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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MAURÍCIO LEMOS IZOLAN A LETRA E OS VERMES O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis Rio de Janeiro 2006 1 MAURÍCIO LEMOS IZOLAN A LETRA E OS VERMES O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira. Orientador: Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza. Rio de Janeiro 2006 2 MAURICIO LEMOS IZOLAN A LETRA E OS VERMES O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis Aprovada em ________________________________________ Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira. (Ronaldes de Melo e Souza, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) (Godofredo de Oliveira Neto, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) (Manuel Antonio de Castro, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) (Antônio José Jardim e Castro, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) (Wellington de Almeida Santos, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro) 3 FICHA CATALOGRÁFICA Izolan, Maurício Lemos. A letra e os vermes – O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis/Maurício Lemos Izolan – Rio de Janeiro, 2006. p. 207 Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. Orientador: Ronaldes de Melo e Souza. 1. Literatura Brasileira 2. Teoria da Literatura. 3. Hermenêutica. 5. Linguagem. I. SOUZA, Ronaldes de Melo e (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. III. Título. 4 AGRADECIMENTOS Gostaria, em primeiro lugar, de não só agradecer, como também dedicar esta tese ao meu orientador, Professor Ronaldes de Melo e Souza. A ele dedico todo meu apreço e respeito pelo intelectual que é e pelo caráter como pessoa, educador e formador. Estendo o agradecimento e a dedicatória a sua esposa, a também pesquisadora, Professora Drª Maria Lúcia Guimarães. Gostaria ainda de agradecer e dedicar aos meus avós (in memoriam), Oscar e Leocádia. A minha mãe, Ana Maria Moraes de Lemos, que, quando todos não acreditaram, acreditou. A meu pai, Norival Izolan. Aos meus filhos: Pedro, Luiza e Brisa. A minha esposa: Ana Paula da Silva Cardoso. Dedico também aos amigos da UnB, de quando este projeto foi engendrado e se tornou, como eles, parte da minha vida: Robson André da Silva, Marcelo Américo da Silva, Marco Túlio Ribeiro Pacheco, Laura Goulart, José Nunes de Oliveira Filho. Agradeço e dedico aos amigos da UFRJ: José Manuel Castrillon, Marcus Saraiva e Angélica Castilho. Aos membros da minha Banca, agradeço aos Professores Doutores Manuel Antonio de Castro, Godofredo de Oliveira Neto, Wellington de Almeida Santos, Antônio José Jardim e Castro. À funcionária Nádia Romanovski e à secretaria de Pós-Graduação da Faculdade de Letras. Ao CNPq. Meus agradecimentos à Professora Inês e ao Professor Elmano, da Faculdade Multieducativa. Agradeço e dedico também, e com especial carinho, aos amigos da Universidade Católica de Brasília: Professores Lívila Pereira Maciel, Mariza Vieira, Dalva Del Vigna, Rozana Reigota, Maria Fernanda, Lúcia Helena, Virgílio Pereira, Marcos Silvio, Aline Pessôa e Adriana Viana (in memoriam). 5 RESUMO A letra e os vermes é a cifra hermenêutica da operação textual de complementariedade entre a escrita e o silêncio. A obra machadiana dramatiza o jogo entre o dito e não-dito, o visto e o invisível. Para fazê-lo falar, é necessário o entendimento não só da ironia no plano literário e retórico, mas principalmente no plano poético-filosófico do paradoxo. A operação que vai de Friedrich Schlegel a Machado de Assis é a formatividade irônica do jogo de contrários e da parábase como reflexão constante da criação sobre a criação e da criação sobre o mundo. Tal processo é estranho ao horizonte crítico tradicional que entende a ironia machadiana nos extremos do estrambótico ou do pessimismo, como contraditoriedades mutuamente excludentes e não complementares. O jogo irônico é a síntese analítica schlegeliana entre vida e morte em Ressurreição, entre o dito e não-dito em Iaiá Garcia, entre a letra e os vermes que a corroem em Dom Casmurro e entre ficção e realidade em Memorial de Aires. 6 ABSTRACT The letter and the worms is the hermeneutical cypher of the textual and spiritual operation of complementarity between the writing and the silence. Machado’s work dramatizes the play between the said and the unsaid, the seen and the unseen. To make it speak is necessary the understanding of irony not only in literary and rethoric level, but mainly in the poetical-philosophical level of paradox. The operation which comes from Friedrich Schlegel to Machado de Assis is the ironic formativity of the play of contradictions and of parabasis as a constant reflexion about creation and about the world. Such process is strange to the traditional critical horizon which understands Machado’s irony as extremes, such as odd or pessimism, as mutually excludent contradictorities and not as complementary ones. The ironic play is Schlegel’s analytical synthesis between life and death in Resurrection, between the said and the unsaid in Iaiá Garcia, between the letter and the worms which corrodes it in Dom Casmurro and between fiction and reality in Memorial de Aires. 7 RÉSUMÉ La lettre et les verres est la chiffre hermeneutique de l’operation textuelle et espirituelle de complémentarité entre la lettre et le silence. L’ouvre machadienne dramatise le jeu entre dit et le non dit et la vue et l’invisible. Pour le faire parler, c’est necessáire la compréhension non seulement de l’ironie du plan litteraire et réthorique, mais principalement dans le plan poètico-philosophique du paradoxe. L’operation qui va de Friedrich Schlegel à Machado de Assis c’est la formativité ironique du jeu des contraires et de la parabase comme réflexion constante de la création sur la création et de la création sur le monde. Tel procès est étrange à l’horizon critique traditionnel qui comprend l’ironie machadienne dans les extrêmes de l’estrambotique ou pessimiste, comme des contrariétés mutuellement excluentes et pas complementaires. Le jeu ironique est la synthèse analytique schlegelienne entre la vie et la mort en Ressurrection, entre le dit (parlé) et le non dit (parlé) en Iaiá Garcia, entre la lettre et les verres qui endommagent en Dom Casmurro et entre fiction et réalité en Memorial de Aires. 8 SUMÁRIO Capítulo pg. Introdução ......................................................................................................... 10 Capítulo I O conceito de ironia .......................................................................... 15 1. O conceito de ironia na tradição e a retórica da ficção................. 17 2. O conceito de ironiano Romantismo alemão............................... 40 2.1. Ciência, consciência e autoconsciência em Fichte............. 40 2.2. Reflexão, paradoxo e ironia em Schlegel............................. 49 Capítulo II O conceito de ironia e a sua recepção na crítica machadiana ......... 72 Capítulo III O drama de caracteres e a ironia estrutural em Ressurreição......... 100 Capítulo IV A ironia como desmascaramento ideológico em Iaiá Garcia .......... 128 Capítulo V Dom Casmurro: a letra e os vermes ............................................... 151 Capítulo VI Memorial de Aires: la vecchia e dolce ironia .................................. 173 Conclusão ........................................................................................................ 190 Bibliografia ....................................................................................................... 192 9 Introdução Um projeto é o germe subjetivo de um objeto em devir. Um projeto completo teria de ser ao mesmo tempo inteiramente subjetivo e inteiramente objetivo, um indivíduo indiviso e vivo. Segundo sua origem, inteiramente subjetivo, original, somente possível justamente nesse espírito; segundo seu caráter, inteiramente objetivo, física e moralmente necessário. O sentido para projetos que poderiam ser chamados de fragmentos do futuro é diferente do sentido para projetos do passado somente pela direção, que é progressiva naquele, mas regressiva neste. O essencial é a capacidade de ao mesmo tempo idealizar e realizar imediatamente os objetos, de os complementar e em parte executar em si. Uma vez que transcendental é justamente aquilo que se refere ao vínculo ou à separação do ideal e do real, se poderia dizer que o sentido para fragmentos e projetos é o componente transcendental do espírito histórico. (Friedrich Schlegel. Athenäum, 22) A ironia é a análise [contrapondo-se à síntese] de tese e antítese. Este é o romantismo que a tradição brasileira não conheceu. O romantismo da ironia de Friedrich Schlegel que nega a síntese dialética hegeliana, herdeira da tradição metafísico-idealista. Para a ironia romântica desenvolvida por esse romantismo, tudo é paradoxo. Portanto, para a obra de arte construída pelo princípio da ironia, nada é eterno, tudo é contraditório e a obra de arte deverá representar essa verdade palindrômica. Para habitar tal horizonte, a arte reflete ao mesmo tempo que representa, reflete representando, representa refletindo, é expansão e contração. Unidade inorgânica de caos e cosmos, a obra romântica encena metacriticamente o princípio que a constitui enquanto arte no ato de se fazer arte. Concomitância de execução e invenção, a construção irônica é parábase, reflexão, formatividade. 