. SÍTIO TRAIRI II........................................................................................ 86 4.3. SÍTIO TRAIRI III....................................................................................... 95 4.4. SÍTIO TRAIRI IV...................................................................................... 99 CAPÍTULO 5 – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................................... 103 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 111 A ANEXOS......................................................................................................................... 120 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figuras 1 e 2 - Fotografias da elaboração de croquis para análise da distribuição espacial dos sítios.......................................................................................................... 40 Figuras 3 e 4 - Fotografias da prospecção da superfície dos sítios .............................. 41 Figuras 5 e 6 - Fotografias da área de escavação para retirada de sedimento em Flecheiras – Ce. A. Vista ampla da Formação barreiras; B. Detalhe para o perfil estratigráfico.................................................................................................................. 48 Figuras 7 e 8 - Fotografias dos eolianitos registrados em Flecheiras – Ce. A. Vista ampla da estrutura; B. Imagem com detalhe para abrasão eólica................................. 51 Figuras 9 e 10 - Fotografias dos detalhes das dunas. A. Dunas barcana e depressão interdunar na porção frontal (sotavento) onde afloram sedimentos da Formação Barreiras; B. Dunas barcanas compostas formando crista barcanóide transversal à direção dominante dos ventos....................................................................................... 53 Figuras 11 e 12 – Fotografias: A. Detalhe de estratificação observada em duna longitudinal, sobreposta por ondulações atuais transversais a direção do vento dominante. B. Dunas barcanas compostas sobrepondo uma longitudinal.................... 53 Figura 13 - Fotografias da lagoa interdunar e ao fundo, na vegetação, encontra-se o sítio Trairi III................................................................................................................. 53 Figura 14 - Fotografias do pastoreio de bovinos dentro do perímetro do sítio Trairi III.................................................................................................................................. 54 Figuras 15 e 16 – Fotografias: A. Detalhe do córrego, em Emboaca, onde moradores costumavam retirar argila. B. Vista da implantação do abrigo em meio à duna em processo de edafização.................................................................................................. 56 Figura 17- Fotografias dos Corais da praia de Flecheiras............................................. 57 Figuras 18 e 19 – Fotografias: A. Bordas de um recipiente globular, engobo branco e resquício de pintura vermelha (MD-III). B. Borda de vaso reforçado e com alça em botão (MD-IV)........................................................................................................ 63 Figuras 20 e 21 – Fotografias: A. Borda com entalhes (MD-III). B. Bojo alisado e engobo vermelho (MD-IV)........................................................................................... 63 Figuras 22 e 23 – Fotografias: A. Bojo com queima reduzida. B. Bojo com queima oxidada.......................................................................................................................... 63 Figuras 24 e 25 – Fotografias: A. Lascas em quartzo (MD-V). B. Lascas unipolares 64 em silexito (MD-III)..................................................................................................... Figuras 26 e 27 – Fotografia: A. Núcleos esgotados em silexito (MD- II). B. Seixo “Chopper” em quartzo (MD-IV).................................................................................. 65 Figura 28 – Fotografia de raspador nucleiforme em silexito (MD- IV)................................................................................................................................ 65 Figuras 29 e 30 – Fotografias: A. Ação pluvial na Formação Barreiras em GJ-II. B. Barranco com líticos no perfil indicando a origem deposicional de GJ- II................................................................................................................................... 66 Figura 31 – Fotografia da cultura material lixiviada dentro de ravina em GJ-II.......... 66 Figuras 32 e 33 – Fotografias: A. Lascas com superfície natural e cortical em GJ-II B. Núcleos esgotados em GJ-II.................................................................................... 67 Figura 34 - Fotografia de Percutor-batedor em GJ-II................................................... 68 Figura 35 – Fotografia da vista do sítio TR- I, detalhe para o córrego e duna estabilizada.................................................................................................................... 80 Figuras 36 a 39 – Fotografias da cultura material verificada no sítio Trairi I. A. Lasca em silexito; B. Lasca em quartzo; C. cerâmica arqueológica; D. Malacológico................................................................................................................. 81 Figuras 40 e 41 – Fotografias de algunsfatores de inteperismo em TR-I. A. Trânsito de pessoas nas proximidades do sítio; B. Ação pluviométrica escoando um fragmento cerâmico para dentro do córrego................................................................. 82 Figura 42 – Fotografia da pesca artesanal realizada em lagoa nas proximidades de TR-I............................................................................................................................... 82 Figuras 43 e 44 - Fotografias do mesmo cenário em TR-I, em épocas diferentes. A. Ano de 2012. B. Ano de 2015....................................................................................... 83 Figuras 45 e 46 – Fotografias: A. Cerâmica arqueológica. B. Lasca em quartzo........................................................................................................................... 84 Figuras 47 e 48 – Fotografias: A. Percutor em quartzo de grande porte. B. Percutor com fraturas................................................................................................................... 84 Figuras 49 e 50 – Fotografias: A. Fragmento de coral. B. “Agulha” de pesca......... 84 Figura 51 - Fotografia de Vidro e telhas............................................................... 85 Figuras 52 e 53 – Fotografias: A. Zona de proveniência para os artefatos líticos da região. B. Bloco de quartzo........................................................................................... 85 Figura 54 - Fotografia: “Montículo testemunho” na concentração I, no sítio Trairi II.................................................................................................................................... 86 Figuras 55 e 56 - Fotografias da Concentração I, no sítio Trairi II, avanço da duna 87 barcana sobre o sítio, seta indica vegetação de referência. A. Espaço no de 2012. B. Espaço no de 2015........................................................................................................ Figura 57 - Fotografia da Sedimentação eólica com até 5 cm de profundidade, no sítio Trairi II ................................................................................................................. 87 Figuras 58 a 61 - Fotografias de Líticos no sítio Trairi II, concentração I. A. Percutor em quartzo; B. Bigorna em quartzo; C. Núcleo; D. Dispersão de micro- lascas na quadra 14........................................................................................................ 88 Figuras 62 a 65- Fotografias: A. Dispersão cerâmica na quadra 10; B. Malacológico; C. Alça cerâmica na quadra 9; D. Fragmento com engobo vermelho na quadra 15.................................................................................................................. 