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COSTA, Iná Camargo. Diálogos com Brecht

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Diálogos com Brecht 
Transcrição da Palestra Brecht e o Teatro Épico
 
Iná Camargo Costa 
03/05/2005 
Quero começar por uma explicação de tipo filológico por causa de uma 
observação que eu ouvi ontem, na reunião do Arte contra a Barbárie , em que 
a professora Cibele mencionou o fenômeno que ela batizou, e eu também 
gostei muito, de pirataria semântica . Então, em vista da pirataria semântica, 
eu trabalho com um conceito fundamental para entender o que eu digo, que é o 
de pressuposto. Ele foi esvaziado, o conceito de pressuposto, e, com isso, as 
pessoas usam alegremente, basta mencionar uma coisa que veio antes e ela 
aparece como pressuposto. Isso não é verdade. Pressuposto é um conceito 
central no pensamento dialético e só pode ser considerado pressuposto o que, 
de fato, aconteceu antes ou durante o fenômeno que está sendo examinado, 
mas ele tem uma relação tal que o fenômeno que está sendo examinado fica 
inexplicável sem esses outros. E são esses outros fenômenos o pressuposto 
do fenômeno em questão. Hoje eu vou falar sobre o teatro épico e a relação do 
Brecht com o teatro épico e, para isso, eu preciso falar dos pressupostos do 
teatro épico. 
O pressuposto tradição intelectual alemã é fundamental e sem compreender 
esse pressuposto o que vem depois fica sem sentido ou arbitrário. Tradição 
alemã, que é uma coisa muito vasta, eu vou puxar um fio dentro dessa 
tradição, que é o da divisão da produção literária em gêneros e aos gêneros 
correspondendo claramente, para os alemães, um âmbito da vida real, 
dimensões da vida. Então, a tradição alemã dividiu as nossas experiências no 
mundo em três dimensões, às quais correspondem três gêneros literários. A 
dimensão da interioridade, da subjetividade, que corresponde ao gênero lírico. 
A dimensão pública, a dimensão da vida cotidiana, no sentido rua, muita gente 
reunida, essa situação em que nós estamos, a esfera política, a esfera dos 
negócios, a esfera das guerras, isso é a esfera do épico. E a terceira esfera, 
que corresponde ao âmbito da vida privada; âmbito da vida privada quer dizer 
família, briga de pai com filho, briga entre irmãos, amores, grandes paixões. 
Esta é a esfera do dramático. Este é um dos pressupostos teóricos do teatro 
épico. 
Acontece que para um alemão, que entrou para a vida literária, para a vida 
teatral ou para a vida intelectual no início do século 19, isso já é um dado. Todo 
mundo pensa assim, todo mundo sabe o que é isso. Então, não se discute na 
Alemanha a divisão da vida em esferas desde, pelo menos, 1830, porque 
qualquer alemão sabe isso. Isso se aprende na escola primária, 
provavelmente. O moleque de dez, 12 anos sabe que existe essa distinção 
entre épico, lírico e dramático, correspondendo a diferentes esferas da nossa 
experiência na vida, e não se discute isso. Pois bem, isso é um ponto que está 
estabelecido na tradição alemã e, portanto, é um ponto que o Brecht não 
precisa discutir porque é um pressuposto. Valeu o exemplo? 
Então, para começo de conversa, a divisão estabelecida pelos alemães de 
esferas lírica, épica e dramática é um pressuposto de qualquer discussão que 
pretenda avançar em relação ao fenômeno do teatro épico. E, naturalmente, eu 
vou expor, aqui, também, uma outra questão: Brecht não é sinônimo de teatro 
épico. Quando Brecht chegou a Berlim, o assunto já estava estabelecido. 
Chamar de teatro épico um tipo de teatro que se fazia na Alemanha também já 
estava não na boca de todo mundo, mas pelo menos a turma dele já chamava 
de épico o teatro político, por exemplo. Por isso, porque a esfera do político é a 
esfera do épico e o teatro que trata diretamente de assuntos políticos é teatro 
épico. Tão simples assim. 
Segundo pressuposto: a crise na percepção do fenômeno teatral também é 
muito anterior. O Brecht não tinha nem nascido e a crítica teatral, tanto na 
Alemanha, que era e continua sendo até hoje muito forte, mas na França era 
ainda mais importante, já não sabia desde mais ou menos, desde 1880, como 
chamar as peças que tratavam de assuntos épicos. E por tratar de assuntos 
épicos, escritas segundo os pressupostos do drama, as peças não davam 
certo, as pessoas não entendiam as peças, os críticos rejeitavam, por mal 
escritas, as peças que tratavam de assuntos épicos, segundo as exigências do 
drama. Então, eu fiz um levantamento da crítica francesa, porque alemão eu 
não leio, e é uma maravilha porque tem uma observação que aparece em 
todas as críticas, que é assim: o dramaturgo x, y, z, são inúmeros... o 
dramaturgo não é capaz de se ater ao dramático, ou o dramaturgo evita 
sistematicamente os momentos dramáticos. E é natural que ele evite, o 
assunto dele não permitia, ele não estava tratando de assunto da esfera 
privada. Então, os ruídos 
 
e se a gente pegar as peças para ver, a gente vê 
facilmente. É ruído mesmo, barulho, porque o cara está tratando de um bate-
boca num bar. Nesse bate-boca não vai pintar nem amores, nem discussão 
sobre herança, nem relação entre pai e filho. Briga de bar normalmente discute 
assunto da esfera pública. Então, os críticos não gostavam das cenas que 
aconteciam num bar porque elas não eram dramáticas. Então, o que 
acontecia? A crítica, com o freio de mão puxado, cobrando dos dramaturgos 
que tratassem dos seus assuntos, que já eram épicos, segundo as regras do 
drama e desqualificando dramaturgos e peças porque as peças não eram 
drama. Esse problema já era claríssimo na França de 1880, por exemplo. O 
Brecht nasceu 18 anos depois. É esse o tema da minha palestra hoje: Brecht e 
o teatro épico. E ele, quando começou a escrever sobre o assunto, quando 
começou a defender a proposta do teatro épico, ele dá a genealogia dele, 
reivindica como seus antecessores, em experiências que já não eram mais de 
teatro dramático, por exemplo, o Émile Zola, na França. Émile Zola é um dos 
melhores casos porque ele, na verdade 
 
