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1 O BRASIL DA SEMIDEMOCRACIA: O GOLPE MILITAR DE 1964 E O MOMENTO ATUAL Glaudionor Gomes Barbosa 1. O CICLO POLÍTICO BRASILEIRO Segundo Kalecki (1943), a existência de ciclos político-econômicos era uma circunstância “(...) sintomática do futuro regime econômico das democracias capitalistas”. (KALECKI, 1943). A partir desta ideia, a presença de ciclos políticos de natureza econômica nas sociedades democráticas repercute a interação do sistema político com o econômico. Assim ocorreria a alternância entre os partidos Conservador e Trabalhista. O Ciclo de Kalecki seria de curta duração. Kalecki (1943) argumenta pela existência da politização da demanda efetiva. Essa situação é talvez sintomática do futuro regime econômica das democracias capitalistas. Na depressão, ou pela pressão popular ou mesmo sem ela, o investimento público financiado por empréstimo será adotado para evitar o desemprego em larga escala. Mas se forem feitas tentativas de aplicar esse método a fim de manter o alto nível de emprego alcançado na subsequente prosperidade, é provável que haverá uma forte oposição por parte dos “líderes empresariais”. Como já foi assinalado, um pleno emprego duradouro não é absolutamente do gosto deles. Os trabalhadores estariam “fora de mão” e os “capitães da indústria” estariam ansiosos por “ensinar-lhes uma lição”. Ademais, o aumento de preços na fase de prosperidade é desvantajoso para os pequenos e médios repentistas e os tornaria “aborrecidos”. Nessa situação é provável a formação de um poderoso bloco de grandes empresários e repentistas, que encontraria mais de um economista para declarar que a situação é claramente enferma. A pressão de todas essas forças, e em particular das grandes empresas, muito provavelmente induziria o Governo a retomar à política ortodoxa de corte do déficit orçamentário. Seguir-se-ia uma recessão, na qual a política governamental de despesa voltaria a seu sentido próprio. Pode-se dizer que o Brasil, em pouco mais de cem anos de República, possui uma história política, jurídica e constitucional permeada de alterações de regime, 2 transições, rupturas e permanências. Alguns personagens se destacam, determinadas datas são particularmente significativas, certos eventos parecem adquirir uma relevância decisiva. Porém, para o observador desse período, o que fica é a complexidade das transformações, a capacidade de manutenção, no regime novo, de componentes da ordem anterior e, acima de tudo, a impossibilidade de explicações monocausais. Essa é uma conclusão, aliás, que se aplica à história do Brasil desde a independência. Num percurso radicalmente diverso das ex-colônias espanholas na América, o Brasil mantém-se com suas fronteiras praticamente inalteradas após a separação em relação à metrópole e, o que é mais signifi cativo, opta pela manutenção da monarquia como forma de governo. Várias razões, que se combinam, teriam contribuído para esse quadro, que gerou, como não poderia deixar de ser, um extenso debate na historiografia brasileira. Nos limites do presente artigo, não poderemos nos deter em cada uma das controvérsias acerca da formação do Brasil contemporâneo. Nosso objetivo é outro: compreender os períodos centrais enfocados no texto (1930-1945 e 1964-1988) numa perspectiva mais abrangente. Em outras palavras: a análise da experiência jurídica desses dois marcos temporais terá de pressupor, ainda que de modo breve, uma reconstrução histórica ampla, que se projete para além dos períodos determinados. 2. DEMOCRACIA? QUAL DEMOCRACIA? A tese que norteia este pequeno ensaio é de que o espírito público que define uma democracia, como um regime onde liberdade e igualdade estão imbricadas num todo orgânico, não prevalece na sociedade brasileira. Muitos elementos autoritários continuam determinando nosso comportamento político, inclusive no sentido de representar um perigo constante de retrocessos institucionais. A tipologia de quatro vértices: democracia, semidemocracia, semiautoritarismo e autoritarismo. O conceito de semidemocracia é de um regime hibrido, onde coexistem traços democráticos e autoritários. Assim trata-se de um processo temporário a caminho de uma democracia. Neste ponto, quanto ao Brasil, este trabalho se afasta, ou mantém uma dúvida razoável em relação às estas formulações, pois não se pode aceitar uma situação de transição que caminha para mais de trinta anos (1985 – 2016). 3 Alguns fatos públicos e muito conhecidos na medida em que colocam em xeque direitos fundamentais da pessoa, ajudam a entender a semidemocracia brasileira. Foram escolhidos três episódios recentes que enfraquecem sobremaneira a noção de uma democracia consolidada no Brasil. O deputado Federal e Pastor protestante, Marcos Feliciano defende abertamente ideias racistas e homofóbicas chegando a polemizar publicamente suas posições retrogradas e ofensivas a liberdade individual de segmentos sociais que merecem garantias inerentes na noção de liberdade individual tocquevilleana. Resultado: por violar dispositivo constitucional o deputado é denunciado, é julgado com direito a ampla defesa e condenado? Não. O referido senhor é eleito presidente da comissão de direitos humanos do Congresso Nacional. Significa dizer que a casa política que deve legislar em prol da democracia, da liberdade e dos direitos da pessoa humana aceita as posições daquele pastor. A pergunta que se deve fazer é até que ponto os longos anos de ditadura militar (1964– 1985) consolidaram um padrão estranho ao verdadeiro liberalismo político. Vale lembrar que as forças armadas não foram reformadas e a polícia segue os padrões de repressão às manifestações de massa como caso de polícia e não de política. Em matéria de 31 de agosto de 2013 a Rede Globo, depois das manifestações de junho, quando dezenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas do Brasil em coro: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”, resolveu fazer uma autocrítica daquele apoio alegando que “à luz da História, aquilo tinha sido um erro”. Na