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Marco Antônio Escobar Teoria da literatura: a poesia Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube Escobar, Marco Antônio. E18t Teoria da literatura: a poesia / Marco Antônio Escobar. – Uberaba: Universidade de Uberaba, 2018. 164 p. : il. Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba. Inclui bibliografia. ISBN 1. Literatura. 2. Poesia. 3. Textos. I. Universidade de Uberaba. Programa de Educação a Distância. II. Título. CDD 800 © 2019 by Universidade de Uberaba Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Universidade de Uberaba. Universidade de Uberaba Reitor Marcelo Palmério Pró-Reitor de Educação a Distância Fernando César Marra e Silva Coordenação de Graduação a Distância Sílvia Denise dos Santos Bisinotto Editoração e Arte Produção de Materiais Didáticos-Uniube Revisão textual Erlane Silva Nunes Diagramação Douglas Silva Ribeiro Projeto da capa Agência Experimental Portfólio Edição Universidade de Uberaba Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário Sobre o autor Marco Antônio Escobar Especialista em Teoria Literária pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras “Barão de Mauá” de Ribeirão Preto–SP, com aperfeiçoamento em Teoria Lite- rária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e aperfeiçoamento em Preparação de RH para educação a distância pela Universidade de Uberaba (Uniube). Graduado em Letras Português -Francês pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras “Santo Tomás de Aquino” de Uberaba (Fista). Coordenador da equipe de Produção de Materiais Didáticos da Uniube. Sumário Apresentação ................................................................................................. XI Capítulo 1 Leitura do texto literário: metodologia da leitura crítica .................1 1.1 Considerações iniciais ............................................................................................... 3 1.2 Metodologia da leitura crítica — etapas .................................................................. 10 1.3 Compreensão crítica e sensibilidade ........................................................................11 1.4 Fruição diletante/leitura crítica ................................................................................. 14 1.5 A prática da análise — um exemplo ........................................................................ 17 1.6 Conclusão ................................................................................................................ 22 Capítulo 2 Estrutura e valor ..........................................................................25 2.1 Considerações iniciais ............................................................................................. 26 2.2 Definindo o campo de observação .......................................................................... 28 2.3 Exemplo de avaliação crítica ................................................................................... 39 2.4 Conclusão ................................................................................................................ 56 Capítulo 3 Estudo analítico do poema: procedimentos de poetização do nível fônico .............................................................................61 3.1 O fenômeno poético — nível fônico e nível semântico .............................................. 63 3.2 Elementos estruturais da linguagem poética.............................................................. 63 3.2.1 O metro e o ritmo .............................................................................................. 63 3.2.2 Sistemas de metrificação .................................................................................. 72 3.2.3 Sistemas de contagem ...................................................................................... 74 3.2.4 O verso livre ...................................................................................................... 76 3.2.5 Tipos de versos ................................................................................................. 79 VI UNIUBE 3.2.6 Tipos de estrofes ............................................................................................... 80 3.2.7 Tipos de poema ................................................................................................. 91 3.2.8 A rima ................................................................................................................ 94 3.2.9 De acordo com a identidade de sons ................................................................ 96 3.2.10 Quanto à categoria gramatical ........................................................................ 97 3.2.11 Versos brancos ................................................................................................ 98 3.2.12 Os sinais de pontuação ................................................................................... 98 3.3 Processos intensificadores da linguagem poética ................................................. 101 3.3.1 Reiteração ....................................................................................................... 101 3.3.2 Anáfora ............................................................................................................ 101 3.3.3 Aliteração ......................................................................................................... 102 3.3.4 Assonância ...................................................................................................... 102 3.3.5 Onomatopeia ................................................................................................... 102 3.3.6 Ilustração sonora ............................................................................................. 103 3.3.7 Simbolismo sonoro .......................................................................................... 103 3.3.8 Paralelismo ...................................................................................................... 105 3.3.9 Refrão .............................................................................................................. 105 3.4 Conclusão .............................................................................................................. 105 Capítulo 4 Estudo analítico do poema: procedimentos de poetização do nível semântico ..................................................................... 111 4.1 Linguagem direta e linguagem figurada .................................................................112 4.2 As modalidades de palavras figuradas .................................................................. 121 4.2.1 Comparação ou símile .................................................................................... 122 4.2.2 Metáfora .......................................................................................................... 124 4.2.3 O mecanismo da metáfora .............................................................................. 127 4.2.4 A natureza da metáfora ................................................................................... 135 4.3 Outras figuras ........................................................................................................ 140 4.3.1 Metonímia e sinédoque ................................................................................... 140 4.3.2 Excurso: predominância metafóricae predominância metonímica ................. 143 4.3.3 A antítese e o paradoxo. A ironia ..................................................................... 144 4.4 O vocabulário, as categorias gramaticais e a organização sintática ..................... 149 4.5 Conclusão .............................................................................................................. 150 Apresentação Prezado(a) aluno(a). Você está recebendo o livro que servirá de texto-base para a disciplina Teoria da literatura: a poesia. Ele é constituído por quatro capítulos, sendo os dois primeiros voltados para a teoria da análise lite rária, o terceiro e o quarto, de- dicados ao estudo dos procedimentos de poetização. No primeiro capítulo, “Leitura do texto literário: metodologia da leitura crítica”, você será introduzido no universo da análise literária, recebendo informações que lhe permitirão conscientizar-se da importância e da necessidade da análise para a compreensão dos textos literários e aparelhar-se convenien- temente para poder assumir diante do texto a atitude e a postura adequadas a um especialista de letras, vale dizer, a atitude e a postura de um leitor crítico. No segundo capítulo, você será convidado a perceber a indissociabilidade entre estrutura e valor, ou seja, que o estudo da estrutura da obra literária não pode prescindir do trabalho de avaliação estética da mesma. A partir dessa compreensão entenderá que o estudo da literatura não pode e não deve ser divorciado da crítica, que é julgamento de valor. Aprenderá a julgar uma obra literária, reconhecendo quando ela é bem realizada artisticamente. Para tanto, utilizaremos um caso con creto, o da incorporação das ideias numa obra literária, seja romance ou poema. “Estudo analítico do poema: procedimentos de poetização do nível fônico” é o nome do terceiro capítulo. Nele, vamos dar início ao estudo dos proce- dimentos de poeti zação, a fim de nos prepararmos para o trabalho de aná- lise textual da poesia. Dois grupos de problemas serão abordados aqui: os elementos estruturais da linguagem poética e os processos intensificadores da linguagem poética. No desenvolvimento do conteúdo, procurou-se evitar a simples apresentação dos procedimentos, relacionando-os, sempre que possível, com a prática da análise