10 O Romantismo alemão será, portanto, o momento da fundamentação de uma teoria crítica do fazer poético calcada na equação imaginação e reflexão. Herdeiro direto do Idealismo Alemão, o Romantismo é a cifra da aporia desse pensamento. Negação da tradição de cisão entre espírito e letra, a Lebensphilosophie cria uma filosofia centrada na arte e uma arte filosófica, reunião do orgânico e do aórgico, em que se supera a abstração da Wissenschaftslehre. Kant – Fichte – Schlegel é o caminho hermenêutico de compreensão da raiz quadrada do infinito no finito, do trans-finito da imaginação do real na realização do ideal. Nosso percurso teórico, nossa meta. E o que tem a ver o Romantismo alemão com Machado de Assis? A resposta é: ironia. A ironia que se encena na obra de Machado de Assis não é a ironia socrática da tradição filosófica, mas a ironia poética que o Romantismo alemão fundamentou. Machado de Assis, apontado pela crítica e pela historiografia literária brasileiras como autor realista, é o mestre da ironia romântica. Isso não quer dizer que o encaixotamos em um rótulo. Mesmo porque a própria ironia romântica extrapola o rótulo “romantismo” como é tradicionalmente compreendido, uma vez que ela é um fenômeno da modernidade, só compreendido fora da Alemanha pelo Romantismo inglês e pelo Simbolismo francês. O conceito de ironia romântica é um conceito complexo que ultrapassa a dialética sintética para a qual aponta a ironia socrática que culmina na dialética hegeliana. Como enuncia a primeira frase desta introdução, não há síntese hegeliana na dialética da ironia romântica, que tem como inventor, teórico e poeta Friedrich Schlegel. Na realização poético-filosófica dos fragmentos do Athenäum e do Philosophisches Lehrjahre, iremos decifrar a intrincada hermenêutica da filosofia cíclica de Schlegel, seu conceito de paradoxo como ironia e traduzir a hermética dialética do espírito e da letra que se revela em sua obra. Concriativa à complexidade dessa dialética é a poética silenciosa d’a letra e os vermes de Machado de Assis. A compreensão do diálogo entre os dois horizontes coloca em xeque a tese de que há duas fases (uma romântica e outra realista) na obra do autor carioca, 11 uma vez que a ironia corrói tanto o idealismo do romantismo tradicional quanto a objetividade pura do realismo-naturalismo do final do século XIX. É importante insistir nesse ponto: a ironia não trabalha com um pensamento crítico tradicional onde a dialética tende para uma solução sintética da polêmica. Esse elemento afasta Machado de Assis do universo tanto da literatura quanto da crítica de seu tempo e mesmo da crítica de momentos posteriores. Não dá para estudar Machado com os mecanismos tradicionais, mas também não dá para estudá-lo com o aparato dialético- filosófico que se propôs como teoria crítica numa vertente dialético-materialista. É necessário um pensamento mais refinado que esteja em diálogo com o horizonte poético – sem perder de vista a dialética - e que, muitas vezes, ainda não encontrou melhor tradutor em nossa tradição crítica. Esse horizonte foi fundado por poetas e não por filósofos. Daí a importância da reflexão de um poeta-filósofo como Schlegel. É preciso sair da dicotomia e entrar na complementaridade e na harmonia dos contrários que a filosofia não suporta. Eis a dimensão da poética filosofia assistemática dos fragmentos de Friedrich Schlegel e de Novalis. Complementaridade de poesia e filosofia que funda um poetar pensante desconhecido em nossa tradição. A ironia é, neste processo, parábase: a reunião de imaginação e reflexão que faz da arte um jogo interativo de fazer e refletir, o qual se revela na (meta)ficção - concriativa ao trabalho dos românticos alemães - da obra de Machado de Assis. Tal abordagem, como não poderia deixar de ser, se choca com a fortuna crítica existente. Para dialogar com essa tradição, o segundo capítulo será dedicado à recepção crítica da obra de Machado de Assis e a como uma perspectiva dialógica irá contradizer muitas posturas e complementar outras. O primeiro horizonte a ser desconstruído é o da crítica positivista que vê na ambigüidade da ironia machadiana um cacoete, um defeito. Tal perspectiva tem como representante máximo o crítico Silvio Romero. Sua visada é a do naturalismo que pregava uma literatura objetivista e positivista, posturas às quais a ironia de Machado se contrapõe frontalmente. Posteriormente a crítica de fundo psicológico não compreende a dimensão da ambigüidade de sentido 12 da ironia e acaba por encaixotar a obra nohorizonte monológico da relação com a vida do autor, acusando-o de pessimista. O jogo de contrários do paradoxo da ironia também desautoriza tal afirmativa. Por fim, dialogaremos com o momento de virada da crítica para uma abordagem mais afeita ao horizonte literário e dialógico, com a entrada em cena de críticos como José Guilherme Merquior, Sônia Brayner e Enylton de Sá Rego. Papel decisivo também será o da obra de Helen Caldwell, ao apontar a dimensão da traição como a dimensão geradora da ambigüidade que perpassa todo o Dom Casmurro. A síntese de tais contribuições nos encaminhará para uma hermenêutica da narrativa e da ironia na obra de Machado de Assis. Ambigüidade, paradoxo, duplo sentido são termos que a crítica e a teoria do romance inglês já conheciam bem. Por isso, nossa abordagem da ironia no diapasão do Romantismo alemão não prescinde da teoria do romance e da narrativa desenvolvida em torno da retórica da ficção do romance desde Cervantes até Fielding e Sterne. Wayne C. Booth, John Preston, Wolfgang Iser: autor implícito, eu criado, leitor implícito. São conceitos fundamentais da retórica que, co-jogados ao paradoxo filosófico, suscitam um horizonte interpretativo inovador. Preston é pioneiro ao levantar o problema da ironia como plot (trama) e apontar a ambigüidade como problema epistemológico da narrativa moderna. Sua colocação abre espaço para a fenomenologia da leitura ver o papel do leitor justamente como construção virtual dos espaços em branco da falha da escritura e da narrativa. Esses são os vermes que corroem a letra. A corrosão é o nosso objeto de estudo. A corrosão está inscrita tanto na maneira metaficcional de narrar que assinala a presença da auto- consciência como instância exegética da narrativa, como no sentido ambíguo, anti-idealista, desconstrutivo que os silêncios do texto evocam. Em Ressurreição, tal ambigüidade está marcada tanto na construção do autor e do leitor, no jogo da enunciação, como na representação da consciência do personagem. O paradoxo é que Félix é infeliz, suas dúvidas impedem-no de persistir no bem que poderia ganhar, pois sua consciência o trai. O narrador, 13 porém, não se comove, mas ironiza sua derrocada com o riso que marca o reconhecimento da insuficiência existencial do personagem diante do amor e da vida. Ressurreição significa, no silêncio do texto, morte. Ler o livro é entender criticamente esse paradoxo. Em Iaiá Garcia, o narrar ambíguo funda um processo de desconstrução do universo narrado ao qual chamamos de narrar desconstruindo. O processo desconstrutivo desse narrar é isomórfico à corrosão do tema do amor, irônica e desilusoriamente representado como interesse. Em Dom Casmurro, então, a ironia como paradoxo chega ao ápice da obra machadiana. A ambigüidade é tão intensa que o próprio texto trai o narrador, sendo essa a nossa tese que contradiz a crítica; pois esta pretende afirmar - caindo na armadilha do texto – que Capitu traiu Bentinho, quando, na verdade, vemos um processo diferente, em que é impossível dizer categoricamente se ela o traiu ou não, o que leva à conclusão de que o narrador é que foi traído pelo texto. O paradoxo e a ironia se apresentam, por fim, em Memorial de Aires, como jogo entre ficção e realidade. Jogo sutil, narrativa suave e violentamente irônica. A crítica, em geral, não a soube ler. Concriativamente à linguagem elusiva da obra, procuramos escrever esse último capítulo através de uma linguagem parabólica. Parabólica porque toca suavemente o objeto sem procurar esgotá-lo, sem o desmontar. O fundamental é criticar co- poeticamente o recurso ficcional do romance de inscrever a história na escritura ficcional do diário de um velho e ameno observador. O resultado é uma das obras mais corrosivas – aparentemente inofensiva como os velhos diplomatas – da literatura brasileira, uma verdadeira parábola irônica da história do Brasil – una dolce e vecchia ironia. Gostaríamos de terminar nossa introdução com outro fragmento de Schlegel para garantir a circularidade de nossa composição e expressar o que significa o recurso machadiano de escrever parabolicamente: A ironia é uma parábase permanente. 