sequência a Globo constrói uma memória absurda sobre os acontecimentos de 1964, em particular a correlação de forças que antecede o golpe militar, os compromissos do presidente legitimamente eleito João Goulart e o “perigo” do comunismo. O pronunciamento da Rede Globo assemelha-se a “alguém afirmar que à luz da História, o nazismo foi um erro”. Esses tipos de uso da História não recuperam as vidas ceifadas, nem ajudam a compreender que muitos na Alemanha dispensaram a temporalidade histórica para se posicionarem, com risco da própria vida, contra o nazismo. Em outubro de 2014 dois jovens, em manifestação política, em São Paulo foram detidos e ameaçados de enquadramento na famigerada Lei de Segurança 4 Nacional. Em primeiro lugar, é preciso entender a referida Lei. Ela é uma Norma típica de períodos de guerra, onde se opera com o conceito de direito penal do inimigo. Tal dispositivo legal foi promulgada durante a ditadura militar, definindo como crime o ato “de depredar, provocar explosão ou incendiar para manifestar inconformismo político ou manter organizações subversivas”. Dentro da referido Lei há um artigo que tipifica a ação dos jovens como: “sabotagem de instalações militares”. Vamos aos fatos. A primeira impressão é de que os jovens incendiaram algum quartel ou um navio de guerra, certo? Errado. Ocorreu o tombamento de uma viatura da polícia, sem nenhuma pessoa dentro e sem danos materiais substantivos. A ação foi coletiva e os jovens, segundo observadores e alguns vídeos amadores apenas incitavam com gritos de quebra! quebra!Além de toda manipulação e da falsa identificação de culpados, resta uma questão preocupante, a saber, como criminalizar jovens que não atentaram contra a segurança do Estado, nem mesmo contra pessoas com base numa Lei de uma ditadura produzida para os opositores de um regime autoritário que torturava e matava, em uma democracia? Causa mal-estar saber que no fundo a eleição de Tancredo e Sarney e a Constituinte não promoveram ruptura com o passado autoritário, mas uma linha perigosa de continuidade. No Brasil do século XXI exercer o direito de manifestação acarreta a possibilidade de ser punido por uma Lei de exceção do regime dos quartéis. Na esteira da mentalidade antidemocrática, conservadora e distante dos ideais liberais está a proposta de Lei antiterrorismo aprovada sob o pretexto de evitar questionamentos durante a Copa do Mundo de Futebol que prever penas de 15 a 30 anos de prisão para atos “subversivos”. Observar que a Lei 7170/83, a Lei de Segurança Nacional previa penas de 3 a 10 anos, ou seja, cria-se, numa democracia, uma Lei mais draconiana do que a Norma autoritária. Sabe-se que o crime de homicídio, a saber, ceifar a vida de outro ser humano é punível com reclusão de seis a vinte anos, pela Lei antiterrorismo, o crime contra “coisas” será punível com penas de oito a vinte anos. Conclui-se que é melhor matar o vizinho adversário de futebol do que destruir uma cabine telefônica. 5 3. 1964: O golpe preventivo em um contexto de radicalização das massas O que se procurava impedir era a transição de uma democracia restrita para uma democracia de participação ampliada ... que ameaçava o início da consolidação de um regime democrático-burguês, no qual vários setores das classes trabalhadoras (mesmo de massas populares mais ou menos marginalizadas, no campo e na cidade) contavam com crescente espaço político. Em síntese, as classes dominantes e suas elites ideológicas e repressivas, no pré-64, apenas enxergavam baderna, anarquia, subversão e comunização do país diante de legítimas iniciativas dos operários, camponeses, estudantes e soldados. Por vezes, expressas de forma altissonante e retórica, tais demandas, em sua substância, reivindicavam o alargamento da democracia política e a realização de reformas do capitalismo brasileiro. Em toda nossa história republicana, o golpe contra as frágeis instituições políticas do país se constituiu em ameaça permanente. Seu fantasma rondou, em especial, os governos democráticos no pós-46; com maior intensidade, a partir dos anos 60. Assim, pode-se dizer que o governo Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o espectro do golpe de Estado. Goulart foi empossado em setembro de 1961, após a fracassada tentativa golpista de Jânio Quadros. Com sua inesperada renúncia, JQ visava, contudo, o fechamento do Congresso que lhe fazia oposição. Não tendo o povo saído às ruas para exigir dos militares a volta do renunciante, o golpe se frustrou. A emenda parlamentarista, imposta ao Congresso nacional pela junta militar, pode ser interpretada como um "golpe branco". O Congresso, acuado e ameaçado pela espada, reformou a Constituição sob um clima pré- insurreicional, contrariando, assim, dispositivos constitucionais da Carta de 46. Em outubro de 1963, alegando a necessidade de impedir "grave comoção interna com caráter de guerra civil", Goulart – por imposição de seu dispositivo militar – tentou impor ao Congresso o estado de sítio. Se o estado de exceção visava silenciar Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, quem poderia negar que líderes de esquerda como Miguel Arrais e Leonel Brizola não estariam também 6 incluídos na "lista saneadora" elaborada pelos militares, com a inteira anuência do próprio Goulart? Em abril de 1964, o golpe de Estado – permanentemente reivindicado por setores da sociedade civil – foi, então, plenamente vitorioso. O golpe estancou um rico e amplo debate político, ideológico e cultural que se processava em órgãos governamentais, partidos políticos, associações de classe, entidades culturais, revistas especializadas (ou não), jornais etc. Assim, nos anos 60, conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e comunistas formulavam publicamente suas propostas e se mobilizavam politicamente em defesa de seus projetos sociais e econômicos. No pré-64, outras reivindicações políticas visavam o alargamento da democracia liberal vigente no país: entre elas, o direito de voto aos analfabetos, o direito dos setores subalternos das forças armadas de postularem