literária. VIII UNIUBE O quarto capítulo está intimamente associado ao terceiro; nele, são estuda- dos os procedimentos de poetização do nível semântico, começando pelas modalidades de palavras figuradas, com destaque para a metáfora. Aos demais aspectos que interessam à análise do poema, mas que ultrapassam os limites deste capítulo, tais como o vocabulário, as categorias gramaticais e a organização sintática, foi dada uma atenção menor, procurando mostrar de que forma contribuem para a produção de sentido de um texto poético. Como você deve estar percebendo, na medida em que os capítulos se su- cedem, é todo um variado e rico campo de estudo que se vai descortinando. Isso deve ser valorizado por você e certamente contribuirá para aumentar o seu entusiasmo e gosto pelos estudos literários. De nossa parte, estamos cada vez mais motivados a colaborar com sua aprendizagem, colocando-nos à sua disposição para dirimir quaisquer dúvidas e/ou dificuldades que se apresentarem. Bons estudos! Capítulo 1 Introdução De um modo geral, os cursos de letras ressentem -se da falta de uma atenção especial para a análise literária. O(a) aluno(a) quase sempre sai despreparado(a) para o trato com o texto. Recebeu uma enorme gama de informações, mas não sabe o que fazer com elas, não sabe como utilizá -las na prática. A finalidade deste capítulo é ajudá -lo(a) nessa tarefa e descrever para ele algumas formas de examinar uma obra. Se o que se pretende é aparelhar o(a) aluno(a) para o exercício da análise e interpretação de textos literários, é preciso fornecer -lhe os instrumentos necessários. Ora, como o exercício da análise literária se concretiza tendo em vista finalidades essencialmente práticas, este exercício, para além da necessária instrumentação teórica, implica a execução de operações bem definidas. Assim, não descuramos o aspecto teórico, mas procuramos orientar nossa reflexão sempre na direção do trabalho concreto com o texto. Sempre numa perspectiva propedêutica, introdutória, aos estudos lite- rários, este capítulo procura, em um primeiro momento, situar os estu- dos literários entre as formas de conhecimento, explicitando suas características (objetivos, métodos etc.). Em seguida, colocam -se os objetivos da leitura crítica e os perigos e/ou riscos a serem evitados. Procura -se, a partir daí, definir o âmbito de atuação do leitor crítico, esclarecendo de que forma ele deve proceder para não ulttrapassar os limites da atividade crítica. Leitura do texto literário: metodologia da leitura crítica 2 UNIUBE Em um segundo momento, procura -se esclarecer em que sentido a explicação pode ser considerada uma atividade legítima e útil para o estudo do texto literário. A seguir, você irá identificar as etapas da aná- lise literária, explicitando as características de cada uma delas. Além disso, são explicadas as relações existentes entre compreensão crítica e sensibilidade. Depois, a partir da distinção entre fruição diletante/ leitura crítica, procura -se justificar a necessidade da análise literária. Ao final do capítulo, procuramos exemplificar a metodologia da análise literária, com uma descrição detalhada dos passos a serem dados. Objetivos Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • situar os estudos literários no contexto das formas de conheci- mento, explicitando suas características (objetivos, métodos etc.); • explicar quais os objetivos da leitura crítica e os perigos e/ou riscos a serem evitados; • saber definir o âmbito de atuação do leitor crítico, procurando esclarecer de que forma ele deve proceder para não ultrapassar os limites da atividade crítica; • esclarecer em que sentido a explicação pode ser considerada uma atividade legítima e útil para o estudo do texto literário; • identificar as etapas da análise literária, explicitando as caracte- rísticas de cada uma delas; • explicar as relações existentes entre compreensão crítica e sen‑ sibilidade; • a partir da distinção entre fruição diletante/leitura crítica, justificar a especificidade da leitura realizada por um graduando de letras; • justificar a necessidade da análise literária. Esquema 1.1 Considerações iniciais 1.2 Metodologia da leitura crítica — etapas 1.3 Compreensão crítica e sensibilidade 1.4 Fruição diletante/leitura crítica 1.5 A prática da análise — um exemplo 1.6 Conclusão UNIUBE 3 [é] ... a pedra de toque do estudioso de literatura, sendo a justificativa da reflexão teórica: a prática da análise, a capacidade de desmontar e remontar a estrutura da obra, sem a qual não há professor nem crítico de literatura. Antonio Candido 1.1 Considerações iniciais A partir do momento em que — após um longo período de hesitações, ceticismos e resistências —, finalmente se admitiu que a literatura pode ser “estudada” e que o estudo da literatura é uma forma de conhecimento, uma primeira e fun- damental tarefa se impôs: era necessário definir os conceitos e métodos em que este estudo iria se basear. Em razão do prestígio das ciências naturais à época em que esta possibilidade se manifestou, a primeira tendência foi a de transpor para o domínio dos estudos literários os conceitos e métodos das ciências na- turais, a exemplo do que já vinha ocorrendo com as demais ciências culturais ou históricas. As várias tentativas nesse sentido, como era de esperar, resulta- ram em completo fracasso. Em 1883, com Wilhelm Dilthey, iniciou -se um movimento filosófico e lógico no sentido de buscar um outro fundamento para as ciências culturais. Segundo ele, as ciências humanas estão baseadas em um fundamento diferente: não há nelas a observação dos fatos físicos, mas a compreensãodos atos humanos. As ciências espirituais têm como fundamento a percepção interna e a compreensão. As ciências espirituais e históricas não explicam, mas compreendem e interpretam. A partir daí, estabeleceu -se a au- tonomia da cultura e das ciências culturais em relação à natureza e às ciências naturais. No ano seguinte, em 1884, Windelband, e depois dele Rickert, com- pletaram a caracterização das ciências humanas, afirmando que estas se voltam para a individualidade, para a particularidade. Para eles, enquanto os cientistas naturais visam ao estabelecimento das leis gerais, os historiadores buscam apreender o fato único e que não se repete. A tarefa do historiador é a do par- ticularizador e não a do generalizador. A realidade é natureza quando a consi- deramos com referência ao universal; é história (cultura) quando a consideramos com relação ao particular, ao individual. SAIBA MAIS Wilhelm Dilthey (1833–1911) Um dos maiores pensadores dos últimos tempos, considerado o mais vivo e o mais distinto representante do historicismo — movimento humanista e filosófico que, em SAIBA MAIS Wilhelm Dilthey (1833–1911) Um dos maiores pensadores dos últimos tempos, considerado o mais vivo e o mais distinto representante do historicismo — movimento humanista e filosófico que, em 4 UNIUBE oposição ao naturalismo, busca na história o fundamento de uma concepção do mundo. Sua Introdução às ciências do espírito (1883) é a mais importante obra filosófica dos fins do século XIX e o melhor conjunto de ideias para os estudiosos das ciências históricas. Na Figura 1, a seguir, com a qual se pretende ilustrar o que foi dito até aqui, levou -se em conta a observação de Dilthey (RODRIGUES, 1969), segundo a qual os estudos humanos não podem ser a continuação de uma hierarquia das ciências naturais, porque descansam sobre um fundamento diferente. As ciências naturais e as ciências do espírito desenvolveram -se lado a lado e não há o pri- mado de umas sobre as outras. REALIDADE MÉTODOS GENERALIZADORES MÉTODOS PARTICULARIZADORES CIÊNCIAS NATURAIS HUMANIDADES (CIÊNCIAS NATURAIS) OBJETIVIDADE E PRECISÃO SUBJETIVIDADE LEIS GERAIS NÃO SE PODE ESTABELECER LEIS GERAIS FATOS QUE SE REPETEM (Independentes das circunstâncias de tempo e espaço) FATOS QUE NÃO SE REPETEM (Dependem das circunstâncias de tempo e espaço) NATUREZA CULTURA EXPLICAÇÃO COMPREENSÃO Figura 1: Fundamentos para as ciências naturais e culturais. oposição ao naturalismo, busca na história o fundamento de uma concepção do mundo. Sua Introdução às ciências do espírito (1883) é a mais importante obra filosófica dos fins do século XIX e o melhor conjunto de ideias para os estudiosos das ciências históricas. UNIUBE 5 É, assim, no contexto das ciências culturais, ou humanas, que se situam os estudos literários. O estudo da literatura tem a ver, pois, com a compreensão e não com a expli- cação. Como os fenômenos literários são fenômenos culturais, históricos, são fatos únicos e que não se repe- tem, e, por isso, não podem ser objetos de explicação. Podemos apenas buscar compreender o seu significado. Em outras palavras: o estudo da literatura utiliza métodos particularizadores. Como bem observou Wellek (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 16 -17) — um dos primeiros no âmbito da literatura a se ocuparem desta questão —, em qualquer nível que se coloque, o estudioso da literatura está preocupado com aquilo que é carac- terístico, com aquilo que é particular. Tanto o criticismo literário como a história literária visam caracterizar a individualidade de uma obra, de um autor, de um período, de uma literatura nacional. Procurando explicar por que razão estuda- mos Shakespeare, Wellek (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 16-17) diz que não estamos interessados em saber o que ele tem de comum com todos os homens, porque nesse caso poderíamos igual- mente estudar qualquer outro homem; e também, pela mesma razão, não nos interessa o que de geral possua com todos os outros ingleses, com todos os homens do Renascimento, com todos os isabelinos, com todos os poetas, com todos os dra- maturgos — nem sequer com todos os dramaturgos isabelinos, porque então poderíamos indiferentemente estudá -lo a ele, a Dekker ou a Heywood. O que nos interessa é descobrir o que tem Shakespeare de característico, o que é que, por assim dizer, torna Shakespeare Shakespeare; e isto é, obviamente, um problema de individualidade e de valor. Até mesmo ao estudar um período, um movimento ou uma literatura nacional, o estudioso de literatura interessar -se -á por essa matéria en- quanto individualidade. Outro estudioso que se ocupou dessa diferenciação, no âmbito dos estudos li- terários, foi T. S. Eliot. Para ele, os estudos literários têm a ver com a compreen- são e não com a explicação. Em 1956, ao abordar o problema da delimitação da crítica literária, ou seja, o problema da definição do âmbito de atuação do crítico literário, ele se colocava as seguintes questões: quais os objetivos da crítica, qual a finalidade da crítica? Quando a crítica não é crítica literária, mas algo diferente? Que existe, se é que existe, que deva ser comum a toda a crítica literária? Para tentar responder a estas questões, escreveu um ensaio denomi- nado “As fronteiras da crítica” (1972, p. 148 -167), no qual pretendia defender a tese segundo a qual “há limites, além dos quais, numa certa diretriz, a crítica Subjetividade O fato de se insistir na presença da subjetividade no lado das ciências humanas não significa que estas não tenham padrões de precisão e objetividade. 