14 CAPÍTULO I O conceito de ironia “Felizmente a poesia espera tão pouco da teoria quanto a virtude da moral, do contrário não se teria, para começar, nenhuma esperança de um poema.” (Friedrich Schlegel. Athenäum, 9). “no author, who understands the just boundaries of decorum and good-breeding, would presume to think all: the truest respect which you can pay to the reader’s understanding, is to halve this matter amicably, and leave him something to imagine, in his turn, as well as yourself.” (Laurence Sterne. Tristram Shandy, II, 11.) O que se mostra bem quer velar-se. O mais alto estilo poético é o que apreende este paradoxo, o que representa em sua estrutura o jogo entre o que é dito, expresso, formulado, e o que é inexprimível por palavras, o que permanece obscuro no silêncio, na dobra da página, naquele pano de fundo de onde tudo provém, mas que nunca é totalmente apreensível, pois representa a mais funda raiz da linguagem: o drama de representar não o que as palavras dizem, mas o que o silêncio da página, o que a folha em branco entre uma letra e outra significa. O estilo poético que harmoniza potencialmente a palavra e o silêncio, o dito e o não-dito, o finito e o infinito, a letra e o verme que a corrói, é o estilo irônico. O vigor é a essência do estilo irônico. O vigor do silêncio. A ironia se revela como um estilo de alusões, ambigüidades, jogos de sinais, de entreditos. Sutil, revela no mais límpido e lídimo estilo, na mais corrente e inocente frase, um jogo de tensões extraordinário. Aí está justamente sua 15 dificuldade: a simplicidade ordinária do sentido extraordinário, a elusividade1 do ordinário. Ao contrário do que acreditava a tradição retórica, o estilo irônico não se encontra em uma ou outra parte do texto especificamente. A ironia é, antes de ser um tropo que diz o contrário do que as palavras significam, a própria contextura ou arcabouço de relações de um texto. Um estilo irônico elevado não é o que se encontra em frases ou ditos espirituosos, mas o que entrelaça, silenciosamente, um corolário de relações e tensões insuspeitadas à primeira vista. Relações e tensões que não se esgotam na visão monológica da tradição filosófica ocidental, mas que exigem um novo pensamento, que suporte a tensão harmônica ou a complementaridade dos termos opostos em luta e disputa no universo da ficção. Para alcançarmos nosso objetivo, a compreensão do conceito de ironia, deveremos, portanto, partir de sua abordagem na tradição para então mostrar a insuficiência do seu tratamento enquanto problema retórico. A problematização do seu conceito nos leva, por sua vez, a outras abordagens, que privilegiam o duplo sentido, a ambigüidade estrutural da narrativa, enfim, o conúbio entre o estudo da estrutura irônica do romance com um conceito que comporte o jogo de elementos contrários, abordagem que buscamos no conceito de ironia no Romantismo Alemão. Esse momento sui generis do pensamento moderno, que encontra suas raízes no Idealismo Alemão, eleva a reflexão, no âmbito da filosofia, e a ironia, na poesia, ao mais alto grau de criatividade, sendo mesmo o inseminador de toda a poesia modernae, no caso da literatura brasileira, tendo sido brilhantemente absorvido pela obra de Machado de Assis – autor cuja obra será aqui estudada - é transformado em um dos recursos mais autênticos de sua crítica à consciência, à ideologia e à sociedade. A ironia prodigaliza a metaficção e a paródia, que denunciam o paradoxo do comportamento humano. Essa ironia só poderá ser compreendida no horizonte de um pensamento que comporte o jogo palindrômico dos 1 Esta palavra é uma audácia de nossa tese. Vem do inglês “elusive” e do italiano “elusivo”. Como no original há um sentido específico que desejamos usar, ousamos o “elusivo” em português. (Esta foi a última nota colocada na tese, depois de muitas leituras a várias mãos, nas quais a correção desta palavra foi recorrente.) 16 Lorena Heloísa Realce contrários e a desnude como um fenômeno poético que suplante o horror filosófico ao paradoxo e à contradição. Esse é o percurso que agora se nos abre. 1. O conceito de ironia na tradição e a retórica da ficção Vários foram os tratamentos dados para o tema da ironia na tradição crítica: desde o conceito da eironeia socrática como dissimulação do conhecimento – substrato filosófico que está presente em toda aproximação ao problema – até a abordagem retórica que a considera uma figura de inversão e, gramaticalmente, também uma forma, sintática entre outras, de dissimular o sentido. É nos diálogos de Platão que ela recebe a designação de eironeia (εỉρωνεία,ας), palavra que se refere à ação de perguntar fingindo ignorar ou mesmo de perguntar tendo em vista a própria inesgotabilidade da pergunta ou a insuficiência, que não deixa de ser uma ignorância, de qualquer resposta. É o que os latinos chamavam de dissimulatio (dissimulação). O eiron (είρων,νος) dos diálogos platônicos é Sócrates, aquele que pergunta aos sofistas sobre a justiça, o amor, a morte, dissimulando nada saber, o que é a maior ironia do conhecimento, o próprio aspecto bifronte de Sócrates, saber dissimulando não saber ou saber que não há uma resposta concludente para a pergunta. O método socrático é o da pergunta e resposta, contrapondo-se aos sofistas, que desenvolveram o método das respostas apenas. A estrutura de pergunta e resposta é o princípio construtivo dos diálogos socrático-platônicos e o próprio punctum saliens da arquitetura irônica desses textos. De acordo com Friedrich Schleiermacher, grande hermeneuta da obra de Platão, os diálogos se dividem entre os que estão dentro do espírito socrático (dialógicos) – e aqui a ironia é a base estrutural de sua construção – e os que se afastam do espírito socrático e procuram respostas muito próximas do científico para as perguntas deixadas em aberto por Sócrates – os quais Schleiermacher classifica como construtivos. No primeiro grupo a marca fundamental é a estrutura ambígua, que não nos dá respostas concludentes; sua estrutura irônica nos remete à 17 mais abstrata vacuidade. Por sua vez, os diálogos construtivos se apresentam dentro do espírito platônico de elaboração de uma teoria das idéias, de uma especulação positiva que busca a plenitude na idéia do Bem (ágathon). Uma observação mais detida dos primeiros diálogos é de grande valia para a compreensão do problema da ironia. Nesses diálogos, Sócrates se coloca primeiramente como alguém que não sabe da essência do objeto inquirido. Logo, porém, põe abaixo a pretensão dos interlocutores através de suas perguntas. Como sabemos, a estrutura da pergunta é uma abertura tanto para o objeto em questão quanto para o interlocutor. A ironia socrática derruba os argumentos dos interlocutores ao mesmo tempo que os seduz; mostra-lhes a insuficiência dos argumentos sobre o objeto, revelando-lhes uma possibilidade mais profunda de ser, sem dar, no entanto, uma resposta lógica, fechada ou concludente sobre ele. Paul Friedländer, em seu valioso trabalho Plato: an introduction2, refere-se a essa tensão que está “on the one hand deceptively concealing, on the other uncompromissingly revealing, the truth” (por um lado, ocultando ilusoriamente e, por outro, revelando inflexivelmente a verdade)3 – como uma wordless irony (ironia calada): uma estrutura silenciosa e dinâmica do ironic play (jogo irônico) que permeia os diálogos. No entanto, dentro da tradição filosófica (que inclui a gramatical), a ironia não foi compreendida em todas suas possibilidades significativas, tendo sido sempre tratada isoladamente, pontualmente. Na lógica dos gramáticos, o tratamento se torna ainda mais problemático pelo vício lógico de reduzir o sentido a construções sintáticas que se concretizam na fórmula rafada do tropos de inversão, ou mesmo, no trocadilho. É necessário, portanto, redefinir o conceito de ironia dentro de uma abordagem que revele o sentido no âmbito do jogo tensional de palavra e silêncio, dito e não-dito, recuperando a ressonância já entrevista nos diálogos socrático-platônicos. Na Modernidade, sua compreensão continuou atual, uma vez que é um recurso central na construção do romance. Nesse campo de estudo, a 2 FRIEDLÄNDER, Paul. Plato: An Introduction. Translated by Hans Meyerhoff. New York: Pantheon Books, 1958. Especialmente capítulo VII, “Irony”. 3 Idem, p. 144. 