cargos eletivos (a carta de 46 lhes vedava esse direito) e a legalidade do Partido Comunista Brasileiro, posto fora da lei desde 1947. Embora alguns de seus membros conseguissem ser eleitos por outros partidos, embora tivesse lideranças em sindicatos, editasse revistas e semanários,13 o PCB não podia realizar seus encontros e reuniões senão de forma clandestina e sob permanente repressão policial. A inexistência do pluralismo ideológico-partidário no pré-64 se constituía, assim, numa séria deformação da democracia política no país. Ao afirmarmos que o golpe de 1964 teve como protagonistas principais as facções duras das forças armadas e o empresariado nacional (através de seus partidos, entidades de classe e aparelhos ideológicos) – com o decidido apoio e o incentivo da embaixada e de agências norte-americanas (Departamento de Estado, Pentágono e outras)17 –, não significa que devemos isentar os setores nacionalistas e de esquerda pelo dramático desfecho do processo político. Mas, diante de insinuações de que os setores progressistas e de esquerda – pela intransigência de suas demandas e ações – também devem ser responsabilizados pelo desfecho dos acontecimentos de abril de 1964, é preciso sempre lembrar e ressaltar que quem planejou e desencadeou o golpe contra a democracia foram as classes dominantes através de suas forças políticas e entidades de classe. Como ressaltamos, os setores conservadores e liberais da 7 sociedade civil – as chamadas "vivandeiras de quartel" –, durante todo o período republicano se manifestaram resolutamente contrários à ampliação das liberdades políticas e dos direitos sociais das classes populares e dos trabalhadores. Desde 1950, manobras golpistas foram tentadas, intensificando- se a partir da renúncia de Jânio Quadros. O golpe de 1964 veio, pois, coroar as tentativas anteriormente fracassadas. Destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais de esquerda e progressistas, o golpe foi saudado pelas classes dominantes e seus ideólogos, civis e militares, como uma autêntica Revolução. Aliviadas por não terem de se envolver militarmente no país, as autoridades norte-americanas congratularam-se com os militares e políticos brasileiros pela "solução" encontrada para superar a "crise política" no país. Desarmadas, desorganizadas e fragmentadas, as forças progressistas e de esquerda nenhuma resistência ofereceram aos golpistas. Alegando que não queria assistir a uma "guerra civil" no país, Goulart negou-se a atender alguns apelos de oficiais legalistas no sentido de ordenar uma ação repressiva – de caráter intimidatório – contra os sediciosos que vinham de Minas. Preferiu o exílio político. 4. DOIS EXEMPLOS DA JUSTIÇA DAS CLASSES DOMINANTES 4.1. QUE TERÍAMOS FEITO SEM OS JURISTAS ALEMÃES? (ADOLF HITLER) Em 1938, o líder nazista Adolf Hitler foi escolhido o “homem do ano” da revista Time. Antes disso, Hitler figurou na capa de diversas revistas europeias e norte- americanas, no mais das vezes com matérias elogiosas acerca de sua luta contra a corrupção e o comunismo que “ameaçavam os valores ocidentais”.Seus discursos contra a degeneração da política (e do povo) faziam com que as opiniões e ações dos nazistas contassem com amplo apoio da opinião pública, não só na Alemanha. O apelo transformador/moralizador da política e as reformas da economia (adequada aos detentores do poder econômico) fizeram emergir rapidamente um consenso social em favor de Hitler e de suas políticas. 8 A “justiça penal nazista” estabeleceu-se às custas dos direitos e garantias individuais, estas percebidas como obstáculos à eficiência do Estado e ao projeto de purificação das relações sociais e do corpo político empreendida pelo grupo político de Hitler. Aliás, a defesa da “lei e da ordem”, “da disciplina e da moral” eram elementos retóricos presentes em diversos discursos e passaram a integrar a mitologia nazista. Com o apoio da maioria dos meios de comunicação, que apoiavam o afastamento de limites legais ao exercício do poder penal, propagandeando uma justiça penal mais célere e efetiva, alimentou-se a imagem populista de Hitler como a de um herói contra o crime e a corrupção, o que levou ao aumento do apoio popular a suas propostas. Hitler, aproveitando-se de seu prestigio, também cogitava alterações legislativas em matéria penal, sempre a insistir na “fraqueza” dos dispositivos legais que impediriam o combate ao crime. Se o legislativo aplaudia e encampava as propostas de Hitler, o Judiciário também não representou um obstáculo ao projeto nazista. Muito pelo contrário. Juízes, alguns por convicção (adeptos de uma visão de mundo autoritária), outros acovardados, mudaram posicionamentos jurisprudenciais sedimentados para atender ao Führer (vale lembrar que na mitologia alemã o Führer era a corporificação dos interesses do povo alemão). Vale lembrar, por exemplo, que para Carl Schmitt, importante teórico ligado ao projeto nazista, o “povo” representava a esfera apolítica, uma das três que compõem a unidade política, junto à esfera estática (Estado) e à esfera dinâmica (Movimento/Partido Nazista), esta a responsável por dirigir as demais e produzir homogeneidade entre governantes e governados, isso através do Führer (aqui está a base do chamado “decisionismo institucionalista”, exercido sem amarras por Hitler, mas também pelos juízes nazistas). Ao contrário do que muitos ainda pensam (e seria mais cômodo imaginar), o projeto nazista não se impôs a partir do recurso ao terror e da coação de parcela do povo alemão, Hitler e seus aliados construíram um consenso de que o terror e a coação de alguns eram úteis à maioria do povo alemão (mais uma vez, inegável o papel da mídia e da propaganda oficial na manipulação de traumas, fobias e preconceitos da população). Não por acaso, sempre que para o crescimento do Estado Penal Nazista era necessário afastar limites legais ou 9 jurisprudenciais ao exercício do poder penal, “juristas” recorriam ao discurso de que era necessário ouvir o povo, ouvir sua voz através de seus ventríloquos, em especial do Führer, o elo