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Manual de Sociologia da Religião – Roberto Cipriani

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Roberto Cipriani
Manual de 
sociologia da religião
PAULUS
Este livro oferece uma análise crítica do pensamento clássico e con­
temporâneo no campo da sociologia da religião, uma apresentação 
precisa e documentada dos autores mais significativos e um minu­
cioso exame interpretativo dos resultados mais importantes, sempre 
privilegiando uma perspectiva internacional, não eurocêntrica nem 
cristianocêntrica.
• Socio log ia e soc iedade pós-industrial, Paulo Sérgio do Carmo
• Introdução à política brasileira, Hum berto Dantas, José Paulo Martins Júnior
• Manual d e sociologia da religião, Roberto Cipriani
R oberto C ipriani
MANUAL 
DE SOCIOLOGIA 
DA RELIGIÃO
PAULUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
07-1355
Cipriani, Roberto 
Manual de sociologia da religião / Roberto Cipriani; 
[tradução Ivo Storniolo]. — São Paulo: Paulus, 2007. 
— (Coleção ciências sociais)
T ítulo original: Manuale di sociologia delia religione 
Bibliografia 
ISBN 978-85-349-2653-9
1. Religião e sociologia I. Título. II. Série.
CDD-306.6
índices para catálogo sistemático
1. Sociologia da religião 306.6
T ítulo original 
Manuale d i Socio logia delia Relig ione 
1997, Edizioni Borla s.r.l.
Via delle Fornaci 50-00165 Roma 
ISBN 88-263-1215-X
Direção editorial 
Paulo Bazaglia
Tradução 
Ivo Storniolo
Editoração
PAULUS
©PAULUS-2007 
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 • São Paulo (Brasil) 
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5084-3066 
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-2653-9
S u m á r io
I In t r o d u ç ã o ................................................................................................... 7
PRIMEIRA PARTE - AS ORIGENS
1 I Os PRESSUPOSTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICOS.................................... 21
2 I A RELIGIÃO UNIVERSAL DE COMTE ( 1 7 9 8 - 1 8 5 7 ) ......................... 41
3 I R e lig iã o e d e m o c r a c ia s e g u n d o T o c q u e v ille
(1 8 0 5 -1 8 5 9 ) ........................................................................................ 49
4 I R e l ig iã o e " im p u ls o v it a l " em B e r g so n ( 1 8 5 9 - 1 9 4 1 ) ....... 55
5 I A c o n t r ib u iç ã o a n t r o p o l ó g ic a ..................................................... 61
SEGUNDA PARTE - OS CLÁSSICOS
1 I As fo rm a s re lig io s a s de D u rk h e im ( 1 8 5 8 - 1 9 1 7 ) ................. 91
2 I As r e l ig iõ e s u n iv e rs a is de W e b e r ( 1 8 6 4 - 1 9 2 0 ) .................... 105
3 I R e lig io s id a d e e r e lig iã o e m S im m e l ( 1 8 5 8 -1 9 1 8 ) ................. 121
4 I A d im e n s ã o p s íq u ic a d a r e lig iã o s e g u n d o F reud
( 1 8 5 6 -1 9 3 9 ) ........................................................................................ 129
5 I A r e lig iã o n a perspectiva p s ic o s s o c ia l d e J a m e s
(1 8 4 2 -1 9 1 0 ) ........................................................................................ 141
TERCEIRA PARTE - OS CONTEMPORÂNEOS
1 I A r e lig iã o c o m o u n iv e r s a l ............................................................... 151
2 I O d e l in e a m e n t o m a c r o s s o c io l ó g ic o ....................................... 159
3 I A d in â m ic a h is t ó r ic o - c u l t u r a l ...................................................... 167
4 I A RELIGIÃO SEGUNDO A ESCOLA DE FRANKFURT.................... 187
5 I As NOVAS PROPOSTAS EUROPÉIAS........................................................ 193
6 I As PERSPECTIVAS SOCIOANTROPOLÓGICAS....................................... 207
QUARTA PARTE-OS DESENVOLVIMENTOS RECENTES
1 I A SECULARIZAÇÃO................................................................ 225
2 I O PLURALISMO RELIGIOSO...................................................................... 239
3 I A RELIGIÃO CIVIL DE B e lla h (1927-).................................... 247
4 l As CORRENTES NORTE-AMERICANAS.................................................. 255
5 I AS CORRENTES EUROPÉIAS..................................................................... 277
6 I A RELIGIÃO COMO FUNÇÃO EM ÜJHMANN (1927-)............... 301
7 I OS NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS................................................ 309
I P o s f á c io ......................................................................................................... 315
I R e fe r ên c ia s b ib l io g r á f ic a s ................................................................... 319
I Q u a d r o s in ó t ic o (a u t o r e s , in f l u ê n c ia s ,
CONCEITO-CHAVE, TEMAS)........................................................................... 335
I S in o p s e g r á f ic a g e r a l .............................................................................. 353
I Ín d ic e d o s n o m e s ........................................................................................ 355
In t r o d u ç ã o
A DEFINIÇÃO SOCIOLÓGICA DE RELIGIÃO
A fórmula mais simples para definir a sociologia da religião consis­
te em dizer que ela analisa a fenomenologia religiosa com o auxílio dos 
instrumentos teóricos e empíricos que são típicos da sociologia.
Historicamente, a ligação entre sociologia e sociologia da 
religião foi estreitíssima. As incertezas iniciais de uma recaíam 
sobre a outra, como também os progressos sucessivos em termos 
de confiabilidade científica. E também terá algum significado a 
coincidência, certamente não fortuita, de que os maiores expoen- 
tes da assirn_chamada sociologia geral sejam também enumera: 
dos entre os autores clássicos da sociologia da religião: é o caso 
tanto de Comte como de Durkheim, de Simmel como de Weber, 
de Sorokin como de Parsons.
Há um ponto particular, em relação ao qual convergem e di­
vergem muitas abordagens dos autores acima citados e de outros. 
Alguns professam a sociologia em chave quase militante, em favor 
de uma perspectiva confessional ou anticonfessional específica, en­
quanto outros fazem da neutralidade seu fulcro, fugindo de envol­
vimentos demasiadamente diretos e de aplicações demasiadamente 
imediatas. Na verdade, não são muitos, porém, que escolhem a solu­
ção da eqüidistância não valorativa, em chave não preconceituosa.
A orientação pessoal de cada sociólogo emerge de modo cla­
ro já por meio das próprias definições de religião, que foram objeto 
de um estudo específico de Yves Lambert [1991], o qual distingue
essencialmente entre definições substantivas e definições funcionais. 
As primeiras se referem a elementos justamente substantivos, como 
o culto, o sobrenatural, o invisível, o rito ou ainda outras coisas. As 
segundas, ao contrário, salientam a conotação funcional, o papel da 
religião na sociedade. Nas origens da sociologia da religião, foram 
prevalentes as definições substantivas, e depois - especialmente com 
o desenvolvimento do debate sobre a secularização - se difundiram 
as funcionais. Mas umas e outras foram mais atravessadas e con­
dicionadas pelo problema da crença (ou não crença) e da pertença 
confessional (ou não) do estudioso em questão.
A título de exemplo, podemos citar como tendencialmente subs­
tantivas as definições de Durkheim e de Weber, e marcadamente 
mais funcionais as de Luckmann e Luhmann.
A S DEFINIÇÕES TENDENCIALMENTE SUBSTANTIVAS DA RELIGIÃO
Para Durkheim [1973: 59], “uma religião é um sistema solidário 
de crenças e de práticas relativas a entidades sagradas, isto é, sepa­
radas, interditas; crenças e práticas que unem em uma mesma co­
munidade moral, chamada igreja, todos os aderentes”. Os conteúdos 
substantivos são aqui as crenças, as práticas, as inatingíveis entidades 
sagradas, a igreja. Uma definiçãoanterior [Durkheim 1996: 67] fala, 
ao contrário, de fenômenos religiosos e não de religião, enquanto 
não acena à comunidade e nem sequer ao sagrado.
De sua parte, Weber não forneceu uma definição precisa da re­
ligião. Podemos, entretanto, conseguir alguns indícios significativos 
dela, dispersos em suas obras. Por exemplo, ele fala de “sistemas de 
regulação da existência”, que conseguiram “reunir a seu redor uma 
fila particularmente cerrada de fiéis” [Weber 1976: 327], quando 
analisa a ética econômica das religiões mundiais. Insiste, ao invés, 
sobre a dimensão da ação, quando afirma que “o agir religiosamen­
te ou magicamente orientado toma sua consistência originária em 
um processo mundano. As ações que se apresentam como religiosas 
ou mágicas devem ser realizadas ‘a fim de que tudo vá bem e vivas 
longamente sobre a terra ” [Weber 1974,1: 421 ]. Há, portanto, uma, 
sólida relação entre dimensão religiosa e dimensão terrena.
Jean Séguy [1988: 174] observa justamente que “nas primeiras 
linhas do parágrafo Io do capítulo V de Economia e sociedade - que 
trata expressamente da sociologia religiosa (Religionssoziologie)
- Weber considera impossível fornecer uma definição da religião no 
início de uma tratação como a que ele empreende. Além do mais, 
acrescenta, poder-se-á tentar tal definição no fim do trabalho. Aí 
chegando, não pensaremos mais”. Talvez a razão esteja na opção we- 
beriana em favor da neutralidade científica, da avalorabidade (Werí- 
freiheit) que, no caso, se arriscaria a carecer de uma delimitação ex­
plícita de formas e de conteúdos religiosos. Ou então - conforme 
sugere o próprio Séguy - a motivação está no mal-estar weberiano 
de prosseguir um debate demasiadamente datado e obsoleto como o 
de Feuerbach sobre a essência da religião.