89 Figura 66 - Fotografia da vista geral da concentração II, no sítio Trairi II................... 90 Figuras 67 e 68 - Fotografia do intemperismo provocado por ação animal em TR- II.................................................................................................................................... 90 Figuras 69 e 70 - Fotografias das cerâmicas do grupo I, na concentração II. A. Borda reforçada externamente, na quadra 23; B. Decoração interna com motivos pontilhados interligados por linhas curvas, na quadra 21............................................. 92 Figuras 71 e 72 - Fotografias das cerâmicas do grupo II, na concentração II. A. Tempero com quartzo moído e areia fina, na quadra 60; B. Decoração com engobo vermelho em superfície alisada externa, na quadra 237............................................... 92 Figuras 73 a 76 - Fotografias de líticos na concentração II. A. detritos de matéria- prima silicosa, na quadra 48; B. Fragmento de machadinha, na quadra 53; C. Núcleo com córtex não esgotado; D. Fogueira com cerâmica do grupo II e micro-lascas no seu interior..................................................................................................................... 93 Figuras 77 e 78 - Fotografias de resina encontrada na concentração II. A. Fragmento com retirada, na quadra 254; B. Fragmento associado à bigorna, na quadra 229................................................................................................................................. 94 Figuras 79 a 81 - Fotografias de valva de molusco na concentração II. A. Artefato na quadra; B. Fragmento com possível marca de perfuração por atrito, na quadra 157; C. Amostra de coral deteriorado........................................................................... 95 Figura 82 - Fotografias da vista geral do sítio Trairi III. A. Planície de deflação na concentração 1, destaque amarelo; B. Blowout na concentração 2, destaque em azul................................................................................................................................ 96 Figura 83 - Fotografia da ação de erosão eólica na concentração II, quadra 75, sítio TR-III............................................................................................................................ 96 Figuras 84 a 87 - Fotografias de cerâmicas verificadas em TR- III. A. Acentuado grau de inteperismo expõe o tempero composto por quartzo moído e areia fina na quadra 7; B. “Apêndice” na quadra 8; C. Engobo vermelho na quadra 75; D. Borda extrovertida com lábio arredondado na quadra 84........................................................ 97 Figuras 88 a 91 – Fotografias da tralha doméstica em TR- III. A. Fragmento de malga com motivos florais na quadra 54; B. Fragmento de prato com motivos florais na quadra 84; C. Fundo de garrafa de vidro; D. Fundo de garrafa de grés na quadra 74....................................................................................................................... 98 Figura 92 - Fotografia de resquício de resina solidificada na quadra 85...................... 99 Figura 93 – Fotografia da vista geral do sítio TR-IV, seta laranja identifica concentração 1 e seta amarela a concentração 2.......................................................... 100 Figuras 94 e 95 - Fotografias de líticos encontrados no sítio TR-IV. A. Núcleo em quartzo. B. micro-lascas e detritos de matérias variadas.............................................. 100 Figuras 96 e 97 – Fotografias de cerâmica encontrada no sítio TR-IV. A. Fragmento com marcas de alisamento em superfície externa. B. Fragmento com inteperismo expondo o antiplástico................................................................................................. 101 Figura 98 - Fotografia de sondagem no cordão de duna que separa as concentrações 1 e 2, no sítio TR-IV..................................................................................................... 102 LISTA DE MAPAS Mapa 1 - Localização do município de Trairi, no Ceará.................................... 45 Mapa 2 - Geologia do município de Trairi em relação ao contexto geológico cearense................................................................................................................. 47 Mapa 3 - Distribuição dos Sítios Arqueológicos no Município de Trairi......... 120 Mapa 4 - Detalhe para a distribuição espacial nível macro no bloco arqueológico Mundaú........................................................................................... 61 Mapa 5 - Evolução das dunas na praia de Flecheiras entre 2004 e 2011........... 78 Mapa 6 - Distribuição dos sítios na área de estudo............................................. 121 Mapa7 – Sítio Trairi I.......................................................................................... 122 Mapa 8- Sítio Trairi II concentração I.................................................................. 123 Mapa 9 - Sítio Trairi II concentração II............................................................... 124 Mapa 10 - Sítio Trairi III concentração I............................................................ 125 Mapa 11- Sítio Trairi III concentração II.......................................................... 126 Mapa 12 - Sítio Trairi IV..................................................................................... 127 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Morfologia comparativa entre os recipientes de BE e ATr............................ 59 Quadro 2 - Decoração comparada entre os recipientes de BE e Atr................................ 60 Quadro 3 - Decoração comparada entre os recipientes do bloco Boa Esperança, Mundaú e Trairi................................................................................................................ 108 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi I................................................. 128 Tabela 2 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi II – Concentração I................... 129 Tabela 3 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi II – Concentração II............ 130 Tabela 4 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi III – Concentração I............. 131 Tabela 5 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi III – Concentração II........... 132 Tabela 6 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi IV ........................................... 133 LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS A.P. Antes do Presente CPRM Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais EIA Estudo de Impacto Ambiental E-W Leste – Oeste NEEA Núcleo de Estudos de Etnologia e Arqueologia NRM Nível Relativo do Mar NW Noroeste PRONAPA Programa Nacional de Pesquisa em Arqueologia RIMA Relatório de Impacto Ambiental SE Sudeste UTM Universal Transverse Mercator 17 INTRODUÇÃO Na primeira vez em que estivemos nos sítios Trairi I, II, III e IV, na praia de Flecheiras – CE, em agosto de 2011, atravessamos um enorme campo de dunas em busca das coordenadas UTM de sítios previamente identificados pela Arqueologia Preventiva naquela região. A principio nos causou espanto a possibilidade de qualquer humano ter habitado ali. Nossa impressão se desfez ao avistarmos vários fragmentos cerâmicos e líticos. Apesar de nossa experiência, a ideia de habitar um ambiente como as dunas nos parecia improvável, em virtude da ação eólica, dos sedimentos, da inexistência de abrigos naturais, etc. Imaginamos que viver em meio a esse ambiente parecia demasiadamente difícil, pensamento esse contrariado frente à tamanha quantidade de vestígios encontrados. Foram essas indagações que nos motivaram a compreender como se deu a ocupação dessa região. Por que ocupar as dunas? Sempre nos pareceu a grande questão. Pensamos inicialmente numa abordagem direcionada para a cerâmica arqueológica e de como essa poderia fornecer informações sobre a cultura do(s) grupo(s) que ocuparam a praia de Flecheiras, tendo em vista que a decoração identificada pode apresentar características das quais é possível inferir sobre o papel simbólico dessa comunidade (LUNA, 2003). Porém ocorreram alguns problemas institucionais durante o desenvolvimento da pesquisa, o que impossibilitou escavar e