entre o povo e o Estado, o símbolo da luta contra o crime e a corrupção. Também não faltaram “juristas” de ocasião para apresentar teses de justificação do arbítrio (em todo momento de crescimento do pensamento autoritário aparecem “juristas” para relativizar os direitos e garantias fundamentais). Passou-se, em nome da defesa do “coletivo”, do interesse da “nação”, da “defesa da sociedade”, a afastar os direitos e garantias individuais, em uma espécie de ponderação entre interesses de densidades distintas, na qual direitos concretos sempre acabavam sacrificados em nome de abstrações. Com argumentos utilitaristas (no mais das vezes, pueris, como por exemplo o discurso do “fim da impunidade” em locais em que, na realidade, há encarceramento em massa da população) construía-se a crença na necessidade do sacrifício de direitos. A Alemanha nazista (como a Itália do fascismo clássico) apresentava-se como um Estado de Direito, um estado autorizado a agir por normas jurídicas. Como é fácil perceber, a existência de leis nunca impediu o terror. O Estado Democrático de Direito, pensado como um modelo à superação do Estado de Direito, surge com a finalidade precípua de impor limites ao exercício do Poder, impedir violações a direitos como aquelas produzidas no Estado nazista. Aliás, a principal característica do Estado Democrático de Direito é justamente a existência de limites rígidos ao exercício do poder (princípio da legalidade estrita). Limites que devem ser respeitados por todos, imposições legais bem delimitadas que vedam o decisionismo (no Estado Democrático de Direito existem decisões que devem ser tomadas e, sobretudo, decisões que não podem ser tomadas). Na Alemanha nazista, o führer do caso penal (o “guia” do processo penal, sempre, um inquisidor) podia afastar qualquer direito ou garantia fundamental ao argumento de que essa era a “vontade do povo”, de que era necessário na “guerra contra a impunidade” ou na “luta do povo contra a corrupção” (mesmo que para isso fosse necessário corromper o sistema de direitos e garantias) ou, ainda, através de qualquer outro argumento capaz de seduzir a população e 10 agradar aos detentores do poder político e/ou econômico (vale lembrar aqui da ideia de “malignidade do bem”: a busca do “bem” sempre serviu à prática do mal, inclusive o mal radical. O mal nunca é apresentado como “algo mal”. Basta pensar, por exemplo, nas prisões brasileiras que violam tanto a legislação interna quanto os tratados e convenções internacionais ou na “busca da verdade” que, ao longo da história foi o argumento a justificar a tortura, delações ilegítimas e tantas outras violações). E no Brasil? 4.2. QUEM APRESENTA QUALQUER RESTRIÇÃO A OPERAÇÃO LAVA JATO E SEU CHEFE SÉRGIO MORO É A FAVOR DA CORRUPÇÃO Deflagrada há dois anos, a Operação Lava Jato tem desrespeitado, sistematicamente, a Constituição de 88. Apenas os militares, na Ditadura, com o AI nº 5, tiveram poder para desrespeitar, de forma tão escancarada, o texto da Carta Magna. Para os defensores do juiz Sérgio Moro, a justificativa obedece ao clássico raciocínio autoritário de que “os fins justificam os meios”. Para os defensores da legalidade, os métodos do juiz Sérgio Moro colocam em xeque as conquistas democráticas em um país ainda assombrado pela memória do regime de exceção da Ditadura, e contribuem de forma decisiva para o golpe em curso contra o governo da presidenta Dilma Rousseff. 1 - Delações premiadas no atacado A delação premiada é um instrumento novo no arcabouço jurídico brasileiro, jamais usado com a intensidade vista na Lava Jato. Juristas das mais diversas áreas e tendências ideológicas são praticamente unânimes em afirmar que o instrumento não pode ser usado no atacado, sob pena de subverter as garantias constitucionais, suprimindo-as. Pesquisa da Consultor Jurídico mostrou que todas as 23 delações firmadas por Moro até aquela data violavam a Constituição e/ou as leis penais. Em vários depoimentos forçados, chamados de acordos de delação, os "delatores" ficam 11 impedidos de recorrer das sentenças condenatórias, que lhes forem impostas. Essa verdadeira subversão constitucional ocorre pela exigência de renúncia de direitos indisponíveis, como o amplo direito de defesa. As delações, tal como os depoimentos colhidos no período da ditadura, vedam completamente aos réus a possibilidade de impetração de habeas corpus, além de todo e qualquer recurso contra a sentença, inclusive, denúncias de que as delações estejam sendo utilizadas como instrumento para que réus mantidos encarcerados, algumas vezes em situações precárias,possam ter acesso à liberdade, por prazos até aqui indefinidos. No entendimento de um membro do MP, que bem ilustra a subversão da garantia constitucional da dignidade humana e presunção da inocência que assola a Lava Jato, “passarinho para cantar precisa estar preso”. Estranhamente, são postos em liberdade "condicional" colaboradores que fazem a delação premiada. É evidente que a prisão preventiva não é preventiva, mas uma prisão para delação. Prender para delatar O Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 600 mil encarcerados, dos quais cerca de 25% ainda não foram sequer a julgamento. Entre eles, estão as vítimas da prisão preventiva, que a midiática Lava Jato teima em banalizar para dar aos “midiotas” a falsa sensação de que "algo muito profundo está mudando no país da corrupção”. Os juristas alegam que a prisão preventiva deveria ser a exceção. Não a regra. "Ninguém será preso antes do trânsito em julgado". E que seu uso indiscriminado cobrará um alto preço da democracia. No dia 11/3, um grupo de mais de 200 promotores e procuradores publicaram um manifesto criticando o excesso de prisões preventivas, requisitadas pelo Ministério Público e concedidas pelo judiciário. No documento, eles afirmam que “a banalização da prisão preventiva – aplicada, no mais das vezes, sem qualquer natureza cautelar – e de outras medidas de restrição da liberdade vai de encontro a princípios caros ao Estado Democrático de Direito”. As manifestações contra 12 a prática têm sido recorrentes entre juristas e operadores do Direito ainda não contaminados pela “Doutrina Moro”. 