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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM HISTÓRIA JORDANIA MARIA PESSOA ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE: A BELLE ÉPOQUE CAXIENSE Práticas fabris, reordenamento urbano e padrões culturais no final do século XIX TERESINA-PI 2007 2 JORDANIA MARIA PESSOA ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE: A BELLE ÉPOQUE CAXIENSE Práticas fabris, reordenamento urbano e padrões culturais no final do século XIX Dissertação apresentada, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História do Brasil, ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí. Orientador: Prof. Dr. José Luiz Lopes Araújo Co-orientador: Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento TERESINA-PI 2007 3 JORDANIA MARIA PESSOA ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE: A BELLE ÉPOQUE CAXIENSE Práticas fabris, reordenamento urbano e padrões culturais no final do século XIX Dissertação apresentada, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História do Brasil, ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí. Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida e aprovada pela Comissão Julgada em ____/ ____ / ____. BANCA EXAMINADORA Prof Dr José Luiz Lopes Araújo – UFPI (Orientador) Profª. Drª. Regina Helena Martins de Faria – UFMA (Examinadora) Profª. Drª. Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz – UFPI (Examinadora) TERESINA 2007 4 Princesa do Sertão Muitas vezes pensando nos remotos Dias ilustres desta grande terra, Vejo passarem diante dos meus olhos, Soberbos e mais belos do que nunca Os heróis das batalhas mais famosas E os peregrinos poetas que os cantam. (Afonso de Moura Cunha) 5 A Deus, Criador e Pai. A Jesus Cristo, meu único e verdadeiro mestre. Ao Santo Espírito, doce e gentil. À minha querida mãe, Teresinha de Jesus Mourão, que recentemente partiu para o Paraíso. Dedico a você, mãezinha, este trabalho. Obrigada pelo modelo de vida que foste para mim. A toda a minha família, para que permaneçamos sempre unidos. 6 AGRADECIMENTOS Ao Centro de Estudos Superiores de Caxias (CESC - UEMA), por ter me liberado para o mestrado. A todos os meus amigos professores do Departamento de História (CESC - UEMA), pela compreensão e incentivos constantes. À professora Maria do Carmo (in memorian), que me acompanhou passo a passo no mestrado, principalmente nas idas à São Luís para a realização das pesquisas. Aos caxienses, que contribuíram com informações e documentos imprescindíveis a este trabalho, em especial ao prof. Neudson, Joana Batista, Joseneide, Eliane Almeida, sr. Teodomiro, sr. Farias e o inestimável poeta Quincas Vilaneto. Aos ludovicenses, que me acolheram e indicaram-me fontes importantíssimas para a realização deste trabalho, em especial aos funcionários da Biblioteca Pública Benedito Leite. À minha amiga e pesquisadora Rosana, sem a qual este trabalho não passaria de um sonho. Aos amigos Francisca e Isaías, que me acolheram em sua residência em São Luís. Ao Prof. Dr. José Luiz Lopes Araújo, meu orientador, pela paciência, ensinamentos e cuidados para comigo. 7 Ao Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento, meu co-orientador, por todos os conhecimentos transmitidos, sempre gentil e sorridente para comigo. Ao Prof. Dr. Edwar Castelo Branco, pela valiosa contribuição prestada no processo de qualificação. À Profa. Doutoranda Elisângela (UFPI), pelas valiosas dicas, quando este trabalho ainda era um simples projeto. A todos os meus colegas de mestrado, pela ótima ambiência de sala de aula e pelos maravilhosos momentos de descontração. A todos os meus amigos e colaboradores, que possibilitaram a realização deste sonho, meu sincero obrigado. 8 RESUMO Trata dos discursos e práticas que constituíram Caxias como uma cidade fabril no final do século XIX. Analisa os vários dizeres que partiram da elite caxiense e da imprensa, através de uma elite letrada, que conectou a cidade aos símbolos modernos, como a ferrovia, objetivando-a como progressista e civilizada. Detecta o novo sentido de urbanidade empreendido pelo poder público, através dos códigos de posturas, visando reordenar o espaço urbano a partir de modelos importados. Analisa os padrões culturais que emergem na cidade no final do século XIX, que às vezes se contrapunham, às vezes se legitimavam nas tradições arraigadas em valores aristocráticos e escravistas. Conclui que os discursos e práticas que conectaram a cidade aos tempos modernos, constituíram imagens e representações mais grandiosas do que as transformações vivenciadas pelos citadinos. PALAVRAS-CHAVE: Cidade. Modernidade. Indústrias Têxteis. Discursos. Representações. 9 RESUMEN Trata de los discursos y las prácticas que señalaran Caxias como uma ciudad fabril en lo final del siglo XIX. Analiza los múltiples dichos que partiyeran de la elite caxiense y de la prensa, por medio de uma elite letrada, que enchufou la ciudad a los símbolos modernos, como la ferrocarril, visando a ella como progresista y adelantada. Detecta lo nuevo sentido de urbanidad empreendiendo por el poder publico, por medio de los códigos de posturas, visando ordenar nuovamente lo espacio urbano desde ejemplo importados. Analiza los moldes culturales que emergen en la ciudad en lo final de lo siglo XIX, que se a veces se contrariyean, a veces se validan en las tradiciones fijadas en valores aristocraticos y esclavista. Ultima que los discursos y prácticas que enchufaran la ciudad a los tiempos modernos, señalaran imagénes y representaciones más gradiosas do que las transformaciones vividas por las personas de la ciudad. PALABRAS-LLAVE: Ciudad. Modernidad. Industrias Textiles. Discursos. Representaciones. 10 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Foto 1 - Ponte ligando Caxias ao distrito da Trezidela e o Porto da Cidade............. 41 Foto 2 - Industrial Caxiense: primeira indústria têxtil de Caxias................................ 49 Foto 3 - União Caxiense: segunda indústria têxtil de Caxias.................................... 52 Foto 4 - Navegação Fluvial Maranhense................................................................... 64 Foto 5 - Estações ferroviárias: Caxias a Flores; de Flores a Caxias........................ 66 Foto 6 - Igrejas de Caxias: N. S. Rosário, São Benedito e Matriz............................. 81 Foto 7 - Bairro Ponte................................................................................................. 83 Foto 8 - Roncador de Caxias..................................................................................... 88 Foto 9 - A moda d’A Revista.................................................................................... 12711 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 12 1 CIDADE E BELLE ÉPOQUE: DISCURSOS, PRÁTICAS FABRIS E O IMAGINÁRIO PROGRESSISTA............................................................................... 24 1.1 Dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória: a polifonia de um cenário urbano........................................................................................................... 24 1.2 A euforia fabrilista e as ações modernizadoras.................................................. 38 2 CIDADE E NOVOS PADRÕES DE URBANIDADE.............................................. 68 3 OS NOVOS PADRÕES CULTURAIS E O MUNDO DO TRABALHO NA CIDADE BELLE ÉPOQUE ..................................................................................................... 97 3.1 Mundanismo chique e elegante no universo elitista.......................................... 115 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 128 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 133 12 INTRODUÇÃO Quando cheguei, pela primeira vez, para trabalhar no Centro de Estudos Superiores de Caxias (CESC-UEMA), no ano de 1999, deparei-me com um duplo desafio: adaptar-me a um novo ambiente de trabalho e a uma cidade desconhecida e, de certa forma, enigmática. Logo procurei, numa visão panorâmica, capturar um pouco da cidade e percebi que, sozinha, não poderia conhecê-la, pois era labiríntica demais. Procurei, então, alguns caxienses com quem já havia iniciado um processo de socialização para que pudessem cartografar aquela cidade para mim. Falaram-me que isso só seria possível através de uma visita aos labirintos que davam significado às suas avenidas, ruas, becos e monumentos. Também me avisaram que, nesse passeio, iríamos conhecer uma cidade marcada por vários tempos longínquos e gloriosos, sangrentos e poéticos. Fiquei a indagar-me: como uma cidade do interior do Maranhão, distante da capital São Luís mais de 450 quilômetros, cercada por morros e por uma pomposa vegetação, poderia conter em si uma trajetória histórica à primeira vista tão gloriosa? E comecei a percorrer o itinerário traçado. Então, logo me deparei com uma sensação estranha, pois parecia que eu havia penetrado num túnel do tempo através de uma cidade que trazia em si várias outras, como tempos empilhados. Lembrei-me das Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino1, e constatei que a configuração de Caxias comportava concomitantemente passado e presente. Pensei: as formas que a cidade foi adquirindo só podem ser explicadas pela própria História. 