18 teoria da narrativa e, por extensão, do romance, sua abordagem estava, por sua vez, restrita à ironia verbal (verbal irony), conceito bastante estudado em romancistas da tradição inglesa como Henry Fielding, Laurence Sterne e Jonathan Swift. Em artigo sobre a ironia verbal, Eleanor Hutchens afirma sobre o romance Tom Jones de Henry Fielding: Verbal irony takes several forms. As irony, it is one of two main varieties – verbal and substantial – of the sport of bringing about a conclusion by indicating the opposite one. It is effected by a choice or arrengement of words which conveys the ironist’s meaning by suggesting its reverse. ( A ironia verbal toma diversas formas. Como ironia, é de duas variedades principais – verbal e substancial – de sorte a revelar uma conclusão ao indiciar a oposta. É efetivada por uma escolha ou arranjo de palavras que sustentam o sentido do ironista ao sugerir seu reverso.)4 A escolha ou arrumação para nos ludibriar cai na intencionalidade do autor/narrador. Essa concepção denota um uso instrumental da ironia como látego sobre as personagens, sobre a visão reificada do leitor. Restringe-a, assim, a uma fala ou aspecto pontual do discurso, cabendo-nos decifrá-la ou não, ou, em outras palavras, sermos enganados ou não; mas, enfim, ter uma atitude ou outra diante de sua colocação, o que leva ao cerne de uma visão lógica sobre o problema, ainda muito próxima daquela de dizer uma coisa querendo dizer outra apresentada pela gramática. O problema é que tanto a tradição gramatical como a filosófica da qual a gramática faz parte foram reduzidas a uma visão lógica e monológica que não aceita a abertura para uma resposta não-concludente. A não compreensão dessa inflexão no pensamento ocidental, porém, leva à incompreensão de textos que não sejam calcados na visão maniqueísta do lógico, o que causa grande estrago tanto no pensamento como no estudo da poesia. É aqui que o estudo do romance e da poesia são de fundamental importância para o deslocamento do conceito de conhecimento, pois atualizam, no espaço da modernidade, a tradição de textos e de um pensamento calcado na harmonia e não na separação dos contrários. 4 HUTCHENS, Eleanor N.. Verbal Irony in Tom Jones. In: R.S. Crane (org.). Critics and Criticism – Ancient and Modern. Chicago: Chicago University Press, 1952, p. 46. 19 Essa questão pode ser melhor compreendida se se leva em consideração a possibilidade de não ser a ironia um jogo lógico que envolva apenas as respostas sim ou não para os truques verbais do autor/narrador, mas um jogo um pouco mais complexo, que aceite, inclusive, concomitantemente, as respostas sim e não para a mesma pergunta. No estudo do romance moderno, especificamente, esse é um elemento epistemológico central: a possibilidade de haver uma estrutura que articule um sentido recôndito e virtualmente possível entre as várias instâncias narrativas (autor, narrador, personagem, leitor), não se esgotando em nenhuma delas, mas as ultrapassando e somente revelado no ato da leitura. Ultrapassando o horizonte monológico de abordagem do problema, a ironia se torna uma dimensão ontológico-construtiva do romance, que atualiza o problema do dialógico da tradição como uma herança pródiga na modernidade. Há uma outra passagem fundamental sobre o romance inglês do século XVIII, mais uma vez sobre a obra de Henry Fielding, que ajudará decisivamente nessa nova delimitação. Trata-se do livro The Created Self de John Preston, no qual é desenvolvido o conceito de ironia como plot (enredo) que, numa tradução mais precisa, considerar-se-ia trama: ..., the plot [of Tom Jones] faces two ways. From one side it looks like a forced solution, from the other an open question. In one way it looks arbitrary and contrived, in another it not only makes the reader guess but keeps him guessing at what has happened. The latter aspect of the plot is sustained by what Eleanor Hutchens calls “substantial irony”: “a curious and subtle means used by Fielding to add irony to a given detail of plotting is to leave the reader to plot a sequence for himself”. The reader has not, in fact, been told everything and is sometimes as much in the dark as the characters themselves. But irony of this kind is only contributory to the ironic shift by means of which the whole direction of the novel is reversed, and the plot has to sustain two contradictory conclusions simultaneously. [ a trama (em Tom Jones) aponta dois caminhos. Por um lado parece uma solução forçada; por outro, uma questão aberta. De uma maneira parece arbitrária e tramada, de outra ela não apenas faz o leitor conjeturar como o mantém conjeturando sobre o que aconteceu. O último aspecto da trama é embasado pelo que Eleanor Hutchens chama “ironia substancial”: “um meio curioso e sutil usado por Fielding para adicionar ironia a um detalhe 20 dado da trama é deixar ao leitor completá-la por si mesmo”. O leitor não foi, de fato , avisado de tudo e fica, às vezes, tão no escuro quanto os próprios personagens. Mas ironia deste tipo só contribui para o ardil irônico na medida em que a direção completa do romance é revertida, e o enredo tem de suster duas conclusões contraditórias simultaneamente.]5 É bem clara a abordagem da ironia como um problema construtivo. A última frase é um petardo contra a crítica impressionista, pois deixa em evidência primeiramente que é o plot que constrói a ironia e, em seguida, que ele harmoniza conclusões simultaneamente contrárias. Preston complementa suas colocações com a afirmação de que o enredo de Tom Jones tem uma estrutura que pede sucessivas respostas ao romance e que isso significa que seu efeito é mais epistemológico do que moral, uma vez que o livro põe o leitor para pensar e construir o quebra-cabeça durante a leitura. A crítica de Preston desvenda o enredo aparente e redimensiona a recepção crítica criada em torno da obra, pois destrói o argumento moralista que havia se formado sobre o livro na Inglaterra. Além disso, esse trecho retoma, em tom crítico-literário, aquilo que Schleiermacher apontou nos diálogos platônicos como dialógico, a possibilidade de uma abertura que não se esgota na resposta unívoca. Esse problema, que fora escamoteado pelo trajeto filosófico, parece ser brilhantemente retomado pelo romance moderno e, como veremos também, pela filosofia do século XVIII. Não querendo cair no lugar comum do comparativismo, mas se utilizando de conclusões críticas sobre o romance inglês do século XVIII, pode- se escolher esse trecho como um ponto fundamental no trajeto de elucidação do conceito de ironia. Ele será também muito importante para compreendermos certos paradoxos da obra e da recepção crítica da obra de 5 PRESTON, John. Tom Jones (i): Plot as Irony. In: - . The Created Self. The Reader’s Role in Eighteenth-Century Fiction. London: Heinemann, 1970, p. 97. Esta obra faz parte de um esforço da crítica de língua inglesa dos anos 60 e 70 para compreender o estatuto ficcional da retórica do romance, cuja tradição naquela língua é riquíssima. O estudo decisivo nesse sentido foi o de Wayne C. Booth, The Rhetoric of Fiction (1961), que apresentou o conceito de autor implícito e que parece formar uma trilogia crítica, se pudermos aproximar um pouco livremente pólos à primeira vista distantes, incluindo o próprio Preston, Booth e a obra magistral de Wolfgang Iser, The Implied Reader. Citações posteriores. 21 Machado de Assis. Muitos autores e críticos já apresentaram a proximidade do romance inglês com a obra do autor carioca do século XIX6, mas ainda é pouco estudada qual a contribuição decisiva daquela tradição do romance - sob a ótica do jogo irônico dos contrários - sobre o autor brasileiro. Nosso intuito não se atém a essa relação comparativa, mas se esforça para compreender o funcionamento do jogo irônico no universo ficcional do autor em questão. Os romancistas do século XVIII eram profundamente conscientes do jogo com o leitor que é construído pela ironia. Esse jogo é que constitui a novidade do universo narrativo moderno desde o Dom Quixote. Podemos dizer que a ironia se confunde com esse jogo. Aquela estrutura desvendada em sua ambigüidade por Preston o produz. Por isso gera no leitor um efeito dissonante que será amplamente discutido pela teoria literária moderna, principalmente pela teoria do efeito estético da Escola de Constança, e ainda mais especificamente por Wolfgang Iser em seus livros The Implied Reader e The Act of Reading7. Para compreender a ironia como jogo é imprescindível passar em revista alguns conceitos e algumas discussões desse autor, como, por exemplo, os conceitos de vazio estrutural e de leitor implícito. Iser parte da fratura exposta pelo romance, o que marca a diferença dessa forma literária moderna em relação à obra de arte antiga. A mudança de horizonte da obra de arte clássica - onde a construção era organicamente unívoca - para a obra de arte moderna, que se compraz, especialmente no caso do romance, em parodiar e transformar a coerência em uma incoerência intencionalmente construída, instaura um problema moderno de leitura: a dissonância domina como a condição central da comunicação no romance. 6 Entre outros estudos, poderíamos enumerar: SENNA, Marta de. O Olhar Oblíquo do Bruxo (ensaios em torno de Machado de Assis). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1998.; BRAYNER, Sônia. Labirinto do Espaço Romanesco. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/MEC, 1979; REGO, Enylton de Sá. O Calundu e a Panacéia (Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. 7 ISER, Wolfgang. The Implied Reader (Patterns of Communication in Prose Fictionfrom Bunyan to Beckett). London: Johns Hopkins University Press, 1974. E ainda: ISER, W. The Act of Reading (A theory of aesthetic response). London: Johns Hopkins University Press, 1978. Este já se encontra em português: ISER, W. O ato da leitura – Uma teoria do efeito estético. 2 vols. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996. 