remontar os utensílios, diminuindo as possibilidades de compreensão de sua funcionalidade. Frente a essas dificuldades resolvemos então nos deter a compreensão das estratégias utilizadas pelo(s) grupo(s) no aproveitamento do espaço e as suas formas de sobrevivência, compreendendo a relação do homem com o meio ambiente. Essa mudança de perspectiva, também oriunda do amadurecimento teórico que nos fez entender que a cultura material, por si só, não atenderia a todas as nossas expectativas. Há que se considerar, no estudo sobre a cultura material, que esta só existe pela ação das pessoas no passado que as utilizavam de diversas formas, além da importância do ambiente nas escolhas humanas. Apenas após essa conclusão tivemos maior clareza sobre a importância do papel que o ambiente teve para o equilíbrio do sistema e, para propiciar condições para que o(s) grupo(s) ocupassem aquela faixa do litoral cearense. A literatura arqueológica brasileira tem dedicado atenção aos povos que habitaram o litoral brasileiro, neste sentido, Tenório (2000), afirma que os caçadores-coletores-pescadores holocênicos surgiram em meados da última grande mudança climática que ao tornar o planeta quente e úmido favoreceu a formação de novos ambientes. Diante de uma maior diversidade de recursos esses grupos assentaram-se próximo a lagoas e rios, onde promoviam a caça e a 18 pesca de pequenos animais, coleta de frutos e também de moluscos que habitavam esses corpos d’água. Os estudos sobre grupos Pré-coloniais no litoral brasileiro iniciaram há muitos anos e destacam-se nessa linha as pesquisa sobre os sambaquis, estruturas formadas a partir de montes de conchas, moluscos e restos faunísticos, verifica-se a ocorrência de sepultamentos, marcas de estacas, líticos, cerâmicas e fogueiras (GASPAR, 1994, 1996, 2004; DE BLASIS; KNEIP, 2007). Esses são também os tipos de sítios que primeiro motivaram ações de preservação, já na década de 60, tendo em vista sua depredação por ação do fabrico de cal e para rações animais. A destruição dos sambaquis e de outros sítios litorâneos já remonta ao processo de colonização portuguesa, cujas facilidades de acesso e defesa contra os ataques indígenas motivaram esses núcleos urbanos a permanecerem no litoral. Os sambaquis foram alvo de pesquisas no Brasil ainda no séc. XIX (BARBOSA- GUIMARÃES, 2003), onde eram consideradas formações naturais de amontoados de conchas, e foram tratados pela Geologia como marcadores naturais do Nível Relativo do Mar (NRM), mesmo sendo verificados sepultamentos humanos esses eram atribuídos a naufrágios. Essa concepção tinha por finalidade negar o direito do índio a terra, desacreditando qualquer possibilidade dele produzir algo tão monumental. A partir do início do séc. XX essas estruturas passam a ser consideradas construções antropogênicas, mais ainda na perspectiva de que poderiam ser relacionadas a oscilações marinhas, pois a partir disso os grupos se deslocariam constantemente. Soma-se a essa perspectiva o fato de que os amontoados de moluscos seriam provenientes do lixo daquela cultura, o que mais uma vez se caracterizava como racismo contra os silvícolas, pois seriam sujos, não havendo assepsia em seus locais de morada, comprovando sua selvageria. É com Bigarella (1962 apud BARBOSA-GUIMARÃES, 2003) que se inicia a desconstrução da ideia de sambaqui como marco geológico, pois a perspectiva de que os sambaquieiros buscavam ambientes mais propícios para sua sobrevivência, como as paleolagoas, começa a ganhar força. Para além do pensamento de intencionalidade na escolha do assentamento, Hurt & Blasi (1960 apud BARBOSA-GUIMARÃES, 2003) defenderam o pensamento deque os grupos pré-coloniais buscavam erguer uma edificação planejada. É com Gaspar (1996) que se inova a abordagem a esses sítios tratando de territorialidade, onde cada estrutura edificada com moluscos e seus ocupantes teriam acesso a áreas de captação de recursos específicos para a manutenção da comunidade. Ela também levanta a possibilidade dos sambaquis centrais e maiores serem espaços ritualísticos pela presença de sepultamentos, 19 enquanto que os menores e periféricos teriam função de sociabilidade, oficinas e cozinha (1999 apud BARBOSA-GUIMARÃES, 2011). Atualmente pesquisas sobre os povos sambaquieiros, apontam para a realização de festins funerários (KLOKLER, 2012), pois é evidenciado o fato da vasta presença de vestígios faunísticos de peixe junto a covas, buracos de estaca e fogueiras em detrimento da ausência de habitações e outras atividades cotidianas. A própria prática desse tipo de festividade apontaria para produção de excedente na agricultura que seria usado no festim, logo é possível a existência de elites privilegiadas e que também usariam o evento para legitimar seu poder na hierarquia. Tradicionalmente considera-se que no Nordeste existem três pontos de destaque em assentamentos Pré-Coloniais costeiros, são os sambaquis no Maranhão e no Recôncavo Baiano, além das ocupações em dunas no Rio Grande do Norte (MARTÍN, 2008, p. 137), todos estudados inicialmente pelo PRONAPA, nas décadas de 60 e 70. Os sambaquis nordestinos se caracterizam principalmente pela pouca estatura e farta presença de cerâmica em suas camadas arqueológicas. A partir de novos dados obtidos em pesquisas recentes vem se confirmando essa informação, destaque para o estudo de Bandeira (2008) no Maranhão, Amancio (2006, 2007) na Bahia e Silva (2009) em Alagoas. No caso dos sítios sobre dunas, como mencionado anteriormente, é no Rio Grande do Norte que se realizaram as primeiras pesquisas, sendo seguidas tardiamente por outros estados como Piauí, Ceará, Sergipe e Bahia. Na costa do Ceará são identificados inúmeros sítios arqueológicos pré-coloniais e históricos, resultantes da densa ocupação ocorrida na região em tempos pretéritos, por grupos ligados a pesca, coleta e agricultura, perpassando pelos colonizadores europeus até a atualidade. Ainda há poucas produções acadêmicas, no que diz respeito aos estudos arqueológicos sobre as ocupações no litoral cearense (VIANA et al, 2007; SOUSA, 2011; NOBRE, 2013; MORALES, 2012), apesar da vasta quantidade de sítios já registrados por conta de achados fortuitos e em decorrência do uso da costa para a construção de empreendimentos diversos. É por meio das intervenções arqueológicas, relacionadas a essas obras, que se tem buscado o entendimento sobre esses grupos e a sua presença nessa região. Os assentamentos litorâneos se configuram como marca incontestável da presença e valorização que essas áreas possuíam para alguns povos. Nos sítios arqueológicos Trairi I, Trairi II, Trairi III e Trairi IV, localizados na praia de Flecheiras, em Trairi, são identificados inúmeros fragmentos cerâmicos da Tradição arqueológica Tupiguarani e da Fase Papeba, 20 além de lascas, micro-lascas, amoladores, percutores e bigornas, bem como um vasto material malacológico como conchas de espécies e tamanhos diversos (LEITE, 2010; MARQUES, 2012a). Os atuais geoelementos caracterizadores da área tais como o mar, as lagoas e lagunas interdunares, os eolianitos e as dunas permitiram inferir uma possível exploração de recursos hídricos e alimentares possibilitando as ocupações pretéritas nessa região. Tais elementos naturais foram evidenciados nessa pesquisa, devido a sua importância quanto ao entendimento sobre a escolha e utilização da paisagem como ferramenta essencial na compreensão sobre os modos de habitabilidade desse(s) grupo(s). Dessa forma, os estudos arqueológicos contribuem para o conhecimento das peculiaridades dos grupos que ocuparam a área, podendo agregar dados aos estudos já existentes sobre ocupações pretéritas em outros ambientes dunares. Como objetivo geral dessa pesquisa propõe estabelecer um padrão de assentamento arqueológico na praia de Flecheiras, através de uma análise espacial em uma macroescala, abrangendo um estudo sobre os sítios e o bioma em que estão inseridos, com dados ambientais, espaciais, arqueológicos e etnológicos a fim de compreender as razões para a implantação desses sítios em dunas. Entre os objetivos específicos propomos compreender a distribuição espacial dos sítios e buscar possíveis correlações entre eles e os elementos naturais da paisagem