6 UNIUBE literária deixa de ser literária e, noutra diretriz, deixa de ser crítica”. Ao final de sua argumentação, afirma — “com o bom senso que costumam ter os anglo- -saxões, mesmo quando poetas”, como diria Anatol Rosenfeld (1976, p. 37) — que a função essencial da crítica literária seria a de “promover a compreensão e a apreciação da literatura”, definição que ele considerou preferível a uma outra, “mais pomposa”, formulada em 1923, em que a caracterizara como sendo “a elucidação das obras de arte e a correção do gosto”. SAIBA MAIS O texto em que esta primeira definição aparece é um ensaio intitulado “A função da crítica”. Êi -la na íntegra: “... a crítica tem sempre que ter um fim em vista, o qual, grosso modo, parece ser a elucidação das obras de arte e a correção do gosto”. (ELIOT, 1962, p. 41.) Em seu ensaio, Eliot tem o cuidado de insistir no caráter pessoal da compreen- são, traço que a distingue da explicação, na qual este caráter inexiste. Porque, na verdade, o processo de compreensão é, necessariamente, individual e sub- jetivo. “Por compreensão não quero dizer explicação” — frisa — deixando claro que não considera as duas expressões como sinônimas. Assim, enquanto o con- ceito de explicação tem uma única dimensão, a dimensão intelectual, o conceito de compreensão teria, por assim dizer, dois componentes, ou duas dimensões, uma intelectual, outra, emocional. É isso que explica, em última instância, que o autor acrescente a este conceito o de apreciação, na caracterização do que considera como sendo a função essencial da crítica literária, ou seja, exa- tamente por ver, em ambos os conceitos, as mesmas duas dimensões, como deixa subentendido nesta afirmação: “apreciação e compreensão não são ati- vidades distintas, uma emocional e a outra intelectual”. Talvez esteja aí a expli- cação para a reciprocidade — uma espécie de atração mútua — que, segundo o autor (1972, p. 165), parece existir entre elas: É certo que nós não conseguimos apreciar plenamente um poema a menos que o entendamos e que, por outro lado, é igualmente verdade que não entendemos plenamente um poema a menos que o apreciemos. Entende -se que Eliot tenha falado em ênfase na compreensão ou na apreciação, e no perigo daí decorrente. Mas o que ele está querendo dizer, no fundo, é que não se pode colocar a ênfase na dimensão intelectual da compreensão nem na dimensão emocionalda apreciação. Seja como for, o importante é a ideia que SAIBA MAIS O texto em que esta primeira definição aparece é um ensaio intitulado “A função da crítica”. Êi -la na íntegra: “... a crítica tem sempre que ter um fim em vista, o qual, grosso modo, parece ser a elucidação das obras de arte e a correção do gosto”. (ELIOT, 1962, p. 41.) UNIUBE 7 nos quer transmitir: que devemos estar atentos para os perigos que rondam o trabalho do estudioso da literatura, em cada um dos extremos e para a forma como este deve proceder para não ultrapassar os limites da crítica literária, evitando, assim, cair nessas armadilhas. Os perigos a evitar são, de um lado, a explicação como um fim em si mesma e, de outro, a apreciação meramente subjetiva. Ou, como também se pode dizer: de um lado, a crítica puramente explicativa, de outro, o subjetivismo e o impressionismo. Se na crítica literária colocamos toda ênfase na compreensão, corremos o risco de resvalar da compreensão para a mera explicação. Corremos o perigo até de empreender a crítica como se fora uma ciência, o que jamais poderá ser. Se, por outro lado, damos excessiva ênfase à apreciação, tendemos a cair no subjetivismo e no impressionismo, e nossa apreciação de nada mais nos aproveitará além de mera diversão ou pas- satempo. (1972, p. 167.) IMPORTANTE! Todos sabemos dos perigos de que se reveste a manifestação da subjetividade do leitor. Em nossa relação com a obra de arte literária corremos constantemente o risco de cair no subjetivismo e no impressionismo. Foi o que Wellek também observou: “A intuição ‘pessoal’ pode conduzir a uma ‘apreciação’ meramente emocional, a uma subjetividade completa”. (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 17.) Um leitor que se deixe guiar exclusivamente pela subjetividade não pode aspirar senão à enunciação de suas reações meramente pessoais, de suas meras impressões perante o fenômeno literário, as quais invariavelmente informam mais sobre o sujeito do que sobre o objeto do conhecimento. No primeiro caso, como havia dito no enunciado de sua tese, a crítica deixa de ser literária, e, no segundo caso, deixa de ser crítica. Para ser crítica e também literária, ou seja, para permanecermos dentro das fronteiras da crítica literária, devemos manter os dois aspectos em perfeito equilíbrio: devemos promover a compreensão e, ao mesmo tempo, a apreciação da literatura. Observe a Figura 2 a seguir. IMPORTANTE! Todos sabemos dos perigos de que se reveste a manifestação da subjetividade do leitor. Em nossa relação com a obra de arte literária corremos constantemente o risco de cair no subjetivismo e no impressionismo. Foi o que Wellek também observou: “A intuição ‘pessoal’ pode conduzir a uma ‘apreciação’ meramente emocional, a uma subjetividade completa”. (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 17.) Um leitor que se deixe guiar exclusivamente pela subjetividade não pode aspirar senão à enunciação de suas reações meramente pessoais, de suas meras impressões perante o fenômeno literário, as quais invariavelmente informam mais sobre o sujeito do que sobre o objeto do conhecimento. 8 UNIUBE NÃO CRÍTICA APRECIAÇÃO SUBJETIVA CRÍTICA NÃO LITERÁRIA EXPLICAÇÃO CRÍTICA LITERÁRIA COMPREENSÃO E APRECIAÇÃO Figura 2: As fronteiras da crítica literária. Você deve estar pensando: então a explicação não apresenta nenhum interesse para o estudioso da literatura? Não é bem assim. Na verdade, e o próprio Eliot (1972, p. 166) reconheceu, se a crítica não almeja a compreensão e a aprecia- ção, pode, ainda assim, ser uma atividade legítima e útil: Podemos, portanto, perguntar a respeito de qualquer obra que nos é oferecida como crítica literária se almeja a compreensão e a apreciação. Se não almeja, ainda pode ser uma atividade legítima e útil, mas deverá ser julgada como contribuição à Psicologia, à Sociologia, à Lógica, à Pedagogia ou a alguma outra finalidade — e deverá ser julgada por especialistas, não por homens de letras. [...] Não devemos confundir conheci- mento — informação factual — sobre o período do poeta, condição da sociedade em que viveu, ideias correntes do seu tempo e que estão implícitas em sua obra, estágio da linguagem do seu período — com a compreensão da poesia. Tal conhe- cimento, como já disse, pode ser uma preparação necessária para entender a poesia; além do que tem valor por si só, en- quanto história. Mas, com relação à apreciação da poesia, só lhe resta levar até à porta; temos de abrir caminho para entrar. SAIBA MAIS Antonio Candido, em seu ensaio “Crítica e Sociologia: tentativa de esclarecimento” (1976, p. 4), também chamou a atenção para a necessidade de se estabelecer essa distinção de disciplinas, lembrando que as abordagens da obra literária ligadas à psicologia, à sociologia, à linguística etc. são perfeitamente legítimas, até porque os problemas destas são diversos dos da crítica literária. Estas não propõem a questão do valor da obra. São disciplinas de cunho científico, sem a orientação estética ne- cessariamente assumida pela crítica literária. Devem ser vistas como complementa- res e instrumentais para a investigação literária e não como concorrentes ou substitutivas desta. SAIBA MAIS Antonio Candido, em seu ensaio “Crítica e Sociologia: tentativa de esclarecimento” (1976, p. 4), também chamou a atenção para a necessidade de se estabelecer essa distinção de disciplinas, lembrando que as abordagens da obra literária ligadas à psicologia, à sociologia, à linguística etc. são perfeitamente legítimas, até porque os problemas destas são diversos dos da crítica literária. Estas não propõem a questão do valor da obra. São disciplinas de cunho científico, sem a orientação estética ne- cessariamente assumida pela crítica literária. Devem ser vistas como complementa- res e instrumentais para a investigação literária e não como concorrentes ou substitutivas desta. UNIUBE 9 Assim, a explicação só é legítima enquanto preparação; é uma