22 A dissonância é criada precisamente pela “incoerência” ou assimetria entre os vários planos co-jogados no texto: o do autor, o do narrador, o da personagem e o do leitor. A “incoerência” estimula o leitor a participar ativamente do ato da leitura, pois sua participação em uma obra clássica, onde tudo já lhe está dado, não é requerida, apenas seu deleite e sua adequação às normas expostas. É o velho lema do prodesse et delectare. Ao contrário, para a tradição moderna do romance, o texto formulado deve “falhar” para estimular o leitor. É como se a leitura fosse eivada de verdadeiros vazios aos quais Roman Ingarden, fenomenólogo a quem Iser deve o ponto de partida de sua teoria, chama pontos de indeterminação8. Os vazios derivam da indeterminação do texto, formam buracos na conectibilidade textual, quebrando o princípio da economia comunicacional dos textos não-ficcionais chamado princípio da good continuation9. Dessa forma, os vazios intensificam a atividade ideativa do leitor. Os vazios ou buracos são, em verdade, os pontos nos quais o leitor pode entrar no texto, formando suas próprias conexões e concepções e o sentido configurativo do que lê: And just as the reader is to ‘reflect’ during these ‘vacant pages’, so too must he reflect during all the other vacancies or gaps in the text. The gaps, indeed, are those very points at which the reader can enter into the text, forming his own connections and conceptions and so creating the configurative meaning of what he is reading. Thanks to the ‘vacant pages’, he can reflect, and through reflection create the motivation through which he can experience the text as a reality. He forms what we might call the ‘gestalt’ of the text,…(E assim como o leitor deverá refletir durante essas páginas vazias, assim também ele deve refletir durante todos os vazios ou buracos no texto. Os buracos, em verdade, são aqueles mesmos pontos nos quais o leitor pode entrar no texto, formando suas próprias conexões e concepções e assim criando o sentido configurativo do que ele está lendo. Graças às ‘páginas vazias’ ele pode refletir e, 8 INGARDEN, Roman . The cognition of literary work of art. Evanston, Northwestern University Press, 1973. 9 Este é um termo utilizado por Wolfgang Iser para o princípio da economia vigente na percepção diária da linguagem, pois, como diz o próprio nome – boa continuidade – não cabe à linguagem diária levantar barreiras à percepção, o que é o oposto nos textos ficcionais. Iser o retira da psicologia da percepção de Gerwitsch e Bateson: “Ele indica a ligação consistente de dados da percepção em uma forma de percepção”. Vide: ISER, W. A Interação do texto com o leitor. In: - COSTA LIMA, Luiz. (org.). A literatura e o leitor (Textos da Estética da Recepção). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, pp. 108 e ss. 23 através da reflexão criar a motivação através da qual ele pode experienciar o texto como uma realidade. Ele forma o que poderíamos chamar de ‘gestalt’ do texto,...)10. Poderíamos considerar esta abordagem do processo de leitura como uma abordagem fenomenológica. Para essa abordagem, a obra-de-arte literária se dinamiza e se concretiza na interpenetração dialética e dinâmica de sua estrutura textual com a sua realização11 pelo leitor. Podemos, portanto, dizer que a concretização é uma tarefa de construção do sentido não-dito, mas potencialmente estruturado pelo texto. O texto literário é uma malha de elementos que não trazem a significação já pronta. Os elementos determinados se organizam e se relacionam de tal maneira que apresentem indeterminações comunicativas entre si. A estrutura dos elementos determinados produz uma estrutura de pontos de indeterminação (Leerstellen) e negação. Por via de conseqüência, é na dialética do dito e do não-dito, do escrito e do não-escrito, que se dinamiza o papel do leitor e a concretização da obra. Partindo da concepção ingardiana do texto como uma estrutura de correlatos oracionais intencionais (intentionale Satzkorrelate), Iser aperfeiçoa o legado da fenomenologia e psicologia da percepção ao justamente enfatizar a produtividade dos vazios estruturais. Enquanto para Ingarden o processo da leitura deve caminhar através das sentenças correlativas até a apresentação completa do mundo da obra, Iser enfatiza precisamente a não-conectibilidade entre os segmentos estruturais como os pontos de maior significação do texto. O que diferencia o texto literário do texto não-literário, e particularmente do texto científico, é justamente a não- conectibilidade que nos leva a uma dificuldade de ideação12. O texto ficcional 10 ISER, Wolfgang. The Implied Reader, p. 40. 11 Realização é a tradução da palavra inglesa realization, que, por sua vez, traduz a palavra alemã Konkretisation. Estas palavras são substantivos dinâmicos que remetem ao processo de interação entre o horizonte em formação da obra e a existência concreta do leitor. Tal interação se dá no ato da leitura. 12 O conceito de dificuldade de ideação foi criado por Iser para aperfeiçoar o conceito de dificuldade de percepção dos Formalistas Russos. Para Iser, a dificuldade de ideação é mais fiel que a dificuldade de percepção ao fenômeno de constituição do sentido pelo leitor. Cf. ISER, W. How acts of constitution are stimulated. In:__. The Act of Reading, pp. 180-231. 24 rompe com o caráter de previsibilidade dos outros discursos, desautomatizando a percepção pela quebra do princípio da good continuation evocado pela psicologia como princípio de economia dos textos palatáveis, isto é, que não oferecem resistência à boa continuidade da compreensão. A quebra da good continuation pela estrutura dos vazios provoca no leitor uma atividade intensa de formação de imagens dadas pelo texto. A dificuldade de ideação é, portanto, um acréscimo na necessidade de construção de uma configuração (Gestalt) integrada das várias perspectivas textuais pelo leitor. Os vazios, porém, não marcam apenas a suspensão da conectibilidade entre os segmentos, mas formam a própria condição de seu mútuo relacionamento. Eles funcionam como a estrutura de comunicação do texto, pois coordenam a permuta de perspectivas do ponto-de-vista do leitor. A primeira propriedade estrutural do vazio é justamente a possibilidade que ele cria de, a partir das conexões interrompidas, organizar campos onde se inter- relacionem e se interpenetrem segmentos e perspectivas do texto. Cabe à atividade projetiva do leitor organizar a tensão entre os segmentos em relacionamento no campo estruturado pelo seu ponto-de-vista. Daí a necessidade de perspectivar relações determinadas enquanto outras são postas em segundo plano, num processo constante e permutável de aproximação de alguns segmentos em diálogo e afastamento de outros. Essa operação funciona como se houvesse uma mudança de lugar dos vazios, focalizando um determinado agrupamento de segmentos e desfocando outros, o que cria a necessidade de mobilidade da perspectiva do leitor. O agrupamento de segmentos focalizado torna-se tema, o não-focalizado, horizonte. A estrutura da compreensão coordena à tematizaçãode um grupo segmental a criação de um horizonte, de tal forma que o ato de compreender só se efetiva na interpenetração dinâmica de tema e horizonte. Portanto, o processo de interação do texto com o leitor não se dá pelo fato de este trazer sua experiência subjetiva e a despejar na forma (ô) vazia, aberta pelo texto, como muitos críticos desavisados interpretam o conceito de abertura, principalmente por uma leitura mal feita da obra de Umberto Eco, 25 Obra Aberta. Obra Aberta não significa obra escancarada. Pelo contrário, o texto cria uma intensa atividade de projeção e frustração, ilusão e desilusão, criação de expectativas e boas intenções para posteriormente serem solapadas por sua estrutura de negações. Para Iser, esse não é um processo contínuo, mas um corolário de interrupções. Um processo no qual We look forward, we look back, we decide, we change our decisions, we form expectations, we are shocked by their nonfulfilment, we question, we muse, we accept, we reject… (nós olhamos para frente, nós olhamos para trás, nós decidimos, nós mudamos nossas decisões, nós formulamos expectativas, nós somos surpreendidos por sua não-realização, nós questionamos, nós ensimesmamos, nós aceitamos, nós rejeitamos...)13 Enfim, para Iser, citando I. A.Richards, “a book is a machine to play with” (Um livro é uma máquina para se jogar com ela.)14. Isto é, o livro é uma estrutura intencionalmente fraturada que constrói sua coerência como livro da incoerência formal que gera aquele efeito epistemológico que Preston nos descreve. O suportar duas soluções simultaneamente contraditórias é justamente fazer da incoerência coerência. É abrir vazios que ativem a dissonância da comunicação e a ambigüidade do sentido. A ambigüidade é o efeito irônico sobre a leitura e leva o leitor a ter que desentranhar, refletir sobre o sentido potencial e virtualmente construído, mas estruturalmente silenciado no texto. Por isso, Iser nos afirma que “a concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor”15. Ou ainda, que “a estrutura do texto e o papel do leitor estão intimamente unidos.”16 O leitor é implícito justamente porque ocupa o papel que os vazios lhe oferecem, construindo-se imagem daquele leitor que o texto concede e pré-forma, silenciosamente, na sua estrutura aberta, que também poderíamos chamar de irônica. É claro que a interação leitor/texto passa por um confronto do mundo 13 ISER,W. The Implied Reader, p. 288. 