O que permanece definido, em todo caso, é a intenção de Weber: 
estudar o agir religioso coletivo, isto é, em comunidade, e a refe­
rência a potências sobrenaturais.*Na realidade, a atenção é colocada 
sobre a regulação das relações entre aquilo que é humano e aquilo 
que é sobrenatural, de modo que a definição implícita de religião se 
torna nesse caso também de tipo funcional, enquanto serve para ge­
renciar relações. Além disso, tal abordagem, sem definições de base, 
é feita por meio do compreender (verstehen) e, particularmente, por 
meio da tentativa de compreender a vida religiosa dos outros indi­
víduos sociais que, como protagonistas, definem de fato sua crença, 
sua visão religiosa do mundo, sua ritualidade ^Portanto, coletando 
a definição que os indivíduos sociais apresentam de sua religião, é 
possível assumir um ponto de vista empiricamente fundado, evitan­
do recorrer aos pressupostos desviantes do próprio pesquisadorj
Sempre a respeito de Weber, não esqueçamos, lembra ainda Sé­
guy, a remitência a form as analógicas ou metafóricas de religião, ou 
seja, a modalidades religiosas reutilizadas por analogia ou por me­
táfora em campo profano, como no caso do conceito de “politeísmo 
dos valores”, usado para indicar a pluralidade e a “sacralidade” das 
formas de valor, fruto do individualismo ético. Weber não se mostra 
favorável à presença de uma multiplicidade de valores, mas, como 
sociólogo, não pode deixar de notar sua existência. Com efeito, “a
vida, enquanto deve se fundar sobre si mesma e ser compreendida 
em si mesma, conhece apenas o recíproco eterno conflito das divin­
dades, ou seja, deixando de lado a metáfora, a impossibilidade de 
conciliar e resolver o antagonismo entre as posições últimas em geral 
a respeito da vida, isto é, a necessidade de decidir por uma ou pela 
outra”. A propósito, soa então pertinente a interrogação, citada pelo 
próprio Weber [1967: 37-38], “ ‘a qual dos deuses em luta devemos 
servir? Ou talvez a algum outro, e quem então?’
Justamente por serem dotadas de significado, algumas formas 
não especificamente religiosas se tornam quase “religiões substitu­
tivas”. Essa tendência, já entrevista por Weber em termos de meta- 
forização do religioso, encontra paralelos ainda hoje. Com efeito, 
acrescenta Séguy [1988: 180], algumas religiões metafóricas tomam 
impulso “a partir da ‘religião invisível’ de Thomas Luckmann [1969]; 
outras se aproximam da ‘religião implícita’ de Arnaldo Nesti [1985]; 
outras ainda da ‘religião difusa de Robert Towler [1974] e/ou de 
Roberto Cipriani [1988]; outras, finalmente, da ‘religião política’ 
de Raymond Aron [1958] ou de Jean-Pierre Sironneau [1982] etc. 
O conceito de religião metafórica tem o mérito de ser globalizante; 
ele também apresenta dificuldades unidas naturalmente à seguinte 
vantagem: os fenômenos concretos que dele se aproximam são de 
enorme variedade”.
Esse olhar dirigido ao futuro da religião não é apenas weberiano. 
Também Durkheim [1973: 59] parece prospectar - ao menos em um 
ponto, antes de sua definição substantiva - uma possível visão mais 
funcional, quando acena a “aspirações contemporâneas na direção 
de uma religião totalmente feita de estados interiores e subjetivos, 
construída livremente a partir de cada um de nós. Mas, por mais 
reais que sejam, não têm o que ver com nossa definição, referente 
apenas a fatos adquiridos e realizados, e não a virtualidades incertas. 
Pode acontecer que esse individualismo religioso esteja destinado a 
traduzir-se concretamente; todavia, para poder determinar até que 
ponto, seria necessário já saber o que é a religião, de quais elementos 
ela é constituída, de quais causas ela provém, qual função preenche: 
problemas todos dos quais não podemos antecipar a solução, en­
quanto permanecemos no limiar da pesquisa. Apenas no termo de 
nosso estudo poderemos tentar antecipar o futuro”.
Já é conhecida a definição de Durkheim da religião. No fim de seu 
texto, ao contrário, o sociólogo francês não se expõe ulteriormente a 
fazer previsões: “Sem dúvida, não é possível fazer prognósticos desde já 
sobre os futuros desenvolvimentos dessas soluções” [Durkheim 1973: 
443], Resta, porém, que seu aceno ao subjetivismo religioso preludia, de 
algum modo, os desenvolvimentos sucessivos da análise sociorreligiosa, 
que vê uma definição funcionalista mais marcante na teoria de Luck­
mann [1969: 95-106] sobre a “religião invisível” e, particularmente, na 
idéia de uma “religiosidade individual”.
As DEFINIÇÕES FUNCIONAIS DA RELIGIÃO
Justamente a propósito de definições, o próprio Luckmann [1969: 
53] precisa que “quando for aceita uma definição substancial da religião 
poder-se-á, naturalmente, perguntar-se, com esperança ou receio, se a 
religião é, ou se tenha tornado, um fenômeno excepcional. Se aceitar­
mos a tese proposta por Durkheim - ou, ao menos, implícita em sua 
obra - e definirmos a religião sobre a base de sua função social univer­
sal, tal problema deixará de ter um sentido. Para que possa ser útil para a 
teoria sociológica da religião, a tese de Durkheim deverá ser especifica­
da, e isso comportará algumas dificuldades que procuraremos superar. 
Uma coisa, no entanto, pode ser afirmada com segurançaKima defini­
ção funcional da religião evita ao mesmo tempo o habitual preconceito 
ideológico, da mesma forma que a limitação ‘etnocêntrica da definição 
substancial do fenômeno”.
Para Luckmann não têm relevância sociológica primária as prá­
ticas religiosas, e sim os “universos simbólicos”, que “são sistemas de 
significado socialmente objetivados que se referem, de um lado, ao 
mundo da vida quotidiana, e de outro lado se dirigem a um mundo 
que é experimentado como que transcendendo a vida quotidiana”. 
“Outros sistemas de significado não olham para além do mundo da 
vida quotidiana; ou seja, eles não contêm uma referência ‘transcen­
dente’ ” [Luckmann 1969: 55-56]. Para essa concepção da religião 
como universo simbólico, Luckmann parte da fenomenologia socio­
lógica de seu mestre Alfred Schutz [1979: 181-232 e 260-328], que 
se dedicaraao estudo das diversas formas da vida quotidiana e das 
relações simbólicas, estas últimas entendidas como “transcendên­
cia da natureza e da sociedade”. Mas a origem mais remota está no 
pragmatismo, que define um conceito a partir de suas conseqüên­
cias práticas [James 1967: 130-137], e no funcionalismo de William 
James [1950], que considerava a religião como um subuniverso, da 
mesma forma que a teoria científica, a política, a arte, âmbitos que 
Schutz [1979: 312] preferia chamar de “províncias finitas de signifi­
cado” caracterizadas cada uma por um específico “estilo cognitivo” 
da realidade.
A definição luckmaniana de religião, contudo, vai muito além 
dos esquemas habituais [Luckmann 1969: 62-63]. Ele considera que 
“está em conformidade com o significado elementar do conceito de 
religião definir fenômeno religioso a transcendência da natureza 
biológica como parte do organismo humano”. “Tal fenômeno se ba­
seia sobre a relação funcional entre Eu e sociedade; podemos, por- 
tanto, considerar como fundamentalmente religiosos os processos 
sociais que levam à formação do Eu”. O objetivo é passar depois para 
os “temas religiosos modernos” (a autonomia do indivíduo, a auto- 
expressão, a auto-realização, o ethos da mobilidade, a sexualidade, o 
familismo), que representam a “religião invisível”, contraposta à vi­
sibilidade das práticas religiosas. Entendendo dessa forma a religião, 
Luckmann oferece o flanco para várias críticas em relação a seu ex- 
tensionismo conceituai, ou seja, à sua própria concepção de religião, 
ampliada muito além dos limites considerados habituais, enquanto 
relacionáveis a experiências constantemente qualificadas como reli­
giosas. Ele, contudo, antecipa tais observações demolidoras e escre­
ve: “podemos salientar incidentalmente como tal tese não está em 
contraste com a etimologia do termo. Poderão objetar, de um ponto 
de vista teológico e ‘substancialista’ da religião, que, nessa perspecti­
va, a religião se torna um fenômeno onicompreensivo. Esta, porém, 
não nos parece uma objeção válida. A transcendência da natureza 
biológica é um fenômeno universal da humanidade”. Em poucas 
palavras, a religião permanece uma ligação, entrando por isso em
seu contexto etimológico originário. Tal ligação não remete neces­
sariamente às entidades divinas das religiões históricas organizadas, 
e sim à concepção do mundo. Reutilizando o clássico delineamento 
de uma “construção social da realidade” [Berger, Luckmann 1966; 
1969), o teórico da “religião invisível”, enquanto considera “um ata­
lho” a definição de religião que se refere ao “sobrenatural”, levanta, 
ao contrário, o problema da “condição antropológica universal da 
religião” e, ajeguir, da própria religião como “parte distinta da rea­
lidade social. Luckmann insiste particularmente sobre o fato de que 
“a transcendência da natureza biológica, realizada pelos organismos 
humanos, é um processo profundamente religioso. Agora podemos 
acrescentar que a socialização, enquanto processo concreto em que 
tal transcendência se realiza, é fundamentalmente religiosa. Ela se 
baseia sobre a condição antropológica universal da religião, sobre a 
individuação do conhecimento e da consciência nos processos so­
ciais, e se realiza na interiorização do modelo de significado subja­
cente a uma ordenação social histórica. Chamaremos esse modelo 
de significado de uma concepção do mundo” [Luckmann 1969: 67], 
Para Luckmann, portanto, a religião é definível como concepção do 
mundo. Com efeito, “a concepção do mundo, enquanto realidade 
social objetiva e histórica, preenche uma função essencialmente 
religiosa, e podemos defini-la como uma elementar form a social de 
religião. Essa forma social é universal na sociedade humana” [Luck- 
mann 1969: 69].