que estão disponíveis para a exploração do ecossistema marinho e fluviomarinho em Flecheiras; e com base na análise da cultura material dos sítios Trairi I, Trairi II, Trairi III e Trairi IV, essa pesquisa teve a possibilidade de abordar as variabilidades e estudar as especificidades locais, buscando entender as relações com processos regionais (tecnologia e implantação na paisagem) e os fatores globais no que tange a evolução do ambiente. Dessa forma o trabalho foi dividido em cinco capítulos abordando questões diversificadas, porém inter-relacionadas de modo a facilitar a compreensão sobre o sistema. O capítulo um traça um panorama sobre as pesquisas desenvolvidas no Nordeste brasileiro em estudos direcionados a ocupação do litoral. Após uma extensa consulta bibliográfica, privilegiamos trabalhos relacionados não apenas aos assentamentos sob dunas, mas também sobre grupos sambaquieiros, pois através desse levantamento bibliográfico nos foi possível compreender a gama de enfoques teóricos e metodológicos utilizados para as interpretações de dados relacionados à tecnologia e ao ambiente de inserção dessas culturas. O capítulo dois trata dos aspectos teórico-metodológicos aplicados em nosso estudo, tendo por referência o enfoque processual. Entendemos que para se inferir sobre as formas de habitabilidade dos grupos que ocuparam a praia de Flecheiras é necessário compreender a 21 relação do homem com o litoral, onde traços culturais se manifestam em respostas adaptativas ao meio. A abordagem da Arqueologia da Paisagem foi utilizada em alguns momentos, pois forneceu o aporte necessário para a compreensão das estratégias de sobrevivência do(s) grupo(s), com suas práticas de uso do espaço e de dados sobre processos formativos e pós- deposicionais. Através da Arqueologia Espacial buscamos no nível semi-micro as estruturas internas nos sítios de onde pudermos inferir os fatores funcionais, assim como também averiguamos possíveis relações entre os assentamentos da região e com o ambiente, numa perspectiva macro. Boa parte dos dados referentes à natureza contexto arqueológico e etnohistórico foram através de levantamentos bibliográficos e em análises em campo. O capítulo três aborda o contexto ambiental, arqueológico e etnohistórico da região noroeste do estado do Ceará, onde o município de Trairi se encontra. Não tendo sido possível uma análise da tecnologia dos sítios, utilizamos dados de outros sítios do litoral trairiense como referência para nossa comparação e para traçar possíveis perfis para Trairi I, II, III e IV. Através de levantamento bibliográfico foi possível compreender a evolução da paisagem costeira da região, desde a transição do Pleistocêno para o Holocêno e assim estimar o potencial ambiental que havia na região para a sobrevivência do(s) grupo(s) e o impacto nos sítios que possam ter havido frente à dinâmica costeira. Também utilizamos referências etnológicas sobre comunidades indígenas que habitam a costa noroeste cearense, e foram registradas desde o séc. XVI por missionários, exploradores e viajantes, descrevendocomportamentos sociais, seus territórios e relações com o meio ambiente. O capítulo quatro trata das análises semi-micro e macro entre os sítios Trairi I, II, III e IV. Com base em analogias com a cultura material apresentada no capítulo 3 e dos dados referentes à distribuição espacial dos sítios, processos pós-deposicionais e áreas de captação de recursos, traçamos um perfil sobre aspectos relacionados à função dos sítios estudados. O capítulo cinco aborda as considerações finais sobre a pesquisa, que após a apresentação dos dados referenciais (ambiente, distribuição espacial, contexto arqueológico e etnológico) visou explanar as relações entre esses subsistemas de modo a explicar como se deu o processo de habitabilidade do(s) grupo(s) na praia de Flecheiras e compreender os efeitos da dinâmica dunar nesse processo. Compreendemos que esse trabalho teve como foco discutir uma das inúmeras possibilidades sobre a ocupação do litoral brasileiro, já que a nossa escolha foi por seguir em uma análise processual, porém outros enfoques poderiam ter nos levado a outros resultados frente à parcialidade da coleta de dados e a sua interpretação, logo acreditamos ser aqui apenas a construção de um dos discursos possíveis. 22 CAPÍTULO 1 – UM HORIZONTE SOBRE O HISTÓRICO DAS PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS EM ASSENTAMENTOS DE GRUPOS CERAMISTAS NA COSTA NORDESTINA Segundo Martín (2008) existe no Nordeste três pontos de destaque em assentamentos Pré-Coloniais costeiros, são os sambaquis no Maranhão e Recôncavo Baiano e as ocupações em dunas no Rio Grande do Norte. Porém novas pesquisas apontam para uma enorme diversidade nesse tipo de ocupação e estados que antes não dispunham de dados concretos sobre os grupos que habitaram o seu litoral passaram a investir nesse tipo de estudo, em alguns casos, mesmo havendo resultados ainda incipientes em várias áreas, foi possível traçar um panorama superficial sobre a Arqueologia no litoral nordestino. Destacamos aqui alguns trabalhos dos quais consideramos importantes para uma compreensão sobre a ocupação humana no litoral nordestino, são os sambaquis e os assentamentos sob dunas. O primeiro modelo, apesar de não se enquadrar nos sítios identificados em Trairi, nos oferece a oportunidade de comparar dados ambientais e sobre a cultura material, revelando as diferenças e similaridades entre esses modelos de ocupação. Em ambos os casos verifica-se a presença da cerâmica como fator aglutinador sobre as pesquisas, fato compreendido, pois nesse vestígio é possível entender comportamentos sociais, dieta, ritos, economia, contatos interculturais, além da tecnologia (LUNA, 2003, 2006). Porém a maioria dos pesquisadores tem-se detido a realizarem apenas perfis técnicos, sem buscar respostas para a presença desses vestígios em campo. No Nordeste verificamos a presença de inúmeras filiações ceramistas, muito estudadas na porção do semi-árido, tendo em vista que as ocupações mais antigas no país são oriundas desse bioma, porém novos estudos apontam para datações cada vez mais recuadas quanto aos vestígios cerâmicos, sobretudo no litoral. No Maranhão as pesquisas iniciaram com Mario Simões, pelo Projeto São Luiz, sendo identificados oito sambaquis, dos quais cinco já foram destruídos por ação da exploração de cal. Anos depois pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi puderam perceber que esses apresentam características semelhantes aos sítios paraenses, pelos mesmos vestígios malacológicos e da cerâmica pertencente à fase Mina (MARTÍN, 2008) comum da região Amazônica. Essa se caracteriza por uma manufatura acordelada, temperada com conchas e areia, pequenas, base aplainada e de formas arredondadas. Nesse estado as mais antigas datações são provenientes de carvão no sítio Maiobinha, ficando em torno de 2.090 e 1245 AP (BANDEIRA, 2008), e apesar de em boa parte do Nordeste os sambaquis apresentarem 23 poucas amostras de restos ictiológicos, nessa região eles se caracterizam pela farta presença da espécie e também de moluscos (GASPAR; IMAZIO, 2000, p. 248). As primeiras publicações sobre a região costeira do Piauí tem início com Joina Borges que se utilizando de uma abordagem historiográfica sobre o sítio Seu Bode, aborda a paisagem em Arqueologia não apenas pelos objetos e o espaço do sítio, mais também pelos discursos que se constroem a partir das narrativas dos moradores do entorno e também dos descendentes indígenas que ali habitaram há tempos atrás aquela região. A autora, com base na documentação de cronistas dos séculos XVI a XVIII, e da correlação com as narrativas de grupos indígenas ainda viventes, defende a proveniência da ocupação litorânea piauiense como sendo da etnia Tremembé e entre os resultados de sua pesquisa foi concluído que a estratégia de ocupação nas dunas se deu como forma de resistência, já que nesse ambiente os indígenas teriam mais chances de resistir à perseguição promovida pelos invasores europeus. Esses assentamentos teriam em seu favor o acesso a vários recursos alimentares e para a produção de utensílios, além do fator de ocultação de suas aldeias entre as depressões