isso é o Brecht que diz é o primeiro 
a indicar os problemas que quem quiser fazer teatro que trate dos assuntos 
que interessam, que são os assuntos da política e da vida mais complexa do 
que a vida entre quatro paredes, ele coloca o Émile Zola. O Zola era 
romancista e é bom insistir nesse ponto. Um número muito grande de 
romances e de contos do Zola foi adaptado para teatro e todos eles foram 
rigorosamente desqualificados como mau teatro. Então, para nós que temos 
interesse no Brecht, tudo o que a crítica desqualificou no século 19 como mau 
teatro é o que nos interessa. Porque é com os que fizeram mau teatro segundo 
a crítica do fim do século 19 que a gente vai aprender alguma coisa. Porque os 
que fizeram bom teatro estavam dentro das quatro paredes do drama fazendo 
tudo direitinho, os mesmos assuntos de sempre desde o início do século 19, a 
saber, triângulo amoroso, problema de traição, corno manso, corno irritado, 
esses eram os assuntos do teatro francês do século 19, do qual, no Brasil, o 
maior herdeiro é Nelson Rodrigues, diga-se de passagem. Faziam teatro 
direitinho, do jeito que a crítica queria que eles fizessem. Com esses a gente 
não aprende grande coisa, embora valha a pena estudar. 
Então, o outro pressuposto do teatro épico é um pressuposto metodológico, a 
saber, o espírito de contradição, que eu gosto de chamar de espírito de porco. 
O cara falou: essa peça é ruim, vá ver, porque ali tem coisa. Quando o cara 
elogia, você já pode nem ir, dependendo do elogio: tô fora. Ou então, ele elogia 
pelas razões erradas, aí interessa. Esse é o pressuposto metodológico: sem 
espírito de porco a gente não avança muito nem na apreensão, nem na 
compreensão, nem nos fundamentos do teatro épico. O espírito de porco é um 
dos mais importantes pressupostos do teatro épico. Pois bem, esse é o 
pressuposto, digamos, herança intelectual/teatral, com a qual Brecht e os seus 
companheiros de geração fizeram um acerto de contas. Este já é outro 
pressuposto:acerto de contas com o passado, porque quem não faz acerto de 
contas com a herança, não avança, está condenado a repetir o que já foi feito. 
E isto vale em todas as esferas que nos interessam, a saber, na prática textual, 
na prática cênica e nos estudos teóricos. Sem você definir quem são os seus 
companheiros de luta e quem são os seus adversários, você não avança no 
sentido teórico, você não entende o que está fazendo. Eu conheço, falando 
agora como professora aposentada, eu vejo nos trabalhos, nas pesquisas de 
pós-graduação: o desastre que é um trabalho de doutorado, para pegar 
pesado, de uma pessoa que não acertou as contas com a herança intelectual. 
Em que resulta? Você dá igual valor para qualquer afirmativa. Então, eu já 
cansei de ler, no mesmo parágrafo, duas afirmativas contraditórias e a pessoa 
assinando embaixo das duas. Isso, do ponto de vista intelectual, se chama 
inconsistência. Quem não faz acerto de contas com a herança intelectual está 
condenado à inconsistência mental. É verdade, o nome clínico é esquizofrenia. 
Então, a universidade brasileira é especialista em produzir esquizofrênicos 
porque a universidade brasileira não valoriza o acerto de contas com a herança 
intelectual. Quando muito a gente consegue que o pesquisador faça um 
levantamento do que existe sobre o assunto. Se ele consegue fazer isso, a 
gente já se dá por satisfeito, ou pelo menos ele sabe que tem bastante gente 
que já falou sobre o assunto. Muito mais grave do que o que eu acabei de falar 
é você definir um assunto e tratar dele como se nunca ninguém tivesse tido a 
idéia de pensar, porque, você sendo um gênio... como é que a sua idéia 
poderia ter ocorrido a alguém. Não é mesmo? Esse é outro problema muito 
comum nos trabalhos acadêmicos. 
Mas, voltando. Acerto de contas com a herança e, neste acerto, ver quem é da 
sua turma e quem não é, é essencial. Se você não descobrir isso, você vai ser 
um esquizofrênico, por mais normal que você seja, como qualquer um de nós 
aqui. Nós somos normais e, no entanto, esquizofrênicos. Aliás, vou fazer mais 
uma brincadeira, que faz parte desse imbróglio que se chama dialética. Uma 
das maneiras de explicar a dialética é esta: transformar a esquizofrenia em 
método. Se você perceber que você mesmo está dividido entre duas opiniões, 
você precisa examinar as duas e levar as duas até o fim para ver com qual 
você fecha. O Hegel, que é o pai desse método no século 19, não fez outra 
coisa. Então, quando ele viu que não tinha como escolher, ele deu o passo 
seguinte: não, as duas valem, é só ver porque esta vale aqui e esta vale aqui, o 
passo seguinte é ir para a frente, incorporando as duas. Isso é pressuposto. 
Quando você incorpora duas opiniões contraditórias e elabora uma coisa que 
aproveita as duas anteriores, as duas viram pressuposto da nova idéia. Acerto 
de contas é o nome popular do processo. 
Feito esse preâmbulo de caráter filosófico-filológico, vamos aos pressupostos 
agora históricos e mais presentes no processo que o Brecht encontrou. Agora é 
o momento trash da palestra. O primeiro, sobre o qual eu não preciso me 
estender, é o fato de que o Brecht, com 17 anos, foi convocado para trabalhar 
como enfermeiro na 1ª guerra mundial. É a 1ª guerra mundial que é, ela 
própria, enquanto processo histórico, expressão da crise do imperialismo. É 
disso que eu vou falar, a sociedade capitalista, a luta por mercados, a 
expansão do capitalismo alemão em conflito com o inglês, o francês e o 
americano que já vinham comendo a sopa pela beiradinha. Todo mundo 
precisa conhecer isso. Como eu não sou historiadora, eu só vou avisar que 
isso existe e se vocês não tomarem conhecimento disso também não vão 
entender o Brecht, porque é o assunto de todas as peças dele: a crise do 
mundo capitalista tal como ela se configurou na 1ª guerra mundial, na 
República de Weimar, na ascensão do nazismo, na 2ª guerra mundial e na 
divisão da Alemanha entre quatro países que ocuparam a Alemanha, ocupação 
esta que ainda não terminou. A Alemanha, ainda hoje, é um país ocupado pelo 
exército americano. Ninguém gosta de falar desse assunto: não, a Alemanha é 
independente. Não é verdade, ela é formalmente independente. Os negócios 
da Alemanha quem define é o Pentágono e os executantes dos negócios da 
Alemanha, quem assegura que os negócios da Alemanha vão ou não vão dar 
certo, é o exército alemão, que está lá na Alemanha. Vocês ficam assim, não 
é? A respiração suspensa: ela é louca. Eu sou mesmo. Eu sou porque eu falo 
essas coisas desagradáveis. Faz parte... bobo da corte, todos os loucos, de um 
modo geral, têm um alvará, louco pode falar o que ninguém fala. Então, tudo 
isso que eu falei é o assunto do teatro do Brecht desde a primeira peça que ele 
escreveu, que, não por acaso, tinha como nome original Spartacus . Spartacus 
é o nome daquele líder escravo em Roma, etc., e inspirou uma facção do 
Partido Social Democrata alemão, romperam com o partido e fundaram um 
grupo político chamado espartaquistas. Desse grupo participava Rosa 
Luxemburg e Karl Liebknecht, os mais importantes líderes políticos da classe 
trabalhadora alemã, que foram devidamente assassinados em janeiro de 1919 
pelo Partido Social Democrata Alemão, do qual, no Brasil, o equivalente 
chama-se Partido dos Trabalhadores. Isso mesmo. Vocês dão risada, a louca, 
a passionária continua... falando bobagem. Mas eu vou continuar mesmo. Não 
estou dizendo que o Partido dos Trabalhadores vai assassinar a nossa Rosa, 
até porque eu espero que a nossa Rosa não esteja lá. Porque a Rosa 
Luxemburgo era do Partido Social Democrata. Ela rompeu e essa é outra 
história que eu preciso lembrar e o Brecht conhecia. 
Então, mais dois pressupostos do teatro épico. No fim do século 19, 1889, 
gente como vocês e eu fundou uma organização teatral chamada Cena Livre, 
em Berlim. O que eles fizeram, um pequeno grupo, entre outras coisas, montar 
pela primeira vez uma peça que os teatros normais da burguesia alemã não 
aceitavam fazer, porque não era bom drama, eles montaram, Os Tecelões , do 
Gerard Hauptmann. E a peça provocou uma espécie de convulsão social. O 
teatro era livre porque, entre outras coisas, não vivia da bilheteria, porque eram 
todos pobres os envolvidos, e não precisava submeter a peça à censura, 
porque se submetesse a peça seria vetada. Mas a convulsão foi de tal ordem 
que o exército foi lá e falou para os caras que se eles não suspendessem as 
apresentações eles iam prender todo mundo. O Partido Social Democrata 
alemão, que já era importante como organização política, percebendo o 
alcance do fenômeno, criou um equivalente que se chamava cena popular 
 
todo mundo conhece como Volksbühne. Era o equivalente, só que vinculado ao 
partido. A Cena Livre, que tinha sido criada um pouco antes, percebeu que, 
sozinha, não ia sobreviver, porque o exército do império alemão estava ali 
mesmo para impedir que eles fizessem maiores bandalheiras. Então chamaram 
lá uma reunião 
 
eu estou simplificando brutalmente a história 
 
em que se 
discutiu a proposta da Cena Livre vincular-se ao projeto de grupos teatrais da 
social democracia. Venceu a proposta de filiação. Os que não aceitaram 
participar do processo saíram e foram cuidar da própria vida no comércio, no 
mercado normal de teatro e alguns fizeram muito sucesso. O exemplo mais 
conhecido dos que tiveram uma carreira brilhante no teatro convencional, mas 
a partir da experiência da cena livre, é muito conhecido por quem estuda 
encenação teatral. É o Max Reinhardt, mas ele é incompreensível sem essa 
passagem pelo Cena Livre. Mas ele não quis se filiar aos grupos patrocinados 
pelo Partido Social Democrata. Depois da fusão da Cena Livre com a Cena 
Popular passou a existir uma organização na Alemanha chamada Cena 
Popular Livre, também conhecida como Freie Volksbühne. Esse movimento 
teve um desenvolvimento de tal ordemdurante a República de Weimar que, 
quando do golpe de Estado do Hitler, tinham aproximadamente 150 mil sócios 
só em Berlim. Isto se chama organização dos trabalhadores e da classe teatral. 
Era a parte organizada do teatro alemão. Essa cifra 
 