.« Também entra em uma óptica funcionalista a definição projeta­
da por Luhmann [1991: 36]: a religião “desempenha para o sistema 
social a função de transformar o mundo indeterminável, enquanto 
não passível de ser circunscrito para o exterior (ambiente) e para 
o interior (o sistema), em um mundo determinável, em que siste­
ma e ambiente possam estar em relações tais que excluam de ambas 
as partes a arbitrariedade da mutação. Em outras palavras, ela deve 
justificar e tornar tolerável que todas as tipificações, auto-identifica- 
ções, categorizações e toda formação de expectativa devam proceder 
redutivamente e permanecer refutáveis. Também a própria religião 
deve ater-se a formas de sentido acessíveis, deve representar o apre­
sentado. Mas ela, no decorrer de uma longa história, especializa os 
próprios esforços em representações que absorvem o risco da repre­
sentação. Daí resulta então o problema de uma especialização que 
torna consciente a função e seu risco”.
*A função da religião, para Luhmann» é a de reduziria incerteza 
e a complexidade, de determinar aquilo que aparece indeterminado. 
de tomar acessível o inacessível. A própria dimensão sobrenatural 
torna-se útil enquanto serve para reduzir a complexidade. Mas, so­
bretudo, a religião é um sistema no qual a referência ao divino falta, 
aquele que dá significado está ausente. A única referência do sistema 
religioso é a si próprio. Ele é autopoiético, autocriativo, autocons- 
trutivo.
Como oportunamente relembra Sérgio Belardinelli, ao introdu­
zir a edição italiana de Funktion der Religion de Niklas Luhmann 
[1991: 1], “qual seja propriamente a função da religião dentro da te­
oria dos sistemas é afirmado depois das primeiras linhas do texto: 
‘representar o apresentado’ ” (p. 36). De apresentação falara também 
Schutz [1979: 267-278], remetendo-se à quinta das Meditações car- 
tesianas de Husserl [1960: 120], o qual falava justamente de “apre­
sentação” ou “percepção analógica”, uma modalidade que une, cons­
ciente ou inconscientemente, dois elementos diferentes, mas ligáveis 
entre si (por exemplo, a fumaça e o fogo). A percepção daquilo que 
se vê remete àquilo que não se vê: “a parte frontal, que é percebida na 
imediatidade ou nos é dada na apresentação, apresenta o atrás não 
visto de modo analógico”; portanto, “o termo que se apresenta, ou 
seja, que está presente na percepção imediata, está acoplado com o 
termo apresentado” [Schutz 1979: 268].
A apresentação supõe outra presença, da qual é apenas uma par­
te visível. É justamente este o limite da apresentação: não está em 
grau de representar aquilo ao qual remete. A religião procura fazer 
isso, ou seja, representar aquilo que não é representável; ela perma­
nece dentro de seu sistema mas parece aludir, mais do que outros 
sistemas, ao ambiente externo e, portanto, consegue de algum modo 
captar ao mesmo tempo sistema (interno) e ambiente (externo), ou 
seja, o mundo em seu conjunto.
Além disso, a religião está ligada à contingência da realidade, 
motivo pelo qual o próprio Deus é um elemento contingente, exco- 
gitado para responder às instâncias de redução da complexidade.
Outro ponto que merece atenção: a religião é um sistema dentro 
do qual se colocam aqueles que a ela pertencem como crentes; fora 
da religião há o ambiente dos não crentes, dos indivíduos não-re- 
ligiosos; uns e outros estão presentes no mundo. Ora, a Luhmann 
interessa não o problema de Deus como entidade transcendente, 
com o qual o crente se relaciona, e sim o da adequabilidade funcio­
nal da religião em relação à diferenciação da sociedade complexa 
contemporânea. Conforme a teoria sistêmica de Luhmann, a fun­
ção da religião está apenas em conexão com a relação entre sistema, 
ambiente e mundo. E a metadiferenciação (Ausdifferenzierung) da 
religião, que permanece um sistema parcial autônomo, consiste em 
sua capacidade de autotransformação e de auto-especialização, que 
se realizam não pela utilização de uma de suas funções internas de 
sistema parcial, mas pela recorrência ao sistema social global em 
cujos interesses ela satisfazuma função específica [Luhmann 1991: 
54-55].
Em outras palavras, Luhmann [1991: 24-26] rejeita a idéia de 
uma “função sistêmica integrante”, típica da óptica de Durkheim; ao 
contrário, propõe dar atenção à diferença entre sistema e ambiente 
e aos processos construtivos de sentido. Ele considera que “a análi­
se funcional, diferentemente do proceder definitório categorizante, 
permite, e até exige, uma radicalização dos problemas de referência 
a classes inteiras de equivalentes funcionais. A imprecisão assim ad­
mitida é sem dúvida inevitável, ainda que possa ser evitada verbal­
mente - como quando definimos a religião em referência (ou como 
referência) ao sagrado, ao numinoso, ao superior. Com tais defini­
ções o processo da análise é bloqueado demasiado rapidamente. De­
masiado repentinamente elas se aproximam da experiência religiosa, 
do próprio objeto, de modo a provocar um curto-circuito. A análise 
funcional prefere, ao contrário, um aparato conceituai distanciado, 
que dá valor a conexões para o exterior, para a múltipla utilização 
dos conceitos, para a importação de práticas teóricas de outros âm­
bitos. Em relação aos próprios objetos ela acrescenta com isso a ca­
pacidade de decomposição e de recombinação”.
Para além das afirmações luhmannianas, permanece, em todo 
caso, a dúvida de que a teoria sistêmica possa representar uma espé­
cie de camisa-de-força para a compreensão da religião, inserida em 
uma lógica férrea, que deixa pouco espaço para alternativas no âm­
bito das interpretações sociológicas possíveis. Na verdade, Luhmann 
[1991: 88-89] bem sabe que “um conceito de religião que se remeta 
unicamente a uma determinação funcional é freqüentemente critica­
do por causa de sua indeterminação. De um lado, ele é demasiada­
mente compreensivo, pois nele entram também modos de experiên­
cia vivida e de ação em geral, não considerados religiosos. Por outro 
lado, diz demasiadamente pouco, uma vez que uma indicação fun­
cional abstrata singular não basta para entender a variedade interna 
e os limites de variação da religião. Essas fraquezas da constituição 
funcional do conceito não podem ser eliminadas pela limitação da 
determinação funcional, por meio da indicação do como’ da satisfa­
ção de sua função e, portanto, descrevendo a religião, por exemplo, 
como fé em essências supra-humanas”. As funções a serem analisa­
das, portanto, são muitas, uma vez que “se queira fazer com que na 
teoria da religião se considere que todo sistema social e, portanto, 
também a sociedade deve resolver mais do que um único problema, 
tendo de satisfazer uma multiplicidade de funções. A capacidade de 
desenvolvimento de uma teoria funcional sistêmica e de uma teo­
ria funcional da religião terá como conseqüência conseguir ou não 
impulsionar a análise para além de meros catálogos de funções e de 
disfunções”. Não é secundária a capacidade da religião de enfrentar 
as inseguranças e reformulá-las. Com efeito, “ela interpreta eventos e 
possibilidades, correlacionando-os com a ordenação dotada de sen­
tido e tornando possível o aumento da insegurança tolerável” [Luh­
mann 1991: 88],
U m a p r o p o s t a de d e f in iç ã o m e n o s r e d u t iv a
À luz das diversas propostas, ora mais substantivas ora mais fun­
cionais, torna-se evidente o quanto convém, ao contrário, apoiar-se
sobre definições mais abertas, polivalentes, não passíveis de serem 
inscritas em único horizonte explicativo ou em uma subentendida 
concepção confessional de referência. Em outras palavras, para a 
correta operação sociológica é oportuno e até indispensável prescin­
dir - o quanto possível - das noções experienciais subjetivas, situan­
do-se dentro de um espectro muito mais amplo, pluralista, universa- 
lista. Ou seja, é preciso utilizar um denominador comum que abrace 
o maior número possível de itinerários marcados por uma matriz 
religiosa qualquer. O difícil é, talvez, encontrar os constituintes de 
tal denominador, aplicáveis em momentos e lugares também muito 
diversos entre si. Um primeiro fator poderia ser representado pela 
noção de referência metaempírica na atribuição de significado para 
a existência humana, para a natureza em seu variado modo de se 
articular, aos eventos tanto quotidianos e repetíveis como singulares 
e excepcionais. Essa remitência a razões não experimentáveis dire­
tamente, não verificáveis objetivamente, deve, porém, ser assumida 
dentro dos confins de uma linha tendencial, porque em alguns casos 
os atores sociais religiosos (aqueles que de fato têm experiência do 
fenômeno religioso) podem prescindir de uma transferência de tipo 
metafísico, não verificável, e até considerar como objetiva, quase ma­
terializada, sua dimensão religiosa: pensemos no imanentismo, que 
considera toda questão dentro da única dimensão experiencial, ou 
nas visões de pânico, que atribuem força criadora à natureza.
O caráter metaempírico, portanto, é uma hipótese tão somen­
te orientadora, uma espécie de conceito sensibilizante blumeriano 
[Blumer 1954], isto é, uma definição mínima inicial, em nível de 
orientação, que pode se diluir, adaptando-se às diversas situações 
concretas. Desse modo não se tem um contraste entre nível trans­
cendente e nível real. Substancialmente, é como se a partir de dois 
pontos de vista se olhasse para um mesmo objeto: a inervação de 
uma presença não humana na realidade e o enraizamento de um 
significado explicativo dentro da própria realidade. Uma das duas 
visões não exclui a outra nem a ela se opõe; ao contrário, pode haver 
então uma convergência que chegue ao mesmo resultado: a compre- 
ensão-explicação da vida em chave religiosa.
Todavia, uma contribuição fundamental para a definição daqui­
lo que possamos entender e definir como religião vem também da 
pesquisa de campo, que orienta e verifica, sugere e precisa, precisa e 
põe em discussão os pontos de partida iniciais, junto com as defini­
ções provisórias que aí se encontram correlacionadas.
