Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
. 167 Concepções de leitura e práticas escolares: de código a discurso Clarissa Menezes Jordão Juliana da Silva Passos Letícia Largura Martins 1. Introdução O presente texto tem como objeto os resultados finais da pesquisa realizada pelo grupo Identidade e Leitura1, bem como os pressupostos teóricos que embasaram as discussões do grupo e permearam todo o processo de pesquisa e as análises realizadas a partir das entrevistas feitas com os participantes. Nosso grupo de pesquisa iniciou seus trabalhos com a proposta de investigar as concepções de leitura e as posições de leitor assumidas por alunos de língua e literaturas de língua inglesa, assim como aquelas presentes nas diferentes abordagens de ensino de língua inglesa como língua estrangeira e da crítica literária do século XX. Pretendemos com isso poder contribuir para um melhor entendimento da leitura em língua estrangeira, tanto em seus aspectos processuais em sala de aula quanto em relação ao desenvolvimento de teorias sobre a leitura enquanto atividade social. O grupo consistiu de graduandas do Curso de Letras Português - Inglês da Universidade Federal do Paraná, de professoras de inglês no ensino público e do curso de Letras também da UFPR. A pesquisa geral do grupo dividiu-se em três fases: a primeira tratou do embasamento teórico, a segunda consistiu da parte empírica da pesquisa, e a terceira realiza uma análise dos dados obtidos na segunda fase, assim como a elaboração do presente relato. A primeira parte, que se deu de maio de 2003 a julho de 2004, envolveu uma revisão Cadernos de Letras - n. 24 - p. 167-180 - mai. 2008 168 . bibliográfica com o objetivo de selecionar textos relevantes às discussões sobre o processo de leitura e construção de conhecimento, acompanhados de textos sobre diferentes abordagens de pesquisa, em especial aquelas que tratam do estudo da etnografia não apenas enquanto método e instrumento de pesquisa, mas ainda como uma determinada perspectiva filosófica de construção de conhecimento científico. As leituras selecionadas e discutidas pelo grupo relacionam-se com as concepções de leitor e leitura embasadas em Jouve (2002) e Foucambert (1994), sendo que o último aborda questões relativas também ao ensino de leitura. A segunda fase de nossa pesquisa de caráter interpretativo e base etnográfica foi realizado a partir do trabalho de Clifford (1986). Foram observados cerca de quatro encontros em um grupo da disciplina de Literatura de Língua Inglesa e em quatro grupos de disciplinas de Língua Inglesa. As observações ocorreram nos cursos de Letras da UFPR, PUC-PR, Faculdade de Filosofia e Letras de União da Vitória e Universidade Tuiuti do Paraná. Os professores posteriormente entrevistados eram os mesmos que ministravam as disciplinas e os alunos constituíram um grupo de voluntários que também cursavam as disciplinas, tendo, todos eles, já cursado metade do curso de Letras ou mais. As entrevistas que se seguiram foram registradas por meio de gravações de áudio ou anotações por parte dos entrevistadores. Um registro uniforme em áudio, bem como sua transcrição, não foi possível devido a problemas técnicos e não-autorização da gravação por parte de todos os entrevistados. Foram discutidas ainda as relações de poder que controlam os discursos, a pesquisa feminista em educação e a etnografia como perspectiva filosófica, através de textos de pesquisadores como Foucault (2001, 2002), Johnston & Nicholls (1996), Lather (1991), Clifford (1986) e Tyler (1986), respectivamente. Como anteriormente mencionado, o presente texto tem como objetivo apresentar as conclusões (inconclusas) a que chegamos através das leituras e discussões por nós feitas e também através dos resultados da pesquisa de cunho etnográfico. Assim, este texto apresentará os conceitos de leitura, leitor e autor estudados (termos de referência para as reflexões do grupo), com ênfase nas relações entre leitura e poder, saber e legitimação, bem como na relação que os três elementos de referência estabelecem entre si, com o processo de leitura em geral e . 