atividade com- plementar, subsidiária, vestibular. Assim, a explicação só é legítima enquanto preparação; é uma atividade complementar, subsidiária, vestibular. E foi assim que, como você deve estar lembrado(a), nós a apresentamos no quarto capítulo do livro Introdução aos Estudos Literários, quando tratamos do equipamento cultural do estudioso de literatura, ou, em outros termos, o problema da relação entre a crítica literária e a erudição histórica. Se a explicação “só leva até à porta”, e temos de abrir caminho para “entrar” no texto, de que forma isso pode ser feito? Em outras palavras: de que modo po- demos promover a compreensão e a apreciação do texto literário, apanágio da leitura crítica? A resposta é: isso é possível através da análise literária, consi- derando como tal a atividade crítica na sua totalidade, subentendendo -se, ob- viamente, a interpretação, sem a qual essa atividade não se completa. Tocamos aqui naquele que constitui o tema central do presente roteiro de estudo, conforme já anunciado em nossa epígrafe e que é, nas palavras de Antonio Candido, a pedra de toque do estudioso de literatura, sendo a justificativa da reflexão teórica: a prática da análise literária, a capacidade de desmontar e remontar a estrutura da obra, sem a qual não há professor nem crítico de literatura. SAIBA MAIS Esta concepção de que haveria algo “dentro” da obra literária tem sido contestada por alguns estudiosos, como é o caso do crítico Stanley Fish, ligado à tendência do prag- matismo norte -americano. Este autor insiste que não há nada “dentro” da obra em si — que toda noção do significado ‘imanente’ à linguagem do texto, à espera de ser li- berado pela interpretação do leitor, é uma ilusão objetivista. Segundo ele, Wolfgang Iser deixou -se levar por essa ilusão. Iser, que está ligado à chamada teoria da recepção ou estética da recepção, pela vertente alemã, acredita que a interpretação de um texto deve ser logicamente limitada pelo próprio texto. Para ele, há um “texto em si”. Do contrário, como poderíamosfalar de interpretação da “mesma obra”? Para Fish, o objeto da atenção crítica é a estrutura da experiência do leitor, e não uma estrutura “objetiva” a ser encontrada na própria obra. (EAGLETON, 1983, p. 91 -2.) Descortinamos, assim, os aspectos que faltavam para completar o trabalho com o texto. Na verdade, como bem observou Candido (1996), a investigação sobre a obra literária deve ser vista como uma operação feita em três etapas ou mo- mentos: comentário, análise e interpretação. Como do primeiro desses momentos — o comentário ou explicação — já tratamos anteriormente (no ca- pítulo 4 de seu livro O contexto da obra literária), agora devemos nos ocupar SAIBA MAIS Esta concepção de que haveria algo “dentro” da obra literária tem sido contestada por alguns estudiosos, como é o caso do crítico Stanley Fish, ligado à tendência do prag- matismo norte -americano. Este autor insiste que não há nada “dentro” da obra em si — que toda noção do significado ‘imanente’ à linguagem do texto, à espera de ser li- berado pela interpretação do leitor, é uma ilusão objetivista. Segundo ele, Wolfgang Iser deixou -se levar por essa ilusão. Iser, que está ligado à chamada teoria da recepção ou estética da recepção, pela vertente alemã, acredita que a interpretação de um texto deve ser logicamente limitada pelo próprio texto. Para ele, há um “texto em si”. Do contrário, como poderíamos falar de interpretação da “mesma obra”? Para Fish, o objeto da atenção crítica é a estrutura da experiência do leitor, e não uma estrutura “objetiva” a ser encontrada na própria obra. (EAGLETON, 1983, p. 91 -2.) 10 UNIUBE daquelas que constituem as duas etapas fundamentais do estudo do texto lite- rário, que são a análise, propriamente dita, e a interpretação. 1.2 Metodologia da leitura crítica — etapas Ao falarmos de etapas a propósito da análise e da interpretação, pode dar a impressão de que se trata de momentos bem definidos, claramente separados. É óbvio que, na prática, essa separação não existe. Embora análise e interpre- tação devam ser vistas como etapas virtuais, porque intimamente ligadas, real- mente imbricadas, elas podem ser, teórica e didaticamente, dissociadas. E não só podem como devem ser distinguidas com clareza, uma vez que se trata de noções que nem sempre são apresentadas com contornos bem definidos. Sendo assim, vejamos, em primeiro lugar, o que devemos entender por análise, em sentido estrito. Com a palavra os especialistas no assunto. Para Antonio Candido (1996, p. 18), deve -se entender por tal o levantamento analítico de elementos internos do poema, sobretudo os ligados à sua construção fônica e semântica, e que tem como resultado uma decomposição do poema em elementos, chegando ao pormenor das últimas minúcias. Igualmente elucidativa é a definição formulada por Carlos Reis (1976, p. 39), conhecido estudioso português: Análise entende -se, antes de mais por uma questão de coe- rência etimológica, como decomposição de um todo nos seus elementos constitutivos. Sendo esse todo um texto literário de variável extensão, a análise conceber -se -á então como atitude descritiva que assume individualmente cada uma das suas partes, tentando descortinar depois as relações que entre essas distintas partes se estabelecem. Se bem atentarmos para essas definições de análise, facilmente perceberemos que esta exige um complemento, pede algo que a complete. A decomposição de uma totalidade não pode encerrar -se em si mesma; deve ser completada pelo movimento inverso, a recomposição, que restitui ao texto a sua unidade. Assim, uma vez conhecida a definição de análise, devemos nos voltar para a definição de interpretação, sem a qual, como vimos, a atividade crítica não se completa. E isso porque, conforme esclarece Reis (1976, p. 41), o processo de UNIUBE 11 análise a que se submete o texto literário não é suficiente para a sua avalia- ção crítica, assim como também não satisfaz as legítimas ambições de uma leitura crítica minimamente válida. E apresenta as razões que sustentam esta posição: Porque pensamos que é necessário completar a abordagem da obra literária a um nível que supere a restrita enumeração e descrição das partes em que aquela se decompõe, perfilha- mos a ideia de que qualquer leitura crítica que se pretenda satisfatória deve passar da fase analítica a uma outra fase predominantemente sintética que é a da interpretação. Até porque a interpretação é, como Reis (1976) reconheceu, essencialmente hermenêutica e, como tal, procura, em última instância, concretizar uma pene- tração que se propõe ultrapassar a mera verificação dos elementos constitutivos do texto literário e revelar o sentido que esses elementos (assim como o sistema de relações entre eles estabelecidas) sustentam. Essa necessária ultrapassagem da análise em direção à síntese foi percebida também por Candido (1996, p. 18), que chegou mesmo a dizer que a interpre- tação constitui “o alvo superior da exegese literária” e que a presença dos dois momentos é indispensável para que se complete o que ele chama de “círculo hermenêutico”, que consiste em entender o todo pela parte e a parte pelo todo, a síntese pela análise e a análise pela síntese. Candido observa ainda que a interpretação parte da análise, começa nela, mas se distingue dela por ser eminentemente integradora, visando mais à estrutura, no seu conjunto e aos significados que julgamos poder ligar a esta estrutura. Estas são, em síntese, as principais características da análise e da interpretação. Devemos prosseguir, agora, abordando outros aspectos relacionados a essas etapas que, sem dúvida, nos ajudarão a compor um cenário verossímil da ati- vidade crítica como um todo, ou seja, um cenário que nos dê uma ideia fiel da dinâmica real dessa atividade. 1.3 Compreensão crítica e sensibilidade Há pouco referimo -nos ao caráter pessoal da compreensão, e, portanto, à carga — variável — de subjetividade que a caracteriza, traço que, como foi dito, a distingue da explicação, na qual este caráter inexiste. Vimos também que isso a aproxima da noção de apreciação. Até por uma questão de coerência, não Exegese Esclarecimento minucioso de um texto. 12 UNIUBE seria de esperar que este caráter pessoal estivesse presente também na carac- terização das instâncias da análise e da interpretação? É exatamente sobre isso que vamos falar a seguir. Embora se trate de etapas diferentes, com características que as tornam incon- fundíveis, análise e interpretação têm um traço em comum, que se torna visível sobretudo quando as focalizamos no contexto da crítica viva: ambas pressupõem a sensibilidade estética, diferenciando -se, neste aspecto, da fase do comentário ou explicação, a qual dispensa o requisito da sensibilidade, como bem reconhe- ceu Candido (1996, p. 18): A análise e a interpretação, ao contrário do comentário (fase inicial da análise), não dispensam a manifestação do gosto, a penetração simpática no poema. Comenta -se qualquer poema; só se interpretam os poemas que nos dizem algo. Em vários momentos, Candido refere -se ao fato de que o analista deve experi- mentar previamente todo o encanto do poema, para, em seguida, aplicar -lhe os instrumentos de análise. Depois desta, a interpretação deve surgir como um reforço daquele encantamento, e não como seu sucedâneo ou diminuição. Não se pode banir o requisito da sensibilidade; ela faz parte da verdadeira apreensão da obra literária. Citando Staiger, Candido (1996, p. 13) diz que este fala do prazer e da emoção da leitura como condição de conhecimento adequado, sem temer a acusação de fundar os estudos literários no sentimento subjetivo. O sentimento, neste caso, é um critério de orientação e de penetração. “O critério da sensibilidade se torna também