3 - Conduções coercitivas? No dia 4/3, o país quase entrou em convulsão social depois que Moro determinou a condução coercitiva do ex-presidente Lula para depor na Lava Jato, no episódio que chegou a ser classificado por juristas como “sequestro”. O sequestro do ex-presidente Lula tem um peso simbólico especial. Maior líder político do Brasil, admirado e respeitado internacionalmente, ele jamais se negou a colaborar com a Lava Jato. Pelo contrário. Por três vezes, se apresentou voluntariamente à PF para prestar os esclarecimentos demandados por Moro. Além disso, aeroporto é um lugar para se embarcar em um avião, não para prestar depoimento. Ainda mais em um espaço não atribuído à Polícia Federal, mas sob jurisdição da Força Aérea Brasileira, o que, aliás, provocou a intervenção do oficial comandante daquele posto, impedindo que o ex-presidente fosse embarcado num avião da PF que o aguardava ali para este fim. 4 - Autorização e divulgação de grampo ilegal No dia 16/3, o Brasil que assistiu ao Jornal Nacional ficou chocado com o teor da conversa telefônica mantida entre Lula e Dilma, na qual, segundo o maior telejornal da mídia golpista, os dois tramavam para manter o ex-presidente fora das grades da Lava Jato. A conversa, como quase tudo na vida, admitia várias outras interpretações possíveis, como deixou claro a presidenta Dilma Rousseff. Mas isso não interessava à narrativa criada por Moro e a mídia que o serve. O mais preocupante, porém, é que era uma conversa privada envolvendo a principal mandatária da República que, por previsão constitucional e legal, não pode ter suas comunicações privadas violadas e divulgadas sem autorização do STF, até mesmo por razões de segurança nacional. Para agravar o quadro, tratava-se de grampo inconstitucional e ilegal: o próprio Moro havia mandado a PF suspendê-lo às 11h12 e a gravação fora feita às 13h32. Mas o juiz se fez de morto e com clara intenção de subverter a Constituição e a lei, divulgou a 13 conversa para a mídia três horas depois, naquela já considerada a operação de escuta telefônica mais ágil e ilegal da história do país. 5 - Violação do direito de defesa São várias as formas com que a condução da Lava Jato viola o direito de defesa dos réus. A primeira a ser apontada pelos juristas, ainda no início da operação, está prevista em vários dos acordos de delação premiada já selados: por determinação do juiz Moro, os advogados de defesa ficam proibidos de ter acesso às transcrições dos depoimentos do delator, o que viola o princípio do contraditório e o direito à ampla defesa. 6 - Carimbo de sigilo partidarizado O mesmo Moro que divulgou a conversa privada da presidenta da república sem sequer pedir autorização ao STF, sob a alegação de que o conteúdo era de interesse público, colocou sob sigilo a chamada “Lista da Odebrechet”, o documento encontrado na última fase da operação que lista a relação de políticos que supostamente recebiam propina da empreiteira. A lista contém 200 nomes de políticos de 18 partidos. Lá estão os tucanos Aécio Neves e José Serra, assim como o peemedebista Eduardo Cunha. Não constam, porém, nem Lula e nem Dilma. Mas isso, claro, o juiz justiceiro cuidou de deixar sob sigilo. E o Jornal Nacional não mencionou. 7 - Vazamentos seletivos Não se pode acusar Moro de responsabilidade pelos vazamentos seletivos de documentos da Lava Jato que, há dois anos, abastecem o noticiário com informações desfavoráveis a um campo político em detrimento do outro. Não há provas suficientes para isso. A não ser que se lance mão da Teoria do Domínio do Fato, que tanto sucesso tem feito nas acusações contra petistas. Certo, nesta história, só mesmo o fato de que o juiz justiceiro nada fez para impedi-los, pelo menos enquanto eles desfavoreciam apenas ao governo federal e seu núcleo. A única vez em que ele falou em investigar o vazamento de informações referentes à Lava Jato foi quando suspeitou que Lula soube que a PF iria a sua casa com antecedência. 14 8 – Atuação política escancarada Moro tomou posição escancarada como força de oposição ao governo da presidenta Dilma quando, no dia 13/3, após as manifestações golpistas que tomaram conta do país, enviou um email à jornalista Cristiana Lobo, comentarista da Globo News, pedindo que as forças políticas do país “ouçam a voz das ruas”. "O juiz Sérgio Moro perdeu de vista os limites e responsabilidade da magistratura e se deixou influir pela publicidade", avaliou o professor emérito da USP e jurista Dalmo Dallari. Antes disso, o juiz já havia dado provas de sua atuação partidarizada. No dia 9/3, proferiu uma palestra sobre a Lava Jato para a Lide Consultoria, cujo coordenador nacional, João Dória, é pré-candidato pelo PSDB à Prefeitura de São Paulo. Ao apresentá-lo ao público, Dória convidou os presentes a aderirem aos protestos pelo impeachment de 13/3. No dia 18/3, quando as mesmas ruas foram tomadas por brasileiros que defendem a democracia, o juiz justiceiro não trocou correspondência com jornalistas da mídia golpista e não elogiou a manifestação democrática. 9 – Discurso de ódio Muitos os intelectuais brasileiros têm acusado Moro de adotar uma estratégia discursiva autoritária para justificar a forma com que vem conduzindo Operação Lava Jato, um dos principais pilares do golpe em curso no país. Amplificado pela mídia e pela oposição golpista, o discurso de ódio seletivo contra a corrupção de apenas um espectro ideológico tem suscitado a violência. São inúmeros os casos de pessoas agredidas por usarem roupas vermelhas, a cor identificada com a esquerda. Inclusive, cinco mães com bebês de colo. Há relatos de patrões que demitiram ou ameaçaram de demissão trabalhadores petistas e até de uma médica que se negou a atender o filho de uma ex- vereadora do partido em Porto Alegre (RS). 