150 mil 
 
é referida, por 
exemplo, pelo Anatol Rosenfeld no livro Teatro Alemão . Guardem essa cifra 
porque, depois, nós vamos tratar disso em outra chave. Vocês imaginem um 
grupo de dez, 12 pessoas em 1889, tem uma idéia. O Partido Social 
Democrata gosta dela, adota o projeto e produz um desenvolvimento neste 
projeto 
 
que era projeto de teatro, fazer teatro com trabalhadores, por 
trabalhadores, para os trabalhadores. Em 20 anos, 30 anos, só em Berlim, o 
processo organiza 150 mil pessoas em torno do fazer teatral. 
Corta e voltemos, então, para o lado nefasto do Partido Social Democrata. 
Acontece que, já em 1912, o Partido Social Democrata é o maior partido 
político da Alemanha. Em 1914, portanto, eles eram a maior bancada no 
parlamento alemão. E o que aconteceu em agosto de 1914? O imperador 
manda um projeto no qual solicita autorização de créditos para o Estado 
alemão, o executivo, para a 1ª guerra mundial e o Partido Social Democrata 
aprova. Isto é, eu vou defender, vou levar para o túmulo essa minha convicção: 
esteve na mão do Partido Social Democrata alemão a possibilidade de impedir 
que a 1ª guerra mundial acontecesse. E, portanto, tudo o que se seguiu a ela. 
Alguns amigos dizem: mas se eles não aprovassem, o exército daria outro jeito, 
o Estado daria outro jeito. Mas não comprometeria a classe trabalhadora alemã 
com a guerra, se o partido não votasse os créditos. Porque, votando os 
créditos para a guerra e, portanto, fazendo coisa muito análoga ao que certo 
partido já fez aqui no Brasil, contrariando frontalmente o próprio programa que 
eles tinham votado meses antes, no qual o Partido Social Democrata alemão, 
como os demais da Internacional Socialista, se comprometia com a luta pela 
paz. O programa do Partido Social Democrata era um programa pacifista. No 
momento em que eles votam os créditos de guerra, eles rasgaram o programa 
e, para ser conseqüente com essa atitude, imediatamente após a aprovação 
dos créditos de guerra, o imperador manda um outro projeto de lei definindo a 
lei marcial... 
INTERRUPÇÃO 
... o Partido Social Democrata alemão, que ainda não tinha retirado o item luta 
pela paz de seu programa, votou essa lei e, portanto, o Partido Social 
Democrata alemão autorizou o Estado alemão a prender e matar seus próprios 
militantes. É por causa disso que a Rosa Luxemburg passa todos os anos da 
guerra na cadeia, ela e companheiros como Karl Liebnecht, e outros que não 
abriram mão do item pacifista do programa social democrata. É nessa guerra 
que o Brecht alcança a idade adulta. Ele terminou os estudos do colegial, foi 
fazer Medicina e foi convocado, como estudante de Medicina, a trabalhar como 
enfermeiro na cidade onde ele morava, Augsburg. 
Tudo o que tem na obra do Brecht contra a guerra, por exemplo A Balada do 
Soldado Morto , poemas, outras referências, tem a ver com esses processos. 
Então, aconteceu a guerra e o Brecht foi aprender... ele conta... se o 
médico/general, sei lá que patente, mandasse ele, enfermeiro, abrir a cabeça 
de um paciente, ele ia lá e abria a cabeça de um paciente, a seco, porque 
parece que eles ainda nem tinham anestesia, essas coisas. Abriam, pega um 
serrote e tira lá a tampa do cérebro e fuça. Então, o Brecht conhece 
pessoalmente o desastre que é a guerra, inclusive deste ponto de vista: o 
estrago que a experiência como enfermeiro produz na subjetividade de uma 
pessoa. Que ele próprio chegou ao ponto tal de desconhecimento dos direitos 
do outro, que por ordem da hierarquia militar ele executava tarefas como essa. 
Então, quando o Brecht é 
 
ele não se diz, ele foi a vida inteira 
 
anti-
capitalista, ele sabe porque ele é, ele sabe do desastre que se produz, 
inclusive na subjetividade das pessoas, a experiência dentro do capitalismo. 
Porque a experiência da guerra é apenas a experiência do livre comércio 
levada às últimas conseqüências, mercado. O mercado pede guerra e, se 
alguém tem dúvida, é só ver mesmo porque é que o Bush está massacrando 
os iraquianos, é por razões de mercado, é em nome dos direitos do mercado, 
em nome do direito do americano médio tomar cerveja gelada de cueca no 
inverno americano e ter ar condicionado a 18 graus no verão, é em nome 
desse direito, que é direito de consumo, da esfera do consumo, que se está 
fazendo o que está sendo feito no Iraque. Então, desse ponto de vista, a 
experiência do Brecht continua na ordem do dia, ela apenas se ampliou. É um 
ponto que poderá ser discutido depois. Então, a 1ª guerra é, digamos assim, a 
experiência básica que define a entrada do menino Brecht na vida adulta, ele 
se tornou um adulto durante essa passagem, esse trabalho como enfermeiro 
na guerra. 
Terminada a guerra, entre outras providências, foram libertados os prisioneiros 
do Partido Social Democrata, que, naquela altura, já era o Partido Social 
Democrata Independente, os espartaquistas. Sai a Rosa da prisão, outros e tal, 
voltam soldados social democratas, como Piscator, do front, e trabalhadores, 
além de imediatamente o fim da guerra produzir o desemprego em massa dos 
trabalhadores da indústria bélica alemã. Mas acontece que, em 17, tinha 
havido a revolução soviética e os soldados da trincheira com a Rússia já 
tinham tomado conhecimento da revolução e voltaram dispostos a fazer a 
revolução na Alemanha também, até porque era uma parte importante da 
estratégia soviética a expansão imediata da revolução para os países ali do 
entorno da União Soviética. E a revolução começou mesmo. Já em novembro 
 
a guerra acabou em agosto de 18; se não me engano, o Tratado de Versailles 
é de agosto de 18 -, logo em seguida, começa a movimentação apontando em 
direção à revolução e esse processo revolucionário na Alemanha vai até maio 
de 1919. Aí é um outro lance que a gente precisa entender para entender a 
República de Weimar, que é onde o Brecht vai atuar como artista. Então, a 
revolução começou no fim do ano de 1918 e, logicamente 
 
isso é lógica 
histórica -, o centro revolucionário era Berlim. O que fez a classe dominante 
alemã? Chamou uma espécie de comitê, com deputados e outros que já faziam 
parte do parlamento, desse comitê participaram inclusive os líderes do Partido 
Social Democrata, para uma cidade próxima de Berlim, chamada Weimar. E lá, 
em Weimar, foi proclamada a república. Eu gosto de insistir sobre esse ponto 
porque ele repete o que aconteceu em Paris quando teve a Comuna de Paris. 
A república foi proclamada em Weimar pela simples e boa razão de que em 
Berlim tinha uma revolução acontecendo. E essa república se colocou diante 
da missão de massacrar a revolução e isso foi feito. Então, a República de 
Weimar tem uma espécie de pecado original. Não no sentido cristão, mas no 
sentido histórico. A República de Weimar nasce e se consolida num dos 
maiores banhos de sangue da história da Alemanha. É neste banho de sangue 
que são executados a Rosa Luxemburg e o Karl Liebknecht. 
O Brecht, que estava lá, em Augsburg, uma cidade pequena, próxima de 
Munique, por ter participado como enfermeiro das atividades de retaguarda na 
guerra, naturalmente se envolveu com os trabalhadores da área de saúde e, 
em Munique, a revolução chegou ao mesmo nível da Comuna de Paris. E o 
Brecht era deputado representante dos trabalhadores da área de saúde em 
Augsburg no Conselho de Munique. Vocês têm idéia do que significa isso? 
Significa que ele participou da tentativa de revolução soviética, porque 
conselho é, em português, soviet. Então, república soviética de Munique ou 
conselhos de Munique são sinônimos. O Brecht era deputado no conselho ou 
soviet de Munique. E a repúblicados conselhos de Munique resistiu aos contra-
ataques do exército e outras forças da ordem burguesa alemã até o fim do mês 
de abril de 1919. O conselho e a república de Munique foram destruídos, o 
Brecht conseguiu escapar da mortandade. Foram destruídos por aquilo que se 
chama, em alemão, freikorps. O nosso equivalente disso, embora ele ainda não 
tenha conotação política, como não teve quando foi inventado, é esquadrão da 
morte. Os freikorps alemães eram o equivalente dos nossos esquadrões da 
morte, que constituíram, a partir de 1919, a principal base de organização do 
Partido Nazista alemão. Ainda não havia o Partido Nazista nesse momento, 
mas os freikorps constituíram a base desde logo... rapidamente... A primeira 
tentativa de golpe do Hitler foi justamente em Munique em 1923, se não estou 
enganada. Ele tentou dar um golpe de Estado, apoiado por esses freikorps. 
Foram eles que destruíram a republica dos conselhos de Munique. O Brecht 
escapou e, logo depois, ele vai para Berlim. Quando ele chega, naturalmente, 
vocês podem imaginar o nível de confusão política e outras, porque logo em 
seguida veio o processo da inflação e tal, que também vale a pena entender. 
Mas, o partido no poder é o Partido Social Democrata alemão e, agora, começa 
o imbróglio infindável, este imbróglio da República de Weimar só vai ser 
resolvido com o golpe que o Hitler dá, se não me engano, em março de 1933. 
Porque ele conseguiu virar primeiro-ministro no início do ano, em janeiro de 
1933, mas aí, já como premier, ele vai organizando as fileiras e dá um golpe e 
se torna o todo-poderoso da Alemanha. E com o golpe do Hitler, as coisas 
ficam claras, porque aí passa a ser preto e branco. 
Então, a ambigüidade do Partido Social Democrata é a seguinte: ele está no 
poder, ele tem todo esse povo que, em 33 já são 150 mil sócios ligados à 
classe teatral, e ele controla o Estado, controla os espaços públicos em Berlim. 
É assim que o Piscator, depois de ter passado de leve pela experiência da 
revolução e tal, acaba aceitando um emprego e vai ser diretor de um dos mais 
importantes teatros da Alemanha, que é o teatro estatal, o Deutsches Theater. 
Mas, claro, embora ele esteja, ele é ligado, passou pelo Partido Comunista, 
fundado em 1918, mas ele está aliado ao Partido Social Democrata. Eu não sei 
se ele é social democrata de carteirinha, é uma complicação que eu até hoje 
não consegui esclarecer. Mas o fato é que ele passa a trabalhar, prestar 
serviços, digamos assim, ao Partido Social Democrata. Mas ele, Piscator, tinha 
feito teatro de rua, tinha feito agit-prop, tinha feito miséria com teatro épico. A 
palavra ainda não tinha entrado na discussão, mas o que ele fazia era teatro 
épico. E no Deutsches Theater, ele faz um espetáculo chamado Bandeiras , 
que conta a história das lutas da classe trabalhadora, incluindo a classe 
trabalhadora norte-americana. Vocês não imaginam o pau, o mundo caiu na 
cabeça do Piscator e dos responsáveis por aquela barbaridade. Por quê? 
Porque a burguesia alemã considerava aquele teatro o teatro dela, a crítica nos 
jornais, o equivalente alemão da Folha e Estadão (jornais burgueses), era pau 
puro. Era assim: é um absurdo apresentar uma peça com esse assunto num 
teatro como o Deutsches; se fosse lá, num estádio, num campo de futebol, tudo 
bem, mas aqui, não. Deu para perceber o que foi que aconteceu? O Piscator, 
digamos assim, atravessou o sinal, porque, afinal, o Partido Social Democrata 
é que o tinha contratado. Ele pensava que o Partido Social Democrata defendia 
os interesses dos trabalhadores, ele estava só contando as histórias das lutas. 
Mas não para a burguesia. Eu gosto desse exemplo específico porque ele tem 
duas conseqüências. A primeira, mostrar o seguinte: para a burguesia, 
enquanto a luta de classes não é tematizada, não é exposta nos seus efeitos 
práticos, tudo bem. Ela até admite a discussão teórica da luta de classes, mas 
na hora em que a luta de classes assume o palco do teatro, não, isso não é 
teatro. Esse é um dos argumentos da crítica conservadora alemã em Berlim na 
época. E é a propósito da polêmica que tomou conta da imprensa de direita e 
de esquerda em 1924 que surge a proposta e a defesa do conceito de teatro 
épico. O primeiro cara a perceber que ele tinha que dar esse passo, eles, a 
esquerda, tinham que dar esse passo foi o Alfred Doblin, vocês devem 
conhecer 
 