14 Idem, p. 45. 15 ISER, W. O Ato da Leitura, p. 73. 16 Idem, p. 75 26 da ficção com o mundo da vivência do leitor, realizando-se, por isso, em diferentes graus, mas o texto mais lê o leitor do que é lido por ele. O jogo do texto com o leitor é o jogo do sentido que se revela no ato da leitura. Para compreender a fundamental heterogeneidade do leitor no processo configurativo do sentido do texto, Iser irá dialogar com outras teorias, como com o conceito hermenêutico de jogo da obra-de-arte e de história operativa (Wirkungsgeschichte) desenvolvido por Hans-Georg Gadamer em sua obra magistral da Hermenêutica Contemporânea Verdade e Método (Wahrheit und Methode)17. Esses conceitos também são importantes para compreendermos o modus operandi da ironia como formatividade do texto. Para compreendê-los, passemos à exposição de seu conceito. Segundo Gadamer, o jogo é o próprio ser da arte. Sua afirmação só pode ser entendida quando confrontada com o esquema epistemológico de conhecimento formulado pela tradição filosófica que, modernamente, se apresenta no discurso metódico cartesiano. Para René Descartes, o ego do cogito, ergo sum é o sujeito (sub-jectum=suporte) a priori de todo conhecimento e só através dele se manifesta a objetividade do objeto. Tudo que existe só existe porque há um sujeito matemático (cogito) que corrobora sua objetividade. Sujeito e objeto são os dois termos do método cartesiano. Nesses termos, ou a verdade é subjetiva ou é objetiva. Não é o que afirma Gadamer. O ser da obra é jogo porque seu sentido não se esgota nem na subjetividade do autor ou do “fruidor”, nem na objetividade do representado. A obra-de-arte é o livre manifestar-se (Darstellung) da verdade (Alétheia) bem no meio da linguagem, é o jogo incessante daquilo mesmo que se manifesta. Seu ser não é determinado pela subjetividade nem pela objetividade, mas pela redundância do próprio movimento do jogo da obra. O que Gadamer quer dizer é que o sujeito da obra é o próprio jogo, pois aquilo que a obra é é o que se manifesta em seu jogo. Uma redundância que aponta para a auto-representação da obra, que é aquilo mesmo que se mostra sendo, não o que uma consciência ou realidade exterior 17 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método (Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica). Trad. Flávio Paulo Meurer. 2 vol. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. 27 queira que ela seja. Assim, Gadamer liberta o conceito de arte da determinação subjetiva da estética kantiana e da idéia platônica de que a arte sempre representa (no sentido de copiar, Vorstellen) uma realidade que a circunda ou precede. A importância de Gadamer para Iser ou da Hermenêutica para a Teoria do Efeito é a de que o sentido que se manifesta não se reduz à subjetividade ou à objetividade que circundam a obra, que o sentido se manifesta num jogo que representa o próprio ser da obra e que é esse mesmo jogo que cria o papel do leitor, do autor, do narrador e do universo narrado. O ser da arte se revela nesta redundância: o jogo é um movimento incessante que não procura um ponto único como objetivo; é a redundância do movimento. Se, numa folha de papel, estabelecêssemos dois pontos – como, por exemplo, a subjetividade e a objetividade numa relação metódica – o jogo não se ateria a nenhum dos dois pontos, mas se constituiria como o próprio movimento de ir e vir entre um e outro no espaço em branco da página. Portanto, no jogo, o movimento é uma representação que se auto- representa. Seu modo de ser é medial, é o entremeio. Por não ter objetivos fora de si, o jogo não é sério no sentido das atividades que procuram realizar um fim. A sua seriedade tem um sentido próprio, autotélico. Por isso, no jogo da arte, nem o sujeito (autor ou leitor), nem o objeto (realidade) se mantêm os mesmos, mas são transformados pela construção lúdica do texto. O que ex- surge da representação do jogo da arte é algo novo, inédito, mas que, paradoxalmente, é aquilo mesmo que é verdadeiro. Isto é o que Gadamer chama de Verwandlung ins Gebilde (Transformação em Construção): A este giro por el que el juego humano alcanza su verdadera perfección, la de ser arte, quisiera darle el nombre de trasformación en una construcción. Sólo en este giro gana el juego su idealidad, de forma que pueda ser pensado y entendido como él mismo. Sólo aqui se nos muestra separado del hacer representativo de los jugadores y consistiendo en la pura manifestación de lo que ellos juegan. [...]18 Ou ainda: 18 Utilizamos a tradução espanhola: GADAMER, H. G.. Verdad y Método (Vol. 1). Quinta edición. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1993, p. 154. 28 Nuestro giro ‘transformación en una construcción’ quiere decir que lo que había antes ya non está ahora. Pero quiere decir también que lo que hay ahora, lo que se representa en el juego del arte, es lo permanentemente verdadero.19 A partir da apresentação do conceito de jogo de Hans-GeorgGadamer, já podemos fazer um apanhado dessas teorias e apontar o caminho que estamos procurando seguir. Em consonância com essas teorias até aqui apresentadas, exporemos, mais à frente, o conceito de ironia estrutural de Beda Allemann, como concepção fundamental do processo lúdico-construtivo da ironia no romance. Porém, de imediato, se relacionarmos a teoria do romance inglês do século XVIII de John Preston – que aponta para as duas respostas simultâneas exigidas do leitor pelo romance – , com os vazios estruturais ou pontos-de-indeterminação apresentados pela teoria de Wolfgang Iser – vazios que exigem a participação ativa do leitor no jogo da obra e que o transformam, no ato da leitura, em leitor implícito no horizonte de sentido revelado no texto - , e ainda fundamentarmos este percurso na teoria do jogo de Gadamer – que aponta justamente para a experiência da obra de arte como uma experiência que nos revela a verdade não como continuidade com nossa subjetividade ou com a objetividade, mas como transformação pela construção do texto -, então já podemos vislumbrar o que nosso esforço teórico deseja revelar: a ironia como um jogo textual que implica a transformação da realidade e do leitor através da encenação de um mundo submetido ao paradoxo e à contradição. O jogo da obra de arte irônica deverá ser compreendido, no entanto, no horizonte da ironia romântica alemã de Friedrich Schlegel. Sua representação como construção de um sentido em constante luta e disputa de elementos e visões contrários submete a visão do leitor, a própria construção do universo narrado e a realidade representada ao jogo de ambigüidades e paradoxos. Levando a cabo as conseqüências destes elementos em diálogo crítico, poderíamos falar ainda da retórica da ficção ou, em termos mais amigáveis, dos papéis do autor e do narrador também transformados pelo jogo 19 Idem, p. 155. 29 irônico do romance moderno. Antes, porém, passemos por um conceito também relacionado ao universo da ironia: o humor. Para tanto, é necessário lembrar que a mímese do romance não é a cópia da realidade, mas a re-elaboração do sentido do real no ato de representação pelo jogo da narrativa. O real realizado é confrontado pelo jogo de realização do real na dinâmica representativa do texto. Trata-se não da representação como cópia (Vor-stellung), mas como criação (Dar-stellung)20. A representação irônica do romance questiona a realidade ao desvelar, na dinâmica do jogo, um sentido novo, inédito e inaudito do real. Todo fenômeno literário ou poético tem um caráter ficcional. Nem por isso ele se afasta ou torna independente da realidade vivencial, imediata. Pelo contrário, a realidade ficcional e a realidade vivencial constituem-se no exercício de uma identidade na diferença, qual espelho que reflete refletindo-se. Esta tensão especular de identidade na diferença e de diferença na identidade projeta-se e reflete-se nos elementos funcionais que constituem as duas realidades, através de uma terceira: a realidade discursivo-literária.21 Quer dizer, a realidade ficcional não é o reflexo da realidade real, estabelecendo-se entre uma e outra um jogo dialético entre representação e transformação ou, em outros termos, entre identidade e diferença. Como a realidade ficcional é um jogo em que o real é transfigurado, o seu sentido está representado na dinâmica da auto-manifestação do jogo da obra. Se seu jogo intensifica e distorce a tensão identidade/diferença, então ele é marcado pela distorção da própria realidade discursiva do texto. Assim é a paródia. A ironia é questionamento (eironeia), pois está nessa dinâmica de representação transformadora. A paródia da motivação realista é a sua linguagem por excelência. 20 Rubens R. T. Filho, em uma passagem da discussão sobre Fichte, elucida a diferença entre Vorstellung e Darstellung: “Fichte tem, desde o começo, uma noção muito clara do paradoxo que haveria em pensar essa exposição (Darstellung) como simples representação (Vorstellung)...” In: FILHO, Rubens Rodrigues Torres. O Espírio e a Letra – A crítica da imaginação pura em Fichte. São Paulo: Ática, 1975, p. 52. 