dunares. Nesse estudo também foram adquiridas datações cerâmicas que revelaram ter o sítio do Seu Bode entre 2700 e 710 A.P (2006). Quaresma (2012) fala do sítio conhecido como Sambaqui da Baía ou Ponta do Socó, em Cajueiro da Praia, esse assentamento está implantado em uma duna fixa sobre tabuleiro litorâneo e se localiza próximo aos afloramentos rochosos na desembocadura do rio Timonha (divisa entre Piauí e Ceará), ali é possível verificar a presença de material cerâmico, ósseo e de restos faunísticos nos arrecifes. Porém nenhum trabalho arqueológico foi realizado no local para a confirmação da presença sambaquieira, além do fato da área receber forte impacto da ação das marés. Ainda no Piauí percebemos que os estudos mais recentes se direcionam para análises técnicas dos artefatos (SANTOS, 2013) e para os processos deposicionais que ocorrem em ambiente dunar (QUARESMA, 2012), relacionando esses dados aos assentamentos numa perspectiva da Arqueologia da Paisagem. Dessa forma os sítios Dunas I, Dunas II, Lagoa do Portinho e Seu Bode apresentam similaridades quanto a sua implantação em corredores eólicos ou planícies de deflação, e entre os seus vestígios a cerâmica da Tradição Tupiguarani e a da Fase arqueológica Papeba se encontram em vasta quantidade. Um detalhe chama atenção para a cerâmica, da qual o sítio Dunas II apresentou em seu antiplástico Cariapé, restos de uma espécie vegetal nativa da Amazônia onde também foi encontrado em sítios no Pará e Maranhão e que também estão associados à Tradição Mina, apontando para uma possível relação com os grupos dessa região (SANTOS, 2013). 24 No Ceará as investigações sobre o ambiente costeiro foram principiadas pelo NEEA da Universidade Estadual do Ceará, com o Projeto Litoral que iniciou em 1995 e se deu até 1997. Tinha como objetivo localizar, identificar e estudar os vestígios de ocupações pretéritas ao longo da costa cearense (CAZZETTA, 1996), porém com o seu término estagnaram as pesquisas, sendo retomada há alguns anos, já relacionadas à arqueologia preventiva. Outro projeto arqueológico que ganhou bastante visibilidade devido a sua aproximação com etnias indígenas ainda existentes foi o Projeto Arqueológico Tremembé (NASCIMENTO et al, 2000), sendo uma ramificação do primeiro. Foram identificados em Itarema, na costa noroeste, seis sítios arqueológicos, onde um deles é o antigo aldeamento do grupo e os outros se caracterizam por ocupações Pré-coloniais, neles foi possível verificar a presença de cerâmicas Papeba e Tupiguarani, malacológicose ossos de pequenos animais, além de carvões provenientes de fogueiras. Infelizmente os estudos sobre esses sítios nunca avançaram. Ainda no Ceará, precisamente em Jericoacoara, litoral noroeste do estado, foram identificados dois sítios pré-históricos, Malhada e Serrote, esses possuem vasta indústria lítica de pequenos instrumentos lascados e algumas ferramentas polidas maiores, sítios cerâmicos com fragmentos de paredes finas e de possível filiação a Fase Papeba e de paredes grossas, ligadas à tradição Tupiguarani, além de estarem junto à concheiros (VIANA et al, 2007). Em ambos os sítios foram encontradas várias estruturas de fogueira, com predominância para o sítio Serrote, onde estavam diretamente associadas àcerâmica e lítico. Correlacionando elementos etnohistóricos, ambientais e arqueológicos na região, estima-se que a ocupação foi de longa duração, por apresentar solo arqueológico de até 20 cm de profundidade, e por ser um grupo bem familiarizado com a captação de recursos naquela área. Na praia de Sabiaguaba, em Fortaleza-CE, foram identificados três sítios sob o mesmo contexto geomorfológico, corredores eólicos e planícies de deflação. A cultura material encontrada possui inúmeras microlascas e estilhas, além de batedores, cerâmicas e malacológicos (MARTÍN, 2003). Na continuação dos estudos dessa área por Sousa (2011) foi possível traçar um perfil técnico dos artefatos e os correlacionar a fatores ambientais, onde os resultados apontam para uma farta presença de lagoas inter-dunares e um expressivo mangue que abasteceriam o grupo quanto à alimentação e a presença do rio Cocó que entre outras coisas forneceria matéria-prima para a fabricação de utensílios lito-cerâmicos. Optou-se por não haver análises inter-sítio já que a dinâmica eólica poderia ter mobilizado os artefatos, dessa forma os resultados da pesquisa apontaram para um assentamento ligado a Fase 25 ceramista Papeba. No sítio Sabiaguaba II houve datação de conchas associadas à cerâmica e que aponta para uma ocupação de 4.600 +- 30 A.P, até então a mais antiga para o estado. Morales et al (2012), após anos de pesquisa ao longo do litoral cearense e atrelada a Arqueologia Preventiva, realizou uma análise sobre o padrão de assentamento em sítios localizados sob dunas. Com base em dados peleoambientais sobre alterações do nível relativo do mar, formação de dunas e extinção de espécies da flora típica de mangue, além do perfil técnico da cultura material verificada foi possível inferir que havia uma alta mobilidade de grupos entre o sertão e o litoral através dos grandes rios, também havendo grande deslocamento ao longo da costa e que era na foz desses corpos d’água que era realizado a captação de recursos alimentares e de matéria-prima. Datações realizadas para o litoral leste 1 assim como o perfil tecnológico encontrado nos sítios confirmam as hipóteses de ocupação por algumas culturas, tais como a Papeba e Tupiguarani, além da presença do colonizador europeu. Porém em vários desses sítios, estando os vestígios configurados como um palimpsesto diacrônico, por ação da dinâmica eólica, compreende-se que podem ter sido ocupados em momentos diferentes. O estado do Rio Grande do Norte tem destaque na região Nordeste, por ter sido um dos primeiros no país a receber pesquisas arqueológicas já na década de 60, durante o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA). Nássaro Násser pesquisou na região vários sítios cerâmicos e definiu a Fase Papeba, sendo essa classificável como da Tradição Aratu, e também definiu outro tipo cerâmico como sendo da Fase Curimataú, da subtradição Pintada, pertencente à tradição Tupiguarani. A primeira fase foi mais bem definida durante as atividades realizadas no município de Senador Georgino Avelino, em um sítio localizado as margens da lagoa denominada Papeba, sua antiguidade em relação à outra fase é inferida pela sua posição estratigráfica ser mais profunda (NÁSSER, 1974). A cerâmica da fase Papeba está dividida em várias categorias, dos quais o mais recorrente, até mesmo fora desse estado, é o Vermelho, possuindo decoração com banho que pode estar em ambas as superfícies alisadas, a espessura tem no máximo 1,2 cm e seu tempero é constituído de areia grossa variando de 1 a 0,5 mm bem distribuídos na pasta. Sua forma possui boca circular, lábio apontado, borda com inclinação externa e bojo em meia-calota, base arredondada, constituindo principalmente tigelas. Porém sua principal característica se dá pela presença de dois possíveis apêndices vazados ou dois furos circulares nas paredes 1 Sítio de ocupação Tupiguarani Cumbe 10, possui datação de carvão entre 500-420 A.P; sítio de ocupação Papeba Cumbe 11, possui datação de conchas de 1240 +- 30 A.P; sítio de ocupação Papeba Cumbe 12, possui datação de carvão de 970 +- 30 A.P. Todos os artefatos aqui datados estavam associadas a filiação ceramista indicada e estão localizados no município de Aracati – CE. 26 opostas do vasilhame indicando a passagem de um cordel para sustentação (IBIDEM). Associado a essa cerâmica ainda encontra-se amplo uso do sílex para lascas com ou sem retoque e também para furadores, machados polidos de forma trapezoidal ou apresentando depressões semi-esféricas nas faces em quartzo verde e xisto, além de seixos em quartzo com marcas de uso como batedores e alisadores. Alguns malacológicos de médio porte (Strombus goliath) podem apresentar indícios de uso como raspadores e furadores. Posteriormente, Miller (2009) ligou o material Papeba ao povo Tarairiu de Janduí, fato pouco esclarecido. A cerâmica da fase Curimataú viria como posterior a Papeba e é caracterizada por apresentar tempero de cacos triturados, grânulos