1 Cf. CALVINO, Í. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 13 Assim fui decifrando Caxias, como uma cidade em que história e memória perpassam o cotidiano das pessoas numa relação na qual a vivência cotidiana é permeada pelo relembrar dos grandes marcos existentes na cidade, que contribuíram para a construção da História do Brasil. Nesse universo polifônico, cindido entre passado e presente, visitei os espaços onde ocorreram as lutas contra as tropas portuguesas de Fidié, no processo de adesão do Maranhão à Independência do Brasil. Deparamo-nos com as ruínas da Revolta da Balaiada, ocorrida no Período Regencial. Vislumbrei, nesse momento, um tempo de escravos e senhores, conservadores e liberais e, principalmente, a constatação de que aquele espaço foi palco de várias lutas. Visões de mundo e projetos políticos antagônicos passaram por minha cabeça. Visitamos as suas praças e os respectivos monumentos erigidos aos seus filhos ilustres – Coelho Neto, Gonçalves Dias e tantos outros. Percebi que aquela cidade respirava poesia, e entendi porque, na “Canção do Exílio”, Gonçalves Dias2 imortaliza sua terra natal: Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Em Caxias, poesia rima com poetar. Poetar a cidade, sua história e seus feitos gloriosos. Poetar os amores possíveis e impossíveis. Enfim, a poesia como marca profunda de várias gerações agora imortalizadas pelo manto da Academia Caxiense de Letras. 2 DIAS, G. Poemas de Gonçalves Dias. Sel. Péricles Eugênio da Silva Ramos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 19. 14 Continuei a visita extasiando-me com uma arquitetura suntuosa: casarões e templos religiosos requintados e de estilos ecléticos, numa demonstração de que a cidade havia passado por um período de riqueza material que lhe proporcionara um requinte estético glamouroso demais para uma simples cidade interiorana. Visitamos várias fontes de água natural, dentre elas a popular Veneza. Lá nos deslumbramos com as pompas da mãe natureza e com o tradicional “pirão de parida” — uma iguaria digna de ser provada. No final da tarde, quando parecia que já tínhamos visto tudo, o meu amigo e guia turístico lembrou-me de que havia esquecido de mostrar o edifício da antiga fábrica de tecidos União Caxiense, hoje transformada em centro cultural. Diante dessa edificação parei extasiada, visto ser uma construção luxuosa, seguindo os padrões arquitetônicos do final do século XIX. Através dela pude vislumbrar o quanto os caxienses do final do século XIX enebriaram-se com os ventos do progresso, sendo os pioneiros da indústria têxtil no Maranhão. Como Berman3 declarara, os ventos do progresso são como turbilhão, e nem mesmo a interiorana Caxias escapou das tentativas de tornar-se moderna. Visualizei o cotidiano fabril daquele período, os operários outrora imersos no labor da agricultura e, naquele momento, transformados em trabalhadores fabris. Pensei também na visão de mundo dos homens que comandavam os destinos de Caxias naquele momento histórico. Terminada essas e tantas outras visitas, não pude mais me desvencilhar daquela cidade, que passou a me inquietar e a gerar vários questionamentos em meu cotidiano profissional. Passei a desejá-la, tornando-a objeto de meus estudos, das minhas pesquisas. Nesse sentido, procurei mapear e penetrar nos vários 3 BERMAN, M. Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 15 discursos que tentaram construir a imagem de Caxias na sua trajetória histórica. Neles fui percebendo uma cidade delineada por várias representações que, a partir da segunda metade do século XVIII e ao longo de todo o século XIX, foram dando formas a Caxias e a constituindo como a Princesa do Sertão. Apesar de tudo, indaguei-me: como reportar-me somente ao passado de Caxias, sabendo que a sua grande angústia no presente e de todo o Maranhão é serem vistos como a “terra do já teve”?4. Nesse sentido, Nietzsche5 ajuda-nos a dirimir essa questão aflitiva quando nos ensina que o olhar ao passado deve nos impelir ao futuro e que devemos cultivar a história em função dos fins da vida. Por isso, passei a pesquisar o passado histórico de Caxias não como uma forma de reedição no presente – como se isso fosse um “mecanismo de defesa histórica, justamente para evitar, prevenir o novo que assusta”6 – mas consciente de que História, muitas vezes, é uma contra-memória, pois é a “reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais”7. Nesse sentido, parti para as pesquisas no sentido de “ler” uma cidade em suas reminiscências. Para isso, utilizei- me da estratégia de um historiador-detetive,recolhendo sintomas, indícios e pistas que, combinados ou cruzados, permitem deduções e revelam significados8. Nessas investigações chamou-me particularmente a atenção o final do século XIX, quando a cidade, por meio da imprensa, foi euforicamente denominada de a “Manchester maranhense”. Escolhi trabalhar este período perquirindo, em 4 MACEDO, E. T. de. O Maranhão e suas riquezas. São Paulo: Siciliano, 2001. 5 NIETZSCHE, F. Da utilidade e desvantagem da história para a vida (1874). In: Obras Incompletas. Col. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000. 6 BENJAMIN apud MATTOS, A. Memória e história em Walter Benjamin. In: O direito a memória. São Paulo: DPH, 1992, p. 151. 7 NORA, P. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. São Paulo: Projeto História, 1993, p. 06. 8 Cf. GINZBURG, Carlo. Raízes de um paradigma indiciário. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 16 especial, os discursos e as práticas encampados pela elite caxiense9 e defendidos exaustivamente, através da imprensa, por uma elite letrada10; tais discursos e práticas foram imbrincando Caxias ao fabrilismo têxtil, ressignificando todo o sentido de urbanidade, na cidade, naquele período. Só que estes discursos de cunho moderno estavam presos a uma teia discursiva em que a memória histórica da cidade era revisitada. Fomos percebendo que Caxias, ao longo da segunda metade do século XVIII, ganhara visibilidade como grande produtora de algodão destinado à exportação, e os discursos que a objetivaram impingiram-na o estigma da opulência. Este incremento comercial foi proporcionado pela Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, fundada pelos portugueses para explorar as potencialidades da região. A partir da segunda metade do século XIX, a cidade – e todo o Maranhão – passa por uma forte crise econômica na qual o seu principal produto, o algodão, sofria grande concorrência externa, principalmente dos Estados Unidos. A cidade, neste período, foi objetivada pelo estigma da decadência tão propalada pela imprensa local, que exigia providência por parte do governo provincial do Maranhão, no sentido de resgatar todo o esplendor que Caxias havia alcançado. Assim, percebemos que para investigarmos a Caxias fabril do final do século XIX, não podíamos perder de vista toda uma memória discursiva que a prendia, respectivamente, à opulência e à decadência. 9 No presente trabalho, definimos como elite caxiense o grupo social formado por latifundiários e comerciantes cujo poder aquisitivo baseava-se na posse da terra e em riquezas conquistadas através das práticas agrícolas e das relações comerciais desenvolvidas na região. 10 Elite letrada estará designando, neste trabalho, um grupo de pessoas que, através de uma escritura erudita, imprimirá na imprensa caxiense um conhecimento vasto e universal, que transitará por vários campos do conhecimento, transmitindo uma visão de mundo. Durval Muniz afirma que o erudito como uma figura de sujeito do conhecimento permeará o mundo ocidental até o final do século XIX. Cf. ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. De amadores a desapaixonados: eruditos e intelectuais como distintas figuras de sujeito do conhecimento no ocidente contemporâneo. Trajetos, revista de história. Fortaleza: UFC, 2005. p. 43-66. 