e, se não conhecem, vão à primeira livraria que encontrarem e 
encomendem Berlim AlexanderPlatz, um romance. O autor desse romance , 
Doblin, era amigo dos caras e escreve um artigo dizendo: gente, a crítica tem 
razão, o teatro que nós fazemos é teatro épico. Ele sabia aquilo que eu falei no 
início. O assunto de que nós tratamos é mesmo épico. E se ele não for tratado 
de maneira dramática é melhor porque todos os que tentaram tratar dos nossos 
assuntos de maneira dramática estragaram o assunto, é uma luta entre forma e 
conteúdo. Nós precisamos mesmo encontrar a forma épica adequada para 
tratar dos nossos assuntos que são mesmo épicos. Então, qual é a operação 
da luta no front ideológico, do Doblin? Transformar em positivo o que era uma 
acusação e, portanto, tinha sinal negativo. Os críticos burgueses chegaram a 
escrever: o que vocês fazem é teatro épico. Isso não é teatro. O que fez o 
Doblin? O que nós fazemos é teatro épico, isto é teatro. Luta ideológica. O que 
era uma acusação virou uma bandeira que passou a ser desfraldada por 
aqueles que faziam teatro épico, mas não tinha nome. Quando muito tinha sido 
chamado de teatro político por gente como o Piscator. Tem um livro do Piscator 
publicado no Brasil que chama exatamente Teatro Político. Por quê? Porque 
quando ele fazia essas coisas, embora o livro tenha sido publicado em 29, as 
coisas que ele fazia, que eram teatro épico, ainda não tinham nome porque era 
só o inimigo que chamava de épico. Então, o papel histórico do Doblin, em 
1924, na polêmica sobre a peça do Piscator 
 
Bandeiras -, é esse: vamos 
inverter o sinal. O que é negativo na pena de um burguês fica positivo na nossa 
pena. Nós, socialistas 
 
ele mesmo era um socialista cristão. Então, a partir 
dessa intervenção do Doblin, a palavra, a expressão teatro épico começa a 
circular na esquerda alemã. 
Nessa altura do campeonato, o Brecht estava chegando em Berlim. Quando o 
Brecht chegou em Berlim, eu não vou dizer que a batalha do conceito teatro 
épico estava ganha, mas o sinal já tinha mudado. E desde esse momento 
 
o 
Brecht fez de tudo, ele fazia showzinho clandestino, acompanhado ao violão 
(cantava mal pra cacete, mas adorava cantar, fazia umas composições, 
paródias ele gostava muito de fazer paródia de música católica. Por isso, 
depois, no Happy End, ele fez aquelas obras primas, como, por exemplo, a 
Canção dos Vendedores de Vinho, do bêbado 
 
por detrás de uma pilha de 
copos
 
-, é da experiência dele de moleque, ele era ligado à gente católica e 
católico costuma mesmo fazer paródia das canções, vocês sabem). Então, ele 
fazia paródia de canções religiosas na verdade, começando pelas católicas, 
mais as protestantes e outras. Essa experiência está toda na peça Happy End, 
todas as canções, embora as composições, do ponto de vista musical, sejam 
do Kurt Weil, ele fez as letras e palpitou pesadamente na linha melódica. Eu 
garanto isso para vocês. 
Bom, ele chegou lá, fazia de um tudo. Ele queria ser escritor, artista, poeta. 
Tem um livrinho dele, publicado já no Brasil, que chama Diários, acho, vai até 
27, 28, do tempo em que ele está escrevendo Na Selva das Cidades, e tem 
uma ou outra coisinha dessas experiências dele na República de Weimar. 
Então, outra coisa que ele faz é escrever crítica teatral. Lembra que eu falei 
sobre acerto de contas com a herança? Ele começou publicamente pelo 
trabalho de crítico. E, para dar só um exemplo, eu não li até hoje, e olha que eu 
gostodo assunto, nenhuma crítica que chegue perto da que ele fez sobre Os 
Espectros do Ibsen. O Ibsen foi um dramaturgo apropriado pela classe 
dominante, pelo mercado teatral. E ele era seguidamente montado em países 
que levavam o teatro a sério, como Inglaterra, França e Alemanha. Então, o 
que acontecia nos tempos da República de Weimar? O lado crítico da 
dramaturgia do Ibsen estava sendo abandonado em favor de um processo de 
pasteurização da obra. E principalmente a crítica teatral pasteurizava o Ibsen. 
Daí, então, o Brecht escreve um texto curtinho, crítica de jornal, e mostra que 
tudo isso que interessa para a crítica burguesa convencional 
 
pobre da 
Helena, aquele filho com a herança genética, toda a bobajada do discurso anti-
naturalista... ele vai ao miolo da questão: a Helena só ficou naquele 
casamento, que ela sabia que ia dar no que deu, por interesse material. Essa é 
a parte que ninguém discute. Com esse exemplo é uma das primeiras críticas 
que ele escreve 
 
eu quero chamar a atenção para esse ponto. Não se trata, 
como muita gente pensa, de jogar fora os assuntos da esfera dramática. Trata-
se de analisar, pelos recursos da percepção épica e materialista, aquilo que 
acontece na esfera privada. Provavelmente durante este curso, o Maia 
(Reinaldo Maia) vai contar para vocês como é que o Folias chegou ao mesmo 
processo, quando eles viram que o Otelo não é um problema de ciúme e de 
homem desequilibrado que mata a mulher. O Otelo tem interesses materiais 
muito precisos, a começar pelo fato de que ele é um árabe que traiu os seus e 
se aliou ao exército ocidental e, portanto, ele, personagem, tem uma situação 
insegura dentro das relações em que ele vive, porque ele abandonou os dele e 
aliou-se ao inimigo. Esse é o primeiro ponto que tem de ser pensado numa 
leitura materialista do Otelo. E, aliás, tem análises do Brecht sobre o Otelo, nas 
quais, evidentemente, o Folias se apoiou. O que eu quero dizer é o seguinte, 
repetindo, não se trata de rifar a esfera dramática, trata-se de ir além da 
percepção ideológica da esfera da vida privada. A vida privada interessa para o 
teatro épico tanto quanto a esfera pública. O que não pode é tratar da vida 
privada como a ideologia trata. A esfera da vida privada 
 
estou citando Walter 
Benjamin 
 
tem que ser examinada criticamente, nos seus interesses 
mesquinhos, materiais, assassinos. Conflito de pai com filho, conflito entre 
irmãos são interesses mesquinhos e assassinos que estão em jogo, é só 
prestar atenção. Então, é perfeitamente possível fazer uma encenação épica 
de um drama desde que se cumpra com essa exigência. Espírito de porco... 
Então, o Brecht entra em cena e a primeira peça dele que foi montada 
 
já 
esqueci quem dirigiu 
 
foi Tambores na Noite, que era para se chamar 
Spartacus. Esse é um dado para se entender Tambores na Noite. A peça, que 
é uma comédia 
 