de argila e grãos de quartzo angulosos e subangulosos; o método de manufatura mais comum é o acordelado, também apresenta o modelado; o tratamento de superfície, tanto externa como internamente é irregular; a técnica decorativa diagnosticada é a pintura em vermelho e preto sobre o engobo branco, o vermelho sobre o branco, o banho vermelho e preto. A decoração mais frequente é a borda entalhada, acanalada, escovada, corrugada, escovada-acanalada e a escovada-corrugada. Entre as formas da vasilha estão à meia-calota, elipesóide e carenada. As bordas apresentam-se diretas, extrovertidas, verticais e inclinadas interna e externamente. Esses dados permitiram identificar a Fase Curimataú como integrante da subtradição Pintada, sendo essa parte da Tradição Tupiguarani (SIMÕES, 1969; NÁSSER, 1974). Brochado considera que essa fase teria seu início simultaneamente à Fase Itapicuru, essa é definida na Bahia e datada de 1270 +- 130 A.D. por Brochado (1969 apud LUNA, 2006). Para o final da Fase Curimataú considera-se dados etnohistóricos, datando que esta coincidiria com a época da fixação do elemento europeu no Rio Grande do Norte. Também no Rio Grande do Norte se deu o “Projeto Homem das Dunas”, que identificou e resgatou inúmeros sítios por toda a costa potiguar. As principais características dos vestígios encontrados eram de inúmeras lascas, microlascas, estilhas em sílex, calcedônia e quartzo, além de alguns poucos almofarizes, mãos-de-pilão, machados, e duas unidades cerâmicas distintas, das quais uma delas seria Tupiguarani (MARTÍN, 2008; ALBUQUERQUE; SPENCER, 1994). Outros pesquisadores da região se detiveram sobre os processos de formação dos sítios nesse ambiente, Silva (2003) sistematizou uma série de métodos e aportes que podem ajudar na interpretação arqueológica dos vestígios, como o deslocamento de microlascas por ação eólica, atividades de pisoteio e aragem na atualidaderealocando o posicionamento de peças, sem mencionar o fato de que os próprios grupos indígenas poderiam “limpar” os assentamentos empurrando para fora das áreas de atividade os vestígios maiores. Nessa 27 mesma linha Medeiros (2005) traça outras possibilidades para os processos formativos de sítios do litoral setentrional do estado, incluindo o desgaste das faces no material cerâmico e o ocultamento das estígmatas de lascamento em líticos devido à ação eólica; do intemperismo antrópico sobre esses sítios ser maior sob o ponto de vista horizontal (estratigrafia) e não vertical, indicando que a dispersão espacial de vestígios sobre dunas deve ser por agentes culturais; a presença de vestígios ósseos pode indicar baixo índice de modificação pós- deposicional, já que esses são muito sensíveis ao inteperismo natural; sobre elevações sedimentares contendo material arqueológico em superfície indicando uma preservação da deposição cultural dos objetos, etc. Em Alagoas, os primeiros indícios sobre sítios litorâneos foram rumores sobre sambaquis, ao norte, por Brandão (1937 apud MARTÌNS, 2008) e não foram confirmados, porém o registro de sítios costeiros ligados a Tradição cerâmica Aratu já fora relatado durante ações do PRONAPA (SIMÕES, 1969; NÁSSER, 1974). As pesquisas sistemáticas sobre assentamentos litorâneos iniciaram há poucos anos, com Silva (2009) de onde temos os primeiros resultados sobre o modo de vida dos habitantes da costa alagoana. Essa pesquisa propõe a identificação da área de captação de recursos do sambaqui Saco da Pedra, em Marechal Deodoro, no sul do estado, tendo como base as análises espaciais do sítio e dos vestígios malacológicos, assim foi possível identificar o território de exploração da comunidade sambaquieira, o perfil tecnológico dos vestígios lito-cerâmicos e a identificação de zonas de proveniência para a argila. O sítio Saco da Pedra está implantado nas margens de uma laguna, cuja autora conclui ser um ambiente propício para a habitação já que oferecia todos os recursos necessários para o sustento do grupo em termos de alimentação e da oferta de matéria-prima argilosa, utilizada para a fabricação de utensílios cerâmicos. Em Sergipe, pesquisas direcionadas a identificação de áreas potenciais para a presença de sítios do tipo sambaqui tiveram resultados negativos para a ocupação desse grupo, tendo em vista que a costa desse estado não possuía condições geológicas favoráveis à formação de grandes ambientes lagunares nos últimos 5.000 anos A.P. (AMANCIO, 2001; 2002). Em outra perspectiva a proposta de Simões (2014) foi a de compreender a ocupação da costa sergipana após a Última Transgressão, em 5.200 A.P, a partir da análise no sítio Cardoso. Tendo como aporte teórico a Arqueologia da Paisagem, sua reflexão foi construída com base na união de dados geomorfológicos atuais e paleoambientais, perfil técnico da cultura material, análises espaciais intra e inter-sítios e a aplicação de conceitos ligados à visibilidade. Com base nos resultados aferidos a autora conclui que o grupo responsável pela ocupação do sítio possuía um bom domínio de seu território onde possivelmente escolhiam as 28 áreas de assentamento com base em estratégias de ocultação contra inimigos, percebe-se também uma alta mobilidade do grupo, pois alguns traços encontrados nos vestígios apontam para matéria-prima fora da área dunar e a própria cultura material aponta para utensílios de pequeno porte. Na Bahia, Valentin Calderon introduz a pesquisa arqueológica pelo PRONAPA a partir de estudos realizados nos sambaquis do Recôncavo Baiano, principalmente no sítio Pedra Oca, em Salvador. Esse possuía farto material lítico como moedores e quebra-cocos; pontas de osso e conchas perfuradas; sepultamentos, buracos de estaca e uma baixa densidade cerâmica identificada como a Tradição Periperi, dos quais se caracteriza pelo tempero com areia, coloração marrom-escura e uma decoração simples cuja borda não tinha os roletes obliterados (SIMÕES, 1969). Estudos posteriores nesse sambaqui concluíram que a ocupação inicial é datada em 5.200 AP e no seu processo de formação antropogênico identificam-se moluscos e ossos de peixes pequenos e de médio porte, porém havendo uma maior concentração de sedimentos nesse processo levando a crer que houve pouca mão de obra na construção do sambaqui e havendo uma ocupação sazonal (AMANCIO, 2006, 2007). Foi também no litoral onde se identificou os primeiros e mais antigos registros da Tradição ceramista Aratu, cuja às datações apontam para o séc. IX, suas feições são em forma de jambo invertido, alisamento externo e apresentando tampa para vedação da estrutura, tendo em vista que todas as urnas contêm sepultamentos (ETCHERVARNE, 1999/2000), ressalta-se que Luna (2006) contesta o uso do termo Tradição, já que os dados obtidos são duvidosos e imprecisos pelo método pronapiano, o mesmo realizado por Calderón, esse também identificou na ilha de Itaparica a tradição lítica que carrega o nome da localidade, usada por caçadores-coletores que fabricavam pontas com pendúculo. Os principais sítios da Tradição ceramista Tupiguarani, de forma geral para a região Nordeste, estão no litoral e com datações que remontam a época colonial (LUNA, 2006), porém ela também é encontrada em outros pontos do interior e divide com a tradição Aratu o título de mais abrangente em termos espaciais para o Brasil. Esses dados relativos ao registro arqueológico corroboram para validar a discussão sobre a presença de grupos que dominavam a técnica da agricultura, os quais muitos foram filiados à tradição Tupiguarani. A cultura material dessa tradição assemelha-se aos dados etnohistóricos dos grupos Tupi-Guaranis, os quais dominavam boa parte da costa durante o período de colonização. Esses teriam ocupado a costa em período recente, por volta de 2.000 AP e seu domínio inicia provavelmente após as culturas que eram essencialmente adaptadas à exploração de recursos marinhos, pois o ambiente litorâneo favorecia uma sedentarização 29 devido à alta disponibilidade de recursos (SCATAMACCHIA, 1991, 1993-1995 apud SOUSA, 2011). Com base na contextualização aqui traçada procedemos com a incorporação de algumas informações, tais como perfis técnicos, dados paleoambientais e etnohistóricos, processos formativos em sítio e datações que puderam elucidar nossas análises realizadas junto aos sítios Trairi I, Trairi II, Trairi III e Trairi IV, na praia de Flecheiras, no Ceará. 