17 Neste sentido, partimos para a catalogação das fontes que pudessem nos ajudar a construir o nosso objeto de estudo. Conseguimos garimpar jornais de época, leis e regulamentos, códigos de posturas, revistas e uma ampla produção historiográfica maranhense sobre o período. Encontramos uma vasta documentação nos arquivos da Biblioteca Estadual Benedito Leite, em São Luís. Nestes arquivos, pudemos selecionar e pesquisar uma vasta empiria, que consubstanciou o nosso objeto de estudo. Selecionamos, em especial, quatro jornais de época: jornais Commercio de Caxias e Gazeta Caxiense, editados na cidade de Caxias, e Publicador Maranhense e Diário do Maranhão, editados em São Luís mas com circulação em todo o Maranhão, publicando inclusive matérias específicas sobre as cidades interioranas, como Caxias. Recortamos as décadas de 70, 80 e 90 do século XIX, por nos fornecerem uma trajetória dos acontecimentos que foram constituindo uma Caxias fabril. Quanto à razão para a escolha daqueles quatro periódicos, e não de outros, deu-se pelo fato de que eles apresentavam maior quantidade de matérias acerca do período que classificamos como belle époque. Quanto à linha editorial desses jornais, percebemos que transmitiam uma visão do Maranhão a partir do foco da elite e da estrutura de poder que a legitimava, como comprova o fato de periódicos como o Publicador Maranhense receberem subvenções do governo maranhense. Em relação àqueles editados em Caxias, percebemos algumas diferenças quanto à linha editorial; o Commercio de Caxias atendia basicamente aos interesses da elite caxiense e do poder constituído, enquanto o Gazeta Caxiense era mais combativo, principalmente em relação aos atos administrativos da Câmara Municipal e da Intendência. Isto demonstra as 18 disputas de poder existentes no solo caxiense, historicamente constituídas entre liberais e conservadores. Portanto, ao analisarmos os discursos da elite letrada, teremos por base que os seus lugares de sujeito partem dos interesses políticos travados na cidade. Catalogamos, também, um corpus documental abrangendo leis e regulamentos, tanto em nível estadual como municipal. Tivemos também acesso aos Códigos de Posturas de Caxias das décadas de 70 a 90 do século XIX. Toda esta documentação nos forneceu a trajetória dos atos administrativos da Câmara e da Intendência Municipal de Caxias no período pesquisado, dando-nos a visão de cidade construída pelo poder público e, em especial, a noção de espaço urbano que consubstanciava os atos administrativos. Analisando o material coletado, percebemos que a cidade de Caxias do final do século XIX, além de vivenciar toda uma euforia fabrilista e um imaginário progressista atrelado aos símbolos modernos, como a ferrovia, passou por tentativas de reordenamento urbano através da implantação de incisivos códigos de posturas, nem sempre fáceis de serem colocados em prática numa cidade ainda presa a sociabilidades tipicamente rurais. O consumo que as pessoas faziam da urbe atendia a práticas subversivas de espaço, típicas de uma cidade colonial. Outro aspecto que nos chamou à atenção foi a mudança na visão de trabalho praticado na cidade, que ascendia do trabalho escravo ao livre, seguindo a esteira do fabrilismo têxtil. Também nos deparamos com uma cidade revestida por novas sociabilidades, atreladas ao consumo de produtos chiques e elegantes, 19 seguindo padrões europeus e se harmonizando às exigências de uma elite formada por uma rica tradição europeizada. Para entendermos as transformações pelas quais Caxias passava, procuramos fazer um estudo em nível de historiografia maranhense que nos ajudasse a compreender a trajetória histórica do Maranhão, na passagem do trabalho escravo para o livre. Obras como História do Maranhão (2001), de Mário Meirelles; A Ideologia da Decadência (1982), de Alfredo Wagner Almeida; A Desagregação do Sistema Escravista no Maranhão (1990), de Jalila Ribeiro; As Origens da Indústria no Sistema Agro-Exportador Maranhense (1988), de José Ribamar Caldeira, dentro outras, nos forneceram subsídios para a compreensão de uma Caxias fabril que despontava no final do século XIX. Para entendermos aquela Caxias fabril, recorremos a alguns conceitos basilares. De Foucault tomamos de empréstimo o conceito de discurso,que se refere “às práticas que se tornam modo de pensamento, com sua lógica, estratégia, evidência e razão própria. Enfim, como uma reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos”11. Isto nos ajudou a compreender como os discursos proferidos pela elite caxiense instituíram uma Caxias fabril mais grandiosa do que as próprias experiências vivenciadas pelos sujeitos históricos daquele período. Dele também recorremos à idéia de práticas, entendida como o que fazem as pessoas, suas ações na vida cotidiana; as coisas só existem para uma prática que as objetiva, que lhes dá significado. 11 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2001, p. 10. 20 Outra idéia cara a Foucault que ganha relevância no nosso trabalho é a idéia de subjetivação. Para ele, o homem não é realidade natural, originária, nem sempre foi a mesma coisa que é hoje; ou seja, o pensamento foucaultiano propõe o rompimento com a idéia de homem universal, idéia segundo a qual, para além das aparências, existiria uma essência humana que estaria presente e que seria sempre a mesma. Foucault acredita que o sujeito é produto, é construído nas práticas, no fazer cotidiano. Porém, essa construção não se dá de forma passiva, pois ele, o sujeito, participa desse processo de subjetivação, que é um processo dinâmico, contínuo, ininterrupto. Isto nos ajudou a entender como a elite caxiense pretendeu, no final do século XIX, através de seus discursos e práticas, subjetivar-se de uma outra forma em uma cidade que emergia não mais atrelada às práticas agrícolas tradicionais, mas conectada aos tempos modernos, através das indústrias têxteis. Objetivaram, assim, uma outra cidade, onde um novo ordenamento social fazia-se necessário através do disciplinamento do uso do espaço urbano. Outro interlocutor que nos ajudou a clarear o nosso objeto de estudo foi Chartier, através do conceito de representação, considerada como “instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é”12. Através deste conceito pudemos compreender como a constituição histórica de Caxias foi delineada por várias representações que foram dando contornos à sua materialidade e que subsidiaram as apreensões do “real” por parte 12 CHARTIER, R. A História Cultural Entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: DIFEL, 1990, pág. 20. 21 da elite caxiense, dando suporte à nomeação eufórica de Caxias como a Manchester Maranhense. Outra abordagem teórica que subsidia todo este trabalho diz respeito à temática Cidade, que vem ocupando um lugar de destaque como objeto de estudo nos trabalhos acadêmicos, inserida nos desafios contemporâneos da chamada História Cultural, que, segundo Lynn Hunt13, veio a dar uma nova forma de a História trabalhar a cultura, que passou a ser pensada, acima de tudo, como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. Nesta perspectiva, a temática Cidade passou a ser analisada, sobretudo, como um problema e um objeto de reflexão no qual não se estuda “apenas processos econômicos e sociais que ocorrem na cidade, mas as representações que se constroem na e sobre a cidade”14. Para a escrita deste trabalho, no que concerne a este tema, foram de fundamental importância obras como Cidades Invisíveis (1990), de Ítalo Calvino; O Que é Cidade (1995), de Raquel Rolnik; As Faces do Monstro Urbano (1984), de Maria Stella Brescianni; O Imaginário da Cidade (2002), de Sandra Pesavento; (Des)Encantos Modernos (1997), de Antonio Paulo Resende; Cidade Febril (1996), de Sidney Chalhoub, dentre outras. Estas obras nos ajudaram a compreender o fenômeno do urbanismo ou ciência urbana, que resultou num vasto conhecimento acerca dos problemas da urbe, contribuindo para elaboração de políticas urbanas e práticas de intervenção estatal no cotidiano citadino. Dividi o trabalho em três capítulos, nos quais procuro mostrar a emergência fabril no universo belle époque de Caxias no final do século XIX. 13 HUNT, L. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 14 PESAVENTO, S. J. História e História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte – MG: Autêntica, 2004, pág. 08. 22 No primeiro capítulo, abordo primeiramente o fato de que os discursos proferidos pela elite caxiense do reerguimento da cidade em torno do fabrilismo têxtil apoiavam-se ou tentavam suplantar toda uma memória discursiva que atrelou Caxias primeiramente à opulência e posteriormente à decadência, entre a segunda metade do século XVIII e o século XIX. Em seguida, analiso como a euforia fabrilista gerou todo um imaginário progressista em Caxias, atrelado ao fetichizante mundo dos maquinários modernos, como a ferrovia, que proporcionou a formação de várias sociedades anônimas com o intuito de empreender ações modernizadoras no espaço urbano, sendo que muitas delas tornaram-se realidade e outras só ficaram no âmbito do desejo. No segundo capítulo, analiso as tentativas de reordenamento do espaço urbano por meio dos códigos de posturas, organizados pelo poder público através da Câmara de Vereadores. Analiso o distanciamento entre o aparato jurídico e as práticas de espaço vivenciadas pelos habitantes citadinos, típicas de uma cidade colonial, onde as curvas do espaço geográfico influenciam no estilo de morar. No terceiro capítulo, analiso o universo caxiense quanto ao mundo do trabalho e das sociabilidades vivenciadas, principalmente pela elite, em torno de padrões culturais marcados pelo requinte europeu. Neste capítulo, o que subsidia toda a análise é o forte contraste social que permeia a constituição histórica da sociedade caxiense, onde coabitam, no mesmo espaço, de um lado, pessoas cuja sobrevivência depende ainda de práticas agrícolas tradicionais ou da venda de sua mão-de-obra às atividades comerciais ou fabris; e de outro, uma elite herdeira das tradições coloniais e de uma requintada educação ao estilo europeu. 