P r im e ir a
Pa r t e As ORIGENS
1 OS PRESSUPOSTOS
HISTÓRICO-FILOSÓFICOS
O MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO
O início de uma aproximação científica no conhecimento do 
fato religioso é muito lento e parte de longe. Muito provavelmente 
é preciso remontar aoíséc. XVII :e, particularmente, à nova ciência 
galileana, ao racionalismo cartesiano e ao espinozismo, ou seja, à 
necessidade de libertar os estudos religiosos de hipotecas fideístas e 
ideológicas. Piergiorgio Grassi [1984: 54-55] escreve, com razão, que 
“hoje estamos em grau de individuar com maior clareza como o pen­
samento de Spinoza tenha entrado em circulação na cultura inglesa 
do fim do séc. XVII, influenciando o debate político e religioso, par­
ticularmente o da hermenêutica bíblica, que ele havia libertado da 
garantia de autoridade própria da confissão romana e da incidência, 
reivindicada pela confissão protestante, pneumática e sobrenatural 
(lumen super naturale), para restituí-la apenas à ratio.
A origem judaica de Baruch (isto é, Benedito) de Spinoza, filho 
de cônjuges hispano-portugueses, que vive na Holanda de 1632 a 
1677, é um dado que marca também a existência de outros estudio­
sos considerados fundamentais para o desenvolvimento das ciências 
da religião. Por outro lado, ele é submetido a várias críticas. Acusam- 
no de ser um “judeu”, “expulso por sua comunidade”, “morto sem 
assistência do clero e sem professar um Deus reconhecível”, “símbolo 
do ateísmo”, “filósofo ímpio e perigoso para a religião e para a socie­
dade”, mas também “homem simples e discreto”, “ateu virtuoso”, “só­
brio e frugal, obediente às leis de seu país, não desejoso de riquezas,
de impecável moralidade”. Com essas premissas, citadas por Grassi, 
torna-se difícil imaginar uma sorte fácil para o Tractatus theologi- 
co-politicus de Spinoza, muito crítico em relação ao profetismo, ao 
miraculismo e aoteocratismo.
Guardião ciumento de sua autonomia de livre-pensador, rejeita 
a sustentação econômica a ele oferecida por Luís XIV e uma cáte­
dra em Heidelberg, proposta pelo Eleitor Palatino. Luta contra os 
preconceitos que impedem o conhecimento da verdade e adota um 
método dedutivista, à moda de Descartes. Sua inspiração é princi­
palmente de ordem moral (que o aproxima, entre outros, também 
de Durkheim). Sustenta a superioridade do Estado sobre a Igreja. 
No entanto, seu objetivo permanece de qualquer modo, sendo a li­
berdade absoluta de poder expressar seu próprio pensamento. Tal li­
berdade não é desligada de uma ênfase racionalista, que representa a 
base do conhecimento científico, para a descoberta de leis aplicáveis 
em todo tempo e em todo lugar. A verdade é acessível por meio do 
processo dedutivo, que começa com a coleta das idéias auto-eviden- 
tes, claras e distintas, das quais partir para compreender a realidade, 
passando do geral para o particular.
O método histórico-crítico spinoziano deve ser posto em estreita 
relação com as questões próprias da política, dentro da qual a liber­
dade de consciência aparece funcional para o advento de uma socie­
dade diferente, mais aberta a novas soluções, nisso compreendendo 
uma aproximação mais decisivamente secular do fato religioso.
O pensamento de Spinoza tem certamente outras implicações 
mais estritamente filosóficas, mas aqui interessa sua ação de deses- 
truturação, de vanguarda em relação a perspectivas sucessivas, que 
estão mais orientadas em sentido meramente científico-sociológico.
A TEOLOGIA CIVIL RACIOCINADA DA PROVIDÊNCIA EM VlCO
(1668-1744)
Apesar de sua aversão ao cartesianismo (e, portanto, de algum 
modo, às premissas filosóficas remotas de tipo racionalista e empí­
rico, que levaram ao nascimento da sociologia), Giambattista Vico 
contribui de modo relevante para uma mudança de perspectiva na
análise do fenômeno religioso, graças a sua aproximação histórica 
das problemáticas filosóficas, que o leva a individuar na história da 
humanidade um caráter originário da religião e da idéia de Deus, 
uma vez que - como se lê no n° 8 da Ciência Nova - “o mundo civil 
começou em todos os povos com as religiões” [Vico 1983: 222], afir­
mação que depois foi retomada mais à frente no n° 176: “o mundo 
dos povos em todo lugar começou pelas religiões” [Vico 1983: 259].
Para Vico é a história (a ciência nova) que explica a sociedade, a 
natureza, a realidade em geral. A história tem suas leis e seus itinerá- 
rios (da era dos deuses, chamada de “puro ouvir”, passa-se à dos he- 
róis, definida pela “fantasia” e, finalmente, para a dos homens, domi- 
nada pela “razão”). Em outras palavras, “os homens primeiro ouvem 
sem perceber, depois percebem com espírito conturbado e comovi­
do e, finalmente, refletem com mente pura” [Vico 1983: 259].
Toda sociedade mostra as reverberações da era em que se coloca 
e, portanto, ela é de vez em quando teocrática, ou aristocrática, ou 
democrática. Todavia, ao terminar o ciclo (das três fases, ou eras) 
verifica-se uma crise e, portanto, recomeça tudo ex novo, ou seja, 
volta-se (com os ciclos, justamente) à era dos deuses. Dessa forma, 
volta a dominar o mito que resiste até o advento da terceira fase, a 
fase racional do homem.
Esses diversos desenvolvimentos são presididos, para Vico, pela 
providência divina (Leitmotiv de toda a Ciência Nova). Com efeito, a 
história é uma espécie de “teologia civil raciocinada da providência”. 
A essa lógica se deve atribuir a leitura de Vico da “potência da reli­
gião”: “a providência divina deu princípio aos ferozes e violentos de 
chegarem à humanidade e a ela ordenarem as nações, com o desper­
tar nelas uma idéia confusa da divindade, que elas, por sua ignorân­
cia, atribuíram a quem ela não convinha: e assim, com o pavor de tal 
divindade imaginada, começaram a se colocar de novo em alguma 
ordem” [Vico 1983: 253]. Esta é a trigésima primeira das cento e 
quatro “dignidades” ou axiomas ou princípios da Ciência Nova: nela 
defende-se a capacidade da religião de desenvolver ação educativa 
também em condições difíceis, de modo a tornar dóceis e promoto­
res de ordem até povos habituados às armas e às violências. Todavia,
uma antecipação desse postulado já se encontra na sétima “dignida­
de”, que “prova existir uma providência divina e que ela é uma divina 
mente legisladora, a qual, das paixões dos homens, todos apegados 
a suas utilidades privadas, pelas quais viveriam como animais fero­
zes dentro de solidões, delas fez as ordens civis por meio das quais 
vivessem em uma sociedade humana” [Vico 1983: 245-246], Torna- 
se clara, portanto, para além da inspiração religiosa pessoal de tipo 
providencialista, uma conexão precisa entre religião e sociedade, en­
tre crenças religiosas e ordenação civil.
Pasquale Soccio observou a esse respeito que se trata de “uma 
teologia civil raciocinada da providência, ou seja - note-se o adje­
tivo civil - , uma providência divina, sem dúvida, mas que age por 
vias naturais, na formação de uma sabedoria humana vulgar, que 
depois deve se preferir à sabedoria dos tempos cultos; e fundada, ou 
seja, aqui demonstrada com a ordem natural e histórica das coisas e 
dos fatos humanos. Nos primórdios, principalmente, podemos des­
cobrir a obra da providência. Esta, agindo por ‘caminhos naturais 
apenas’, e descobrindo-se como impulso íntimo da razão, guiado 
pelo senso comum, no decorrer dos acontecimentos humanos, re­
gula e dirige os eventos humanos para a justiça e a sociedade e, 
portanto, para a civilização e o bem comum; e, por uma inevitável 
tendência à sociabilidade, também os eventos egoístas que se ilu­
dem ou se propõem seguir caminhos diversos e contrários’ ” [Vico 
1983:214].
A “conclusão” da obra de Vico aparece como um elogio da reli­
gião: “os primeiros governos do mundo tiveram em sua inteira forma 
a religião, sobre a qual unicamente regeu-se o estado das famílias; daí, 
passando para governos civis heróicos ou aristocráticos, essa religião 
deve ter sido sua principal planta firme; depois, antecipando-se aos 
governos populares, a mesma religião serviu de meio para os povos 
aí chegarem; detendo-se, finalmente, nos governos monárquicos, 
essa religião deve ser o escudo dos príncipes. Daí que, perdendo-se 
a religião nosjDovos, nada lhes resta para viver em sociedade; nem 
escudo para se defenderem nem meio para se aconselharem, nem 
base em que se governem, nem forma pela qual eles de fato estejam
no mundo” [Vico 1983: 599], A sucessão costumeira das três fases 
é aqui integrada pela monárquica, quarta e última. Desse modo, a 
centralidade da religião permanece uma constante, como “escudo” 
perene em apoio e garantia da convivência social e, portanto, como 
forma não eliminável na história social dos povos.
Finalmente, Vico não refreia mais sua opção religiosa e proclama 
que “as religiões são aquelas unicamente pelas quais os povos fazem 
obras virtuosas pelos sentidos, que eficazmente movem os homens 
para operá-las”. O que acontece “com a diferença essencial entre a 
nossa cristã, que é verdadeira, e todas as outras, dos outros, falsas: 
que, dentro da nossa, faz virtuosamente operar a divina graça para 
um bem infinito e eterno, o qual não pode cair sob os sentidos e, 
em conseqüência, pelo qual a mente move os sentidos para as ações 
virtuosas”. Daí segue-se que “esta Ciência leva indivisivelmente con­
sigo o estudo da piedade, e que, se não se fosse pio, não se poderia 
verdadeiramente ser sábio” [Vico 1983: 600].
Os sucessivos desenvolvimentos da análise aplicada ao fato reli­
gioso, ao contrário, permitirão amplamente prescindir de uma pie- 
tas religiosa como indispensável para a sabedoria e o conhecimento 
científico. Portanto, a lição de Vico permanece utilizável apenas em 
sua parte de exame diacrônico, que esclarece as ligações estreitasen­
tre a religião e as diversas sociedades, que operam durante os séculos 
pesquisados pela Ciência Nova.