21 CASTRO, Manuel Antônio. O Acontecer Poético. A História Literária. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1982, p. 112. 30 E é assim que a ironia se aproxima do humor. O humor como sentimento del contrario22, como diz Luigi Pirandello, faz fronteira com a paródia do real revelada no questionamento irônico. Mas, assim como nem sempre o humorismo se define pelo riso, mas pela reflexão sobre o que até então era visto sem ser problematizado, também a ironia nem sempre se conceitua pelo elemento cômico. Tanto a ironia quanto o humorismo, por sua natureza paradoxal, reúnem tensionalmente o cômico e o trágico. O que significa que não se detêm apenas no jogo de aparência que leva ao riso cômico, mas lançam-se ao desvelamento do sentido que vai além das aparências, revelando a essência trágica do real. Ainda em seu texto-ensaio sobre o humorismo, Pirandello, apesar de afirmar não ser possível defini-lo, dá uma explicação muito límpida sobre o seu caráter: Ordinariamente – já disse alhures e aqui me é forçoso repetir – a obra de arte é criada pelo livre movimento da vida interior que organiza as idéias e as imagens em uma forma harmoniosa, na qual todos os elementos correspondem entre si e à idéia-mãe, que as coordena. A reflexão, durante a concepção, assim como durante a execução da obra de arte, não permanece inativa: assiste ao nascer e ao crescer da obra, segue suas fases progressivas e goza com elas, aproxima os vários elementos, coordena-os, compara-os. A consciência não ilumina todo o espírito; notadamente para o artista ela não é um lugar distinto do pensamento, que permita à vontade atingi-la qual a um tesouro de imagens e de idéias. A consciência, em suma, não é uma potência criadora, mas o espelho interior no qual o pensamento se mira; pode-se dizer, antes, que ela é o pensamento que vê a si mesmo, assistindo aquilo que ele faz espontaneamente. E, comumente, no artista, no momento da concepção, a reflexão se esconde e permanece, por assim dizer, invisível: é quase, para o artista, uma forma de sentimento. À medida em que a obra se faz, ela a critica, não friamente como faria um juiz desapaixonado, analisando-a, mas improvisadamente, segundo a impressão que dela recebe. [...] Pois bem, nós veremos que, na concepção de toda obra humorística, a reflexão não se esconde, não permanece 22 PIRANDELLO, Luigi. Essenza, caratteri e matéria dell’umorismo. In: - . L’Umorismo. Milano: Arnaldo Mondadori, 1989,129-168. 31 invisível, isto é, não permanece quase uma forma de sentimento, quase um espelho no qual o sentimento se mira; mas se lhe põe diante, como um juiz; analisa-o, desligando-se dele; decompõe a sua imagem; desta análise, desta decomposição, porém, surge e emana um outro sentimento: aquele que poderia chamar-se, e que eu de fato chamo o sentimento do contrário.23 Neste trecho singular de consciência poética – só encontrado em grandes criadores -, ficam claros alguns pontos fundamentais levantados até aqui: há, na obra-de-arte, uma harmonia de idéias e imagens criadas pelo “livre jogo de vida interior” que poderíamos aproximar do livre movimento de jogo da obra apontado por Gadamer. Mas, além disso, há outro elemento central levantado por Pirandello: a consciênciaque, no processo de concepção e execução, obedece ao ritmo de formação da obra, chegando ao fato de que, no momento da concepção, a reflexão se esconde e “permanece, por assim dizer, invisível”. Esse fato, porém, não se repete na obra humorística, pois nela a reflexão toma um papel central. Para exemplificar essa constatação, Pirandello nos dá um exemplo brilhante, não incluído em nossa citação, mas que se refere a uma imagem, como se uma imagem de um livro, em que ele, o autor, vê uma velha senhora com os cabelos retintos, pintados de um óleo horrível, vestindo roupas juvenis e desajeitadamente maquiada. Se ele ri do que vê é porque adverte que aquela senhora é o contrário do que deveria ser uma velha senhora. Essa advertência do contrário é o cômico. Mas se, além da advertência, a reflexão intervém e comenta, por exemplo, que aquela senhora talvez não tenha nenhum prazer em se vestir daquela maneira papagaiada, mas que só o faz para tentar segurar o seu amor mais jovem, aí então, além da advertência, a reflexão nos faz passar para o sentimento do contrário. Esse é o humor. Quer dizer, é na reflexão que a distorção da realidade se manifesta como realidade distorcida. Só temos consciência do ridículo do real quando representamos a consciência do ridículo. Essa consciência é a ficção 23 PIRANDELLO, Luigi. O Humorismo. Tradução e notas de Dion Davi Macedo. São Paulo: Editora Experimento, 1996, pp. 131-132. 32 que, para representar o real e, mais que o real, seu aspecto estranho, estranha a representação e nos dá, além do ridículo, a consciência do ridículo. O real não é só representado como distorcido, mas também é analisado e explicado em sua distorção. Mais à frente, na parte referente ao conceito de ironia no Romantismo Alemão, veremos como que esse jogo de espelhamento da consciência e da autoconsciência é que compõe a reflexão como ponto central da ironia romântica. É na reflexão, como consciência do jogo entre realidade e aparência, que ironia e humor se aproximam. Esse jogo é que cria o teatro entre reflexão e representação no caso da narrativa, ou entre enunciação e enunciado, conhecido como retórica da ficção. O sentimento del contrario é, por sua vez, retomado no romance Um, nenhum, cem mil (1926)24, onde Pirandello “assinala,[...], a crise da representação convencional da realidade dita objetiva, crise que trouxe no seu bojo a problematização dos tipos no registro ficcional”25. A contradição entre os papéis subjetivo e social, as várias máscaras que somos obrigados a vestir e a tensão entre este imperativo e o nosso eu interior também em transformação, é o tema dessa obra magistral, que assinala a ironia dos padrões de comportamento estabelecidos por uma sociedade hipócrita e medíocre. Continuando, porém, em nossa busca de fenômenos implicados no jogo irônico da narrativa, devemos falar sobre a retórica da ficção, que poderíamos traduzir como a verificação de que, no jogo da ironia, autor e leitor são co-jogados pela estrutura polifônica, transformando-se em papéis dramatizados pelo teatro do texto. Autor e narrador são os outros dois pólos do jogo irônico e é isso que implica a retórica da ficção. Porém, é importante lembrar que assim como o leitor é implícito, também o são o autor e o narrador. No caso do romance machadiano, a perspectiva do autor é o papel cambiante que marca a complexidade e a revolução decisiva de seu universo ficcional. A máscara do autor assume em Machado de Assis a feição multiperspectiva do narrador, do comentarista, do humorista, do moralista, do satirista, criando um 24 PIRANDELLO, L. Um, nenhum e cem mil. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo, Cosac & Naify Edições, 2001, Coleção Prosa do Mundo. 25 Idem, p. 7. Apresentação de Alfredo Bosi. 33 ritmo de perspectivação tão complexo e multifacetado quanto o sentido que muda de valência às vezes quase que de linha para linha. A ambigüidade e a contradição são próprias desse jogo. Por isso, no ritmo de transe da construção irônica, autor, narrador e leitor são papéis, nunca se atendo a um sentido fechado monologicamente. Um desses papéis cambiantes e multifacetados é o do autor implícito26 à narrativa. A figura do autor como comentarista ou diretor de cena é um papel do texto. O autor implícito não é o narrador, mas um papel dramatizado pelo texto. Mesmo narrativas em 1ª pessoa, onde há um diálogo constante entre o narrador e o universo passado de sua existência como personagem, podem apresentar a intromissão do autor implícito. Ele é uma imagem do autor dramatizada e exigida pelo próprio romance. Poderíamos mesmo dizer que ele é a personagem principal do teatro ficcional, através da qual temos acesso ao universo aberto pelo texto. Nas palavras de Wayne C. Booth: Even the novel in which no narrator is dramatized creates an implicit picture of an author who stands behind the scenes whether as a stage manager, as puppeteer, or as an indifferent God, silently paring his fingernails. This implied author is always distinct from the ‘real man’ – whatever we may take him to be – who creates a superior version of himself, a ‘second self’, as he creates his work. ( Mesmo o romance que não tem um narrador dramatizado cria a imagem implícita de um autor nos bastidores, seja ele diretor de cena, operador de marionetes ou Deus indiferente que lima, silenciosamente, as unhas. Este autor implícito é sempre distinto do ‘homem sério’ – seja o que for que pensemos dele – que cria uma versão superior de si próprio, um alter ego, tal como cria a sua obra.)27. O autor autoconsciente do jogo, criado em consonância com o movimento formativo28 da obra, é um autor irônico. Em suas várias facetas 26 Conceito chave da teoria da narrativa moderna. O autor implícito é, segundo Wayne C. Booth, um second self, uma máscara que intervém metaficcionalmente na narrativa. O texto de Booth será citado logo adiante. 