23 Permeando os três capítulos, temos o embate entre a prática discursiva da elite caxiense, que almejava edificar uma cidade fabril e moderna, com as tradições que ainda a prendiam a um provincianismo típico de cidade colonial. Isto consubstanciará a nossa narrativa a seguir. 24 1 CIDADE E BELLE ÉPOQUE: DISCURSOS, PRÁTICAS FABRIS E O IMAGINÁRIO PROGRESSISTA 1.1 Dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória: a polifonia de um cenário urbano Decifrar uma cidade é penetrar em seus enigmas e mistérios. É desvelar as várias camadas representativas de sua história, como tempos empilhados de uma construção palimpséstica, cujas camadas constituíram esse espaço. Mas o desvelar também possui os seus enigmas, pois traz em si o olhar de quem observa os traçados e as ferramentas utilizadas. Dessa forma, o estudo sobre uma cidade, como objeto no qual se vasculham suas entranhas, apresenta-se articulado às várias representações e imagens que a constituíram e que deram significado aos contornos de sua materialidade, pois “uma cidade, antes de aparecer na realidade, existe como representação simbólica”1. Isto nos reporta à percepção de que uma cidade é constituída de várias imagens e de que “não se deve confundir uma cidade com os discursos que a descrevem”2, pois eles trazem, antes de tudo, a constituição de uma imagem idealizada que se reflete em vários sentidos, nos quais os traços da diferença são peculiares e que, ao invés depreencher uma só cidade, constroem as bordas de várias cidades particulares.3 É na tessitura de um mosaico específico, constitutivo da cidade de Caxias, que enveredamos, particularmente nos discursos e práticas que se 1 PESAVENTO, S. J. O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano. Porto Alegre: EDUFRGS, 2002, p. 262. 2 CALVINO, I. Op. cit.,1990, p. 59. 3 Id. ibid., p. 34. 25 associaram ao fabrilismo têxtil no final do século XIX, aspecto este que contribuiu para uma ressignificação do sentido de urbanidade nesta cidade, naquele período histórico. Neste sentido, questionaremos como esses discursos , encampados pela elite caxiense e defendidos exaustivamente por uma elite letrada, através da imprensa local, contribuíram para a subjetivação de um “novo” caxiense, como também objetivam uma “nova” Caxias, nomeada euforicamente de a “Manchester Maranhense”4. Partindo dessas premissas, constatamos, inicialmente, que as imagens transmitidas através destes discursos representavam a confluência de um espaço urbano entre um presente que acena com novas possibilidades e uma memória discursiva que precisava ser suplantada ou até mesmo esquecida. Caxias procura ressuscitar das próprias cinzas. Não há muito ainda, embora nas recordações do passado, cismava distraída, semelhante ao indivíduo de espírito fraco, que vendo fugir-lhe uma opulência que não soube conservar, vesga ao peso da adversidade, e não tenta reagir contra os embaraços, criados talvez pela própria imprevidência. [...] As torrentes de ouro que do sertão desta e de outras províncias vinham, estagnaram-se em suas arcas, estavam extintas. As ricas comarcas de Carolina, Boa Vista e outras [...] preferiram mandar seus produtos ao grande mercado de Belém. Por outro lado, Parnaíba, Teresina e Amarante constituíam barreira insuportável, vedando todo o comércio com o Piauí. [...] Viu-se perdida. Pensou então que só podia salvar-se tornando-se industrial, e, para começar, resolve fundar uma fábrica de tecidos5. Nas representações contidas neste discurso, temos as múltiplas objetivações que foram dando forma a Caxias. Nelas, a cidade apresenta-se em múltiplas temporalidades que respectivamente partiam de uma memória discursiva 4 Jornal Commercio de Caxias. Caxias – MA, 09 set. 1893, p. 01. 5 Jornal Commercio de Caxias. Caxias – MA, 01 jan. 1888, p. 01-02. 26 na qual Caxias havia vivido momentos de opulência e de grande destaque na região, atingindo a posição de grande “Empório do Sertão”. Em seguida, presentifica um estado de letargia marcado pela estagnação econômica, em que suas relações comerciais haviam perdido espaço para outras regiões do Maranhão e para a vizinha província do Piauí. E por último apresenta uma possibilidade de futuro no qual a salvação para o reerguimento da cidade seria tornar-se industrial. Essas falas nos impelem a questionar: como essas objetivações acerca de Caxias foram sendo construídas a ponto de se projetarem em outros sentidos, em um momento histórico em que os sujeitos buscavam novas possibilidades de se subjetivarem? Foucault6 aponta-nos que devemos enxergar no enunciado discursivo uma articulação dialética entre singularidade e repetição, em que “de um lado, ele é um gesto; de outro, liga-se a uma memória, tem uma materialidade; é único mas está aberto à repetição e se liga ao passado e ao futuro”. Em Caxias, os discursos acerca da “opulência” reportam-se ao período em que a cidade constituía o Arraial das Aldeias Altas e onde as práticas agrícolas, desenvolvidas por seus habitantes, notadamente o algodão, ganhava dinamismo e visibilidade através da criação e atuação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, fundada em 1775, pelo Marquês de Pombal. Para Viveiros7, a Companhia de Comércio transformou a penúria em que vivia o Maranhão em fartura, a pobreza em riqueza8. Deve-lhe o Maranhão o surto de progresso que desfrutou nos últimos quarenta anos do Período Colonial. Nas representações construídas 6 GREGOLIN, M. do R. Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso – diálogos e duelos. São Carlos – SP: Claraluz, 2004, p. 88. 7 Nessa fala de Viveiros, é importante destacar que a construção discursiva por ele elaborada é recorrente na produção historiográfica maranhense, conhecida como Idade de Ouro ou período de grande prosperidade da história maranhense, referindo-se à temporalidade compreendida entre a criação da Companhia de Comércio e o término do século XVIII. Cf. VIVEIROS, J. de. História do Comércio do Maranhão (1612 – 1895). Vol. 02. São Luís: Associação Comercial do Maranhão, 1992. 8 As exportações algodoeiras do Maranhão cresceram de 551 arrobas em 1760 para 4.055 em 1771, graças ao incremento da Companhia de Comércio. Cf. PAXECO, F. Geografia do Maranhão. São Luís – MA: Tipografia Teixeira, 1922, p. 34. 27 acerca do Maranhão da segunda metade do século XVIII, Caxias é objetivada como o grande empório do sertão. Historiadores do período ou viajantes que por ela passaram não resistiram aos encantos de retratá-la. Nesse sentido, podemos destacar a descrição de Ribeiro9 que, em 1815, entrevira a importância de Caxias ao afirmar que: É a vila de Caxias uma continuada feira, onde distantes os povos dos sertões confinantes trazem à venda os seus efeitos, que constam de algodões, solas, couros de veado e cabra, tabacos de fumo, gados, escravaturas da Bahia, cavalarias e tropas de machos, a que chamam burradas, levando em troco toda a qualidade de gêneros da Europa. Assim, Caxias, embora localizada nos sertões maranhenses, passava a ocupar uma posição de destaque na estrutura econômica e social da província, somente inferior à capital São Luís. Os naturalistas Spix e Martius10, que percorreram o Brasil de Sul a Norte, penetraram em Caxias em 1819 e assim a descreveram: Caxias (vila desde 1812), anteriormente Arraial das Aldeias Altas, é uma das mais florescentes vilas do interior do Brasil. Monta 30.000 o número de habitantes do seu termo. Deve a sua prosperidade à cultura do algodão, explorada desde uns vinte anos, com afinco, em seu interior, e fomentada em toda a Província pela Companhia de Comércio do Grão- Pará e Maranhão, assim como a atividade comercial de seus habitantes, entre os quais se encontram muitos europeus. Caxias, nesse cenário constituído entre a segunda metade do século XVIII e o início do século XIX, é significada pelo estereótipo da opulência agrícola e de um comércio que se dinamiza cada vez mais, gerando novos olhares sobre a região e, mormente, a perspectiva de novos lucros que poderia gerar, através de suas potencialidades, para a corte portuguesa. Nessa perspectiva, a região inseria-se no sistema colonial na condição de exportadora de algodão “e, através de Portugal, 9 Apud ALMEIDA, A. W. B. de. A Ideologia da Decadência. São Luís: FIPES,1982, p. 41. 10 Apud COUTINHO, M. Caxias das Aldeias Altas. 2 ed. Caxias: Prefeitura de Caxias, 2005, p. 60 28 começa a fazer parte do concerto do mundo, a afinar-se com ele”11. Sua economia, como a de toda a província do Maranhão, passou a ser dependente das circunstâncias e intempéries internacionais, geradora de fluxos e refluxos comerciais não controláveis internamente. Essa posição de destaque que Caxias passava a ter como o segundo maior centro comercial do Maranhão gerava visibilidade e, até mesmo, desconforto e constante preocupação por parte dos vizinhos e parceiros comerciais, como o Piauí. Assim, ao longo do século XIX,foram notórias as reclamações e articulações dos governantes e comerciantes piauienses que pretendiam conquistar um acesso direto a outras praças comerciais sem depender do comércio do Maranhão, “que praticamente monopolizava os fornecimentos ao Estado e cujo porto dava acesso aos outros Estados e países”12. Essa preocupação faz-se sentir até mesmo nas considerações levantadas ao situar melhor a sede do governo piauiense num local mais estratégico e mais próximo aos portos de maior comércio. Um de seus governadores, o Conselheiro Saraiva, expressou, em 1851, em um relatório à Assembléia Provincial do Piauí, as razões que o levaram a escolher a Vila Nova do Poti, atual Teresina, para ser a sede do governo: “[...] é ela bem situada e a mais salubre que é possível [...]; fica na posição de tirar a Caxias todo o seu comércio com o Piauí, conseguindo-se, assim, a maior vantagem da mudança [...]”13. Neste cenário, a emergente Caxias já apresentava uma estruturação que a assemelha a uma típica cidade colonial, já possuindo: [...] casas arruadas dentro do arraial, em torno dele, por seu arrabalde, até o número de 300, maiores e menores, habitadas de moradores, a maior parte deles de luzido trato, em que já reina o 11 CORREIA, M. da G. G. Nos Fios da Trama. Niterói -RJ : Universidade Federal Fluminense,1998, p. 08. 