A RELIGIÃO NATURAL DE H u M E (171 1-1776)
O nascimento de uma disciplina científica como a sociologia da 
religião não é um acontecimento repentino. Nos anos que precedem 
tal evento assistimos a uma longa gestação que apresenta caracterís­
ticas alternadas: ora críticas, até impiedosas, em relação à religião e 
particularmente a suas formas organizadas, ora a defesa militante 
em favor desta ou daquela pertinência confessional; mais raramente 
emerge uma intenção mais neutra, ou seja, de mera análise social, 
mesmo que ainda não sociológica.
Os caminhos a seguir para rastrear os pródromos de uma socio­
logia aplicada ao fenômeno religioso podem ser diversos. Uma via
que parece contudo privilegiada é a do desenvolvimento relativo a 
uma filosofia da religião que, embora não seja propriamente a úni­
ca base das ciências sociais da religião, para isso contribui de modo 
não negligenciável. Por outro lado, o parentesco entre filosofia e so­
ciologia é um dado suficientemente levado em conta para requerer 
posteriores justificativas.
Fique bem claro: não queremos sustentar que todos os estudiosos 
apresentados a seguir sejam etiquetáveis como proto-sociólogos da 
religião. Nenhum deles fez declarações em tal sentido e, com efeito, 
nem o podia, dado que era ainda totalmente desconhecido o próprio 
termo que teria indicado a ciência futurível da sociedade. Em todo 
caso, a contribuição de Hume, Feuerbach, Tocqueville, Marx, Berg­
son, aqui escolhidos pela significação histórica e espessura teórica, 
torna-se emblemática de uma atmosfera intelectual que daí a pouco 
teria dado lugar a considerações mais documentadas e a abordagens 
mais rigorosas no plano científico.
As reflexões desses autores sobre a religião tornam-se um pon­
to de referência e também um discernimento. Depois de superar o 
impacto de perspectivas caracterizadas por grandes paixões ideoló­
gicas e por orientações filosóficas contingentes, será então possível 
iniciar um discurso mais sereno, menos estimativo, mais equilibrado 
segundo os cânones do conhecimento experimental. Como é sabido, 
torna-se fundamental depois, no fim do século XIX e nos inícios do 
século XX, a contribuição do positivismo, corrente filosófica à qual 
se deve o surgimento da sociologia.
Para a sociologia da religião, na verdade, o fio vermelho a 
ser seguido é pouco perspícuo, não leva imediata e diretamente a 
Durkheim e a Weber a partir dos filósofos ativos entre os séculos 
XVIII e XIX. As pegadas são menos visíveis e devem ser procuradas 
com muito cuidado, com a finalidade de individuar filões especula­
tivos, atitudes culturais e propensões cognitivas que ponham a aten­
ção sobre o papel da religião na sociedade.
O inglês David Hume (1711-1776) é o primeiro autor a se exa­
minar, por causa de sua análise do fato religioso, delineada essen­
cialmente sobre uma abordagem empírica. Ele fala de uma religião
natural, busca suas raízes num plano histórico-antropológico e re­
conhece sua matriz no instinto, pois os indivíduos humanos seriam 
movidos por tnííatores decisivos: felicidade, miséria e morte. Não 
só o desejo de gozo e prazer, mas também o medo da pobreza extre­
ma e do fim da vida impelem o homem a procurar,explicações que 
a religião fornece de modo satisfatório, criando figuras antropomór- 
ficas _que.se tornam objeto de culto. Este último é um expediente 
salutar para vencer todo tipo de temores.
Já desse primeiro impacto vemos a importância do pensamen­
to de Hume em relação tanto aos desenvolvimentos do empirismo, 
como também de uma teoria mais atualizada do conhecimento apli­
cada à religião e não submetida a hipotecas teológicas; ao contrário, 
limitada à percepção concreta da realidade e, portanto, sem hipóte­
ses sobre aquilo que não se consegue provar empiricamente.
Não é por acaso que no mesmo clima cultural escocês, e edim- 
burguês particularmente, nasça e opere a assim chamada escola 
realista, que tem em Ferguson [1767] e Millar [1771] seus maiores 
expoentes e os antecipadores igualmente das pesquisas sobre a so­
ciedade civil (e aqui a influência de Montesquieu é evidente), com 
uma primeira colocação de hipóteses conceituais referidas a realida­
des sociologicamente importantes como as de grupo, de conflito, de 
propriedade, de “associação” (entendida como cooperação em vista 
de criar formas associativas, também compreendendo as religiosas), 
de divisão do trabalho, de anomia, de poder, ainda que nem sempre 
definidas nos mesmos termos em uso na sociologia atual.
O filósofo, economista e historiador inglês - autor, entre outras 
obras, de uma célebre e monumental história da Inglaterra [Hume 
1754-1762] - coloca-se, portanto, em um contexto que é já ampla­
mente favorável ao primado da abordagem empírica; todavia, se de 
um lado ele rejeita a “hipótese Deus” porque empiricamenteinsus- 
tentável, do outro, reconhece ao sentimento uma função importante 
para orientar a vida, razão pela qual as crenças do homem - embora 
privadas de fundamento racional - parecem legítimas à medida que 
sustentam a ética e a religião, como também outras experiências so- ' 
ciais que dão sentido à vida.
O seu A Treatise ofH uman Nature [Hume 1739-1740], publi­
cado - sem o nome do autor - com um primeiro volume dividido 
em dois livros em 1739 e um segundo volume com um só livro em 
1740, aparece dividido em três partes que falam de conhecimen­
to (primeiro livro), paixões (segundo livro) e ética (terceiro livro), 
discutindo, com certa audácia para a época, sobre questões religio­
sas, às quais se dá um alcance não usual, submetendo-as ao crivo 
da experiência. Mais difusas são depois as considerações de Hume 
em matéria religiosa, já aparecida parcialmente na supracitada obra 
anônima e retomada em Pour Dissertations: The Natural History o f 
Religion, o f the Passions, ofTragedy, o f the Standard ofTaste [Hume 
1969] e principalmente em Dialogues Concerning Natural Religion 
[Hume 1983].
Para Hume, o sentimento está na base da religião, ao passo que a 
experiência se funda sobre percepções, impressões. Mas não faltam 
também as idéias, deriváveis dos dados experienciais e acompanha­
das por emoções, memórias e antecipações. O que permanece in- 
demonstrávej é a existência de Deus. Por isso, tanto o homem de fé 
como o cético compartilha a impossibilidade de explicar a idéia de 
Deus, figura antropomórfica apenas provável e não necessitada. Eis 
por que se depreende certo ceticismo também no crente. A mesma 
atitude crítico-cética investe a plausibilidade dos milagres [Hume 
1758], não explicáveis de modo racional, também porque os pro­
gressos da ciência fazem descobrir sempre novos horizontes e expli­
cações ignoradas anteriormente. O milagre torna-se, portanto, algo 
que tem a ver com a superstição, enquanto o número das testemu­
nhas é freqüentemente reduzido, em geral falta concórdia entre elas 
ao falar do evento prodigioso, e depende muito do desejo do maravi­
lhoso. Principalmente, conforme Hume, “é a experiência apenas que 
confere autoridade ao testemunho humano; e é a própria experiência 
que nos dá certeza das leis da natureza. Quando, portanto, esses dois 
gêneros de experiência estão em contraste, não temos mais a fazer 
senão subtrair uma da outra e aceitar uma opinião, ou em uma ou 
em outra direção, com a certeza que deriva da experiência residual” 
[Hume 1971: 137],
Com base em observações mais próximas de uma perspectiva 
sociológica, Hume salienta as diferenças entre povos que praticam 
o monoteísmo e os que se dedicam mais ao politeísmo. Enquanto 
os primeiros acentuam uma óptica racionalizante, os segundos per­
manecem ligados a uma abordagem menos crítica. Por outro lado, 
devemos ter presente que entre os politeístas temos maior aberturasocial e disponibilidade para aceitar mais facilmente posições diver­
sificadas [Hume 1969: 471. Além disso, no politeísmo a familiarida­
de com a dimensão metafísica é mais praticada, pois as divindades 
parecem muito próximas dos indivíduos humanos.
Hume afirma que não pode existir nenhum conhecimento da­
quilo que não recai sob o controle da experiência. Seu método, su­
ficientemente próximo ao de Newton para a física, aplica-se à reali­
dade social, justamente como se esta fosse quase um âmbito de tipo 
físico. Esse corte analítico conota tanto o supracitado Um tratado da 
natureza humana [Hume 1739-1740] - obra juvenil e anônima que 
remonta à primeira estadia francesa (ocorrida em La Flèche, lugar já 
freqüentado por Descartes) e depois rejeitada - como o que refluiu 
nas obras posteriores (não mais anônimas).
Em síntese, podemos dizer gue Hume não nega_a_B0ssibilidade 
da religião. De resto, como poderia, dado que a experiência - sua 
principal base de referência - mostra plenamente a subsistência da 
fenomenologia religiosa? Sua atitude crítica e cética refere-se, por­
tanto, principalmente à evidência do fato religioso, do qual não pare­
ce possível fornecer nenhuma prova por meio da observação empíri­
ca e da razão. As crenças religiosas são, portanto, sentimentos e não 
conhecimentos rigorosos. Mas o gênero humano está, com efeito, 
mais atento aos movimentos do sentido do que aos da razão.
A preocupação principal de Hume [1751] permanece de natu­
reza moral, apesar de seu ceticismo de fundo. A ligação entre ética 
e religião não é casual. Ele, com efeito, contesta certo debate sobre a 
moral ou o modo fanático de viver a experiência religiosa, mas não 
nega inteiramente nem uma nem outra. Ao contrário, é seu próprio 
espírito morigerado que o leva a desdenhar o miraculismo da reli­
gião e suas eventuais pretensões de racionalidade e de fundamenta­
ção empírica. A sensibilidade de Hume em relação à moral parece 
muito mais antecipar alguma preocupação semelhante que podemos 
encontrar também em Durkheim, mais de um século depois. Não é 
por acaso que Hume, justamente como Durkheim, se interesse pela 
problemática do suicídio [Hume 1777], em um ensaio já pronto em 
1757, mas publicado postumamente vinte anos depois.