ele mesmo, nesse diário que eu já referi, faz sérias objeções 
ao modo como ele resolveu tecnicamente os problemas que ele abordou, mas, 
de qualquer maneira, o assunto Tambores na Noite é a revolução da qual ele 
participou. Ler Tambores na Noite como uma comediazinha na qual a moça 
esquece do noivo, que foi para a guerra, marca casamento, daí o noivo 
aparece e desandam as relações, isso é fazer uma leitura conservadora 
ideológica da comedinha do Brecht. Não estou dizendo que é uma obra prima, 
nem ele achava, mas o importante é tentar ver como ele examinou a relação da 
vida privada com um acontecimento como foi a revolução espartaquista. A 
peça ia se chamar Spartacus. Mudou para Tambores na Noite provavelmente 
por dica de algum amigo social-democrata, que falou, olha, se você puser 
Spartacus, o partido não vai deixar você encenar essa peça. Isso é uma 
hipótese, eu não li nada a respeito, mas como eu conheço social-democratas, 
eu não duvido da minha hipótese. 
Então, é assim que ele vira um dramaturgo, começa a ficar conhecido. Ele 
trabalha por todo lado, inclusive com o agitprop. Estou dizendo isso, mas não 
vou entrar em detalhes, para lembrar uma outra coisa que todo mundo esquece 
quando fala do Brecht. Antes dele encenar A Ópera de Três Vinténs, a partir da 
qual ele começou a elaborar os fundamentos da encenação épica 
 
foi a partir 
da polêmica que Ópera de Três Vinténs provocou 
 
até chegar aqui, em 1928, 
ele rodou bolsinha no teatro alemão, da ópera ao submundo do teatro de agit-
prop, ele conhecia tudo e mais alguma coisa. Quando, finalmente, ele produz a 
primeira, por assim dizer, proposta de fundamentação teórica, ele elabora 
aquela conhecida lista de características do teatro aristotélico, a ela ele 
contrapõe o que pode ser feito numa encenação épica. E é por isso que, por 
exemplo, ele diz: sobre a Ópera de Três Vinténs, que na ópera aristotélica, a 
música, por exemplo, funciona de maneira lírica, a função lírica da música na 
ópera convencional é equivalente ao monólogo, por exemplo, do Hamlet, é um 
aprofundamento na esfera subjetiva do personagem e está completamente 
determinado pelos critérios de verossimilhança, tanto do drama como da ópera, 
que são diferentes. Aliás, todo mundo brinca com a verossimilhança na ópera, 
porque como é que a gente pode acreditar que aquela mulher gorda e viçosa 
pode estar morrendo de tuberculose? Para vocês verem como funciona a 
verossimilhança. Porque é convenção, então, pode, aquela mulher de duzentos 
quilos estar com tuberculose, cuspindo sangue. Eu adoro, eu acho que é um 
dos melhores argumentos a favor da verossimilhança na ópera. 
Pois bem, o que diz o Brecht? Na ópera épica, que é a de três vinténs, a 
canção funciona de maneira contraditória, dialeticamente. A canção desmente 
o personagem, a canção que o personagem está cantando critica a ação que o 
personagem realiza. Dizendo de maneira simples, na concepção dramática, a 
canção está a serviço do argumento geral e do conceito do personagem, na 
encenação épica a canção está em contradição com o enunciado geral e o 
enunciado da personagem. Então, para entender A Ópera de Três Vinténs, é 
preciso ter espírito de porco, se não, não entende. Bom, eu não vou falar nada 
sobre a coisa da música, porque ele estava trabalhando com Kurt Weil e 
músicos de verdade, em plena luta pela superação da linguagem tonal na 
música, que é a da ópera convencional, até Wagner, no caso alemão, porque 
já o Wagner ultrapassa um pouco, embora não totalmente. Mas ele rompe com 
as convenções da linguagem tonal e introduz alguns ingredientes que 
funcionam com encrenca para o ouvido, viram ruído. 
Pois bem, a discussão sobre a linguagem tonal e a música dodecafônica, que 
já existia na década de 20, é exatamente a mesma discussão sobre drama e 
teatro épico. Então, na Alemanha, tanto as polêmicas em relação ao drama e 
as propostas de teatro épico são amplíssimas, assim como a polêmica entre 
Schöenberg, Alban Berg e outros e os músicos conservadores que queriam 
continuar fazendo óperas e outras coisas na linguagem tonal. É por isso 
mesmo aliás, eu tinha que ter falado no começo: quem ainda não achou esse 
livro O Teatro e a Cidade, que foi feito no ano passado, publicado pela 
Secretaria Municipal de Cultura, foi organizado pelo Sérgio Carvalho, ele é a 
organização em livro de uma série de palestras que foram dadas no Centro 
Cultural Vergueiro a propósito de teatro e política, por isso chama O Teatro e a 
Cidade. Então, tem desde palestras sobre o teatro grego até teatro 
contemporâneo e tem, particularmente, a intervenção do Wolfgang Storch. O 
texto dele chama-se O teatro político da República de Weimar e ele cita a 
encenação, primeiro, da peça Woyzeck, do Büchner, conta que o Alban 
assistiu, enlouqueceu e compôs a ópera. Então, a ópera, tudo aconteceu na 
República de Weimar. Porque, até a República de Weimar, o Buchner era 
incompreensível, porque ele já escrevia naforma épica, no início do século 19. 
Já era épico o teatro, formalmente, e pelo conteúdo. É só vocês pegarem o 
Danton. E o Woyzeck 
 
todo mundo aqui conhece, não é, não vou repetir -, 
qual é a marca do Woyzeck, que tornava impossível de encenar no século 19? 
Picadinho, uma cena não tem conseqüência direta na seguinte, são flashes, 
você assiste tudo e depois tem que pensar em casa, para juntar os fios. Então, 
a estrutura formal do Woyzeck é épica. E o Alban Berg compôs a música para 
transformar o Woyzeck em ópera. E é por isso que ninguém ouve o Woyzeck, 
porque ninguém consegue, pelo ouvido, decifrar o som, pois a música é 
dodecafônica. 
Então, assim como Ópera de Três Vinténs faz 
 
já estou falando do outro 
acontecimento, facultado pela teoria do teatro épico, mas não é que é a teoria; 
a teoria explica o que estava acontecendo, misturam-se os gêneros, os caras 
rompem as convenções, isso é ópera, isso é teatro declamado, isso é comédia, 
isso é drama, isso é agit-prop. Essa distinção, durante a República de Weimar, 
foi completamente rompida. Por isso que Ópera dos Três Vinténs, pensando 
bem, não dá para classificar, porque ela mistura o que vem da ópera, o que 
vem da comédia, o que vem do teatro declamado, você tem cena dramática, 
você tem cena cômica, junto. Porque a ópera está rompendo com os diquens 
que separam um gênero do outro. No caso do Woyzeck, o Alban Berg vê que é 
um experimento, do ponto de vista literário, da maior relevância e ele tem que 
compor a música à altura do que o experimento literário pede e é por isso, 
repito, que até hoje o Woyzeck é uma obra incompreensível, porque os críticos 
musicais também não sabem ouvir música dodecafônica, assim como crítico 
formado na escola do drama não sabe, não entende, uma peça do gênero 
épico. Eu estou falando até hoje, século 21. 
É assim, então, que, com a Ópera de Três Vinténs, nós podemos dar por 
completo o processo. A partir da Ópera de Três Vinténs, o que o Brecht vai 
fazer é só aperfeiçoar os seus instrumentos, tanto teóricos quanto poéticos, 
quanto dramatúrgicos, porque o básico 
 
e depois que o básico está 
estabelecido é só você seguir. Ele não tem que fazer propriamente revisão 
 
não, isso aqui estava errado. O que ele faz, isso sim, ao longo da vida inteira, e 
é só vocês pegarem 
 
naturalmente ainda não está completa a publicação no 
Brasil 
 
os diários dele, desde que ele foi para o exílio, em 34, 35, mais ou 
menos. Até a morte, ele tem entradas quase que diárias e fazendo comentário 
e crítica sobre os próprios trabalhos. Só para dar um exemplo, em 40 e alguma 
coisa, por conta da experiência que ele está tendo nos Estados Unidos para a 
produção do Galileu Galilei, ele escreve que a peça Galileu é uma peça 
tecnicamente oportunista. Ele escreve isso. Ele diz que usou, fez excessivas 
concessões à concepção dramática em cena, enfim, para facilitar a própria 
vida. Do mesmo jeito, tudo no mesmo dia, ele escreve, do mesmo jeito que fez 
com Mãe Coragem. Ele se considera, ele, autor do texto, responsável pelos 
mal-entendidos que tanto Galileu quanto Mãe Coragem provocam, porque 
nenhuma das peças produz o necessário estranhamento, o público não 
percebe a gravidade da trajetória do Galileu, se toma de amores por ele, vira 
herói da civilização, como ele já é, o Galileu é um herói da burguesia. Então, 
lendo a peça, o público não é capaz de fazer a crítica que tem de ser feita ao 
Galileu, embora haja materiais. No início estão dados os materiais para fazer a 
crítica do Galileu, mas a evolução que ele dá do ponto de vista da construção 
da cena acaba colocando debaixo do tapete esses materiais, que estão no 
texto. A mesma coisa, a Mãe Coragem. Ele diz: as pessoas não percebem que 
a Mãe Coragem é a Alemanha, acabam caindo na relação família, ficam com 
dó, porque sabe como é... mãe, não é? Ninguém percebe que a mulher é uma 
pústula, ninguém percebe que o interesse material dessa mãe é a guerra, todo 
mundo põe debaixo do tapete. Ele se considera, como escritor, responsável por 
esses mal-entendidos. Quer dizer, eu acho que é preciso respeitar um artista 
desse nível, que não faz concessões nem para si próprio. 
O que eu vou dizer agora para encerrar 
 