critério de conhecimento sistemático”. É ainda de Staiger a observação de que, uma vez assegurada esta penetração simpática, o leitor deve apreender o ritmo, o largo compasso do poema sobre o qual repousao estilo, sendo o elemento que unifica em um todo os aspectos de uma obra, de um artista ou de um tempo. Quando apreendemos pela sensibili- dade o ritmo geral de uma poesia, apreendemos no todo a sua beleza própria. Esclarecer esta intuição pelo conhecimento é a tarefa da interpretação. (STAI- GER apud CANDIDO, 1996, p. 19.) Neste estágio, o estudioso se separa do amador. Para o ama- dor, basta o sentimento geral e um domínio ainda vago, que pode esclarecer por meio de leituras atentas. Mas ele não sente a necessidade de comprovar como tudo se afina no todo e como o todo se afina pelas partes. A possibilidade de estabe- lecer esta prova é o fundamento da nossa ciência. UNIUBE 13 O próprio Candido observa, em outro texto de sua autoria (1973, p. 34), que toda crítica viva parte de uma impressão para chegar a um juízo. Entre estas duas pontas se interpõe algo que constitui a seara própria do crítico, dando validade ao seu esforço e seriedade ao seu propósito: Em face do texto, surgem no nosso espírito estados de prazer, tristeza, constatação, serenidade, reprovação, simples interesse. Estas impressões são preliminares importantes, o crítico tem de experimentá -las e deve manifestá -las, pois elas representam a dose necessária de arbítrio, que define a sua visão pessoal. [...] Por isso, a crítica viva usa largamente a intuição, aceitando e procurando exprimir as sugestões trazidas pela leitura. Delas sairá afinal o juízo, que não é julgamento puro e simples, mas avaliação — reconhecimento e definição de valor. Em seguida, chama a atenção para a redução gradual do arbítrio, que deve ocorrer para dar lugar à objetividade exigida pela atividade crítica, sem que isso implique eliminação da subjetividade, demandando, apenas, que o crítico saiba administrá -la: Entre impressão e juízo, o trabalho paciente de elaboração, como uma espécie de moinho, tritura a impressão, subdivi- dindo, filiando, analisando, comparando, a fim de que o arbítrio se reduza em benefício da objetividade, e o juízo resulte acei- tável pelos leitores. A impressão, como timbre individual, per- manece essencialmente, transferindo -se ao leitor pela elaboração que lhe deu generalidade; e o orgulho inicial do crítico, como leitor insubstituível, termina pela humildade de uma verificação objetiva, a que outros poderiam ter chegado. (CANDIDO, 1973, p. 34.) E, desta forma, conclui, dando -nos uma visão de todos os elementos envolvidos na atividade crítica: A crítica propriamente dita consiste nesse trabalho analítico intermediário, pois os dois outros momentos são de natureza estética e ocorrem necessariamente, embora nem sempre conscientemente, em qualquer leitura. O crítico é feito pelo esforço de compreender para interpretar [...], mas aquelas etapas se integram no seu roteiro, que pressupõe, quando completo, um elemento perceptivo inicial, um elemento inte- lectual médio, um elemento voluntário final. Perceber, com- preender, julgar. (CANDIDO,1973, p. 34 -5.) 14 UNIUBE A esta altura, parece ser possível concluir que, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, a busca da objetividade que caracteriza a atividade crítica não minimiza, evidentemente, a importância de uma compreensão e de uma fruição em estado de simpatia, como condições prévias do nosso conhe- cimento da obra literária. Mas — devemos insistir neste ponto — não passam de condições prévias. Esse tipo de apreensão sensível da obra de arte é, sem dúvida, a pressuposição de todo estudo literário frutífero, mas em si mesmo pode levar apenas ao completo subjetivismo. Por si só não consegue alcançar a objetividade necessária exigida pela atividade crítica. Afirmar que a obra lite- rária só pode ser apreciada através de uma fruição simpatética, de cunho pura- mente subjetivo, equivale a ignorar a possibilidade de constituição de um saber objetivo da obra literária, ou seja, de um tipo de apreensão da obra literária que supere o nível da pura sensibilidade. A arte da leitura, ou seja, a leitura entendida como fruição diletante, não passa de um ideal para uma cultura puramente pessoal. Como tal, é perfeitamente compreensível e constitui, de fato, a maneira pela qual a maioria das pessoas se relaciona com a literatura. Não pode, no entanto, ser considerada como o único tipo de relacionamento que se pode ter com ela, e, muito menos, como o relacionamento ideal. 1.4 Fruição diletante/leitura crítica Tocamos aqui numa distinção importante: a que se deve estabelecer entre frui‑ ção diletante e leitura crítica. A leitura crítica de obras literárias supõe a supera- ção da leitura como mero entretenimento/mera contemplação, atitude ad missível em um leitor que não elegeu a literatura como campo privilegiado de atuação. Ou seja, é preciso reconhecer que há uma diferença entre a leitura realizada por um leitor não especializado e a leitura realizada por um especialista em le- tras. Assim, um estudante de letras, pela especificidade de sua formação, diferencia -se de um leitor não especializado. Daí ser preciso que nos aproxime- mos do texto literário como especialistas e isso só é possível mediante o com- promisso que estabelecemos com o texto através da atividade crítica. Parafraseando Aguiar e Silva (1973, p. 590-591): devemos ir ao encontro da obra armado com um conjunto de conhecimentos especializados sobre a me- todologia da crítica, de modo a poder analisar a obra com o máximo de rigor, com uma disciplina e uma lucidez que não estão ao alcance do leitor desprepa- rado, por mais inteligente e sensível que ele possa ser. É exatamente isso que distingue o leitor bem preparado do leitor sem qualquer formação especializada e apenas fiado na sua intuição e na sua capacidade de empatia. O que nos assegura que a leitura crítica é realmente necessária? Para respon- der a esta pergunta, vamos tomar como ponto de partida uma interessante UNIUBE 15 questão que foi proposta no Exame Nacional de Cursos (BRASIL, 1999), adaptada para servir aos nossos propósitos. Eis a questão: O que falar diante de um poema, de um conto, de um romance? Já não bastam as palavras que lá estão? Já não dizem tudo o que têm a dizer, da melhor forma que é possível dizer? Tais perguntas chegam com frequência a um professor de letras e fazem entender que a manifestação do leitor é um excesso, que a crítica (e, portanto, também a análise) é des- necessária, que não cabe mais do que a muda e prazerosa contemplação do texto literário. Esta afirmação pressupõe que a obra literária se revela por si mesma. Que não é preciso traduzi -la, interpretá -la. Seu significado seria algo evidente, visível a olho nu, por assim dizer. Se assim fosse, bastaria lê -la, gozá -la, apreciá -la; não have- ria necessidade da análise literária. Não é isso, no entanto, o que verdadeiramente ocorre. Parece ter razão Staiger (apud CANDIDO, 1996, p. 18), ao afirmar que o poema não se revela por si mesmo nem para os que falam a mesma língua. É espantoso o quanto o leitor despre- venido (ou ingênuo) lê mal e não percebe. Daí a necessidade da análise, da leitura crítica. É necessário fazer a “análise” do texto literário porque o texto não fala por si, o significado não é uma evidên- cia. Somente a análise, ou seja, a desmontagem e a remontagem do texto podem fazer com que ele se revele. O significado se oculta nas camadas profundas do texto e somente a análise é capaz de desentranhá -lo. Em uma análise do poema “Meu sonho”, de Álvares de Azevedo, elaborada por Antonio Candido (2001, p. 38 -53), há um exemplo excelente que evidencia a necessidade da análise literária. Numa leitura superficial, o poema é visto como se fosse um diálogo entre o “Eu” e o “Fantasma”, mas o ar de mistério que o envolve e que logo se nota, já desde o início da análise, leva a crer que o poema é mais complexo do que a leitura inicial sugere. E é o que a continuação da análise só faz confirmar. Observa o autor que a divisão do poema em duas partes é aparente, em consequênciadisso, o diálogo entre o “Eu” e o “Fantasma” é também aparente, ou seja, não seria propriamente um diálogo, mas um mo- nólogo dilacerado do “Eu” consigo mesmo. Em que elemento Candido teria se baseado para chegar a esta conclusão? Este elemento é o ritmo, que, segundo ele, constitui o traço formal mais importante deste poema. O ritmo — assinala —, além de responsável pela fisionomia geral do poema é também o seu princípio organizador. Ele pode ser considerado a “razão” profunda da estrutura e do 16 UNIUBE significado do poema. A força unificadora do anapesto, extremamente eficaz, supera o desequilíbrio das partes, fundindo “Eu” e “O Fantasma” em um só movimento. Isso faz pensar que, se há unidade no plano da estrutura, deve haver também no do significado, ou seja: se a divisão em duas partes é aparente, por que não seria aparente o diálogo? Por que não seria ele um monólogo dila- cerado do “Eu” consigo mesmo, representando desdobramento na personali- dade? O próprio autor esclarece: Meu sonho Eu Cavaleiro das armas escuras, Onde vais pelas trevas impuras Com a espada sanguenta na mão? Por que brilham teus olhos ardentes E gemidos nos lábios frementes Vertem fogo do teu coração? Cavaleiro, quem és? O remorso? Do corcel te debruças no dorso... E galopas do vale através... Oh! da estrada acordando as poeiras Não escutas gritar as caveiras E morder -te o fantasma nos pés? Onde vais pelas trevas impuras, Cavaleiro das armas escuras, Macilento qual morto na tumba?... Tu escutas... Na longa montanha Um tropel teu galope acompanha? E um clamor de vingança retumba? Cavaleiro, quem és? — que mistério, Quem