A pecha de filósofo ateu impede que o filósofo empirista esco­
cês obtenha uma cátedra universitária. Em 1761, a Igreja Católica 
põe seus escritos no índice dos livros proibidos (Index librorum pro- 
hibitorum). Estudioso muito controvertido em seu tempo e amigo 
influente do economista Adam Smith, mantém entre outras coisas 
uma célebre disputa com Rousseau (ajudado por Hume a se refu­
giar em Staffordshire, para fugir de seus perseguidores franceses, 
que o consideravam revolucionário por causa de suas idéias morais 
igualitárias e libertárias). Embora antimetafísico por antonomásia, o 
filósofo escocês conta entre seus freqüentadores diversos membros 
do clero. Permanece descrente até o último instante, principalmente 
porque não crê na imortalidade da alma, como escreve em um tra­
balho seu, editado porém apenas depois de sua morte [Hume 1777]. 
Apesar disso, seus compatriotas o chamam de “São David”.
Seu indutivismo empírico não é estranho ao desenvolvimento 
do pensamento positivista de Auguste Comte, o assim chamado pai 
da sociologia, e antecipa a opção científica desenvolvida por Peter 
Berger [1984: 114] como ateísmo metodológico, que deriva da ne­
cessidade de prescindir de tudo o que não é empiricamente docu- 
mentável. Por isso, parece singular que o pensamento de Hume não 
tenha recebido até agora muita atenção por parte dos historiadores 
do pensamento sociológico, das ciências sociais - salvo alguma me­
ritória exceção [Filoramo, Prandi 1991: 65-67] - e principalmente 
por parte dos filósofos da religião. Estes últimos, em rara harmonia 
acadêmica, parecem tef formulado quase unanimemente - exceto 
Bucaro [1988: 50-57] e Olivetti [1992:226-228] - um julgamento de 
damnatio memoriae, condenação ao esquecimento para o estudioso 
de Edimburgo. Não podemos, portanto, deixar de compartilhar o 
que afirma Olivetti [1992: 225-226]: “a filosofia da religião, quando
nasceu e se desenvolveu como disciplina filosófica específica, con­
figurou-se precisa e essencialmente como uma teoria da socieda­
de - ou da comunidade - religiosa e/ou como teoria da sociedade 
überhaupt”, ou seja, em geral. Essa dupla característica sociorreli- 
giosa em particular e social em geral é posteriormente confirmada 
justamente com referência específica a Hume: “a filosofia da religião 
(e o próprio nome ‘filosofia da religião’) nasce historicamente e se 
constitui como disciplina depois da crise da metafísica ontológica. 
Isso é verdade não só para a tradição ‘continental’, kantiana e pós- 
kantiana, mas também e ainda mais para a tradição empirista anglo- 
saxã (pensemos, por exemplo, nos Diálogos sobre a religião natural 
de Hume)”.
Além de Hume, outro filósofo deve ser mencionado por seu in­
teresse pela dimensão religiosa: Friedrich Daniel F.rnst Schleierma­
cher. pastor e pregador protestante, docente de teologia dogmática 
na universidade de Berlim, nascido em 1768 e falecido em 1834. Ele
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considera a religião essencialmente como um “sentimento de depen- 
dência absoluta” do ser finito em relação ao infinito, entendido como 
realidade do mundo ou também como Deus. O “sentimento” ou “au- 
toconsciência absoluta” é a consciência religiosa de um ser divino. 
Esse Deus é o todo. A perspectiva, portanto, é spinoziana e panteís- 
ta, porque atribui à religião uma autonomia absoluta em relação a 
outras esferas da atividade humana e, portanto, também da forma 
histórica das igrejas.
A sociedade e a própria religião aparecem como um conjunto de 
relações de indivíduos em desenvolvimento que, com suas particula­
ridades, encontram seu lugar no âmbito do infinito. A religião, por­
tanto, não deve ser levada em consideração, nem em chave de mo­
ralidade nem de racionalidade científica. Prevalece definitivamente 
o sentimento religioso, bem distinto da institucionalização da reli­
gião. Do fetichismo primitivo ao politeísmo da era clássica, e depois 
até o cristianismo, a religião foi se aperfeiçoando gradualmente em 
termos de experiência subjetiva interior. E da experiência religiosa, 
do sentimento (Gefühl) religioso se desenvolve uma “piedosa auto- 
consciência” (e uma comunicação) que gera “piedosas comunida­
des”, entre as quais a igreja cristã. “Era religião a dos antigos, quando, 
aniquilando os limites do tempo e do espaço, eles consideravam toda 
forma original de vida, em todo o mundo, como a obra e o reino de 
um ser onipresente: eles haviam percebido na sua unidade um modo 
original de agir do Universo e indicavam sua intuição com tal nome 
de ser onipresente... Era religião, quando se elevavam para além da 
dura e férrea era do mundo, cheio de cisões e de desigualdades, e 
procuravam no Olimpo, entre a bem-aventurada vida dos deuses, a 
era de ouro... Considerar todos os acontecimentos do mundo como 
ações de um Deus é religião, porque desse modo se exprime sua re­
lação com um Todo infinito” [Schleiermacher 1799: II].
Conforme a óptica de Schleiermacher, as doutrinas e os dog­
mas têm uma importância secundária, como se lê em sua obra mais 
conhecida, publicada anonimamente em 1799 e intitulada Sobre a 
religião. Discursos dirigidos às pessoas cultas entre aqueles que a des­
prezam (mas não devemos deixar de lado sua outra obra, chamada A 
f é cristã, que foi publicada em 1821 e evidencia ao máximo o método 
indutivo aplicado à experiência religiosa cristã: é a partir da “piedosa 
autoconsciência” imediata que se passa para soluções institucionais). 
Na verdade, a própria instituição religiosa vem apenas depois do sen­
timento religioso, depois da experiência, termo este preferido tam­
bém por Peter Berger [1987:135], segundo o qual “uma das críticas 
fundamentais feitas contra Schleiermacher foi que seu método era o 
antecipador do de Feuerbach. Seria mais justo dizer que o método de 
Schleiermacher é o oposto do de Feuerbach. Este último (...) procu­
rou reduzir o infinito ao finito, traduzir a teologia em antropologia. 
Ao contrário, Schleiermacher, em seu fazer teologia, utiliza apenas 
um ponto de partida antropológico, e vê o finito penetrado pelas 
manifestações do infinito. Em sua discussão sobre os milagres (um 
momento de delicada sensibilidade no ambiente intelectual saturado 
de racionalismo iluminista), ele argumenta que o mundo está cheio 
deles, no sentido de sinais e presságios do infinito até nos eventos 
mais naturais e comuns” [Berger 1987:136].
De Schleiermacher e do conceito de “sentimento de dependên­
cia absoluta” toma sucessivamente impulso para sua concepção do
sagrado Rudolf Otto [1984]. Afim ao método indutivo de Schleier­
macher é também o projeto analítico de William James [1945].
A ESSÊNCIA ANTROPOLÓGICA DA RELIGIÃO EM FEUERBACH
(1804-1872)
Coloca-se em geral sobre posições atéias (por ele próprio ne­
gadas, porém) também Ludwig Andreas Feuerbach, filósofo bávaro 
de origem, que depois dos estudos teológicos em Heidelberg passa 
a freqüentar cursos de filosofia em Berlim, onde é aluno de Hegel. 
Também Feuerbach pensa no culto como expediente projetivo das 
qualidades humanas, motivo pelo qual a própria Trindade se coli­
garia a características igualmente típicas do gênero humano: razão, 
vontade e amor. Sua teologia humanista o leva a sustentar que justa­
mente por meio do ateísmo a humanidade torna-se objeto de culto 
(que ultrapassa as imperfeições do indivíduo), tornando praticável 
uma “Religião da Humanidade” (projetada também por Auguste 
Comte).
Da mesma forma que Hume, Feuerbach [1830] escreve um en­
saio anônimo, Pensamentos sobre a morte e sobre a imortalidade, em 
que mostra não crer na imortalidade (o que o faz perder o magisté­
rio universitário). Publica depois os ensaios Sobre a filosofia e o cris­
tianismo [Feuerbach 1839] e A essência do cristianismo [Feuerbach 
1960], argumentando no primeiro sobre o desaparecimento do cris­
tianismo, que se teria reduzido a mera idéia. No segundo, limita a 
religião apenas à*consciência doinfinito^e, mais uma vez, justamen- 
te como pai® Hume^Deus seria apenas uma projeção do homem 
(esta é a essência antropológica da religião, contraposta à teológica 
que, ao contrário, põe Deus fora da realidade terrena, tornando-o 
objeto de um materialismo religioso, constituído por sacramentos, 
devoções e crenças na revelação); dessa forma, confirma-se que o 
Deus da bondade, o Deus do amor, o Deus dos princípios éticos é 
uma “ilusão”, que corresponde de fato a equivalentes necessidades 
da natureza humana.
O projecionismo religioso e humanocêntrico de Feuerbach leva 
a uma auto-interpretação humana do fato religioso, a uma antropo­
logia materialista e a uma rejeição de toda forma de mito e, portanto, 
a uma demitização da religião por meio da humanização de Deus.
H Para Feuerbach não é o homem à imagem de Deus, mas é este últi- 
mo que resulta uma sombra projetada pelo próprio homem, que se 
“auto-aliena” no absoluto da divindade. A religião, e a cristã em par­
ticular, é a relação do homem com sua essência. Deus, pois, é fruto 
da mesma essência humana, que é elevada ao plano metafísico e se 
torna objeto de devoção. O divino é, de qualquer modo, profunda e 
essencialmente humano. O homem natural (ecoa aqui a religião na­
tural de Hume) se auto-realiza na relação com outro homem ou com 
Deus, em uma forma dialógica gratificante, de tipo igualitário, que é 
retomada, no lado judaico, em 1923, pelo filósofo religioso e social 
Martin Buber em seu conhecido ensaio lch und Du (Eu e Tu) e, no 
lado protestante, pelo teólogo-pastor Karl Barth (fautor do antina- 
zismo, inspirador de Dietrich Bonhoeffer e teórico do ecumenismo) 
com a publicação, em 1919, de sua obra Rõmerbrief (Epístola aos Ro­
manos) e de outras seguintes, sobre as relações Deus-mundo.