acredito que eu falei o básico, vocês 
é que vão me confirmar ou desmentir -, o fato é que, nesse processo, eu repito, 
mesmo sendo um grande dramaturgo já reconhecido, o Brecht continua 
atuando em todos os campos. Ele escrevia peças para serem encenadas em 
reuniões de trabalhadores, peças didáticas. Ele escrevia roteiro de filme, 
adaptou a Ópera de Três Vinténs para filme. E deu uma briga que já resultou 
num livro bem gordinho, porque, na verdade, quando ele aceitou fazer o roteiro, 
vender o roteiro para a indústria cinematográfica alemã, ele sabia que ia bater 
de frente com as regras de produção de mercadoria cultural porque um filme é 
impensável, por enquanto, fora da condição de mercadoria. Por causa disso, e 
também pelo processo 
 
daí, a gente tem que ver a história do cinema -, mas 
não essa: o primeiro grande cineasta foi o Griffith não, foi fulano... A história do 
cinema é a história da luta, guerra, dos estúdios, que viraram Hollywood, contra 
os produtores livres de filmes. Produtores, os caras que 
 
porque fazer cinema 
era muito barato, você comprava a maquininha, rodava e depois ia passar no 
teatro e tal. Os estúdios viram que tinha aí um mercado e vieram para cima e 
nós, brasileiros, que discutimos tanto a produção de filmes, ora... o Brasil foi 
incluído na repartição do mundo na primeira década do século 20. Então, o 
mercado brasileiro de cinema é dos Estados Unidos e boi não lambe. Foi 
guerra o que eles fizeram para obter isso e guerra comercial você sabe que 
pode ser feita... primeiro, chamando o cara e oferecendo um dinheiro para ele 
vender o negócio dele para você, se ele não vender, você pode matar o cara, 
diretamente, ou você impede o cara de entrar no mercado, controlando os 
meios de distribuição. Pois bem, quando o Brecht foi negociar com a indústria 
alemã o roteiro da Ópera de Três Vinténs essa guerra estava em andamento. 
Então ele sabia que ia ter problemas mesmo, inclusive do ponto de vista 
técnico. Por quê? Porque uma coisa é você filmar dramaticamente um roteiro e 
outra você filmar qualquer roteiro como ele precisa ser filmado. Por natureza, o 
roteiro de cinema é gênero épico. Um roteiro de cinema é formalmente épico, 
mas você pode transformar um conteúdo épico em conteúdo dramático. É uma 
questão de técnica. E o Brecht já sabia disso. Aliás é uma delícia quando ele 
se refere ao modo como o padrão hollywoodiano 
 
que não é exclusivo de 
Hollywood 
 
prevaleceu, ele acha que o próprio Chaplin tem responsabilidade 
nisso. Ele diz: o cinema abandonou a sua vocação original, que é épica, e 
começou a fazer drrrrrrr, pôs 15 erres, drrrrrrrrrrrrrrama. O cinema ficou 
dramático, sendo um gênero épico do ponto de vista formal. Mas o cinema 
virou drama, porque foi ganha, pela indústria americana, a batalha da 
distribuição. Essa é uma história que todo mundo precisa conhecer. Pois bem, 
o Brecht, naturalmente, já entrou brigando e saiu brigando mais ainda com o 
estúdio que filmou a peça dele. E, como ele perdeu na negociação amigável, 
ele contratou um advogado para processar a companhia. Não que ele achasse 
que ia ganhar. Você não ganha, de acordo com a legislação em vigor, um autor 
não ganha um processo movido contra um estúdio cinematográfico, assim 
como nenhum de vocês, se abrir um processo contra a Globo... não vai ganhar, 
mesmo que esteja coberto de razão, porque a lei garante que você não ganha. 
Então, ele levou avante o processo puramente por espírito de porco, ele sabia 
que ia perder, mas estava fazendo um experimento sociológico, ele declara 
isso. Ele queria perder, mas queria produzir material para queo caso dele 
servisse de instrução para outros que tivessem que lidar com organizações 
como a Globo e estúdios cinematográficos. Isso aconteceu no fim dos anos 20, 
mas 
 
aí é um ponto importante do texto aqui do alemão 
 
acontece que o 
Brecht parou de acreditar que ia ter uma revolução em 1929. Foi no dia 1º de 
maio de 1929, quando a social democracia mais uma vez massacrou os 
trabalhadores na rua. Porque as várias organizações chamaram para 
manifestações de rua no 1º de maio e o partido mandou avisar que não era 
para ter manifestação no 1º de maio. Mas como houve as manifestações, eles 
foram massacrados. E o KPD, que era o partido comunista, pelo modo como 
ele atuou, desencantou de uma vez o Brecht. Então, ele, que não tinha se 
filiado ao Partido Social Democrata, acabou se convencendo de que muito 
menos se filiaria ao Partido Comunista. Então, desde 29 
 
há dúvidas e 
polêmicas sobre isso, mas eu tendo a achar que é isso mesmo -, o Brecht 
sabia já que não tinha mais revolução no horizonte próximo, o que não o 
impediu de continuar escrevendo peças e fazendo, inclusive, um filme da maior 
importância, um filme de tipo documentário, chamado Kuhle Wampe, sobre a 
maneira como o Partido Comunista alemão esvazia a luta política dos 
trabalhadores. Detalhe é que o filme tinha sido encomendado pelo Partido 
Comunista alemão. 
Aí aconteceu o desastre que essas ações do Partido Social Democrata vinham 
anunciando desde 1919: o massacre da revolução. Se a classe trabalhadora 
não faz a revolução, a classe dominante chega uma hora em que resolve pôr 
ordem na bagunça. E isso foi feito por intermédio do Hitler. O Hitler virou 
primeiro-ministro em janeiro de 1933, por uma manobra parecida com a que 
elegeu Severino presidente da Câmara. É verdade, o menor partido do 
parlamento alemão era o nazista, não tem explicação política, de lógica 
política, para a promoção do Hitler a premier. Ele vira primeiro-ministro por um 
golpe parlamentar e legítimo pelas regras da democracia parlamentar, esse é 
que é o problema. É por isso que eu não acredito em democracia parlamentar. 
Se pode produzir um Hitler, como pode produzir um Severino, alguma coisa 
está errada na regra de funcionamento. Aí ele vai, devagarinho, dizendo a que 
veio e em 27 de fevereiro, todo mundo sabe, temos um incêndio do parlamento 
alemão. E, naturalmente, os comunistas foram não só acusados do incêndio, 
como julgados e condenados pelo incêndio. O Brecht trata deste assunto na 
peça A Resistível Ascensão de Arthuro Ui. Quer dizer, todo mundo sabia que 
tinha sido o Partido Nazista o responsável e todos os que participaram daquele 
teatro épico nazista que foi o julgamento dos comunistas acusados do incêndio. 
Pois bem, o Brecht foi embora da Alemanha no dia seguinte, ele não esperou 
para ver o julgamento. E o golpe de Estado e a transformação do Hitler em 
autoridade máxima, independente do parlamento, logo em seguida, durante o 
mês de março de 1933. Então, o que aconteceu com os 150 mil sócios da 
Volksbühne ? O Hitler dizimou durante o ano de 1933. Agora eu vou citar uma 
pesquisadora da época: bares, diretórios de partidos, sindicatos, jornais, 
livrarias, salas de leitura, clubes, hospitais, escolas, centros de assistência 
social e teatros que fizeram o tecido da cultura de Weimar foram os primeiros 
objetos da onda de vandalismo oficial realizado em nome da ordem, da 
decência pública e da economia. Isto é, o Hitler prendeu, matou, tocou fogo e 
ocupou, com o Partido Nazista, todos os equipamentos produzidos pelos 
trabalhadores na sua luta cultural. Por isso mesmo é que a continuação dessa 
história eu vou falar na próxima vez, porque aí é o Brecht no exílio. Na verdade, 
eu só falei dos pressupostos. 
Intervenção (inaudível) 
Iná Camargo Costa 
 