169 também com sua aplicação em salas de aula de língua e literatura de língua inglesa. Escolhemos apresentar esta discussão com base nas duas principais subjetividades envolvidas na leitura, ou seja, a do autor e a do leitor, acompanhadas por nossas reflexões quanto ao posicionamento da leitura e de seu ensino em nossa sociedade, e a partir de tais reflexões, teceremos relações com as aulas observadas e as entrevistas que fizemos com os alunos e professores do curso de graduação em Letras na UFPR. 2. O leitor e a leitura Segundo Foucambert (1994), a partir da Revolução Industrial assistimos a uma crescente popularização da escola e redução no analfabetismo, mas nem por isso houve uma significativa popularização da leitura. Isto porque o que a escola tem feito ao alfabetizar pessoas tem se limitado à transmissão de técnicas de decifração, o que não contempla a necessidade de socialização e de contextualização do saber produzido e distribuído de forma desigual nas sociedades, dentro e fora do ambiente escolar. Para conceituar a leitura, é preciso primeiro evidenciar e reparar um equívoco cometido, sobretudo, pela escola: o saber ler ainda hoje é confundido com a capacidade de oralização (FOUCAMBERT, 1994). No século XIX e início do século XX, a leitura em voz alta formava o estudante no uso da língua, em especial na expressão oral, respondendo às necessidades da Retórica, ainda dominante na escola (ZILBERMAN, 1988). Saber decifrar – como se o leitor precisasse traduzir o texto escrito para a linguagem oral para conseguir compreendê-lo – não pode confundir-se com saber ler, e este é um aspecto fundamental para a abordagem de várias questões relacionadas à leitura concebida como ato social e político. A leitura é uma linguagem para os olhos, autônoma, independente da linguagem oral. A oralização permite simplesmente constituir uma cadeia oral a partir do escrito, enquanto leitura é de fato um processo de atribuição de significados à linguagem escrita (FOUCAMBERT, 1994). Entretanto, esta distinção é geralmente ignorada: na escola, por exemplo, quando se “ensina a ler”, está-se simplesmente transmitindo técnicas de decifração, de conversão do alfabeto em sons. Isto é 170 . alfabetização, e não o que FOUCAMBERT (1994, p. 28-42) chama de leiturização. A linguagem oral é linear, nela “é obrigatória a pronúncia das palavras na ordem em que se apresentam” (idem., p. 6) Diferentemente, quando lemos, exploramos a escrita de maneira não linear. De acordo com Jouve (2002), estudos que se propuseram a descrever este processo concluíram que “o movimento do olhar não é linear e uniforme; ao contrário, é feito de saltos bruscos e descontínuos entre os quais pausas mais ou menos longas (entre um terço e um quarto de segundo) permitem a percepção” (JOUVE, 2002, p. 18). A alfabetização leva à prática da oralização e é antagônica à leitura, que não constitui uma evolução da alfabetização, mas um processo diferenciado ao qual a aquisição das regras de funcionamento do sistema alfabético nada acrescenta, ou ainda, segundo Foucambert, apenas dificulta o aprendizado da leitura. Ler, portanto, não é apenas passar os olhos por uma mensagem escrita, ou fazer uma versão oral do texto, mas sim atribuir ao texto significados, encontrar na leitura respostas, provocações ou questionamentos. Leitura não é a decodificação da linguagem escrita, mas sim a compreensão levando em conta o texto e o contexto, sua natureza, seu autor e as implicações destas características na leitura. A leitura implica aprendizagem, se o texto for aceito enquanto alteridade com a qual um sujeito dialoga e perante a qual se posiciona. A leitura implica aprendizagem, quando a subjetividade do leitor é acatada e quando o leitor, ele mesmo, aceita-se como o eu que perde e ganha sua identidade no confrontocom o texto (ZILBERMAN, 1988). Quando nos referirmos à leitura, daqui por diante, teremos em mente este complexo processo de natureza totalmente distinta da decifração. Fala-se muito em analfabetismo, mas por trás das estatísticas, em geral decrescentes2, sobre analfabetismo, encontramos uma realidade que não é apenas de analfabetos e alfabetizados. A propósito disto, Foucambert (1994) distingue três termos que, embora sendo freqüentemente usados como sinônimos, referem-se a diferentes realidades: o analfabetismo, o analfabetismo funcional e o iletrismo. Para ele, o analfabetismo é a impossibilidade de produzir ou compreender mensagens escritas de qualquer nível e provém da ausência de alfabetização. O analfabetismo funcional caracteriza esta mesma . 