A respeito do papel central desenvolvido por esse tipo de dialéti­
ca, merece ser citada uma avaliação feita por Buber [1952]: “Feuerba­
ch introduziu a descoberta do ‘Tu, que foi definida como o empreen­
dimento copernicano’ do pensamento moderno e um ‘acontecimento 
fundamental’, igualmente digno de conseqüências como a descoberta 
do Eu por parte do idealismo, e que deve necessariamente levar a um 
segundo novo ponto de partida do pensamento europeu, superior ao 
primeiro impulso cartesiano da filosofia moderna. Também a mim 
deu o impulso determinante já desde os primeiros anos da juventude” 
[Buber 1952: 62, citado por Gollwitzer 1970: 61-62, nota 34]. É ape­
nas o caso de acenar para o fato de que, se ao método experimental 
de Descarte^se pode fazer remontar de algum modo o delineamento 
científico, em campo sociológico*nãojestá forade lugar lançar a hipó- 
tese de que à antropologia de Feuerbach deva-se atribuir certo papel 
para o desenvolvimento de uma abordagem não mais apenas metafí­
sica na análise da fenomenologia religiosa.
Os temas de Feuerbach, embora criticados, representam uma 
base fértil, portadora de desenvolvimentos decisivos. Com razão se
afirma que “Feuerbach funda ao mesmo tempo a centralidade do 
homem como indivíduo e como gênero, e que insere uma dinâmi­
ca de pensamento que contribui para todas as ciências, no quadro 
de uma revolução antropológica em sentido imanentista” [Bucaro 
1988:62].
Devemos dizer também que Feuerbach está à procura de uma 
composição do conflito entre razão e sensação (com clara preferência 
por esta última). Mas, ao mesmo tempo, ele convida a passar da prece 
para o trabalho, da relação com Deus à relação com os outros seres 
humanos, da tensão para o outro mundo para a tensão na direção do 
mundo presente?^, essência do homem não está em Deus e na reli- 
gião, e sim no próprio homem. Deus e a religião são uma alienação, 
um sair do homem para fora de si mesmo. É preciso, ao contrário, 
voltar ao homem, antropologizando a religião e Deus, por meio da 
consciência de que se trata de projeções humanas. Negando a Deus e 
à religião, se afirma o homem. E. portanto, o homem se torna Deus, 
não o contrário. O humanismo torna-se. então, uma forma de ateísmo.
Expoente da assim chamada esquerda hegeliana, Feuerbach re­
jeita a quase-religião, representada pela filosofia idealista de Hegel (o 
qual põe a essência das coisas na idéia, em função da qual existe toda 
a matéria), e inclina-se para um tipo de materialismo mais realista e 
sensista, que abre o caminho para Marx e Engels, mas igualmente a 
uma forte crítica - escrita em 1845, mas publicada postumamente, 
com o título Teses sobre Feuerbach - de Karl Marx [1888], que o acu­
sa de escassa sensibilidade “revolucionária” (I tese), enquanto teria 
distinguido entre teoria e prática, entre pensamento e atividade hu­
mana sensitiva, negligenciando passar da interpretação do mundo 
para sua mudança (XI tese). Mas, devemos salientar principalmente 
o que é dito por Marx em sua IV tese: “Feuerbach parte do fato da 
auto-alienação religiosa, da duplicação do mundo em mundo reli­
gioso, imaginado, e mundo real. Seu trabalho consiste em resolver 
o mundo religioso em sua base mundana. Foge-lhe que, realizado 
esse trabalho, resta ainda a fazer a coisa principal. O fato, justamente, 
de que a base mundana separa-se de si mesma e se fixa nas nuvens 
como um reino independente, que se pode explicar apenas com a
autocisãp e com a contradição dessa base mundana consigo mesma. 
Esta deve, portanto, primeiro ser compreendida em sua contradi­
ção e depois revolucionada praticamente por meio da eliminação da 
contradição”.
Ainda mais explícitas, para os fins de uma perspectiva socioló­
gica, são as teses VI e VII: “Feuerbach resolveo ser religioso no ser 
humano. Mas o ser humano não é uma abstração imanente no indi­
víduo particular. Na sua realidade, ele é o conjunto das relações so­
ciais”. Em poucas palavras, Feuerbach não captaria, segundo Marx, 
a dimensão do indivíduo como ser social e o isolaria em seu sen- 
timento religioso subjetivo compartilhado, como um fato natural, 
por todos os outros indivíduos: “Feuerbach, portanto, não vê que o 
próprio ‘sentimento religioso’ é um produto social e que o indivíduo 
abstrato, que ele analisa, pertence na realidade a uma determinada 
forma social”. Sem dúvida^Marx não é um sociólogo, mas suas re- 
flexões - ao menos nessas passagens de suas Teses sobre Feuerbach
- têm uma valência sociológica.
" Ó p io d o p o v o " e " s u s p iro d a c r ia t u r a o p r im id a " 
p a ra M a r x (1818-1883)
Karl Marx, nascido em uma família alemã de origem judaica, 
que depois se converteu ao luteranismo, não oferece, como em geral 
se acredita, uma visão monovalente da religião. Ele escreveu [Marx 
1960: 425] que “a miséria religiosa é, de certo modo, a expressão da 
miséria real e, de outro modo, o protesto contra a miséria real”. A 
solução “miserável” da religião derivaria em particular das contin­
gências de miséria material, mas teria também a função de tornar 
manifesta a não aceitação do estado de fato e abriria o caminho para 
a rebelião, para a revolta contra toda forma de escravidão. Com efei­
to, “a religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um 
mundo sem coração, o espírito de situações em que o espírito está 
ausente. Ela é o ópio dos povos”. O anseio religioso é, portanto, tam­
bém uma aspiração social para se libertar da opressão, para superar 
as condições carentes de “espírito” porque extremamente necessita- 
da^No entanto, é a própria religião que impediria um passo poste;
rior, o do protesto (como impulso para jt mudança) para uma verda- 
deira e própria ação dejsubversão do status quo. Em poucas palavras, 
para Marx a religião não é suficientemente operativa, permanecendo 
no limiar da revolução, sem jamais atravessá-lo.
Devemos ter bem presente que em Marx as relações sociais (ne­
las compreendendo as relações de produção) são fundamentais, ex­
plicam muitas dinâmicas, permitem ao mesmo tempo a mudança e 
a conservação do existente. Ora, os diversos processos de alienação 
do objeto (o produto do trabalho que se torna estranho ao operário), 
de auto-alienação (motivo pelo qual quem trabalha não se realiza 
em sua atividade produtiva, perdendo simultaneamente sua ligação 
com a humanidade) e de alienação social (como conseqüência não 
só da estranheza recíproca entre os seres sociais, mas também pela 
pertença do produto do trabalho a outro sujeito que dele se apropria 
e dele tira proveito) se reproduziriam também na religião. Com efei­
to, “quanto mais o homem põe em Deus, menos ele conserva em si 
mesmo” [Marx, Engels 1974: 2981.
Oportunamente, Bucaro [1988: 67] nota, a respeito, que “em 
nível de tipologia expressiva, Marx se serviu do conceito feuerba- 
chiano de alienação religiosa. Quanto aos conteúdos, ele inverte o 
conjunto do pensamento feuerbachiano, remetendo o todo à aliena­
ção da relação do operário com o produto de seu trabalho, e conside­
rando essa alienação a fundamental, que dá origem a todas as outras 
formas de alienação. A alienação religiosa serviu para Marx apenas 
como tipologia-base da alienação fundamental, a do objeto do ope- 
rário em relação a quem o produziu. Aalienação religiosa, portanto, 
não é a primeira nem a fundamental para Marx. Aqui reside a pro­
funda diferença do pensamento de Marx com toda a filosofia prece­
dente, incluindo Feuerbach. A religião não é o resultado dos desejos 
alcançados, embora sempre sonhados pelo homem; ela nasce como 
produto da inversão total em que a sociedade se encontra. De tal 
inversão a religião torna-se a consciência teórica”. A religião, porém, 
tem sobretudo um caráter ideológico, principalmente à medida que 
contribui para a manutenção da sociedade capitalista. Enquanto sis- 
tema de idéias, a religião corresponde aos interesses de uma classe
específica ou de classes específicas (as dominantes). E então ela se 
torna uma ilusão que de algum modo impede de agir em chave anti- 
burguesa e anticapitalista.
Como teoria geral do mundo, a religião não é, porém, apenas 
“ópio do povo” e “exploração de classe”, enquanto ela é também “sa­
bedoria do outro mundo”, mas também forma particular do saber, 
embora privada de liberdade e de racionalidade.
As próprias referências à divindade são o fruto de uma constru- 
ção social, da realidade. “Este Estado, esta sociedade, produzem a re­
ligião, uma consciência invertida do mundo, justamente porque eles 
são um mundo invertido” [Marx 1965: 125]. Esta citação, todavia, 
propõe novamente a velha questão: a da confusão entre análise teóri­
ca da religião e sua utilização em chave política. Marcello Fedele, em 
sua introdução a uma antologia de escritos de Marx e Engels [1973: 
42] sobre a religião, recorda justamente que, com freqüência, ao re­
tomar a discussão sobre marxismo e cristianismo, se “substituiu o 
problema lógico-sociológico da natureza da ideologia religiosa, pela 
perspectiva parcial e limitada da análise histórico-política dos con­
teúdos sociais do cristianismo e de sua doutrina”.
O corte analítico de Marx parece, na verdade, redutivo em rela­
ção ao proposto por Feuerbach, que pensava, ao contrário, em uma 
perspectiva global do homem, em sua totalidade, não limitada à úni­
ca dimensão socioeconômica. Nesse sentido, explica-se no filósofo 
de Trier a transição do objetivo cognoscitivo da realidade religiosa 
para a superação dela, ou melhor, para seu desaparecimento como 
condição para o advento de uma sociedade sem classes em que nem 
sequer o ateísmo (além do teísmo) tem razão de ser. De resto, a ne­
gação de Deus não é necessária em uma situação governada pelo so­
cialismo baseado sobre a “consciência positiva” que o homem tem de 
si. Em poucas palavras, o objetivo indicado por Marx é a fundação 
de uma “verdade do aquém”, que não leve em conta o “céu”, a não ser 
como parte da natureza.