Primeiro, a questão da atualidade do Brecht. Eu acho 
que ele tem uma primeira, inegável, que é a atualidade do mundo que foi criado 
porque não houve a revolução. E como ele já era veterano de uma revolução 
massacrada e via a coreografia do Partido Social Democrata no poder e 
providências silimares em outros lugares do mundo, além do pé atrás absoluto 
que ele tinha em relação ao que já estava acontecendo na União Soviética, que 
ele acompanhava, ele tinha amigos que estavam sendo perseguidos pela 
ortodoxia stalinista, depois de 24, da morte do Lênin, eu acho que... 
Só mais uma digressãozinha: ele chegou a expor para os amigos, na altura de 
28, a intenção de se candidatar a filiado do Partido Comunista. Amigos dele 
que eram do Partido Comunista, como, por exemplo, o Hans Eisler, e muito 
conhecedor dele, Brecht, disse, olha é melhor você não fazer isso porque a 
gente te conhece, você não vai se submeter à disciplina, você não submete a 
sua opinião a uma decisão. Então, das duas uma: ou eles te aceitam e você vai 
ser expulso daqui a um ou dois meses, o que é muito provável, ou eles nem te 
aceitam, o que vai ser gravíssimo. Porque, naquele momento, em 1928, você 
ser recusado pelo Partido Comunista virava uma declaração do tipo esse cara 
é um inimigo da classe trabalhadora. Não se pode esquecer do poder sobre a 
opinião pública no âmbito da política que o Partido Comunista tinha. Quando 
nada, porque ele tinha pelas costas a revolução soviética. Então, os amigos 
aconselharam a não tentar fazer parte, ser militante de carteirinha do partido 
porque os riscos eram muito grandes. 
Então, fecha a nota de rodapé para entender duas coisas: o Brecht já tinha 
visto que a revolução soviética não ia se expandir, que era a promessa do 
Stalin e da 3ª Internacional. Aliás, perguntem depois para o José Fernando 
(Peixoto de Azevedo), que é um assunto que ele está estudando. Qual é a 
avaliação que o Brecht faz da coreografia da 3ª Internacional. Resumindo, ele 
não acreditava que os métodos comunistas, já completamente, digamos assim, 
instalados, fossem levar os diferentes países a uma revolução comunista. E ele 
tinha concretamente acompanhado o que aconteceu na China. Infelizmente, eu 
não posso tratar disso, mas espero que o Zé (José Fernando Peixoto de 
Azevedo) trate, faz parte da pesquisa dele e, por isso, eu acho que é ele quem 
deve tratar. 
Então, o Partido Social Democrata não enganava a um cara como o Brecht, 
embora as más línguas digam que o amigo dele, Kurt Weil, fosse militante. Até 
hoje não encontrei nenhuma demonstração cabal, mas, de qualquer maneira, a 
circulação deles todos 
 
não apenas Brecht e Kurt Weil 
 
pelos partidos, pela 
parte interna do funcionamento dos partidos, a discussão sobre o processo, era 
cotidiana. A percepção e a avaliação que ele tem da coreografia da esquerda 
produz intervenções na polêmica teórica e na produção teatral que continuam 
atuais e... 
INTERRUPÇÃO 
... que o capitalismo produz. Então, no mundo como o que nós vivemos hoje, 
com a guerra do Iraque anunciando o apocalipse da humanidade, a obra do 
Brecht é atual ela mesma. Mas, sobretudo, eu penso, o exemplo do Brecht é 
atual nesse sentido, da exigência máxima de compreensão dos movimentos, 
desde o Bush, que leva a discursos absolutamente cínicos, como o de que nós 
vamos levar a democracia lá pelo poder das armas. É esse o discurso , é isso o 
que eles estão anunciando que vão fazer na Venezuela. Então, a percepção do 
grau de convicção dos responsáveis pelo estado de coisas que tem como 
horizonte o apocalipse é uma coisa fundamental. É o exemplo do Brecht. E, de 
outro lado, a capacidade de criticar todas as formulações que não apontam 
para um horizonte, porque não apontam. Aí é que entra a diferença do teatro 
do Brecht em relação aos teatros que alegavam investir na transformação. De 
novo, algumas observações: o Brecht, nem nas peças didáticas, tem receita, 
ao contrário do que os inimigos afirmam. O teatro do Brecht não é um teatro do 
faça isso, faça aquilo, faça como eu. O teatro do Brechté um teatro de desafio 
à sua inteligência, às suas emoções, às suas categorias de percepção do 
mundo. Por isso, revelação: ele propõe experimentos nos quais você tente 
mudar o seu modo de ver aquelas coisas. Ao invés de sentimentalmente 
comprar o pacote do personagem, olhar de maneira crítica para o modo como 
esse personagem se comporta, desde a percepção de um personagem 
individualmente até as situações, que são, em graus variáveis de 
complexidade. Essa é a outra exigência: você não se satisfazer com o que diz 
o personagem. Você tem que pensar no que ele diz pra quem, em que situação 
e em que contexto altamente complexo essa situação está determinada. 
Porque o Brecht faz isso. Então, é nesse sentido que o teatro dele é mais de 
revelação, no sentido materialista facultado pelo desenvolvimento da 
eletricidade, é revelação no sentido iluminativo. Ilumina isso, porque com luz 
você enxerga melhor que no escuro. A palavra revelação, aqui, não tem 
nenhuma conotação religiosa, você não vai ter uma epifania diante de uma 
peça do Brecht. Diante de uma peça do Brecht você tem a chance de ver 
melhor alguma coisa ou de prestar a atenção numa coisa na qual você nunca 
reparou. Então, o teatro épico não tem nenhuma promessa, ele é crítico nesse 
sentido. Até o último dia da vida do Brecht, ele fez peças de crítica, mesmo as 
didáticas, por oposição a grupos de agit-prop que, em graus variados, diziam 
fazer e alguns faziam, teatro de transformação. Em que sentido? No sentido de 
intervenção. Mas, aí, eu sou a favor também, você tem um grupo de agit-prop e 
o sindicato vai lá para uma assembléia e pede para o grupo: faça uma cena 
para ilustrar a nossa proposta. Aí, é o teatro de transformação mesmo. O grupo 
vai à assembléia, encena as vantagens dessa proposta, ou as desvantagens 
da outra, e a cena ajuda a assembléia a votar. Essa é uma diferença 
importante. Eu não excluo uma nem outra, desde que você, que está fazendo, 
não se engane, porque uma modalidade de teatro que é altamente funcional 
numa assembléia, num ato público, isso que o MST vai fazer em Brasília... isso 
é uma coisa que depende das circunstâncias em que está sendo feita. Agora, 
você achar que uma peça que funciona numa assembléia, para ajudar o 
plenário a se decidir 
 
e aí é legítimo o trabalho de convencimento atropelado, 
a retórica da cena política, porque eu acredito nessa palavra de ordem, então, 
eu vou defendê-la com todos os recursos que eu puder. Esse é o teatro de 
transformação. O que não dá certo é você achar que isso funciona no 
espetáculo, a pessoa paga na bilheteria para assistir a uma defesa de uma 
palavra de ordem. Aí é uma bobagem, igualzinha à bobagem da indústria 
cultural. Porque uma das características da indústria cultural é justamente 
essa: retirar aquilo que tem sentido numa circunstância específica e 
transformar em mercadoria para, aparentemente, dar sentido em qualquer 
circunstância. A gente sabe que isso não é verdade. 
Intervenção - ...Tambores na Noite... personagem para motivar, engrossar a 
revolução. E, em determinada hora, ele trai e se distancia e volta para a 
pequena burguesia. Seria esse o papel que o PT se incumbiu de fazer?... Você 
falou sobre o Partido Social Democrata... na sua exposição... 
Iná 
 
É tudo isso que você falou. A sua percepção em relação à peça está 
certa e a sua comparação também está certa, na minha opinião. Mas, isso é 
uma opinião política e, portanto, discutível como qualquer outra opinião política. 
É assim que eu leio... 
Intervenção - ...Santa Joana... (inaudível) 
Iná 
 
Não, aí não tem erro. A Santa Joana é para ilustrar como é que a 
organização religiosa intervém na luta de classes para esvaziá-la. Essa é a 
tese da Santa Joana e não estou eu inventando, o Brecht escreveu isso nas 
notas sobre a Santa Joana. Ele escreveu. O comportamento da Joana ilustra a 
função das organizações religiosas, no plural, na luta de classes. É para 
esvaziar mesmo. Eu pensei que você ia falar do Partido Comunista, porque a 
maior polêmica da Santa Joana é em relação ao papel dos comunistas na 
peça. Ele mostra 
 
é a minha tese, eu brigo com o mundo inteiro por causa 
dessa tese. A minha tese é a seguinte: ele mostra os comunistas da República 
de Weimar como baratas tontas no processo da luta de classes, não 
conseguem fazer interlocução nem com os trabalhadores organizados em 
sindicato, que dirá com a massa dos trabalhadores. Esses são uns palhaços, 
no sentido politicamente incorreto que foi definido pelo PT. São os palhaços da 
República de Weimar. Essa é a minha tese. Ninguém concorda comigo, mas 
eu vou levar essa minha opinião para o túmulo, porque eu sou teimosa. 
Intervenção 
 
Você falou um pouco sobre a briga dele com a indústria do 
cinema, mas, na verdade, o teatro também é uma mercadoria... agit-prop... 
você acha que na peça didática ele formula alguma saída para a questão da 
mercadoria... 
Iná 
 