171 impossibilidade, porém com origens diferentes: o analfabeto funcional é atributo do indivíduo que, após alguns anos de escolaridade, perdeu o domínio da escrita pela falta de oportunidades de exercitá-la. Já o iletrismo caracteriza-se pela falta de familiaridade com a comunicação escrita. Foucambert estima que os iletrados (e os parcialmente iletrados) sejam a maior parte da população: são aquelas pessoas que não reúnem condições necessárias para recorrer à leitura voluntariamente a não ser em casos extrema necessidade. Daí a conclusão a que chega o autor: por trás das estatísticas positivas sobre analfabetismo, ainda encontramos uma realidade de exclusão, já que a grande maioria das pessoas não tem acesso à leitura. De acordo com a perspectiva da leiturização, o leitor ganha espaço para interagir com o texto, construindo-o e reconstruindo-o numa atividade na qual ele é agente e cujos resultados dependerão de sua experiência de leitura e de mundo. Isso acontece na medida em que o processo de leitura coloca em ação todo o sistema de valores, crenças e atitudes do leitor e das comunidades interpretativas que o atravessam. FOUCAMBERT (1994) afirma que leitor é sinônimo de letrado, em oposição a decifrador: para ele, só pode ser considerado leitor quem constrói significados na leitura, e não quem apenas decodifica um texto. Da mesma forma, Jouve (2002) também relaciona a leitura à capacidade de construir significados. Para ele, o bom leitor possui a habilidade de captar o sentido de um texto escrito, de interpretar seqüências de idéias ou acontecimentos, analogias, se relacionar criticamente com sua posição; o bom leitor é aquele que compreende; e compreender, continua Jouve, supõe uma relação com a cultura, com a história, com o social e com a linguagem. Sendo assim, o sentido de um texto não será o mesmo para todos os leitores, uma vez que a leitura é um processo em que o leitor participa não decodificando sinais, mas, sobretudo, dando sentido a eles a partir do entrecruzamento que faz das comunidades interpretativas de que participa. Para mudança de uma realidade de exclusão da maioria da população do processo que Jouve (2002), Foucambert (1994) e Freire (2003) consideram como leitura, para que haja uma promoção coletiva de ‘decifradores’ a leitores, ou seja, para que os cidadãos alfabetizados possam coletivamente passar do estado de ‘decifradores’ ao estado de 172 . leitores, Jean Foucambert e Paulo Freire defendem o abandono das tradicionais técnicas de alfabetização, uma vez que a leitura, desde seu princípio, deve ser entendida como uma forma de promoção da criticidade. Freire, mais especificamente, propõe o não uso de textos pretensamente didáticos, mas sim textos “reais”, e o abandono por parte dos educadores da falsa idéia de neutralidade da educação, e a tomada de consciência do ato político que constitui a leitura. Na contramão das concepções de leitura abordadas e das propostas de ensino destes pensadores da leitura no processo educacional, encontramos a freqüente oralização, a “leitura” em voz alta nas salas de aula tanto nas observações quanto citada pela maioria dos entrevistados. Isto nos leva a questionar de que maneira é entendida a leitura na perspectiva da universidade e que leitores a universidade forma ou pretende formar, uma vez que a prática da oralização privilegia os padrões encontrados no século XIX, as necessidades da Retórica, em detrimento daquilo que chamamos de leitura e que implica necessariamente um processo de construção de saberes, um diálogo que se estabelece no espaço entre o texto e o leitor, uma posição crítica do agente da leitura, já que entendida como um processo de construção de conhecimento. 3. O autor Quando se pensa em autor, o conhecimento de senso comum faz com que a idéia que nos venha à mente seja a da entidade física, o escritor que fica atrás de sua máquina de escrever, ou melhor, atrás da tela de seu computador (afinal, estes são os tempos modernos...) compondo seu texto numa avalanche de inspiração e de trabalho árduo. Apesar de esta ser a concepção que normalmente temos do termo autor, ela não dá conta de conceituações mais complexas, que posicionam o autor além de sua materialidade física, além de sua existência concreta como um indivíduo, levando o termo a englobar funções textuais de autoria, historicizando e contextualizando autor como função mais do que biografia (Foucault, 2001). No que concerne à crítica (ou teoria) literária, há diversas tipologias propostas a fim de dar um estatuto ao autor, que variam conforme o enfoque que se pretende dar. De acordo . 