10 - Redução das garantias individuais Muitos juristas avaliam que a subversão incorporada por Moro à investigação criminal, à instruçãoprocessual e aos julgamentos da Lava Jato têm reduzido 15 drasticamente as garantias individuais no país, o que preocupa os defensores da democracia. Ao comentar as práticas da Lava Jato em debate no Senado, o juiz Rubens Casara, especialista em direito processual penal, alertou que tanto no fascismo clássico italiano quanto no nazismo alemão e no stalinismo soviético a presunção de inocência também foi relativizada. 5. 2016: NOVO GOLPE EM MARCHA Por que a burguesia deseja o golpe? O golpe na democracia brasileira viria para quebrar de vez este movimento de crescimento de lutas classistas e de conquistas de direitos. Como num cassino macabro, os grandes grupos financeiros estão especulando e apostando abertamente no fim da democracia brasileira. Como se noticiou no UOL, no jargão das manifestações pró impeachment do dia 13 de março e da avaliação de um iminente desmoronamento da coalizão governista no Congresso Nacional, o “cenário base” que prevê estaria na ordem de possibilidade de 65 % a 75 % entre os analistas de grandes instituições de consultoria financeira. O dólar flutua para baixo e as bolsas para cima, ao sabor das Provavelmente, os analistas internacionais e nacionais de mercado diminuíram estes percentuais nos últimos dias diante da escala grandiosa das manifestações do dia 18 de março democrática, das turbulências e ilegalidades flagrantes que ameaçam a legitimidade da Operação Lava Jato e de uma renovada iniciativa do governo Dilma na organização da resistência posições críticas ao golpe do presidente do Senado, o racha iminente do PMDB, a disputa voto a voto na comissão parlamentar que fará a primeira votação sobre a aceitação ou impeachment). O fato é que, após o editorial do New York Times do dia 18 de abril, o The Economist dá uma capa em favor do afastamento da presidente eleita do Brasil. Não há mais dúvida que internacional, com sua força geopolítica, está apoiando e organizando o golpe na democracia brasileira. Não é preciso se valer aí de nenhuma hipótese especulativa de conspiração. Nestes tempos de espetacularização da política, os golpistas não apenas deixam 16 pistas, mas produzem série. Armínio Fraga – o ex-ministro da Fazenda de Aécio Neves – apareceu em Brasília como o terceiro personagem de um almoço que reunia Serra e Gilmar Mendes. Em um artigo publicado nesta mesma Agência Carta Maior, em dezembro de 2014, “Um escândalo chamado Armínio Fraga”, documentávamos a presença deste homem de Wall norte-americano JP Morgan como orgânico a toda estratégia do PSDB nas eleições. O PSDB havia migrado definitivamente da condição de um partido da Avenida Paulista para novo programa radical neoliberal de guerra aos direitos sociais e de privatização do setor público brasileiro. Em março de 2014, Emy Shayo, analista do JP Morgan, havia coordenado publicitários conservadores brasileiros com o tema “Como desestabilizar o governo Dilma?”. No momento decisivo do final do primeiro turno das eleições de 2014, foi novamente organizou um seminário de grandes banqueiros de Wall Street para ouvir Fernando Henrique Cardoso e sua diretiva de apostar as fichas em Aécio Neves e não em Marina Silva turno. Foi apenas em 1981, dezessete anos após o golpe militar, com o trabalho de René Armand Dreifuss, no livro “1964: A conquista do Estado (Ação política, poder e golpe de classe) ”, documentação resultante de pesquisa em arquivos norte-americanos, que o caráter classista do golpe de 1964 foi ao centro das análises. Ele documentou as relações entre o IPES/financiamento americano para a eleição de deputados golpistas desde 1962 até a campanha de desestabilização final do presidente Jango Goulart. Certamente, as ilusões pecebistas sobre uma burguesia nacional progressista dificultaram e retardaram este entendimento. Hoje, para derrotar o golpe é preciso denunciar centralmente o seu caráter patronal. A Fiesp, a Firjan, as Federações do Comércio de São Paulo, a Associação Brasileira da Indústria Eletrodomésticos (Abinee), entidades empresariais do Paraná, Espírito Santo, Pará e muitas redes empresariais estão já em campanha aberta pelo fim da democracia no Brasil. Por que o capital financeiro e, cada vez mais, os grandes empresários brasileiros estão movendo e se movendo em direção ao golpe? 17 Três razões A primeira razão está bem enunciada no documento do Dieese sobre o balanço das greves em 2013, uma dinâmica que prosseguiu em grandes linhas até o final de 2014. Enquanto voltados para as espetaculares manifestações de ruas de junho de 2013, estava se registrando o maior ciclo grevista de luta dos trabalhadores por seus direitos desde que a série 15.9K em 2012 havia ocorrido em todo o país 877 greves, em 2013 esta dinâmica saltou para 2050 greves!. O número de horas paradas que havia sido de 86.921 em 2012, saltou para envolvendo dois milhões de grevistas. Pelo acompanhamento do Dieese, 80 % dos movimentos grevistas obtiveram êxito! A forte ampliação do número de grevistas, de greves documento do Dieese, correspondia a um desbordamento do centro para a periferia, das categorias tradicionalmente mais organizadas para aquelas com menor tradição grevista, desemprego e maior formalização do mercado de trabalho. O golpe na democracia brasileira, viria, então, quebrar de vez este movimento ascensional de lutas classistas e de conquistas de direitos. A “eleição” de Joaquim Levy para o Ministério pressão do mercado financeiro, revelou-se um instrumento instável, insuficiente e inseguro. Seria preciso, por o governo do Brasil, com sua força, seu poder repressivo e seu poder com o movimento classista democrático dos trabalhadores. A segunda razão está didaticamente exposta em um documento do Diap, assinado por Antônio Carlos Queiroz. Ele elencou cinquenta projetos de lei antitrabalhadores e antipopulares, em andamento no Congresso Nacional que, em seu conjunto, desorganizam todo o sistema de direitos democráticos previstos na Constituição de 1988 e acumulados pelas lutas então. Entre eles, na Câmara Federal, a terceirização total das relações de trabalho, a prevalência do negociado sobre o legislado e o impedimento do empregado demitido reclamar seus direitos. Até a legislação que coíbe o trabalho escravo seria adulterada! No Senado, a regulamentação e retirada do direito de greve dos servidores públicos, a privatização das empresas independência do Banco Central. Estão previstas, a desvinculação dos recursos orçamentários de porcentuais obrigatórios para a saúde e a educação pública, a desindexação do em relação à inflação e ao crescimento do PIB, a desindexação do piso dos benefícios previstos previdenciários e assistenciais do valor do salário mínimo. Seria iniciado, arrocho salarial e de destruição das políticas públicas no Brasil. 