te força da morte no império, Pela noite assombrada a vagar? O Fantasma Sou o sonho de tua esperança, Tua febre que nunca descansa, O delírio que te há de matar!... (AZEVEDO, Álvares de, 1996.) UNIUBE 17 A leitura que propus consiste essencialmente em reconhecer significados sucessivos e cada vez mais escondidos, privile- giando um elemento de fatura, o ritmo, que, ao dar forma tanto à estrutura aparente quanto à estrutura profunda, pode ser considerado princípio organizador, graças ao qual Álvares de Azevedo foi capaz de criar um símbolo poderoso para exprimir a angústia do adolescente em face do sexo, que vai até o sentimento da morte. [...] Sob a camada estética, estratificam- -se os significados, até o que se refugia nas camadas mais fundas, onde a análise literária procura captá -lo. E nós senti- mos que a beleza de um poema se localiza na camada apa- rente, a dos elementos estéticos, onde se enunciam os significados ostensivos, e que basta para uma leitura satisfa- tória, embora incompleta. Mas a força real está na camada oculta, que revela o significado final e constitui a razão dos outros. (CANDIDO, 2001, p. 53.) EXPLICANDO MELHOR Anapesto É a unidade, ou “pé”, da antiga metrificação grega e latina formada por três sílabas, duas breves e uma longa, e que corresponde, na métrica silábica, a duas átonas e uma tônica. O crítico está se referindo ao fato de o poema ser escrito em versos eneassílabos (cada eneassílabo sendo formado por três anapestos). 1.5 A prática da análise — um exemplo Vimos as características de cada uma das etapas da análise. Agora, procurare- mos ilustrar de que modo elas se apresentam na prática. Para tanto, nada melhor do que lançar mão de uma obra indispensável do ponto de vista didático: Na sala de aula: caderno de análise literária, do professor Antonio Candido (2001). Este livro contém seis análises de poemas, que, embora concebidas há bastante tempo (entre 1958 e 1960, quando lecionava literatura brasileira na Faculdade de Filosofia de Assis, SP), são ainda modelares. Escrita para funcionar como instrumento de trabalho, esta obra foi idealizada a partir de critérios eminentemente práticos, como, aliás, é do feitio do autor. An- tonio Candido sempre defendeu que, na medida do possível, deve -se trabalhar de modo mais aderente ao texto, ou seja, deve -se assumir um comportamento EXPLICANDO MELHOR Anapesto É a unidade, ou “pé”, da antiga metrificação grega e latina formada por três sílabas, duas breves e uma longa, e que corresponde, na métrica silábica, a duas átonas e uma tônica. O crítico está se referindo ao fato de o poema ser escrito em versos eneassílabos (cada eneassílabo sendo formado por três anapestos). 18 UNIUBE que vise levar o(a) aluno(a) a uma aproximação menos comprometida com te- orias e mais preocupado(a) com a manipulação das estruturas fundamentais do texto literário. O exercício da análise literária se concretiza tendo em vista fina- lidades essencialmente práticas. Daí que a análise literária, para além da ne- cessária instrumentação teórica, implique a execução de operações bem definidas. Por isso, deve -se evitar proposições que poderiam conduzir à simples especulação teórica como um fim em si mesma, orientando, sempre que pos- sível, o cerne das teorias para a problemática da análise literária. SAIBA MAIS Antonio Candido sempre se considerou mais um “crítico literário” do que um “teórico da literatura”, vendo na teoria um “auxiliar da crítica”, uma espécie de “teoria da aná- lise”. Isso talvez se deva ao aspecto mais imediatamente aplicado e pragmático da crítica. Esse pragmatismo é uma preocupação que perpassa toda a sua obra. As análises procuram sugerir ao professor e ao estudante maneiras possíveis de trabalhar com o texto, partindo da noção de que cada um requer tratamento adequado à sua natureza. Este é um aspecto em relação ao qual o autor não transige; para ele, é ponto de honra, por assim dizer, entender que o texto é que determina o ritmo da análise, e não o contrário. É isso que explica que as aná- lises elaboradas pelo autor apresentem diferenças flagrantes no que se refere ao tratamento. Como cada obra apresenta feições peculiares, não podem for- mular esquemas rígidos que se apliquem indistintamente a qualquer obra lite- rária. Há, sem dúvida, pontos em comum, mas isso se deve ao fato de serem os mesmos os pressupostos em que se baseia. Conforme esclarece, um desses pressupostos é que os significados são complexos e oscilantes. Outro, que o texto é uma espécie de fórmula, onde o autor combina consciente e inconscien- temente elementos de vários tipos. As análises focalizam os aspectos relevantes de cada poema. Assim, por exem- plo, pode -se dizer que a análise da “Lira 77”, de Tomás Antônio Gonzaga, foi escrita para ilustrar a função estrutural dos dados biográficos, pois este é o aspecto mais relevante deste poema. Ou seja, nesta análise procurou mostrar que há casos em que não basta o conhecimento da estrutura do poema, mas que é preciso ir além, buscando o conhecimento do contexto, ou da situação do poeta (saber, por exemplo, de quem é o poema e as circunstâncias biográficas em que o mesmo foi composto). Observa o autor (CANDIDO, 2001, p. 34): SAIBA MAIS Antonio Candido sempre se considerou mais um “crítico literário” do que um “teórico da literatura”, vendo na teoria um “auxiliar da crítica”, uma espécie de “teoria da aná- lise”. Isso talvez se deva ao aspecto mais imediatamente aplicado e pragmático da crítica. Esse pragmatismo é uma preocupação que perpassa toda a sua obra. UNIUBE 19 Ao contrário do que acontece noutros poemas, o conhecimento da biografia é importante para a análise deste. Como, neste caso, as informações biográficas são imprescindíveis para a perfeita compreensão do significado do texto, diz -se que os dados biográficos têm fun‑ ção estrutural. Em outras análises é o ritmo o aspecto mais importante. Está neste caso, por exemplo, a análise do poema de Álvares de Azevedo, “Meu sonho”, já mencionada, em que o ritmo constitui o traço formal mais importante do poema. Já na análise do poema de Alberto de Oliveira, “Fantástica”, o aspecto mais relevante é, sem dúvida, o vocabulário. A explicação para isso, segundo o autor, é que “este é um poema dos objetos e a sua análise consiste em boa parte no trabalho exaustivosobre o vocabulário”. (CANDIDO, 2001, p. 56.) Em várias análises, predomina a oposição dos significados. Como o próprio autor afirma, em todas elas está implícito o conceito básico de estrutura como correlação sistemática das partes, e é visível o interesse pelas tensões que a oscilação ou a oposição criam nas palavras, entre as palavras e na estrutura, frequentemente com estratificação de significados. As análises constantes do livro atestam a afirmação feita pelo professor Antonio Candido, no prefácio, de que, no nível profundo, a análise de um poema é frequentemente a pesquisa das suas tensões, isto é, dos elementos ou significados contraditórios que se opõem. Neste particular, Candido não esconde a sua dívida para com o new criticism e, mais particularmente, em relação a John Crowe Ransom, a Cleanth Brooks e a Robert Penn Warren. Como se sabe, Ransom preconizava uma crítica ontológica, isto é, uma crítica centrada sobre a obra literária considerada como um modelo (pattern) de forças organizadas, como um todo autônomo e autossuficiente em que cada elemento está organicamente relacionado com os outros e no seio do qual se geram e se resolvem múltiplas tensões ou resistências (tensão entre o ritmo do poema e o ritmo da linguagem, entre o particular e o geral, o con- creto e o abstrato etc.). Cleanth Brooks considerava a obra literária como uma estrutura cujos princípios integradores e tensionais são o paradoxo e a ironia. Um aspecto importante a ressaltar nas análises desta obra é que o professor Antonio Candido teve a preocupação de, ao mesmo tempo em que analisava um determinado poema, comentar o que estava fazendo, ou seja, suas análises têm uma dimensão metalinguística evidente, como, aliás, seria previsível numa obra de cunho nitidamente didático, como esta. Não raro, ao longo do livro, encontramos trechos do tipo: 20 UNIUBE Até aqui o texto foi descrito, sucessivamente, em seus dois níveis; e nessas etapas foi considerado mais ou menos como um ‘objeto’ que o analista manipula. A partir de agora, será concebido não como um todo autônomo, mas parcela de um todo maior. [...] Só encarando -o assim teremos elementos para avaliar o significado da maneira mais completa possível (que é sempre incompleta, apesar de tudo). (CANDIDO, 2001, p. 33.) Alguns comentários têm interesse apenas para a compreensão da metodologia de análise que o autor está pondo em prática naquela análise específica, como é o caso deste exemplo; outros comentários, no entanto, têm um interesse mais amplo: são observações que têm validade para a compreensão da metodologia da análise literária em geral, como este: Generalizando em termos de método: o estudo do nível estru- tural revela o significado, que é mais profundo em relação ao sentido ostensivo. (CANDIDO, 2001, p. 73.) Ou este outro: Fiquemos assim com uma noção que tem bastante valor prático no trabalho sobre os textos: na análise, que não pode se limitar às intuições, mas precisa suscitá -las ou confirmá -las, a estrutura tem precedência como elemento de compreensão objetiva. Pelo menos como etapa do método, o significado pode ser conside- rado como contido nela. (CANDIDO, 2001, p. 77.) Para efeito de exemplificação da metodologia de análise, vamos fazer uma breve exposição, que mostra como a análise e a interpretação se completam e como cada uma delas pode ser melhor compreendida por um caso concreto. Desta- camos alguns detalhes de uma das análises mais belas