173 com Eco (2001), há o “autor-modelo”, que é a entidade que fica entre o “autor empírico” e o narrador. Para Eco, o “autor-modelo” funciona como mediador entre o escritor real e a entidade que narra a história. Semelhante à proposição de Eco, Leite (2001), baseada na definição do teórico Wayne Booth, apresenta a idéia de “autor implícito”, que é caracterizado como uma máscara usada pelo autor real a fim de dar uma espécie de coerência à criação do narrador e, conseqüentemente, da história. Tipologias como essas, no entanto, são importantes para um estudo apenas teórico-literário, não sendo suficientemente abrangentes para dar conta do autor em sua discursividade. Portanto, o que nos interessou nesta pesquisa foi entender o autor enquanto função discursiva (FOUCAULT, 2001): o que significa o autor no processo de construção e legitimação do texto, o que caracteriza o autor como tal e a sua relação com a obra, e também a influência de tais constatações no ensino de leitura e de literatura de língua inglesa. A fim de que possamos estabelecer relações entre as teorias sobre a natureza e definição de autor e as aulas observadas, é preciso deixar claros alguns pontos constatados nas teorias estudadas. O autor, ao contrário do que acredita o senso comum, não é meramente o ser físico que escreve um texto. Mais do que isso. Ele é, como afirma Foucault (2001), um mecanismo do discurso, construído ao mesmo tempo em que a obra é escrita e também a partir das leituras feitas dela posteriormente. O autor como mecanismo discursivo desaparece das obras como ser físico, a fim de deixar um espaço vago que impede a sua escrita de remeter à individualidade real, material do ser que escreve. No entanto, esse espaço vazio e esse desaparecimento não são totais, pois em todo o texto estão presentes signos que remetem ao autor em sua materialidade, a fim de que não nos esqueçamos de que ele existe, e que nos fazem “deixar” o mundo ficcional e “voltar” ao mundo real. Esta entidade discursiva é exterior à obra, ou seja, o autor enquanto função discursiva não se inclui no texto como se fosse parte dele, mas sim como um ser construído através dele, a partir de leituras e leitores. Não sendo inerente à obra, o autor precisa ser legitimado por ela a fim de que possa existir. Em outras palavras, é o conjunto de sua obra que dá a quem seria simplesmente um “escrevinhador” o estatuto de “autor”, pois é a coerência de idéias 174 . percebida ou construída entre suas obras (legitimação do estatuto deautor) que caracteriza a função-autor. Desse modo, consideramos que o autor exerce sobre a leitura uma função muito maior e mais abrangente do que aquela de “produtor de textos” (FOUCAULT, 2001). Este grupo realizou, nos anos de 2003 e 2004, uma pesquisa com 6 professores de língua inglesa e literaturas de língua inglesa em universidades da região. Além de terem suas aulas observadas por um bimestre, alunos voluntários de cada turma e os professores foram entrevistados e as entrevistas gravadas em áudio. Nestas entrevistas, dentre outras questões, perguntamos aos professores quais os critérios utilizados para a seleção dos textos para leitura (tanto literários quanto não literários). Via de regra, nas aulas de literatura a seleção dos textos era feita de acordo com o que se via legitimado como possuidor de “valor literário” (os textos canônicos eram os mais usados). Já nas aulas de escrita em língua inglesa, não existe a preocupação de se escolher determinados autores. Ainda assim, eles são sempre “respeitados” no que se refere à interpretação de “seus” textos quando ela está acessível. O mesmo ocorreu nas aulas de literatura. Ao que pudemos perceber, a grande maioria dos alunos e professores universitários entrevistados acreditava que a construção dos significados dos textos estava no leitor, e alguns poucos pensavam que o significado estava exclusivamente no texto ou no autor. Contraditoriamente, mesmo que tivessem em mente que o aluno pode ter a sua própria interpretação do texto, como comentou uma das alunas, tanto para os alunos quanto para os professores entrevistados a interpretação final deveria ficar sempre por conta de especulações sobre o que o autor quis dizer. Esta atitude reitera o estatuto de verdade que a palavra escrita adquire, reforçando o poder que possui a legitimação do escritor como entidade autoral. Este comentário nos chamou particularmente a atenção, pois revela uma discrepância entre as teorias mais recentes sobre a questão autoral e a sua aplicação em sala de aula. Ainda que os alunos demonstrassem não possuir um conhecimento profundo sobre tais teorias, esta incoerência ficou especialmente clara também no discurso de uma das professoras entrevistadas, que apresentava familiaridade e demonstrava simpatia a tais teorias mas que, ao ser questionada sobre onde se daria a construção de significados, . 