18 A terceira razão é de ordem geopolítica e econômica e diz respeito à política externa soberana do Brasil, à política para os Brics, à posição da Petrobrás no mercado mundial de recente ciclo progressista e distributivo das democracias na América Latina. O golpe viria criar uma nova época de domínio norte-americano na América Latina, impondo um novo em crise. Ao mesmo tempo, trilhões de dólares do patrimônio do Estado brasileiro seriam colocados à disposição da rapina do capital financeiro internacional. Como alerta Antônio Carlos Queiroz, seria necessário após o golpe criminalizar o movimento sindical brasileiro em larga escala, mais além dos movimentos sociais. Não se aplica radicalmente antipopular sem doses maciças de violência. A assembleia dos quatromil operários da Ford contra o golpe, em São Bernardo do Campo, e a bela e decisiva reunião de Lula com lideranças sindicais, de todo o país, de sete 23 de março vem estabelecer um novo marco na luta classista democrática contra o golpe dos patrões. A corrupção é a forma mais aparente das relações promíscuas entre o Estado burguês e os interesses econômicos capitalistas. O plano de mudança de governo do qual a Lava-Jato é apenas uma peça, portanto, não é um golpe contra a institucionalidade liberal-burguesa, mas uma das vias no interior dessa institucionalidade para a imposição de governantes que melhor atendam, circunstancialmente, os interesses do capital. Isto não significa subestimarmos, neste quadro, as tendências a mais restrições no campo das liberdades democráticas que a burguesia tentará impor cada vez mais para fazer frente ao acirramento da luta de classes que a crise do capitalismo engendra. A decisão da burguesia de livrar-se do governo petista por meio do impedimento ou da renúncia negociada da Presidente e de inviabilizar, por via judicial, uma futura candidatura de Lula em 2018 não justifica a defesa do governo Dilma nem do ex-presidente por parte da esquerda socialista, porque não nos faz esquecer a opção política da cúpula do PT pelo caminho do pacto social burguês, como se comprova desde a Carta aos Brasileiros, em 2002, e o zeloso atendimento aos interesses dos bancos, da indústria automobilística, do agronegócio, das empreiteiras e mineradoras. Não nos cabe afiançar uma suposta inocência de Lula e outros líderes petistas e menos ainda de imaginar que investigações sobre eles coloquem a democracia burguesa em risco, mas de fazermos uma profunda crítica à estratégia de conciliação de 19 classes adotada pelo PT, a qual, aprofundada nos últimos 14 anos, agora se volta contra ele. Apesar de o governo Dilma seguir a cartilha do capital financeiro, adotando o ajuste fiscal em curso, viabilizando o fim do monopólio do Pré-sal pela Petrobrás e o aumento da participação estrangeira no setor aéreo em até 49%, e sustentar a expectativa de uma pequena recuperação econômica no segundo semestre de 2016, a sua defesa deixou de ter sentido para a burguesia. Em primeiro lugar porque o crescimento anterior não pode mais ser retomado, da qual a crise econômica é expressão. Em segundo lugar não quer mais sustentar este governo pois os efeitos políticos na economia vão perdurar, ou seja, as intervenções judiciais contra a corrupção na qual o governo está envolvido acarretarão baixa na taxa de investimentos e queda na taxa de lucro nos setores que controlam o mercado de modo oligopolista. A esse respeito importa chamar atenção para o brutal equívoco expresso na Nota da CUT “Em defesa de Lula, da democracia e contra o golpe”, de 04 de março, quando afirma que as “forças conservadoras recorrem ao golpe para voltar ao governo com o objetivo de retomar o derrotado projeto neoliberal…” uma vez que tal projeto, além de não ter sido derrotado, é parcialmente levado adiante pelo próprio governo Dilma. Na caracterização “social-liberal” que críticos de esquerda fazem de seu governo, cada vez mais as posições liberais predominam sobre as “sociais”, expressando a subordinação dos trabalhadores aos interesses do capital. A saída de Dilma, contudo, abre caminho para um novo governo burguês “puro sangue”, capaz de aplicar medidas de arrocho contra os trabalhadores. A CUT, por ter perdido o horizonte de classe dos trabalhadores, a saber, o da superação da sociedade capitalista, deixa de apontar – e de esclarecer os trabalhadores de suas bases – como a saída da recessão econômica exige, para a burguesia, o aumento da exploração da força de trabalho em condições de competitividade internacional. Aliás, o novo presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Grandra, do TST, explicitou essa exigência com a maior clareza possível ao tomar posse em 2 de março: é indispensável flexibilizar a CLT, impor o negociado sobre o legislado, apontando o exemplo do Programa 20 de Proteção ao Emprego, defendido aliás… pela CUT e pelo sindicato dos metalúrgicos do ABC! Se a CUT afirma, na Nota, que há um “acirramento da luta de classes no país” tem de tirar consequências dessa posição e assumir o ponto de vista de classe dos trabalhadores, o que significa romper com a política de colaboração de classes com o capital, pautado no sacrifício dos direitos dos trabalhadores em nome da defesa do emprego até o nível admissível para suas próprias bases sindicais. Frente ao golpismo em curso, adotar uma posição de classe significa muito mais do que denunciar a supressão desta ou daquela cláusula da Constituição e do