12 QUEIROZ, T. Os Literatos e a República. Teresina - PI: UFPI; João Pessoa – PB: UFPB, 1998, p. 22. 13 CHAVES, M. Obra Completa. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998, p. 25, grifo nosso. 29 luxo, ambição e emulação no tratamento e asseio nas suas pessoas. O clima é saudável, com águas e abundância de víveres para a sua subsistência e conservação da vida, continuando sempre a edificação com grande fervor e aumento [...].14 Nesses enunciados, temos a descrição de uma ambiência em que as sociabilidades tornam-se dinâmicas e motivadoras de hábitos requintados em pleno sertão maranhense, propiciados, principalmente, pelos bons resultados da produção algodoeira de exportação, sustentada pelo trabalho escravo. Essa fala também visualiza o entendimento de que a emergência do espaço Caxias e da sua progressiva constituição como cidade não se dá de maneira planejada, mas como fruto do cruzamento das práticas com as representações que a instituíram como uma realidade15. Em Caxias, ruas e traçados vão emergindo a partir da domesticação da natureza pelas práticas sociais, e não pela ação de um poder ordenador do espaço enquanto ação planejada. Nesse sentido, Holanda16 faz-nos pensar no tipo de cidade que os portugueses fundaram na América e adverte-nos que “não é um produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza e sua silhueta se entrelaça na linha da paisagem”. Nessa teia de relações, a constituição do espaço urbano de Caxias dá-se numa simbiose de complementaridade entre ambiência urbana e rural, em que “a cidade se alimenta daquilo que o campo a seu redor produz”17. E passa, com o seu desenvolvimento, a oferecer serviços e autoridade política “àqueles que comandam a exploração rural, associados por vínculos de necessidades mútuas de lucro e 14 A citação é fruto de vasta documentação compilada por Gonçalves Dias nos arquivos europeus no século XIX, tratando-se de uma extraordinária descrição do Arraial das Aldeias Altas no século XVIII. Cf. COUTINHO, Op. cit., 2005, p. 31. 15 Cf. CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. 16 HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 110. 17 WILLIANS, R. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 75. 30 poder”18. Em Caxias, senhores, terras e comércio formavam uma cadeia que subsidiava e dava sustentação às relações políticas e de poder. Elevada à categoria de cidade pela lei provincial de 5 de julho de 1836, Caxias, que já era considerada o grande empório do sertão, passava a ter o status de segunda cidade mais importante do Maranhão. Marques19, numa escrita bem patrícia, prefere substituir essa classificação por uma descrição marcada pelos atributos que a cidade oferecia, pois afirma: Depois da capital, se não nos fascina o amor da terra natal, sem dúvida ocupa o primeiro lugar esta importante cidade, onde se pode viver cercado de todas as comodidades, porque aí existem casas de todo o gênero de negócio, vários estabelecimentos de diversos ramos de artes e ofícios, é a residência de alguns médicos e cirurgiões, tem três boticas, aulas públicas e particulares para instrução da mocidade de ambos os sexos, um pequeno teatro e até duas bandas de músicas marciais particulares, habilmente dirigidas. Nessa perspectiva, Caxias, para os padrões de uma cidade interiorana, oferecia uma multiplicidade de atrativos que a personificavam e a caracterizavam como um grande centro produtor que refletia a “imagem de um ímã, que tudo atrai, reúne e concentra”20. Assim, a marca da opulência constituía o ingrediente principal das imagens e representações que a constituíram, marcando uma memória discursiva daqueles que a retrataram entre o século XVIII e a primeira metade do século XIX. Mas os discursos que emergiram a partir da segunda metade do século XIX, objetivaram uma “outra” Caxias, marcada por dizeres impregnados de imagens sombrias e de cunho decadente. Isto ocorreu principalmente após a Revolta da 18 Id., ibid., p 75 19 MARQUES, C. A. Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão. Rio de Janeiro: Cia Editora Fon-Fon e Seleta, 1970, p. 187 20 ROLNIK, R. O Que é Cidade. São Paulo: Brasiliense: 1995, p. 08. 31 Balaiada. Para Marques21, a “Revolução do Balaio” foi um movimento de “sectários”, “bárbaros” e “facínoras” que “não podiam deixar de lançar suas vistas perigosas sobre esta cidade, já pela sua posição central e já pelas suas riquezas e munições” e por ser então Caxias “a cidade do crime, o refúgio dos facinorosos, o domínio dos pequenos bachás e estando acostumada a ver assassinatos todos os dias”. Nessas imagens refletidas pelo discurso de Marques, podemos perceber o quanto as lutas sociais na cidade de Caxias, naquele período, desvelaram as várias facetas de uma estrutura socioeconômica excludente em que o restrito acesso à terra e às condições de vida digna geraram um grande contingente de pauperizados, onde a opressão cotidiana podia funcionar como “matéria-prima que potencialmente alimenta as reivindicações populares”22. É importante evidenciar que, no Maranhão desse período, o controle dos movimentos sociais que abrangessem principalmente índios, negros aquilombados e os despossuídos da fortuna era de extrema urgência, pois tanto a elite latifundiária quanto os administradores provinciais viam nesses movimentos um estímulo à “ociosidade”, pois “desviavam de suas atividades produtivas amplos contingentes de mão-de-obra [...]”23. Entretanto, devemos salientar que. nesse contexto das construções discursivas sobre a decadência, os dizeres relativos à cidade de Caxias apresentam ângulos multiformes. Primeiramente, temos a construção de imagens sombrias que se arrastaram por longos anos. Isso é o que nos transmite um cronista do jornal Commercio de Caxias24: 21 MARQUES, C. A. Id., ibid. 22 KOWARICK, L. São Paulo Passado e Presente: as lutas sociais e a cidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 46. 23 ALMEIDA, A. W. B. de. Op. Cit., 1982, p. 76. 24 Jornal Commercio de Caxias, 1891, p. 01, grifo nosso.32 Rapidamente a rainha dos sertões empobreceu e quase sucumbiu ao peso das lutas que foi obrigada a sustentar heroicamente. [...] Então, tinha se passado o tempo da opulência e as lágrimas e os gemidos apenas eram sinais de vida na sociedade caxiense. [...] Todo o Maranhão ressentiu-se da terrível calamidade de uma guerra civil, sem princípios nem fins, sem direção, sem alma; e a florescente Caxias ficou ferida de morte, desanimou aterradoramente, deixou-se entorpecer, cônscia da gravidade de seu mal, enfraquecida pela terrível hemorragia que sofrera. Não havia indústria; o comércio morreu, a lavoura prostrava-se moribunda e a sociedade caxiense lutava pela vida por instinto de conservação, sem esperança. Como membro partícipe da elite letrada caxiense, o lugar de sujeito do cronista dá-nos uma dimensão da relação entre o seu discurso e as representações que o delineiam25. Tons fortes e sombrios passam a representar um espaço que se “deteriorava” como um organismo vivo em estado doentio, ou seja, uma cidade que perdera “seu significado de opulência e poder”.26 Já para Coutinho27, Caxias, após a Balaiada, enfrentou inúmeras dificuldades, mas se reergueu, voltando a ser o grande celeiro do Maranhão. Em um discurso que se diferencia do anteriormente analisado, assim se expressa sobre o período: Enfim, cessada a borrasca, renascida das cinzas, tal qual nova Fênix, Caxias refloria suas messes e seus homens voltaram a lavrar a terra e a tanger seus rebanhos. [...] Novas gerações, novas esperanças incorporavam-se aos remanescentes da Balaiada e urgia fazer nascer dos escombros a plenitude de uma cidade que se orgulhara, há mais de um século, de ser o celeiro do Maranhão. Nas representações ora confrontadas, podemos evidenciar que as construções narrativas acerca da história de Caxias oferecem-nos representações do “real”, que ora se coadunam, ora se destoam da materialidade de um espaço 25 Cf. CHARTIER, R. Op. cit. 1990, p. 17. 26 ROLNIK, R. Op. Cit., 1995, p. 21. 27 COUTINHO, M. Op. Cit., 2005, p. 219. 