175 voltou a confiá-la somente ao autor, sem levar em conta a participação do sujeito leitor neste processo. O uso experimental de novas práticas embasadas em teorias recentes que fazem sentido logicamente, mas que requerem atitudes diferenciadas daquelas da tradição em que construímos subjetividades foi, nos contextos investigados, constantemente evitado, concebido como desestruturador e improdutivo. Esta constatação mostrou-nos que nos contextos observados teoria e prática eram esferas distantes entre si, e que os professores e seus alunos preferiam ações que lhes conferissem a segurança do já conhecido, a suposta eficácia da tradição legitimada pelo saber comum. A nós pareceu ainda que tais conclusões poderiam ser ampliadas a ponto de abranger também nossas próprias experiências em contextos diferenciados mas afins, e quem sabe inclusive poderiam se aplicar a outros contextos. Embora o escopo de nossa pesquisa não nos permita generalizar, acreditamos que a situação observada pode ser mais comum do que gostaríamos que ela fosse. Mas deixaremos ao encargo de cada leitor estabelecer as relações possíveis com seus contextos de prática de leitura. 4. Conclusão “No contexto analisado em nossa pesquisa, pudemos perceber que o papel do professor foi determinante na escolha de textos / autores e na legitimação das leituras feitas pelos alunos em suas sala de aula. Como no pensamento predominante no século XIX, nas salas de aula de leitura observadas era prática comum atribuir-se o significado ao autor; como nas teorias estruturalistas, também vimos o significado atribuído à materialidade do texto. E dentro do contexto de sala-de- aula, quem autorizava ou não “o que o autor quis dizer” ou “o que o texto está dizendo”, via de regra, era o professor. Nestas salas de aula, existia uma relação de poder que fazia preponderarem as leituras institucionalizadas recomendadas pela crítica literária ou pelo livro didático sobre aquelas construídas pelos alunos leitores.” “A prática de leitura em voz alta, que muitas vezes encontramos em nossas observações, era geralmente realizada com propósitos pouco claros. O ato de ler em voz alta na sala de aula pareceu-nos ser resultado 176 . do hábito enraizado no inconsciente das condicionadas personagens do contexto escolar, sem ter passado pela necessária reflexão crítica sobre a prática (FREIRE, 2004) e é antagônico àquilo que estamos chamando aqui de leitura.” “Mas apesar daquilo que, via de regra, vemos resultar das práticas escolares de leitura nos alunos e professores sujeitos de nossa pesquisa, encontramos dentre eles um professor e 4 alunos muito certos da necessidade de “uma leitura crítica”, de ser leitor-sujeito, posições reveladas essencialmente nas entrevistas mas não observadas nas suas práticas em sala de aula. Pudemos observar a dificuldade de estabelecer práticas coerentes com os propósitos de formar leitores críticos, sujeitos de seus processos de construção de sentidos. Acreditamos que tal dificuldade possa ser resultante de um condicionamento, dificuldade de aceitação do novo e falta de segurança e autonomia. Entretanto, estas são apenas respostas possíveis, tentativas de explicações para um contexto específico que, talvez de maneira semelhante a outros contextos culturais, apresenta-se incoerente na relação teoria e prática.” Encontramos também, nos saberes necessários para prática educativa listados por FREIRE (2004, p.38) respostas às angústias daqueles que vivenciam esta realidade: “ensinar exige reflexão crítica sobre a prática”. Segundo Freire, “é pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática” (idem, p. 39). A partir do pressuposto de que teoria e prática estão sempre relacionadas, sendo que uma não pode prescindir da outra, entendemos essa relação como processual e conflitante, características evidenciadas em nosso trabalho de observação de aulas e entrevistas com alunos e professores. Nossas observações, localizadas e parciais, determinadas por nossas ideologias e experiências, são oferecidas aqui como meras interpretações das realidades que construímos. Não temos a pretensão de que elas sejam generalizadas ou sirvam como evidências incontestáveis de uma suposta veracidade do nosso olhar. Oferecemos tais possibilidades de leitura como alternativas a serem cotejadas com outros contextos, outras ideologias e outras experiências a fim de que . 