A própria felicidade deriva da supressão da religião, uma vez que 
assim se eliminam as ilusões fantásticas que impedem que a essência 
humana possua a “verdadeira realidade”.
'* Lutar contra a religião é, para Marx, fundamental, pois significa 
lutar contra a realidade dada. Dito em termos mais explícitos, “a crí­
tica da religião elimina toda ilusão para o homem, a fim de que ele 
pense, aja, forme sua realidade como um homem sem ilusões, que 
alcançou a idade da razão, para que gravite em torno de si mesmo e, 
por isso, em torno de seu verdadeiro solTA religião não é mais que o 
sol ilusório, que se move em torno do homem, enquanto este não se 
mover em torno de si mesmo” [Marx 1960: 425].
A crítica da religião é um fio condutor não eliminável de todo 
o percurso seguido por Marx (tanto jovem como adulto). Disso é 
bem consciente e incansável sustentador (à parte, sem dúvida, mas 
atento e muito documentado) Luciano Parinetto [1976: 73]: “enten­
der o arcano da alienação religiosa é, com efeito, a propedêutica para 
entender o arcano da form a de mercadoria. Quem é treinado nas su­
tis mistificações da religião está em grau de captar também as do 
capital e delas se precaver. Não é bom crítico do capital quem não é 
bom crítico da religião. A analogia entre fetichismo das mercadorias 
e religião torna-se ainda mais eficaz quando se trata de perceber que 
também o objeto religioso tem uma aparência de independência em 
relação a seu produtor humano, justamente como as mercadorias o 
têm em relação aos trabalhadores”.
O filão de uma sociologia marxista da religião não teve particu­
lar consistência e pregnância (como, ao contrário, é verificável em 
outros ramos especializados,do econômico ao político), com exce­
ção da produção de Otto Maduro [1979],
2 A RELIGIÃO UNIVERSAL
de C o m te (1798- 1857)
Secretário de Saint-Simon (socialista e propugnador de um novo 
cristianismo, fundado sobre a ética da fraternidade), inventor do ter­
mo “sociologia” e expoente máximo do positivismo aplicado à análi­
se social, o filósofo francês Auguste Comte põe toda a sua confiança 
na capacidade da ciência de resolver os problemas da humanidade 
(definida como “Grande Ser”). Ele próprio se auto-proclama grão- 
sacerdote da ciência, a qual caracteriza o último dos “três estágios” 
da evolução humana; depois do “teológico”, com explicações que re­
metem aos deuses, e do “metafísico”, baseado sobre abstrações puras, 
chega, com efeito, o estágio “positivo”, que observa e correlaciona os 
fatos concretos. Será finalmente a “filosofia positiva” que coordena­
rá as diversas ciências, entre as quais a sociologia, a disciplina mais 
complexa, da qual se exige a função de presidir ao desenvolvimento 
da sociedade.
“Nem a filosofia metafísica, que consagra espontaneamente o 
egoísmo, nem a filosofia teológica, que subordina a vida real a um 
destino quimérico, puderam jamais fazer diretamente emergir o pon­
to de vista social, como o fará, por sua natureza, essa nova filosofia, 
que o toma necessariamente como base universal da sistematização 
final. Esses dois regimes precedentes eram tão pouco adequados para 
permitir o desenvolvimento de sentimentos puramente benévolos 
e plenamente desinteressados, que freqüentemente levaram a negar 
dogmaticamente sua existência, um com base em inúteis sutilezas es- 
colásticas, o outro sob a inevitável influência das contínuas preocupa­
ções relativas à salvação pessoal” [Comte 1967: II, 723-724].
Embriagado pela idéia de uma “Religião da Humanidade”, 
Comte funda seu culto trinitário baseado justamente sobre o “Gran­
de Ser” (o gênero humano), sobre o “Grande Fetiche” (a terra) e so­
bre o “Grande Meio” (o espaço). Além disso, ele põe no centro de 
sua atividade intelectual o altruísmo (termo por ele inventado), que 
justamente na religião da humanidade encontra sua celebração e rea­
lização. Os conteúdos essenciais dessa religião universal são enun­
ciados no Catéchisme positiviste [Comte 1852], Todavia, permane­
cem fundamentais para o conhecimento de Comte o célebre Cours 
de philosophie positive [Comte 1967], e depois o Système de politique 
positive, ou Traité de sociologie instituant la religion de Vhumanité 
[Comte 1851-1854].
Para Comte a humanidade é constituída por todas as gerações, 
tanto passadas, como presentes e também futuras, que contribuem 
para a ordem universal, convergindo com um impulso generoso no 
“viver para os outros”.
O próprio positivismo se torna uma religião, não só a “verdadei­
ra”, mas também “completa e real”, bem diferente do teologismo dos 
inícios e do metafisicismo do estágio intermediário.
Raymond Aron, que continua mais crítico em relação ao pen­
samento comtiano é, contudo, induzido a admitir que “a religião de 
Auguste Comte que, como se sabe, não obteve grande sucesso mun­
dano, é menos absurda do que em geral se acredita. Em todo caso, 
parece-me de longe mais elevada do que muitas outras concepções 
religiosas ou semi-religiosas que outros sociólogos, deliberadamente 
ou não, difundiram’. Portanto, “se for necessário extrair uma religião 
da sociologia, coisa que pessoalmente evitarei fazer, a única que a 
rigor me parece concebível é. afinal de contas, a de Comte”. De resto, 
“a que Auguste Comte quer que amemos não é a hodierna sociedade 
francesa, nem a sociedade russa de amanhã, nem a americana de 
depois de amanhã, mas a excelência de que foram capazes alguns 
homens e para a qual todos os homens devem se elevar” [Aron 1981: 
131}. Esses homens excelentes são os santos da religião universal 
comtiana, venerados pela filosofia positivista na capela parisiense da 
Rue Payenne 5 (recentemente reaberta para o público). Aron nota
ainda a respeito que “o ‘Grande Ser’ não é a totalidade dos homens, 
mas o conjunto daqueles que sobrevivem em seus descendentes, 
porque viveram de modo a deixar uma obra ou um exemplo” [Aron 
1981: 130-131],
A inspiração comtiana para a humanidade é, muito provavel­
mente, de derivação saint-simoniana, na qual se considera que já nas 
Lettres dun habitant de Genève à ses contemporaines de 1802-1803 
se lê a respeito de uma “religião da ciência”, e particularmente da 
religião “como uma invenção humana, como a única instituição po­
lítica que tende por natureza a dar à humanidade uma organização 
geral” [Saint-Simon 1975: 139]. Comte, portanto, a exemplo de seu 
inspirador, persegue um ideal de humanidade organizada, regulada 
por um fator unificante de grande porte como a religião, também 
amamentadora de conotações sociopolíticas, à medida que facilita e 
melhora a convivência. Seu solidarismo como objetivo de fundo em 
resposta à crise de sua época antecipa de algum modo as instâncias 
durkheimianas que mais tarde porão em campo abordagens muito 
semelhantes. Podemos dizer que o tema da ordem reúne os dois so­
ciólogos franceses, mas, no fundo, podemos divisar também a figura 
de Saint-Simon.
É talvez sustentável que haja uma “religiosidade” tendencial na 
sociologia positivista de Comte. Isso se manifesta de modo explícito 
e sem provocar conflito com sua opção principal a favor da obser­
vação dos fatos. Sua “física social” (depois chamada de “sociologia”) 
postula - capaz como ele é pela sua formação politécnica - o rigor da 
ciência na análise dos fenômenos, porém trata a religião de modo in­
teiramente peculiar: ele a considera em suas longínquas origens his­
tóricas (no estágio teológico), refuta suas formulações mais abstratas 
(no estágio metafísico) e conclui a obra com um armazenamento 
das soluções tradicionais do cristianismo e do catolicismo, julgadas 
como inadequadas para fazer melhorar os destinos da humanidade, 
que devem ser confiados, ao contrário, à sua filosofia positivista e 
particularmente à “Religião da Humanidade”.
Tal aproximação histórico-comparativa não se contenta com os 
fatos, mas procura também leis que devem ser verificadas por meio
do típico dedutivismo hipotético, tirado da física. Disso resulta, en­
tre outras coisas, um quadro diacrônico amplo e pontual, que atesta 
como no passado as ciências libertaram a humanidade de hipote­
cas, primeiro de tipo teológico e depois metafísico, fazendo o gênero 
humano progredir de um nível infantil para um grau adulto mais 
consciente. As próprias ciências, por outro lado, se tornam úteis para 
uma reconstrução de teorias sociais em grau de representar a “base 
espiritual permanente da ordem social”.
A superposição entre nível científico e nível espiritual é freqüen­
te em Comte, como bem se percebe tanto em sua relação com Clotil- 
de de Vaux (sua musa inspiradora, “santa companheira”, “sacerdotisa 
da Humanidade”) como na realização da “capela da Humanidade” 
junto à casa de Clotilde. Sobre a fachada do edifício encontra-se 
uma inscrição que já havia ilustrado as capas de ensaios publicados 
por Comte (veja-se, por exemplo, o volume, citado acima, com o 
título Catéchismepositiviste [Comte 1852], que traz: “L’ Amour pour 
príncipe; L’Ordre pour base, et Le Progrès pour but”): “Religião da 
Humanidade. O Amor como princípio; a Ordem como base, e o Pro­
gresso como objetivo”
A capela, na verdade, remonta a 1900 e foi desejada por um 
grupo de positivistas. Hoje nela tem sede uma associação cultural, 
denominada Apostolat Positiviste. Quase tudo é retomado da lingua­
gem eclesiástica. Para as datações, é usado um “calendário do positi­
vismo religioso” (dividido em 13 meses, cada um com 28 dias), que 
no lugar dos nomes costumeiros (dos meses e também dos dias) in­
dica os de personagens ilustres, como Aristóteles ou Gutenberg. Na 
capela

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