33 que, na sua constituição enquanto cidade, conviveu entre a visibilidade que conquistou e as dificuldades que teve de enfrentar. Contudo, as representações alusivas a uma Caxias decadente não se restringem somente ao período pós-Balaiada. Ela irá apresentar-se de uma maneira ainda mais contundente e constante nos anos 70 do século XIX, onde as imagens transmitidas apresentam tons sombrios. Nos noticiosos caxienses do período, como também nos jornais provinciais, eram freqüentes matérias que apresentavam Caxias como um “corpo doente” que precisava ser tratado diante da sua importância e das tradições que representava, pois assim sucumbia “uma localidade ainda a pouco (sic), tão florescente, quando bastaria um sopro para elevá-la”28. Caxias encontrava- se “prostrada pela fatalidade, pela incúria, pelo curso dos acontecimentos desencadeados, sem o apoio eficaz do governo [...]”29. Essas representações lamuriantes eram reflexo das dificuldades pelas quais passava o comércio e a lavoura caxienses, decorrentes do declínio da produção agro-exportadora30. Nelas, as imagens da decadência eram contrastadas por um discurso que se reportava a um passado glorioso, no qual a cidade de Caxias representava o grande celeiro do Maranhão, reforçando, assim, o “poder dos emblemas, que uma vez vistos não podem ser esquecidos ou confundidos”31. Isto era necessário para reforçar a idéia de que Caxias se encontrava abandonada pelo governo provincial e que o mesmo, através de algumas ações governamentais, deveria socorrê-la, pois não era justo que o outrora grande “empório do sertão” fosse abandonado a um destino de decadência. 28 Jornal Diário do Maranhão, 08 abr.,1875, p. 02. 29 Id., ibid. 30 A produção algodoeira maranhense sofria uma forte concorrência norte-americana, que mantinha uma posição privilegiada no mercado internacional, só sendo afetada temporariamente pela guerra civil americana (1861-65). Cf. ALMEIDA, A. W. B. de. Op. cit,1982, p. 139. 31 CALVINO, I. Op. cit., 1990, p. 26. 34 Na imprensa da época, eram comuns matérias que pressionavam o governo provincial e que também apontavam as possíveis medidas salvacionistas: Que meios empregam as nações civilizadas para transformar os seus desertos em cidades ruidosas? — Na facilidade e rapidez de suas comunicações, na colonização, no progresso da agricultura, no desenvolvimento do comércio, no aperfeiçoamento das artes; no incentivo à indústria, e sobretudo na administração inteligente, firme, judiciosa e moralista [...]32. Nesse discurso havia a percepção de que o processo civilizatório33 caxiense deveria imbricar-se a novos padrões de exploração de suas potencialidades, pois as “suas riquezas dormem ignoradas no seio fecundo da terra”34. Observa-se, no entanto, que para isso deveriam romper com as tradições ligadas a uma agricultura rudimentar e essencialmente dependente do trabalho escravo, pois já não podiam ignorar o fato de que muitos senhores estavam vendendo seus melhores escravos para o Centro-Sul do Brasil, a fim de pagar dívidas. Era urgente resolver a questão da mão-de-obra. Para isso, afirmavam que as terras estavam “privadas dos braços que as roteavam, estando em completo pousio ou entregues à pequena lavoura do povo indolente [...]” 35. Nesse sentido, causava incômodo à elite letrada o que denominavam de “ociosidade”, assim como a pouca produtividade dos pequenos produtores; para combater isto, exigiam uma posição austera do governo no sentido de aproveitar “tantos braços robustos, que por ali andam ociosos” e que “o povo se chama livre e interpreta a liberdade como o direito de nada fazer”, enquanto “os cofres públicos se esgotam” 36. 32 Jornal Publicador Maranhense, 27 fev., 1871, p. 02. 33 Para Elias, o processo civilizador constitui uma mudança na condução e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica. Cf. ELIAS, N. O Processo Civilizador: formação do Estado e Civilização. vol. 02, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 193. 34 Jornal Publicador Maranhense. Id., ibid. 35 Jornal Diário do Maranhão, 14 fev.,1876, p. 02. 36 Jornal Diário do Maranhão ,id., ibid. 35 Havia a percepção de que novas tradições deveriam ser inventadas, mas que não necessariamente precisassem romper com as velhas tradições aristocráticas. Nessa ótica, os novos padrões a se constituírem utilizariam “a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal”37. Importante também era a visão de que a cidade merecia cuidados como um todo, devido à posição que conquistou ao longo dos anos. Nesse sentido, a listagem de melhoramentos urgentes encaminhada à assembléia provincial, em 1875, retrata esta visão: Luz para todos; A limpeza da estrada que conduz à feira da Vargem Grande; Conserto da cadeia pública, que está em misérrimo estado; A via férrea para Teresina; A navegação a vapor do Alto-Itapecuru de Caxias para cima; A abertura da estrada para a Barra do Corda; Uma ponte sobre o rio Itapecuru, para completo desta estrada; O calçamento das nossas ruas38. Nas reivindicações citadas, estava expressa uma visão de cidade que precisava ser cuidada em seus aspectos interno e externo, abrangendo noções de estética, higiene, como também da circulação de pessoas e mercadorias. Estava implícito também que, para a cidade adentrar em um novo período, eram necessárias novas soluções, como a construção de uma via férrea ligando Caxias a Teresina, capital do Piauí. “A estradade ferro prenderia de modo permanente e estável, dois rios navegáveis – Parnaíba e Itapecuru – duas cidades importantes – Teresina e Caxias, e duas províncias que podem e devem florescer – Maranhão e Piauí”39. A idéia de estar em dia com o progresso emergia com grande força nos 37 HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 21. 38 Jornal Diário do Maranhão, 14 mai., 1875, p. 01. 39 Jornal Publicador Maranhense, 27 fev.,1871, p. 02. 36 discursos da época como um elemento considerável ao processo civilizatório, tão urgente e necessário ao renascimento da cidade. As constantes queixas para com o governo provincial diante do “abandono” e “isolamento” pelo qual passava a cidade eram respaldadas pelo fato de que a cidade havia crescido bastante nas últimas décadas, com uma população estimada, entre livres e escravos, em torno de 24.302 habitantes40. Era inadmissível, por conseguinte, que Caxias, a segunda maior cidade do Maranhão, fosse ignorada, vivendo até mesmo às escuras, pois a iluminação das suas ruas, há mais de quinze anos reivindicada, não passava do estágio das promessas tão propaladas pelas autoridades provinciais41. Neste aspecto, reclamavam que todas as verbas destinadas à iluminação da cidade “tiveram aplicações diversas, para satisfazer a certas patotas inconfessáveis, das muitas que surgem na capital”42. Também o descaso para com a manutenção dos prédios públicos era motivo de queixas constantes, como a cadeia pública, que se encontrava em estágio deplorável e o quartel militar que, edificado sobre o Morro do Alecrim, em 1840, carecia de manutenção43. Também outras edificações, nas quais funcionavam a Câmara Municipal e o Júri, o Curral e o Mercado Público, já não atendiam às necessidades da cidade. Isso para não citar a tão reivindicada ponte que ligaria a parte central da cidade ao distrito da Trezidela, facilitando, assim, o acesso de pessoas e mercadorias à região portuária do rio Itapecuru. Afirmavam, enfaticamente, que a cidade precisava de tudo isso, pois ia de “mal a pior” e, se “algum vento de felicidade não soprar-nos, adeus, Caxias! [...]”44. 40 Cf. CALDEIRA, J. de R. C. As Origens da Indústria no Sistema Agro-exportador Maranhense – 1875 a 1895. São Paulo: USP – Departamento de Sociologia,1988, p. 73. 41 Cf. Jornal Diário do Maranhão, 14 mai., 1875, p. 01. 42 Jornal Diário do Maranhão , id., ibid. 43 Cf. MARQUES, C. A. Op. cit., 1970, p. 189. 44 Jornal Diário do Maranhão, id., ibid. 37 O quadro estrutural agravava-se ainda mais pelo fato de que o declínio comercial afetava diretamente as minguadas receitas da Câmara Municipal, que diminuíram de 6:022$000 réis no ano financeiro de 1876-1877 para 5:733$000 entre 1877-1878. Tais recursos deveriam suprir às necessidades do município, abrangendo desde o custeio com funcionários, manutenção dos prédios públicos, limpeza e salubridade das ruas e praças públicas, ajuda a indigentes e outros45. Os subsídios provinciais que diretamente beneficiavam Caxias diziam respeito à instrução pública de primeiras letras, navegação fluvial pelo rio Itapecuru e a iluminação pública efetivada a partir de 1878 com 40 combustores a querosene, que “mesmo colocados a grande distância já traziam luz a uma terra tão esquecida dos poderes públicos46. Recorrente também era o fato de que os discursos veiculados em uma imprensa engajada em denunciar e defender a causa caxiense, tinham seus enunciados imbricados à idéia de que a letargia por que passava a cidade só seria rompida com novas práticas que trouxessem o progresso àquela região, pois este era “semelhante às águas salgadas, que mais aumentam a sede de quem as bebe [...]”47. Estes discursos deram sentido à formação de outros dizeres, que possibilitaram novas subjetivações do “ser” caxiense. Isto é o que denota as construções discursivas que “colaram” Caxias à imagem de uma cidade industrial, principalmente a partir dos anos 80 do século XIX, com a implantação de indústrias têxteis em seu solo. É sobre tais construções discursivas que nos debruçamos a seguir. 