30 CAPÍTULO 2 – O APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO 2.1 UMA ARQUEOLOGIA DE ASSENTAMENTOS Sendo essa pesquisa direcionada para a compreensão de grupos que desenvolveram assentamentos que hoje estão localizados sob dunas holocênicas, consideramos a análise na perspectiva dos padrões de assentamento como a melhor abordagem para atingirmos o nosso objetivo, já que a dinâmica cultural e natural nesse ambiente é um fator de difícil acesso para a identificação e análise do material arqueológico, devido à ação eólica e antrópica na atualidade que são consideradas como destruidoras para os vestígios arqueológicos (SILVA, 2003). Estudos direcionados para a compreensão de assentamentos humanos são desenvolvidos há bastante tempo e seguiram ao longo do histórico das pesquisas os mais diversos pressupostos teóricos. O determinismo ecológico foi o primeiro deles, e se utilizava de uma análise fragmentada da história, onde o objeto de estudo se dava apenas pela cultura material, descontextualizando-o do espaço onde não era possívelatingir os fatores culturais (SENA, 2007). Dispostos a superar essas limitações alguns arqueólogos perceberam que ao se tratar do estudo de populações das quais não há dados concretos sobre sua estrutura social, econômica e do seu contato com outros grupos, é necessário, inicialmente, uma compreensão de como se dava a relação dessas comunidades com o meio ambiente. Barbosa-Guimarães (2011) apontou duas tradições arqueológicas para os estudos em Arqueologia de assentamentos, a britânica e a norte-americana. Na primeira escola as pesquisas iniciaram na década de vinte, porém pouco avançou até meados de cinquenta, pois David Clarck passou a incorporar nas análises um aspecto mais econômico, onde os seus seguidores direcionaram o foco para as áreas de captação de recursos (site catchments analysis). Nos EUA, apenas em fins da década de trinta tiveram inicio os estudos voltados ao padrão de assentamento, despontando o trabalho desenvolvido no vale do rio Virú, no Perú, por Willey, em 1953. Foi dessa forma que os fenômenos não culturais se tornam um aspecto importante para entender as mudanças na sociedade, e um novo modelo de interpretação se dedicou a esse entendimento, o Ecológico-Cultural, que para Steward, (1974 apud FRANCH, 1989) se definiu como o estudo dos processos pelos quais uma sociedade se adapta ao seu ambiente. Essa definição pouco se diferencia da proposta de Hole e Heizer (1973 apud FRANCH, 1989) 31 que a entendiam como um subcampo da Antropologia que buscava compreender o funcionamento da cultura no meio ecológico. Nesse enfoque, intrinsecamente relacionado a questões oriundas das Geociências a Ecologia passou a ser entendida como uma ciência que busca sintetizar os conhecimentos oriundos das ciências naturais e as condições das ciências sociais sobre o caráter das inter-relações entre a Natureza e a Sociedade (RODRIGUEZ et al, 2007). A partir disso vários pesquisadores passaram a considerar a temática sobre a relação homem-ambiente como fundamental para o desenvolvimento humano no passado (BINFORD, 2007; BUTZER, 1989), mesmo que em alguns casos o aspecto não cultural ainda fosse entendido como o mais importante para essa análise como defendido por Flannery (1967 apud RENFREW & BAHN, 1998). Em resumo, a Ecologia Cultural defendia uma evolução multilinear das culturas frente a uma pressão do meio (adaptação), ocasionando assim diferentes estruturas culturais e essas mudanças poderiam ocorrer nos sistemas de produção ou na tecnologia das comunidades. No enfoque Ecológico a cultura foi vista como um sistema, onde ocorrem trocas de energia, informações e matéria entre todos os seus componentes. Assim foi possível entender como fatores externos à cultura puderam influenciar em seus processos (JOHNSON, 2000). Dessa forma, os sistemas competem entre si pelo tempo e energia do indivíduo, no qual o sustento de seu modo de vida depende deles. A mudança cultural surge justamente nas pequenas alterações que podem ocorrer em um ou mais desses sistemas que assim buscam o equilíbrio. Dentro de cada um existem subsistemas que se retroalimentam e dessa forma mantém o equilíbrio do sistema, esse ao longo do tempo passa por uma série de estados diferenciados (RENFREW & BAHN, 1998). A Teoria Geral dos Sistemas (TGS) considerou importantes duas esferas: a ambiental e a sociocultural. Na primeira, se destacam os subsistemas geomorfológicos, da fauna, flora e o clima; enquanto que no meio social encontramos a cultura material, a economia, a religião, a psicologia e a sociedade (FRANCH, 1989; RENFREW & BAHN, 1998). Nessa teoria os sistemas culturais humanos estão inter-relacionados com o seu entorno e passam por mudanças contínuas, pois estão em processo evolutivo (SANJUÁN, 2005, p.189). Johnson (2000) destaca na Teoria dos Sistemas, que o seu funcionamento ocorre em função dos grupos humanos estarem minimamente adaptados ao ambiente externo. Nesse tipo de abordagem pode-se apenas observar os sistemas socioculturais, sem realmente compreendê-los, já que as normativas regenciais dos sistemas culturais são inalcançáveis. 32 Tomamos como referência para a Arqueologia observar as semelhanças e diferenças culturais nos grupos e identificar quais as relações existentes entre a sociedade e o ambiente. Essas características são triviais para a análise processual e estão no aspecto generalizante, já que traços comuns e recorrentes em sociedades podem ser descritos como semelhantes mesmo independentes de seu contexto ambiental, assim como ambientes semelhantes também podem gerar diferentes culturas, nota-se que o meio é o fator crucial para o entendimento das mudanças, ou seja, o homem e sua cultura são adaptáveis ao meio (BINFORD, 2007; BUTZER, 1989). Os sistemas são passíveis de uma modelagem voluntária, o que pode lhes render generalizações. Comparando os sistemas culturais com o meio ambiente é possível pensar que mudanças positivas ocorridas num dado subsistema o afetam como um todo, e para o retorno da homeostase é necessário uma adaptação à mudança ocorrida, caso essa seja negativa, isso pode significar o declínio do sistema. Os subsistemas estão relacionados, reconhecendo a funcionalidade uns dos outros e, a análise da relação entre os subsistemas deve ser feita por correlação, excluindo-se causas simples. Sobre as generalizações no enfoque processual, fica clara a sua postura homogeneizante, onde busca superar as explicações particularistas sobre cada fenômeno quando se demonstra a articulação entre as variáveis do sistema, dessa forma podendo-se criar leis generalizantes (MARTINÉZ, 1990). No entendimento da Nova Arqueologia, a partir do momento em que as sociedades precisam se moldar às alterações do ambiente, logo uma série de leis generalizantes podem ser aplicadas a qualquer população (BINFORD, 2007). O funcionalismo se relaciona com a ideia de que as culturas são parecidas a organismos, de modo que as partes se explicam segundo a função que realizam com relação ao conjunto. Logo a Arqueologia de assentamentos está inserida numa perspectiva funcional, onde as culturas são compreendidas como sistemas sociais (BARBOSA-GUIMARÃES, 2011). Lewis Binford (1962, 1964 apud MILLER, 2012) considerou que a pesquisa arqueológica devia ser o panorama sobre grupos que tenham desempenhado atividades organizadas de captação de energias e matérias do ambiente, ou que tenha transformado tais matérias para produzir instrumentos ou energias utilizáveis. Franch (1989) descreve que um dos aspectos dos quais se deve considerar nas relações entre sociedade e meio-ambiente é, em parte o potencial natural e a outra, a capacidade tecnológica da cultura para explorar esse potencial. Sobre a tecnologia, Miller (2012) a 33 considera de forma que os artefatos usados para lidar com o ambiente são fontes de energias para sistemas socioculturais humanos. A adaptação funciona como reposta ao desequilíbrio no sistema, influenciando a tecnologia, a sociologia e a ideologia nos grupos. Para White (1959 apud BINFORD, 2007) a cultura é um meio