realizadas pelo autor, aquela que aborda o poema “O rondó dos cavalinhos”, de Manuel Bandeira, só superada, neste livro, pela análise do poema “Meu sonho”, de Álvares de Aze- vedo. Como se trata de uma síntese ilustrativa, esperamos que nossa exposição seja um estímulo para que se busque o contato direto com a análise completa feita pelo professor Antonio Candido, bem como com as outras análises cons- tantes do livro em apreço. É óbvio que, antes de iniciar a análise propriamente dita, o autor procedeu à leitura do texto. Melhor dizendo: às leituras, uma vez que devemos fazer várias e não apenas uma leitura. Sobre isso, eis a recomendação do autor: “Ler infa- tigavelmente o texto é a regra de ouro do analista, como sempre preconizou a UNIUBE 21 velha explication de texte dos franceses. A multiplicação das leituras suscita intuições, que são o combustível neste ofício”. (CANDIDO, 2001, p. 6.) Podemos começar identificando, nesta análise, a presença de uma primeira etapa — comentário ou explicação — em que se faz o levantamento de certos aspectos externos que podem ajudar a compreender certas alusões presentes no texto, inclusive informações sobre o gênero do poema. Em seguida, o autor dá início à etapa da análise propriamente dita, ou seja, ao processo de desmontagem e remontagem do texto. Reconhecendo a necessi- dade de desmontagem da estrutura, percebe que, para tanto, convém partir de verificações elementares. Como, de um modo geral, é aconselhável começar pela observação ou descrição dos aspectos mais simples, passando, em seguida, ao estabelecimento de relações entre os diversos aspectos do texto para tentar interpretá -lo, o autor se propõe, inicialmente, a observar aspectos — que ele chama de elementos materiais, como pontuação, rima, ritmo, categoria gra- matical, estrofação — que contêm sentidos, mais do que se poderia pensar à primeira vista. Da sua descrição atomizada passa -se à correlação entre eles, a fim de procurar a fórmula segundo a qual o poema foi construído; e, assim, chegar ao significado. O autor se ocupa da descrição de cada um desses elementos, até chegar, no final, a uma conclusão objetiva sobre o significado do poema, confirmando al- gumas das intuições que se foram manifestando durante o percurso. Assim, começa pelo exercício do ouvido, tentando captar o ritmo correto de leitura, depois passa ao estudo da estrutura gramatical, observando que o ritmo corresponde à mudança de função do substantivo, impondo uma pontuação obrigatória. Conclui que o significado se manifesta como função dos elementos estruturais, desde que sejam percebidos numa perspectiva adequada. Em se- guida, dedica -se ao estudo da estrofação, e termina pelo exame da correlação entre o vocabulário e o gênero literário, que o leva à constatação da existência de um choque entre a norma e o seu uso. Ao longo da análise, o autor passa constantemente de uma atitude meramente descritiva para uma atitude conclusiva, transitando, assim, da análise para a interpretação, ilustrando, dessa forma, o que temos afirmado reiteradamente: que, na prática, a análise e a interpretação estão realmente imbricadas, manifestando -se, muitas vezes, de forma concomitante e não necessariamente sucessiva, ou seja, a interpretação não é algo que se inicia somente após con- cluída a análise. 22 UNIUBE É óbvio que, numa síntese como esta, não há como transmitir a dinâmica real da análise como a percebemos numa leitura direta do texto original. Como a análise é predominantemente descritiva, de um modo geral, ela tende a ser muito vagarosa e minudente — “um trabalho paciente de elaboração, como uma espécie de moinho, que tritura a impressão”, como, aliás, o próprio Candido (1973, p. 34) preconiza —, incidindo sobre os múltiplos elementos que constituem a estrutura do poema, bem como sobre o texto considerado como totalidade. Quase se poderia dizer que a análise e, consequentemente, a leitura crítica, conscienciosamente desenvolvida como a pratica o professor Antonio Candido, adquire a minúcia de um exame microscópico, submetendo o poema a uma análise que desce às menores unidades, aos mínimos detalhes do texto. O importante, em um trabalho de análise, é que se saiba dosar convenientemente o nível de detalhamento e o grau de aprofundamento a que se deve submeter o texto, para evitar que a análise, de instrumento indispensável na elucidação da obra literária, passe a ser lugar de exibicionismos para o autor e motivo de desinteresse por partedo leitor. A este respeito, talvez seja interessante concluir este comentário com as palavras sempre oportunas e lúcidas com que René Wellek (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 20) aborda este assunto: A análise textual tem levado a pedantismos e aberrações, como todos os outros métodos de conhecimento erudito; mas pode- -se com certeza afirmar que todo ramo de conhecimento só pode avançar e tem realmente avançado com a inspeção cuidadosa de seus objetos, com colocação das coisas sob o microscópio, muito embora o leitor comum ou mesmo estudan- tes e professores possam muitas vezes achar enfadonho esse processo. 1.6 Conclusão Com este capítulo quisemos apenas fazer uma introdução à análise literária. Neste terreno, como em outros de igual complexidade, sempre fica muita coisa por dizer. Apesar de tudo, ainda assim ousamos esperar que este trabalho tenha contribuído para familiarizá -lo(a) com a prática da análise, fornecendo as infor- mações necessárias para que você possa se conscientizar não só da importân- cia, mas, sobretudo, da necessidade da análise para a compreensão dos textos literários, bem como da necessidade de nos aparelharmos convenientemente para, gradativamente, podermos assumir diante do texto a atitude e a postura adequadas a um especialista em letras, vale dizer, a atitude e a postura de um leitor crítico. UNIUBE 23 Resumo Neste capítulo, procuramos situar os estudos literários no contexto das formas de conhecimento e esclarecemos suas características. Depois, vimos os obje- tivos da leitura crítica e os perigos e/ou riscos a serem evitados, ou seja, tenta- mos definir o âmbito de atuação do leitor crítico, com o objetivo de esclarecer de que forma ele deve proceder para não ultrapassar os limites da atividade crítica. Em seguida, vimos em que sentido a explicação pode ser considerada uma atividade legítima e útil para o estudo do texto literário. Identificamos as etapas da análise literária, explicitando as características de cada uma dessas etapas. Além disso, explicamos as relações existentes entre compreensão crítica e sensibilidade e procuramos distinguir entre fruição diletante e leitura crítica, procurando justificar a necessidade da análise literária. Concluímos o capítulo com uma exemplificação da metodologia da análise literária. Referências AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. 3 ed. Lisboa: Almedina, 1973. AZEVEDO, Alvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Disponível em: <http://dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000021.pdf>. Acesso em: 11 maio 2010. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Exame nacional de cursos – 1999. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/download/enc/1999/gabaritos/Padraoletras.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2010. 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Ensaios de doutrina crítica. Trad. com a colaboração de Fernando de Melo Moser; pref., selec. e notas de J. Monteiro -Grilo, Lisboa: Guimarães Editores, 1962. REIS, Carlos. Análise e interpretação. In: ______. Técnicas de análise textual. Coimbra: Almedina, 1976. RODRIGUES, José Honório. Filosofia e história. O conhecimento histórico. In: ______. Teoria da história do Brasil: introdução metodológica. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. ROSENFELD, Anatol. Estrutura e problemas da obra literária. São Paulo: Perspectiva, 1976. WELLEK, René; WARREN, Austin. Literatura e estudo da literatura. In: ______. Teoria da literatura. Lisboa: Publicações Europa -América, 1962. UNIUBE 25 Capítulo 2 Estrutura e valor Introdução No capítulo anterior, tratamos da atividade crítica e vimos o papel fundamental que a análise literária aí desempenha. Mas tivemos a oportunidade de chamar a atenção também para o fato de que a ati- vidade crítica, embora deva se servir da análise, deve ultrapassá -la em direção ao julgamento da obra literária. Vale dizer: por mais impor- tante que seja o conhecimento da estrutura, não podemos prescindir da avaliação estética da obra. Até porque a crítica é, essencialmente, julgamento de valor. Isso coloca em evidência a indissociabilidade entre as noções de estrutura e de valor, que é o tema do presente capítulo. Objetivos Após o estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • mostrar que as noções de estrutura e de valor são indissociáveis, ou seja, que é impossível compreender e analisar as obras lite- rárias sem referência aos valores; • explicar que o estudo da literatura não pode e não deve ser di- vorciado da crítica, que é julgamento de valor; • explicar o que significa dizer que uma obra literária é bem- -sucedida, bem realizada artisticamente; • explicar como se dá a verdadeira incorporação das ideias numa obra literária, seja romance ou poema. 