45 Coleção das Leis e Regulamentos Provinciais do Maranhão de 1876. São Luís: Typ. do País, 1876. 46 Jornal Diário do Maranhão, 13 ago., 1878, p. 02. 47 Idem, 24 abr., 1875, p. 01. 38 1.2 A euforia fabrilista e as ações modernizadoras Os tempos que correm exigem, do brasileiro em geral, e dos maranhenses em particular, a concentração de todas as forças ativas da inteligência em assuntos práticos. Estamos na época dos trabalhos positivos, lançando com providência louvável os alicerces que devem servir ao edifício que esta província há de necessariamente levantar a sua futura grandeza. O fragmento de texto acima transcrito48 foi produzido na década de 70 do século XIX pelo maranhense Francisco Dias Carneiro, advogado, poeta, latifundiário, representante da Província do Maranhão na antiga câmara dos deputados do Império, que adotara Caxias como sua cidade. Nessa fala, estão implícitas as sensibilidades de um período e de uma geração que se conscientizava da urgente necessidade de “levantar-se contra aquela cega potência dos fatos, contra a tirania do efetivo”49. Era necessário romper com o estado de letargia que o exaurido trabalho escravo havia decantado ao Maranhão. Este outrora fora o alicerce de um período de opulência, mas que agora conseguia arregimentar tanto o coro dos favoráveis e arraigados na tradição como o coro dos destoantes, que viam na escravidão “o fulcro de onde emanavam todos os males vivenciados pela província”50. Para os indivíduos desse período, já se tornava patente que o Maranhão, dentro da ótica do “drama do progresso”, oscilava entre duas posições, isto é, “uma resistência passiva em termos de suas antigas tradições” ou a “compreensão e manipulação do progresso por eles mesmos”51. 48CARNEIRO apud JACOBINA, A. P. Dias Carneiro: o Conservador. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 71. 49 NIETZSCHE, F. Op. cit., 2000, p. 285. 50 ABRANCHES apud ALMEIDA, A. W. B. de. Op. cit., 1982, p. 183. 51 HOBSBAWM, E. A Era do Capital: 1848 – 1875.Rio de Janeiro: Paz e Terra,1988, p. 24. 39 Esse discurso também retrata o ambiente intelectual que grassava no Brasil nos anos 70 do século XIX, onde as idéias circulantes lastreavam seus argumentos em doutrinas típicas do materialismo científico tão em voga na Europa e difundidos no Brasil a partir dos grandes centros, como o Rio de Janeiro. Sevcenko52 afirma que os intelectuais brasileiros voltaram-se para o fluxo cultural europeu como a verdadeira, única e definitiva tábua de salvação, capaz de selar de uma vez a sorte de um passado obscuro e vazio de possibilidades, e de abrir um mundo novo, liberal, democrático, progressista, abundante e de perspectivas ilimitadas, com ele se prometia. Nos discursos da geração modernista de 1870 havia uma veemente condenação da sociedade fossilizada na tradição, típica do Período Imperial, e uma pregação acirrada das grandes reformas necessárias a um Brasil moderno: Abolição, República e Democracia. No Maranhão, apesar de predominar o conservadorismo político, já se fazia há muito tempo presente a “propaganda da cultura racional”, gerada de debates tanto no meio intelectual como governamental, E que discorriam desde novos métodos de plantio como que expunha o “Manual do Plantador de Algodão” do americano Turner, até a formação de um movimento favorável à criação de umafábrica de tecidos no Maranhão, ocorrido em 187353. Dias Carneiro, um egresso estudante de Direito da Escola do Recife, em uma reflexão sobre os desafios do seu tempo, afirmara que a vivência social daquele momento concentrava-se “na elaboração difícil de uma reforma nos princípios, nos 52 SEVCENKO, N. Literatura como Missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 96-97. 53 CALDEIRA, J. de R. C. Op. cit., 1988, p. 62. 40 meios e no fim do trabalho”54. Esta visão explica a necessidade de o Maranhão, em especial Caxias, romper com o desmedido gosto pelo processo fundado em alicerces econômicos e culturais tradicionais que sustentaram com vigor a riqueza construída pelo labor dos antepassados, mas que, naquele momento, eram suscetíveis de mudanças radicais. Para a geração que Dias Carneiro representava empreender estas “reformas” era uma missão nobre “e, qual um apostolado das grandes reformas, ele daria tudo de si”55 É nesta ambiência de idéias reformistas que os debates afloram e a constituição de fábricas de fiação e tecidos emerge como uma das possíveis alternativas de solução para a forte crise financeira pelo qual passava o Maranhão. Estas fábricas também teriam um nobre papel de “abrir à classe proletária as portas do trabalho e de uma educação nova [...]”56 Essas sensibilidades embasaram os discursos que se constituíram em Caxias nos “sombrios” anos 70, como também foram o fermento das práticas fabris que resultavam na montagem de indústrias têxteis na cidade a partir dos anos 80 do século XIX, pois, para setores da elite letrada caxiense, era notório os exemplos que vinham da América do Norte, através da Guerra de Secessão, que acabava de expor o problema da substituição do trabalho escravo pelo livre. Por conseguinte, é nesse universo de inebriantes novos tempos que em Caxias se dará a formação de várias empresas, cujo capital será subscrito através das sociedades anônimas57. Isto primeiramente se dará através da montagem da Companhia “Prosperidade Caxiense”, tendo à frente do empreendimento o 54 CARNEIRO apud JACOBINA, A. P. Op. cit.,1938, p. 81. 55 CARNEIRO apud JACOBINA, A. P., idem, ibid. 56 CORREIA, M. da G. G. Op. cit.,1998, p. 131-132. 57 A autorização legal para a formação de sociedades anônimas foi uma das medidas liberais ocorridas no final do Império brasileiro. Cf. CARVALHO, J. M. de. Os Bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 43. 41 intelectual e agricultor Dias Carneiro, cujo objetivo inicial seria a construção de uma ponte ligando a cidade à Vila da Trezidela, situada à margem esquerda do rio Itapecuru, fronteira ao Porto Grande da cidade de Caxias, cuja travessia era feita, até aquele momento, por meio de balsas e canoas, sistemas por demais atrasados58. Foto 1: Ponte ligando Caxias ao distrito da Trezidela e Porto da Cidade. Fonte: Gaudêncio Cunha. A ponte possuía as dimensões de 200 metros de comprimento por 4 de largura, construída em aroeira, um vegetal existente na região e propício a uma boa durabilidade. A construção desse empreendimento e a respectiva exploração pela Companhia Prosperidade Caxiense foram celebradas através de um contrato com a Província do Maranhão, em 23 de outubro de 188059. Desta feita, Caxias inaugurava um novo tempo em que as iniciativas passariam a ser comemoradas com grande entusiasmo por seus ilustres habitantes e divulgadas euforicamente pela imprensa: Em Caxias preparam-se festejos para a inauguração em 7 de setembro próximo, da ponte que se está construindo sobre o rio Itapecuru e que deve ligar aquela cidade ao 3º distrito. Entre outras coisas projeta-se um baile em casa do Sr. Coronel Segisnando Aurélio de Moura. — Ah! nós lá!60 58 JACOBINA, A. P. Op. cit.,1938, p. 86. 59 Coleção das Leis e Regulamentos Provinciais do Maranhão de 1884. São Luís: Typ. do País, 1884. 60 Jornal Pacotilha. São Luís – MA, 28 ago., 1884, p. 03. 42 Esta iniciativa transformou a visão de espaço urbano em Caxias, passando a ser não visto somente em sua dimensão física, mas como um “cenário múltiplo da cidade que toma conta dos seus habitantes na construção do seu cotidiano, na sua necessidade de (re) inventar práticas”61. Essa nova mentalidade prosseguirá revestindo os discursos e as iniciativas que fomentaram a idéia de uma Caxias fabril. Neste sentido, um cronista da imprensa local assim se manifestou: Depois de muitos anos de trabalho ingrato e material de sermos fornecedores desta matéria-prima [o algodão], para as manufaturas da Europa, despertamos finalmente ao estímulo de prepará-lo para o nosso consumo sem intervenção de um grau superior de conhecimento industrial, para que temos indubitável capacidade [...]”62 Esta fala representa a percepção de novos tempos baseados em uma eufórica possibilidade de desenvolvimento material revestido de um imaginário progressista que embaçava a visão dos sujeitos históricos daquele período, que não atentavam para as possíveis dificuldades que poderiam advir da falta de experiência no manuseio de equipamentos têxteis e de uma mão-de-obra local enraizada em práticas agrícolas e escravistas. A visão de sujeitos desejantes era o fermento de novas práticas que se vislumbrava no universo caxiense, onde o capital acumulado através de uma produção agrícola, principalmente algodoeira, outrora utilizado na compra de escravos e alicerçado no fornecimento de matérias-primas para os grandes centros europeus, agora seria redirecionado a novos empreendimentos que imbricariam a cidade ao fabrilismo têxtil. Os cronistas falam muito mais das propostas sobre como deveriam ser os “novos” comportamentos atrelados às práticas fabris do que das práticas reais vivenciadas no cotidiano. Seus lugares de 61 REZENDE, A. P. (Des) Encantos Modernos. Recife: FUNDARPE, 1997, p. 14. 