direito burguês, a exemplo de acusações sem prova material, e denunciar sim a intenção política do Ministério Público depor este governo para viabilizar os interesses de classe da burguesia, tornando-o alvo exclusivo do desmonte do esquema de corrupção que sempre alimentou a democracia burguesa não apenas no Brasil mas em qualquer país do mundo. De reconhecer que a democracia burguesa é uma forma de ditadura na qual se dá aplicação do proverbial princípio da política burguesa: “aos inimigos, a lei” mesmo se a lei for burlada – como está a acontecer no Brasil neste momento – alvo de “interpretações” amparadas exclusivamente na autoridade de quem as aplica. Por tudo o que afirmamos acima, somos contra o golpe em marcha contra o governo Dilma e a perseguição política contra Lula e o PT, sem que isso signifique defender este governo e a política da conciliação dos interesses de classes que tal liderança e partido expressam. Importa ainda alertar os trabalhadores de que os promotores do golpe “branco” ou “legal”, tendo à frente a “mídia” burguesa, parecem estar a dirigir apelos na direção dos quartéis, pedindo sua intervenção se a crise não tiver uma solução nas altas esferas do Estado. Apenas a mobilização independente dos trabalhadores poderá enfrentar e superar a situação de conjunto em que vivemos. Esclarecê-los dos interesses que estão em jogo na cena política nacional nos debates que precisam acontecer nas assembleias sindicais e organização nos locais de trabalho é um passo fundamental. 21 A crise econômica capitalista, que os analistas da direita atribuem oportunisticamente aos “erros do governo”, mas que tem na verdade caráter sistêmico e mundial abate-se agora com força inédita sobre o país, que sofre uma severa recessão. Nessas circunstâncias, a política de colaboração de classes que forjou a coalizão “social-liberal”, que governou o Brasil de 2003 até agora, não tem mais condições de se manter. Essa coalizão, baseada na política de colaboração de classes conduzida pelo PT, preservou sempre em última instância os interesses do grande capital, mas garantiu algumas migalhas aos trabalhadores, viabilizadas pelo auge econômico propiciado pela valorização, no âmbito mundial, das matérias primas exportadas pelo país. Mas, para combater a crise e retomar a taxa de lucros, a burguesia não conhece outro remédio a não ser a desvalorização dos salários, a retirada de direitos sociais e a venda na “bacia das almas” de propriedades públicas para grupos capitalistas privados. Depois de eleita, Dilma não vacilou e, tendo garantido o seu mandato, apresentou-se como condutora de uma política de austeridade, nomeando Joaquim Levy, representante do capital financeiro, para o Ministério da Fazenda. Este iniciou o arrocho com a promoção de grandes tarifaços, que alimentaram a inflação e a correspondente e desejada desvalorização salarial. O receituário burguês para a política econômicade austeridade exige, entretanto, muito mais: fim da política de ganhos reais para o salário mínimo, criação de idade mínima para a aposentadoria, flexibilização ou retirada de direitos trabalhistas, privatização de estatais, abertura para o comércio internacional, etc. Essa política coloca o governo em rota de colisão direta com a CUT e as bases sindicais do PT. A política de colaboração de classes entrou em colapso. A burguesia, representada pelos seus órgãos corporativos – FIESP e FIRJAN – já não tem mais dúvidas que Dilma não tem condições políticas de conduzir a política de austeridade contra os trabalhadores na intensidade e na velocidade necessárias. Um pedido de impeachment em tramitação no Congresso se apresenta como a saída mais viável para resolver a crise. Que os elementos para o processo sejam frágeis, pois pedaladas fiscais todos os governos praticaram, que ele seja conduzido por Cunha, um personagem envolvido até a 22 raiz dos cabelos com os processos da Lava-Jato, nada disso parece deter o trem em marcha. Se os fins justificariam os meios para o PT, ao adotar os métodos de governança da burguesia, o mesmo “silogismo dos jesuítas” vale para a oposição de direita: não importa que os motivos sejam fúteis, não importa que Cunha tenha as mãos sujas, o que importa é tirar Dilma e o PT do poder. Surge então a discussão sobre se estaríamos na iminência ou não de um golpe de Estado. Se o critério para definir o golpe for a quebra da institucionalidade burguesa, nada indica que isso esteja acontecendo. Os militares estão acompanhando a situação, mas não têm motivos nem motivações para agir. Também não há nenhum líder bonapartista à disposição. O assunto está sendo conduzido pelo poder legislativo e pelo judiciário, seguindo regras e formalidades legais. O que causa a impressão de golpe é que os motivos para o impeachment são pífios e podem criar um precedente perigoso para os futuros presidentes da República. Não é à toa, que a classe dominante prefere que Dilma renuncie ou mesmo se suicide, mas ela não é nem Collor, nem Jânio, nem Getúlio. Alguns pensaram numa reforma de sistema de governo que desse mais poder ao parlamento, mas esta seria uma solução improvisada, parecida com a de 1961, com chances reduzidas de vingar, ainda mais com um Parlamento totalmente desmoralizado pelas acusações da Lava-Jato. Assim, a OAB prepara outro pedido de impeachment, baseado em outras razões, e o TSE aguarda as provas da delação premiada que a Odebrecht certamente fornecerá, para invalidar a chapa Dilma-Temer. Assim, a contraditória política levada a cabo pelo PT desde 2003 encontra-se hoje nos seus dias finais, pronta para ser alvejada pelo “pior Congresso que o dinheiro pode comprar”, com o PMDB à frente. Que isso não vai significar o fim das crises política e econômica é o que veremos nos próximos meses. A classe operária ainda não se pronunciou e, livre das amarras da política de conciliação de classes, não ficará inerte diante dos ataques que estão sendo preparados na surdina contra ela, pelos que se apresentam como os futuros sucessores de Dilma.
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