26 UNIUBE Esquema 2.1 Considerações iniciais 2.2 Definindo o campo de observação 2.3 Exemplo de avaliação crítica 2.4 Conclusão Não existe estrutura fora das normas e dos valores. É ‑nos impossível compreender e analisar qualquer obra de arte sem referência aos valores. René Wellek 2.1 Considerações iniciais René Wellek demonstrou estar bem consciente desta indissociabilidade entre as noções de estrutura e de valor. Aliás, ele foi um dos autores que mais se empenharam para o esclarecimento desta questão, por isso mesmo a recorrên- cia constante à sua contribuição, no presente capítulo. Para Wellek, uma obra de arte não é apenas uma estrutura a ser analisada descritivamente. Considera que mesmo uma análise completa da estrutura de uma obra de arte não esgota a tarefa do estudo literário, porque é impossível compreender e analisar qualquer obra de arte sem referência aos valores: A obra de arte é uma totalidade de valores que não adere simplesmente à estrutura, mas constitui sua própria essência. Todas as tentativas de eliminar o valor da literatura têm fracas- sado e fracassarão, porque sua própria essência é o valor. O estudo da literatura não pode e não deve ser divorciado da crítica, que é julgamento de valor. (WELLEK, 1963, p. 68.) Daí afirmar que o erro da fenomenologia pura reside na presunção de que tal dissociação é possível, de que os valores estão sobrepostos à estrutura, são “inerentes” à estrutura. Este erro de análise vicia o penetrante livro de Roman Ingar- den, que tenta analisar a obra de arte sem a referir a valores. (WELLEK; WARREN, 1962, p. 190.) Mas os fenomenólogos e, em particular, Ingarden, não são um caso isolado. É decerto verdade que vários autores têm se esforçado para pôr completamente UNIUBE 27 de lado as questões do valor literário. Em Anatomia da crítica (1963), Northrop Frye lança um apelo no sentido de as questões axiológicas serem deixadas de lado na prática da investigação literária. Eis como Wellek (1963, p. 16 -7) reagiu à posição do autor: A opinião de Frye de que “o estudo da literatura nunca pode basear -se em julgamentos de valor”, de que a teoria da litera- tura não está diretamente relacionada com julgamentos de valor, parece -me completamente equivocada. Ele próprio con- cedeque “o crítico logo descobrirá, e constantemente, que Milton é um poeta mais compensador e sugestivo para ser estudado que Blackmore”. Por maior que seja sua impaciência contra as opiniões literárias arbitrárias ou contra o jogo das classificações, não posso ver como tal divórcio, como ele pa- rece advogar, será possível na prática. Não se chegou às teorias literárias, aos princípios, aos critérios, partindo -se do nada: cada crítico desenvolveu sua teoria em contato (como o próprio Frye) com obras de arte concretas que ele teve de escolher, interpretar, analisar e, finalmente, julgar. Outro autor que não concorda com essa dissociação é Antonio Candido. Este autor (1976, p. 4) chegou a colocar o “valor” como o traço distintivo dos estudos literários e, particularmente, da crítica literária em relação às outras disciplinas que tomam a obra literária como objeto de estudo. Como já vimos, em seu ensaio “Crítica e Sociologia: tentativa de esclarecimento”, ele considera que as abor- dagens da obra literária ligadas à psicologia, à sociologia, à linguística etc. são perfeitamente legítimas, até porque os problemas destas são diversos dos da crítica literária. Estas não propõem a questão do valor da obra. São disciplinas de cunho científico, sem a orientação estética necessariamente assumida pela crítica literária. Felizmente, a maior parte dos críticos encontra -se, hoje, consciente das premissas axiológicas subjacentes à prática da crítica. O presente trabalho pretende ser uma modesta contribuição para o fortalecimento e a dissemi- nação desse ponto de vista. Mas o que se deve entender realmente por valoração da obra literária? Axiológica Que concerne à questão dos valores. Mas o que se deve entender realmente por valoração da obra literária? 28 UNIUBE Segundo Wellek, a valoração da obra literária é a experimentação, a tomada de consciência, de qualidades esteticamente valiosas e de relações estruturalmente presentes na obra para qualquer leitor competente. Em apoio a esta afirmação, cita em seguida, Eliseo Vivas, segundo o qual a beleza é uma característica de algumas coisas, e presentes nelas; mas presente nessas coisas apenas para aqueles que sejam dotados da capacidade e da preparação indispensáveis à sua percepção. (VIVAS apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 312.) Para, finalmente, concluir que: os valores existem potencialmente nas estruturas literárias; são apreendidos e verdadeiramente apreciados ao serem contem- plados pelos leitores que preencham as condições necessárias. (WELLEK; WARREN, 1962, p. 312.) Assim, para que uma obra literária possa ser avaliada positivamente, é neces- sário que ela seja considerada bem -sucedida, bem realizada artisticamente, e que estejamos preparados para perceber esta qualidade. A questão que se coloca é: quando uma obra literária deve ser considerada bem -sucedida, bem realizada artisticamente? Vejamos o que diz René Wellek (apud WELLEK; WAR- REN ,1962, p. 302) a esse respeito: Numa obra de arte bem realizada, os materiais encontram -se completamente assimilados na forma: o que era “mundo” converteu -se em linguagem. Os materiais de uma obra de arte literária são, num plano, as palavras; noutro, a experiência do comportamento humano; noutro ainda, as ideias e as atitudes humanas. Todos eles, incluindo a linguagem, existem, fora da obra de arte, de outras maneiras; mas num romance ou poema bem realizado são atraídos em relações polifônicas pela dinâmica do propósito estético. 2.2 Definindo o campo de observação Ora, as ideias abstratas não têm lugar numa obra literária, onde constituiriam um elemento heterogêneo. Lucien Goldmann Para limitar nosso campo de observação e não corrermos o risco de nos desviar do principal, vamos nos restringir a considerar apenas um desses materiais — UNIUBE 29 as ideias — e ver de que maneira se dá a sua completa assimilação numa obra de arte literária, e, obviamente, também o inverso poderá ser observado: quando as ideias não foram completamente assimiladas, resultando daí uma obra de arte literária mal realizada. Para tanto, o que nos propomos a examinar é como se dá a verdadeira incorporação das ideias numa obra literária, seja um romance ou um poema. Trata -se de pôr em prática uma tarefa há muito preconizada por René Wellek (apud WELLEK; WARREN, 1962, p. 150), e, certamente, tão opor- tuna hoje quanto na época em que foi formulada: O estudioso da literatura deveria consagrar a sua atenção ao problema concreto, ainda não solucionado ou sequer devida- mente discutido, que consiste em determinar como é que, verdadeiramente, as ideias se inserem na literatura. A questão não concerne, obviamente, à existência de ideias numa obra literária enquanto essas ideias permanecem apenas meros elementos não elaborados, simples elementos de informação. Ela surge, sim, apenas quando e se essas ideias são genui- namente incorporadas na própria textura da obra de arte, quando se tornam ‘constitutivas’ — em resumo, quando deixam de ser ideias no corrente sentido de conceitos e se tornam símbolos, ou mesmo mitos. Como se vê, Wellek faz menção aqui aos dois modos pelos quais as ideias podem ser incorporadas à literatura, mas deixa claro também que só um deles corresponde ao que se deve entender como uma correta assimilação, a uma correta incorporação. O próprio autor nos dá uma pista de qual seria esse modo correto, ao afirmar que, para se tornarem “constitutivas”, as ideias devem deixar de ser conceitos e se tornarem símbolos ou mitos. Faz referência, assim, à natureza simbólica da obra literária, anunciando que as ideias, para serem cor- retamente incorporadas, devem ser apresentadas de maneira indireta, de ma- neira implícita. Em seguida, o autor menciona exemplos dos dois casos, distinguindo dois níveis de integração: um, inferior, em que as ideias não são corretamente incorporadas, outro, superior, em que as ideias são inseridas de modo correto. SAIBA MAIS A arte é uma forma simbólica. Este é o modo de ser da arte. É somente o artista que vive criando, “fazendo”, na discrepância daquilo que meramente é. É por ser simbó- lica que a literatura pertence ao sistema da arte. (adaptado de HAMBURGER, 1975, p. 246 -248.) SAIBA MAIS A arte é uma forma simbólica. Este é o modo de ser da arte. É somente o artista que vive criando, “fazendo”, na discrepância daquilo que meramente é. É por ser simbó- lica que a literatura pertence ao sistema da arte. (adaptado de HAMBURGER, 1975, p. 246 -248.) 30 UNIUBE Temos a grande região da poesia didática, onde as ideias apenas são afirmadas, equipadas de métrica ou de alguns embelezamentos de metáfora e alegoria. Temos o romance de ideias, como os de George Sand ou George Eliot, onde se nos deparam discussões de ‘problemas sociais, morais ou filosó- ficos’. Num nível superior de integração, temos um romance como Moby Dick de Melville, cuja ação total acarreta um certo significado mítico, ou um poema como o The testament of beauty de Bridges, que, pelo menos, em intenção, encerra uma única metáfora filosófica. E temos Dostoievsky, em cujos romances o drama de ideias se traduz, em termos concretos, nas personagens e nos acontecimentos. No Os irmãos Kara- mazov, os quatro irmãos são símbolos representativos de um debate ideológico que, simultaneamente, é um drama pessoal. A conclusão ideológica integra as catástrofes pessoais das principais figuras. (WELLEK; WARREN, 1962, p. 150 -151.) SAIBA MAIS George Sand: pseudônimo da escritora francesa Amandine Aurore Dupin, baronesa Dudevant (1804–1976). George Eliot: pseudônimo da escritora inglesa Mary Ann Evans (1819–1880). Moby Dick (1851): obra de Herman Melville (1819–1891), escritor norte -americano. The testament of beauty (1929): obra de Robert Seymour Bridges (1844–1930), poeta inglês. Os irmãos Karamazov (1879): romance de Fiódor Dostoiévski (1821–1881), escritor russo. SAIBA MAIS Poesia didática O poeta latino Lucrécio Caro, em seu De rerum
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