62 Jornal Commercio de Caxias. Caxias – MA, 10 ago., 1889, p. 01. 43 sujeito “falam de possibilidades que nascem do desejo de mudança, de recriar o social, de interferir no fazer cotidiano”63. Em Caixas, a década de 80 do século XIX será considerada como um período de ressurgimento da cidade. Nesses anos, ocorrerá a montagem de fábricas têxteis, assim como o trabalho escravo perderá importância no contexto socioeconômico. Mas essa nova vivência citadina contradiz a escrita de muitos historiadores maranhenses, que apresentam esse período como de aceleração do processo de decadência da província. Meireles64 assim descreve o cenário sombrio pelo qual passava o Maranhão: [...] Foram-se por terra, praticamente, e de um golpe, todas as nossas lavouras de algodão, arroz e cana-de-açúcar; com elas nossas indústrias açucareiras e nosso comércio exportador, tudo levado no arrastão do impacto da libertação em massa do trabalhador servil [...]. Então, o pouco que se pôde salvar do desastre, vendendo-se as propriedades agrícolas por 10 por cento de seu valor, foi aplicado na loucura industrial, que se apoderou de nossos homens de negócio, na ânsia de se agarrarem à primeira tábua de salvação que se lhes apresentar. Nessa perspectiva de análise histórica, a instalação de indústrias têxteis no Maranhão, na passagem do século XIX para o século XX, é vista como uma “loucura” ou “miragem” industrial. Para essa perspectiva, os homens de negócio daquela época, na ânsia de salvar suas finanças, haviam penetrado no mundo do ilusório e perdido a noção de que toda a riqueza que o Maranhão havia conquistado, em um passado recente, estavaatrelada à agricultura. Nesse caso, Caxias, o “grande empório do sertão”, imersa no sombrio cenário maranhense, “enquistou-se em seu progresso”65. 63 SEVCENKO, N. Op. cit., 2003, p. 93. 64 MEIRELES, M. M. História do Maranhão. São Paulo: Sciliano, 2001, p. 307-308, grifo nosso. 65 MEIRELES, M. M. Op. cit., 2001, p. 305. 44 Todavia, a montagem da trama historiográfica nem sempre se articula com as práticas dos sujeitos sociais que vivenciaram um determinado período, nem tampouco com os significados que os mesmos dão às novas sociabilidades que se evidenciam66. Caxias é um desses espaços que contradiz uma escrita quase hegemônica sobre o Maranhão daquele período. Pois, enquanto para historiadores como Meireles, a implantação de indústrias têxteis, naquele período, representou uma loucura ou miragem industrial, para os caxienses foi a redenção e o advento de novos tempos. “Caxias: A Manchester Maranhense”. Foi dessa forma que um articulista do jornal Commercio de Caxias nomeou o momento histórico que aquela cidade estava vivenciando no final do século XIX. No discurso ufanista desse articulista, Caxias reflorescia. Não como outrora, embasada em estruturas econômicas tradicionais, mas, assim como a Manchester inglesa, nos novos ventos do progresso. Essa analogia desperta um renascer da cena urbana e a percepção de que, ao penetrarmos nas significações de um determinado período histórico marcado pelo ineditismo, enveredamos pelos labirintos das dificuldades de nomeação que o momento suscitou aos sujeitos sociais nele envolvidos67. Nesse novo cenário, os jornais caxienses do final do século XIX estavam impregnados das novas sensibilidades pelas quais passava a cidade com o advento do maquinário industrial. Neles, os novos tempos sepultariam os detritos remanescentes da decadência. Um articulista assim descreveu o momento vivenciado: 66Cf. CERTEAU, M. A economia escriturística. In: A Invenção do Cotidiano. Petrópolis - RJ: Vozes, 1994. 67 Cf. BRESCIANNI, M. S. História e Historiografia das Cidades: um percurso. In: FREITAS, M. C. de. (org.) Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1988, p. 237. 45 Há cerca de quinze anos, há bem pouco tempo, portanto, quando se falava da velha cidade de Caxias, todo mundo se condoía do seu estado e ninguém havia que não lhe descortinasse um futuro, mas um futuro negro e cheio de nuvens densas e assustadoras. [...] A paralisação, a inércia, a miséria lhe esterilizavam o cérebro de poeta, o braço vigoroso de bravo. [...] Quem lhe podia augurar uma restauração ao progresso — palavra que já lhe era sem significado? [...]. A ampulheta dos tempos marcou uma nova era. Caxias despertava de sua pesada modorra, para nunca mais dormir. O sono dissipou-se [...]. Foi Dias Carneiro o raio intenso do sol do progresso que infundiu ali a vida industrial, o principal elemento do progresso material, que vertiginosamente se tem implantado em tão fecundo solo.68 Caxias, assim como o Brasil, estava sendo arrastada pela onda modernizadora que tomara conta mormente das grandes cidades do mundo, com o avanço do capitalismo. Percebe-se que a constatação de se estar vivenciando um novo tempo, baseado no reino do progresso e da civilidade, encanta a todos, desde a esplendorosa Paris e Londres, o Rio de Janeiro, a emergente São Paulo e — por que não?! — a interiorana Caxias, extasiada pelo maquinário industrial. Enfim, como afirma Bauman69, a modernidade é extremamente ambivalente, pois ao mesmo tempo em que procura instituir uma ordem, proporciona a emergência do acaso e da contingência. Nesse afã de progresso, o mundo “belle époque”70 penetrara no universo caxiense com a implantação das indústrias têxteis. Esse advento gerava a constatação de que Caxias havia rompido com um passado socioeconômico decadente e de que havia penetrado no mundo do progresso e da civilidade. Numa análise referente ao simbolismo que este universo mental proporcionava, Weber afirma que, no início do Século XX, tornou-se moda chamar 68 Jornal Commercio de Caxias. Caxias – MA, 15 ago., 1891, p. 03. 69 BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 09-10. 70 Para Daou, a “bela época” é expressão da euforia e do triunfo da sociedade burguesa no momento em que se notabilizaram as conquistas materiais e tecnológicas, ampliaram-se as redes de comercialização e foram incorporadas à dinâmica da economia internacional vastas áreas do globo antes isoladas. Cf. DAOU, A. M. A Belle Époque Amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 07. 46 os anos precedentes de Belle Époque; uma nomeação que girava em torno de um olhar retrospectivo, principalmente após a primeira grande guerra. Entretanto, afirma que “as décadas de 1880 e 1890 testemunharam novidades de importância fundamental para o futuro: novos modos de aquecimento, iluminação e transporte; melhor acesso à água e ao lazer, ao exercício, à informação e aos lugares distantes. [...] tudo conquistas do fim de século” 71. Nessa época novidadeira, a França constitui-se o modelo de modernidade, encantando e influenciando a todos com seus modos e moda; e destarte, o Brasil foi um desses ambientes que transplantaram o “modelo francês”72 numa versão de belle époque tropical, onde as cidades constituíram-se um locus privilegiado de experimentos modernizantes. Cidades como o Rio de Janeiro, capital cultural e centro das decisões políticas do Brasil, na passagem do século XIX para o século XX, passaram por grandes transformações em seu espaço urbano identificados à vivência parisiense e a consagração do progresso como o objetivo coletivo fundamental. Entretanto, Weber73 lembra-nos que o desfrutar desse “novo” estilo de vida não foi acessível a todos, pois “a maioria dos que contemplaram essas maravilhas ou liam a seu respeito não desfrutava seu uso, ou só veio a fazê-lo bem mais tarde”. Mas isto é o que constituiu o turbilhão da modernidade que, ao não se materializar como um período histórico em realidades sociais tidas como atrasadas, gerou, indubitavelmente, sujeitos desejantes. Neste sentido, Berman lembra-nos que 71 WEBER, E. França Fin-de-Siècle. São Paulo: Companhia das Letras: 1988, p. 10 – 13. 72 O “modelo francês” de modernidade sempre esteve presente no Brasil ao longo do século XIX até as vésperas da 2ª Guerra Mundial. Cf. RIBEIRO, L. Q. Transferências, Empréstimos e Traduções na Formação do Urbanismo no Brasil. In: RIBEIRO, L. Q. ; PECHMAN, R. (orgs.). Cidade, Povo e Nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. 73 WEBER, E. Op. cit.,1988, p.13. 47 o processo de modernização nestes espaços sociais assumiu um caráter fantástico, nutrindo-se “não da realidade social, mas de fantasias, miragens e sonhos”74. Na eufórica Caxias “progressista” desse período, as construções imagéticas exacerbavam uma cidade pioneira, que ultrapassava até mesmo a capital da Província, São Luís: Caxias apesar de pobre, de pequena e de lutar somente com suas próprias e minguadas forças, estava sempre na vanguarda do progresso da província, e, sempre independente nas suas resoluções e tenaz nos desejos [...]. Foi ela que primeiro montou uma fábrica de fiação e tecidos, que tomou já dianteira na criação de sociedades agrícolas e industriais, e será ela, finalmente, o ponto de partida da primeira estrada de ferro que tem de possuir esta província75. O reflorescimento de Caxias gera imagens coloridas e “nos discursos dos sujeitos
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