27 BOOTH, Wayne C.. The Rhetoric of Fiction. Second Edition. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1983, p. 151. 28 O adjetivo formativo é tomado à concepção da obra de arte como formatividade da estética de Luigi Pareyson, correlata à concepção de jogo de Gadamer. Em suma, a formatividade é a concepção do ato criativo como concomitância de execução e invenção, isto é, uma concepção 34 durante o processo narrativo, dada a maior ou menor distância do mundo ficcional ou dos capítulos metaficcionais, o autor implícito se apresenta em constante metamorfose no romance, aparecendo tanto como um narrador autoconsciente, quanto como um narrador intruso ou ainda como um unreliable narrator (narrador não-confiável)29 dos eventos do mundo ficcional. De qualquer forma, a representação de vários papéis estabelece um acesso multifacetado ao universo da ficção, o que problematiza e ironiza o processo de compreensão pelo leitor. Entre o narrador e o autor, representados nas várias modulações da voz do autor implícito, ou no silêncio do narrador, que se afasta estrategicamente da narração, estabelecem-se vazios ou fissuras30 que ativam a imaginação e a ideação do leitor. Com relação ao diálogo entre os eus criados, autor e leitor implícitos, pode-se dizer que só se efetiva em consonância com a ironia estrutural do texto, a qual produz um diálogo de meias palavras e silêncios verminosos, aletréticos, que se coaduna ao ritmo do jogo de claro e escuro da estrutura sincopada e ambígua do romance. O autor e o leitor implícitos são papéis que realizame concretizam o sentido irônico do romance porque completam ludicamente esses vazios e têm consciência da finitude da compreensão. A autoconsciência do autor é autoconsciência do sentido irônico. Por isso, sua fala é ambígua e, paradoxalmente, diz mais quando em silêncio. Por outro lado, a realização e concretização do sentido pelo leitor são, tanto quanto lhe faz ver o autor por entre a tessitura do texto, o reconhecimento da finitude de seu conhecimento perante o mundo representado na ficção. Para Booth, esta conexão se passa da seguinte maneira: fabril e não ideativa – como a tradição estética – em que o autor cria ao executar seu projeto e executa ao criar. 29 Expressão usada por Booth e que grande significação possui no estudo na narrativa de Machado de Assis. Justamente por não se ter em mente a inconfiabilidade do narrador é que muitos leitores e até mesmo críticos são pegos de surpresa e caem em meandros da estrutura irônica da narrativa machadiana. 30 Ainda Wolfgang Iser falando do conceito de vazio estrutural ou estrutura de vazios, como já foi citado anteriormente: “Representam pois as ‘articulações do texto’, pois funcionam como as ‘charneiras mentais’ das perspectivas de representação e assim se mostram como condições para a ligação entre segmentos do texto.”In: COSTA LIMA, L. Op. Cit., p. 106. 35 The author creates, in short, an image of himself and another image of his reader; he makes his reader, as he makes his second self, and the most successful reading is one in which the created selves, author and reader, can find complete agreement. (O autor cria, em suma, uma imagem de si e outra imagem de seu leitor; ele constrói seu leitor, assim como constrói seu alter ego, e a leitura mais bem sucedida é aquela na qual os eus criados, autor e leitor, podem encontrar completa concordância)31. Por outro lado, a máscara do autor implícito cria uma outra máscara, a do narrador, para tornar ainda mais complexo o jogo. Trata-se aqui da construção da situação narrativa. No nosso universo de trabalho, a obra de Machado de Assis, duas situações narrativas se apresentam basicamente: o romance narrado em terceira pessoa e o romance narrado em primeira pessoa. Porém não basta a percepção gramatical da estrutura narrativa, é necessário que se observe também sua fenomenologia, isto é, o sentido de sua estruturação de tal ou qual maneira. Conseguiremos essa abordagem a partir do estudo da tipologia do narrador verificado pelo teórico da narrativa austríaco Franz Stanzel32 . Stanzel elucida a fenomenologia do narrador ao revelar que, em verdade, o narrador de 3ª pessoa aparece em um tipo específico de narrativa chamada autoral, onde dialogicamente33 o autor se desdobra em comentarista do romance e em narrador. O plano do autor comentarista é aquele desdobramento chamado anteriormente por Booth de autor implícito. Esse autor comentarista está fora do universo ficcional, realiza um papel metaficcional, podendo disfarçar-se, às vezes, de cronista a quem foi contada a estória e, assim, fazendo a ponte com o mundo ficcional. A distinção dos dois campos de realidade, a ficcional e a metaficcional, garante ao narrador o papel dialógico de narrador autoral que tem uma posição de superioridade ou 31 BOOTH, Wayne C.. Op. Cit., p. 138. 32 STANZEL, Franz. Narrative Situations in the Novel (Tom Jones, Moby Dick, The Embassadors, Ulysses). Translated by James P. Pusack. Bloomington: Indiana University Press, 1971. 33 O termo dialógico vem de dialogismo da teoria de Mikhail Bakhtin e tem sentido diverso do da dialética formal por suportar harmonicamente os contrários sem subssumir um termo ao outro da questão. É uma dialética material. 36 distanciamento sobre os personagens. Nesse distanciamento se cria a ilusão da narrativa e aí está inserido o problema da ironia. O maior ou menor distanciamento entre o narrador autoral e o universo ficcional estabelece um papel muito próximo ao de um personagem, levando-o a uma situação análoga à de 1ª pessoa, na qual o narrador sempre aparece como um personagem do mundo ficcional, porém temporalmente distanciado. Esse traço é fundamental, o tempo. A relação do narrador autoral com o universo ficcional é de posterioridade, vindo geralmente indicada na conclusão da narrativa, quando o tempo da ficção se encontra com o tempo da narração. Nesse momento privilegiado, a apresentação passada do tempo pelo narrador é suspensa e ele passa a contar no presente da enunciação que é o futuro do enunciado. A distância que implica essa ambigüidade lhe dá o privilégio metaficcional do controle sobre o que o leitor vai ou não ver, vai ou não saber. Enfim, nesse jogo e nesse lapso ficcional se dá o vazio da narrativa, esse vazio gera os comentários metaficcionais e requer a reflexão do leitor que leva à ironia. No caso da narrativa de 1ª pessoa, o tempo é também fundamental. O tempo do narrador implica diferença existencial em relação ao personagem, que é o narrador mesmo em outro momento de sua vida, quando ainda não via o que vê agora. Há, portanto, uma diferença de avaliação e de interpretação entre os dois eus – narrador e narrado. O narrador ou o eu de agora, sujeito da enunciação, distingue-se temporal-existencialmente do personagem ou eu de outrora, sendo os dois a mesma pessoa. Nas palavras de Stanzel, as condições para a narrativa de 1ª pessoa são: 1. The narrating self is identical in persona with the experiencing self; 2 . The narrating self in the act of narration stands in a relationship of posteriority to the experiencing self and to the action; the narrative distance is designated in the narrative; 3. If the narrative distance is greater than the duration of the narrative matter, then the narrating self regards the action as completed; the narrating self then has the privilege of foreknowing all the action to be narrated; for this reason the narrating self can rise to panoramalike surveys; he can give glimpses of partial resolutions or reveal the ending; 37 4. the narrating self distinguishes itself from the experiencing self by greater insight and maturity, by a tendency to retrospection and reflection, and often by a completely different way of life; between the experiencing self’s experience of an event and the narrative re-creation of the same event at the hands of the narrating self there are therefore differences of valuation and interpretation which become visible in the structure of meaning of the novel. (1. o eu-narrador é idêntico em persona ao eu da experiência; 1. o eu-narrador permanece no ato da narração em relação de posterioridade ao eu da experiência e em relação à ação; 2. se a distância narrativa é maior do que a duração da matéria da narrativa, então o eu-narrador considera a ação como completa; o eu-narrador tem então o privilégio de saber antes de toda a ação a ser narrada; por essa razão o eu-narrador pode elevar-se a uma forma de visão panorâmica; ele pode dar olhadas parciais na resolução ou revelar o fim; 3. o eu-narrador distingue-se do eu da experiência pelo maior insight e maturidade, por uma tendência à retrospecção e reflexão e, freqüentemente, por um meio completamente diferente de existência; entre a experiência de um evento do eu da experiência e a recriação narrativa do mesmo evento nas mãos do eu- narrador há, no entanto, diferenças de avaliação e interpretação que se tornam
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