177 se construam novas leituras a partir do confronto entre a nossa perspectiva e tantas quantas nossos leitores encontrarem. Partindo desta constatação, este grupo de pesquisa parte para uma nova fase de trabalho, buscando agora construir saberes para intervir nesta realidade e promover mudanças, rejeitando a possibilidade de simplesmente adaptar-se a ela. Concordamos com Freire que “Mudar é difícil, mas é possível” (Ibid., p. 79), e é a isso que nos propomos agora. Clarissa Menezes Jordão Juliana da Silva Passos Letícia Largura Martins Notas 1 Grupo cadastrado peloCNPq desde 2003, coordenado pela Profa. Dra. Clarissa Menezes Jordão do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR. 2 Cf. Mapa do Analfabetismo do Brasil, 2003. Referências CLIFFORD, J. “On ethnographic allegory.” In:_____. Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Los Angeles: UCP, 1986. ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhiadas Letras, 2001. FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. FOUCAULT, M. “O que é um autor?” In: ______. Literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 264-298. _____. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002. FREIRE, P. A Importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 45. ed. São Paulo: Cortez, 2003. _____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática escolar. 29. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. JOHNSTON, P. H.; NICHOLLS, J. G. “Voices we want to hear and voices we don’t.” In:_____. Theory into practice: learning from student voices, [S.l.], v. 34, n. 2, p. 94-100, Spring 1995. 178 . JOUVE, V. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002. LATHER, P. Feminist research in education: within / against. New York: Routledge, 1991. p. 3-4. LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo: Editora Ática, 2001. p.15- 19. TYLER, S. “A. post-modern ethnography: from document of the occult to occult document.” In:---____. Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Los Angeles: UCP, 1986. ZILBERMAN, R.; SILVA, E. T. da (Org.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988. Resumo A partir de uma ampla investigação sobre a leitura, concebida tanto como processo cognitivo de compreensão de textos escritos quanto como espaço de construção de procedimentos interpretativos em geral, o grupo de pesquisa Identidade e Leitura construiu seus entendimentos de texto, autor e leitor enquanto momentos discursivos no processo de ensino/aprendizagem de leitura. Tais conceitos serão problematizados neste artigo e contrapostos à análise dos dados obtidos em pesquisa de base etnográfica realizada pelo grupo com alunos e professores de língua inglesa em quatro diferentes cursos de Letras no Estado do Paraná. Serão abordadas principalmente as relações entre práticas de leitura em sala de aula e as teorias acadêmicas produzidas por Michel Foucault (conceitos de discurso e poder) e Jean Foucambert (leiturização e letramento). Palavras-chave leitura, autor, leitor, letramento, identidade, discurso. Abstract Taking as the starting point a thorough investigation of reading, conceived both as a cognitive process of reading comprehension and as a space where general interpretive procedures are built, the research group Identidade e Leitura has constructed its own understandings of text, author and reader as discursive moments in the process of teaching/learning reading. In this article, such concepts will be challenged and opposed to the analysis of the data obtained in an ethnographic-based research involving students and professors of English in four different universities of the State of Paraná. Our main focus . 179 in this analysis is the relation between reading practices in the classroom and the academic theories produced by scholars such as Michel Foucault (discourse and power) and Jean Foucambert (lecturisation and literacy). Key words Reading, author, reader, literacy, identity, discourse.
Compartilhar