extrassomático pelo qual o corpo humano se adapta. A New Archeology costuma explicitar esse tipo de desequilíbrio por meio de teorias cataclísmicas, como por exemplo, o aumento exacerbado da densidade demográfica, secas climáticas, terremotos, etc. Martinéz (1990) descreve que essas transformações, no caso dos artefatos, podem ser constituídas dentro da sociedade, podendo ser oriundas de pressões demográficas ou de relações intergrupais, porém, é a mudança ecológica a chave da causalidade, a tecnologia atinge a organização social e esta a sua ideologia. As estratégias adaptativas são respostasde um sistema às alterações internas e/ou externas que influem no padrão de assentamento dos grupos que habitaram uma determinada área que pode ser analisada a partir da percepção das alterações dos componentes fisiogênicos, biogênicos e antropogênicos (BUTZER, 1989). Porém, mesmo havendo semelhanças e diferenças nos registros arqueológicos, as explicações para tal devem ser feitas com base nos conhecimentos atuais sobre as características estruturais e funcionais dos sistemas culturais (BINFORD, 2007). A variabilidade é um aspecto importante para a análise, já que não se busca apenas por grandes e monumentais sítios, mas também por locais onde a amostra registrada seja capaz de representar as mudanças na cultura (JOHNSON, 2000). 2.2. SOBRE OS PADRÕES DE ASSENTAMENTO E A IMPORTÂNCIA DA PAISAGEM EM SUA ANÁLISE Após nossa contextualização sobre a formação do pensamento a respeito dos estudos arqueológicos em assentamentos, destacamos o modelo inaugurado por Gordon Willey, em 1953, com a sua pesquisa no Vale do Virú. Partindo de uma perspectiva funcional, ele analisou vários fatores ambientais, estruturas sociais e as manifestações culturais de um grupo e percebeu que para compreendê-los é preciso analisar todos os dados dando-lhes a mesma relevância e que essas variáveis funcionam como redes conectadas, onde cada sítio possui atribuições distintas e complementares, com níveis hierárquicos de importância em sua composição (TRIGGER, 2004). 34 Trigger (1968 apud FRANCH, 1989) destaca as possibilidades de abordagens nesse tipo de estudo, pelo aspecto ecológico, buscando a distribuição de assentamentos e as inter- relações existentes, estratégias de sobrevivência, a tecnologia e o geoambiente; no fator espacial, se entende por todas as evidências no sítio como parte da organização social do grupo residente. Beber (2004 apud LIMA, 2006) percebe o padrão de assentamento como uma sucessão de ocupações em um determinado espaço, resultantes da ocupação por diversos grupos que apresentavam distintas culturas ou por uma mesma sociedade que passou por transformações culturais ao longo do tempo de ocupação. Dessa forma quanto maior a permanência em um dado local, mais expressivo e complexo de compreender seriam essas ocupações. Dentro desse período de estabelecimento da comunidade é possível acontecer algumas mudanças de cunho social e ambiental que podem resultar em transformações na tecnologia dos grupos. Dois enfoques se destacaram nos estudos sobre Padrão de Assentamento em meados da década de sessenta: o determinista ecológico que percebe esse estudo como o resultado da interação entre ambiente e tecnologia numa análise inter-sítios ou macro-estrutural; enquanto que o outro enfoque se detém aos aspectos ideológicos e sociais que são percebidos na forma de ocupação e cuja análise é a intra-sítio (DIAS, 2003). O desenvolvimento das pesquisas nesse último resultou na criação de uma abordagem mais ampla: o sistema de assentamento. Trigger (1967 apud BARBOSA-GUIMARÃES, 2011) o compreendia numa relação entre vários níveis de análise, tais como a estrutura individual, o assentamento local e a distribuição dos assentamentos numa região. Nesse quadro é possível que grupos semelhantes tenham desenvolvimentos diversos, já que estão submetidas a ambientes diferenciados e apenas com as condições naturais e socioculturais bem determinadas é possível entender as relações entre ambas (FRANCH, 1989). Corteletti (2009) observa que na abordagem para o padrão e do sistema de assentamento regional é necessário um complexo exercício teórico de inter-relações entre muitas variáveis de cunho ecológico, espacial, etnográfico e arqueológico. Com o conhecimento desses fatores será possível identificar padrões de organização, distribuição e implantação dos sítios na paisagem. Tendo a paisagem arqueológica papel importante para a análise dos padrões, é nesse tipo de Arqueologia, que para Lima 35 os sítios contextualizados no ambiente passam a ser elementos de uma rede onde o ambiente e sua mobilidade é representativa e pode reconstruir os diversos momentos da paisagem. O estabelecimento do padrão de assentamento de um conjunto de sítios além de contribuir para a identificação de um ou mais traços culturais, numa espacialidade e temporalidade determinada, favorece na montagem de um modelo de ocupação e exploração deste espaço em momentos de estabilidade ou de alteração climática (2006: 57). Concebendo a paisagem como um sistema é necessário perceber a sua existência como um todo, compreendendo as inter-relações entre as várias partes que existem dentro do sistema. Na concepção da Geografia a paisagem natural se apresenta dinâmica, o que não implica afirmar que seus elementos estão caoticamente mesclados, mais sim como conexões em harmonia entre a estrutura e a função, logo esse é um espaço físico e um sistema de recursos naturais aos quais se integram as sociedades em um binômio inseparável Sociedade/Natureza (RODRIGUEZ et al, 2007). No contexto de nossa pesquisa a Arqueologia da Paisagem colabora no sentido de que impulsiona estudos direcionados para a compreensão das estruturas internas de um sítio, sendo esses o resultado da ação de fatores naturais e antrópicos que indicam as transformações ocorridas ao longo do tempo e fazendo parte da evolução da paisagem (DIAS, 2003). Para a análise da paisagem em Arqueologia, Anschuetz et al. (2001 apud SANTOS, 2013, p.21), ressalta alguns pontos dos quais devem ser considerados para esse procedimento: a) A paisagem não pode ser entendida apenas como meio ambiente e sim como as interações entre o homem e o meio que o envolve. b) A paisagem é uma produção cultural, uma vez que os espaços físicos são construídos a partir de atividades diárias, crenças e valores, sendo assim uma composição do mundo. c) A paisagem é o palco das atividades comunitárias, sendo a construção das populações que a habitaram e o meio no qual vivem e tiram sua subsistência. d) A paisagem é uma construção dinâmica e as comunidades introduzem seu mapa cognitivo de mundo. Para Fagundes (2009 apud QUARESMA, 2012) pensar a paisagem sob o ponto de vista da sobrevivência humana não é uma visão errônea, já que é por meio da captação dos recursos presentes num dado ambiente que qualquer grupo busca a sua sobrevivência, logo essa questão deve ocupar uma importante posição de destaque nas estruturas intergrupais. Vale ressaltar que é a partir desses recursos naturais, compreendidos aqui como os corpos e 36 forças da Natureza, que em um dado nível de desenvolvimento das forças produtivas pode-se utilizar para satisfazer as necessidades da sociedade humana, através de sua participação direta nas atividades materiais (RODRIGUEZ et al, 2007) que o homem possui meios para a fabricação de artefatos e para a sua dieta. Entre os processos que também possibilitam um melhor entendimento sobre a relação do homem e o meio ambiente é a perspectiva que trata dos processos de formação do registro arqueológico que muito podem colaborar para o entendimento da paisagem. Shiffer (1976 apud SILVA, 2003) apontou duas variáveis importantes para a compreensão dos processos formativos, o aspecto cultural (C-Transforms) e o natural (N- Transforms), no primeiro estão inseridos características de deposição de itens materiais como operações cotidianas de um sistema cultural, incluem-se aqui as ações humanas pós- deposicionais. No segundo contexto é possível determinar as interações entre os vestígios e os aspectos do meio ambiente, onde foram recuperados. Indubitavelmente o registro arqueológico passa
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