Ele não acha que a arte seja capaz de formular saída. O artista não é 
capaz de formular saída. O artista, quando muito, germanicamente pensando 
 
e ele é um alemão ortodoxo 
 
então, qualquer moleque que fez colegial na 
Alemanha no tempo dele conhece Kant. Kant explicou e essa é uma questão 
que, enquanto o mundo for o que é, continua definida por Kant: o artista, na 
mais otimista das hipóteses, é capaz de formular uma imagem do que seria um 
mundo pacificado. Mas, como a formulação do mundo reconciliado depende de 
encarar o pau da barbárie, acaba prevalecendo o conteúdo de barbárie que é o 
seu presente. Então, até a imagem da utopia fica prejudicada, como imagem, 
jamais como conceito. E se não é conceito, que dirá programa político. Então, o 
maior dos erros dos críticos do Brecht é achar que ele ilustra alguma palavra 
de ordem. Ele não faz isso. Ele não faz, primeiro, porque não acredita nesses 
palhaços leiam a Santa Joana e vejam o que é o Partido Comunista na Santa 
Joana. Vejam... ele vai lá dentro, ele vê todo o esvaziamento que o partido, 
como organização, produz. Ele vai num acampamento, filma, 
documentalmente, um acampamento de trabalhadores organizados pelo 
Partido Comunista. E, ao invés de discutir política, os caras ficam fazendo 
corrida de saco, ovo na colher. Tenha dó. Eu dei esse exemplo porque é o que 
eu sei de acampamento. Lá é outra bobagem, natação, enfim. Que política está 
em andamento? E o pau comendo lá, no parlamento e nas outras instâncias de 
luta propriamente dita. Então, o artista, quando ele é muito bom, como é o caso 
do Brecht, ele joga luz sobre os aspectos do presente que lhe permitem, mal e 
porcamente, imaginar um futuro. Mas a imagem desse futuro, não dá para 
produzir. Se não dá para produzir a imagem, você não vai produzir o caminho 
que leva a ela. O caminho que leva a ela é a luta política. Então, é por isso que 
a aliança do intelectual, no sentido sério da palavra em alemão, que é capaz de 
entender o mundo 
 
que é o desafio que se coloca para os intelectuais 
 
e os 
políticos aliados, capazes de formular uma saída. O artista, quando muito 
 
é o 
caso do Brecht -, pode estar ali tomando conhecimento. Ele começou a estudar 
 
isso ninguém gosta de falar 
 
assim que ele chegou em Berlim e nunca mais 
parou de estudar. O que ele estudava? Por exemplo, na época em que ele 
escreveu o Happy End, ele estava estudando O Capital, do Marx. Freqüentava, 
lá, uma das escolas do Partido Social Democrata e arranjou uma espécie de 
professor particular porque ele queria entender mesmo. Aliás, o Happy End 
ilustra teoremas do Capital. Santa Joana dos Matadouros também, que, aliás, é 
abstraída do Happy End. Livro 2 do Capital, teoremas, crise de abastecimento, 
que produz desemprego. Lá no Rio Grande do Sul, a indústria do calçado, o 
pessoal reclamando do dólar, coisa nenhuma, é crise de super produção. 
Entãovocê demite os trabalhadores, porque não tem mais mercado. Aí eles 
reclamam da China. Para entender essas coisas, precisa entender o capital. O 
Brecht começou em 1924 esses estudos e nunca mais parou de estudar. Isso 
ele escreveu: ao contrário do que a ideologia afirma, a realidade em que nós 
vivemos não é imediatamente compreensível. A psicologia, Freud, essas 
coisas, podem ajudar a entender como as pessoas se dão mal nessa realidade. 
Então, não é por introspecção que a gente vai se situar no mundo. A gente só 
se situa no mundo se a gente entender o mundo. Como ele não é evidente, as 
regras do jogo do capitalismo que nós vivemos podem ser qualquer coisa, 
menos evidências. Então, se a gente não entender o capitalismo, a gente não 
vai fazer a crítica o capitalismo no estágio em que ele se encontra hoje. 
Intervenção (inaudível) 
Iná 
 
Olha que contraponto maravilhoso. No caso, o que é a cabeça de um 
capitalista ligado nos acontecimentos. Com a volta dos veteranos da guerra, 
dali a nove meses, o que vai ter de criança no pedaço. 
Interveção 
 
Iná 
 
Ela lembrou que o cara, o pai de Tambores na Noite, era da indústria 
bélica, mas como acabou a guerra ele vai mudar de ramo. Ele vai passar a 
fabricar carrinhos de bebê. Olha o que é a cabeça de um capitalista ligado nas 
janelas de oportunidades do mercado. Você pára de fabricar agentes da morte 
e passa a fabricar veículos de vida, carrinhos de bebê. São as coisas que o 
Brecht faz. Esse tipo de exemplo, você encontra desde o Baal. Não tem um 
texto dele que não tem um achado absolutamente iluminador como esse. E 
isso não é a simples genialidade, é uma das especialidades dos alemães. 
Vocês peguem, por exemplo, as peças expressionistas, que tratam da 
revolução, da guerra... vocês não acreditam. Aliás, alemão é muito bom de 
contradição. Não é por acaso que o primeiro filósofo da dialética é um alemão. 
Segundo ele mesmo, o Hegel, a língua alemã... no prefácio de um dos livros 
dele 
 
sem nenhuma conotação nacionalista, é uma reflexão sobre a língua 
alemã -, ele diz que a língua alemã é particularmente propícia ao pensamento 
dialético. Daí, ele dá uma lista, está assim de palavras em alemão que dizem 
uma coisa e o seu contrário, a mesma palavra. Então, uma pessoa que nasce 
na Alemanha tem que ser dialética porque, se não, não entende a própria 
língua. Você tem, o tempo todo, que saber se eu estou falando de garrafa ou 
não-garrafa. Eu, como não sei alemão, acredito num cara que está fazendo... 
Acho que está na introdução ou prefácio de Ciência da Lógica. É nesse livro 
que ele realmente fundamenta o pensamento em movimento. Porque, na 
verdade, a dialética não é outra coisa senão o movimento natural e obrigatório 
do pensamento. A briga dele com a lógica convencional e com a matemática é 
que esses pensam o pensamento como se fosse fotografia, tudo parado, e ele 
acha que a lógica tem que configurar o modo como o pensamento se move. Se 
vocês pensarem no que vocês estão pensando, vocês verão que isso é 
verdade. Aliás é uma idéia: dois exemplos de coisas, isto é um cinzeiro e isto é 
uma garrafa. O meu pensamento tem que transitar do conceito de cinzeiro para 
o de garrafa. O que interessa para o Hegel é o trânsito. E mostrar 
 
olha que 
genial (quem me fez essa pergunta?, por que eu vim falar de filosofia?, não era 
esse o assunto). Mas, enfim, olha o gênio, coisa de alemão -, para você saber 
que uma garrafa é uma garrafa mesmo, o conceito, não a coisa, porque a coisa 
é da vida real. Elaborar o conceito de garrafa implica em saber que garrafa é 
garrafa na vida real, mas, para eu saber que isso é garrafa e não isto, eu 
preciso saber o que não é garrafa também. Pensem para ver como ele tem 
razão. Eu só posso dizer com profunda convicção: isto é uma garrafa porque 
eu sei também que isto, isto e isto não são garrafa. Logo, o conceito de garrafa, 
tal como eu tenho na minha cabeça, inclui a idéia de garrafa e a idéia de não-
garrafa. Logo, o conceito de garrafa inclui garrafa e não-garrafa. Daí a palavra 
alemã dizer o que ela é e o que ela não é na hora em que se enuncia. Fala 
sério, o cara é dez. De fato, eu como sou marxista, leninista, pra mim é o último 
filósofo. Depois do Hegel, acabou, não tem para mais ninguém. Nem precisa 
perder tempo com filosofia. Como já disse o professor do Marx, os filósofos 
ficaram interpretando o mundo, vamos agora transformar, depois a gente vê o 
que faz. Por enquanto a palavra de ordem é transformar o mundo. 
Então, sem dialética, o Brecht também é incompreensível. E, voltando, para 
qualquer moleque que fez colegial na época em que ele fez, dialética é arroz 
com feijão, faz parte do cardápio de qualquer estudante de 13, 14 anos pelo 
simples fato de estudar gramática, fazia. Não posso falar nada sobre o que 
aconteceu na escola alemã depois do Hitler, não sei o que acontece hoje. Mas, 
se vale alguma boa notícia, depois que acabou o nazismo, o Partido Social 
Democrata alemão, aqui no ocidente, assim como o comunista, retomaram a 
experiência do teatro livre e, na década de 60, tudo somado já tinha mais de 
500 mil sócios. É um fato até hoje, da experiência teatral alemã à estrutura, a 
organização do teatro livre, que se chama livre porque não se submete às leis 
de mercado. 
Sobre a pergunta: o que fazer? Outra coisa é que não dá para contar com o 
Partido Social Democrata brasileiro. 
Intervenção 
 
Iná 
 
Esvazia. A pirataria semântica esvazia os conceitos e eles começam a 
designar qualquer coisa, menos aquilo que designam. Como, por exemplo, o 
conceito de pressuposto. A pirataria semântica foi uma expressão 
 
não sei se 
cunhada, eu espero que sim, pela nossa amiga Cibele na palestra que ela deu 
ontem sobre o esvaziamento do Estado, digamos assim, para pegar leve. E faz 
parte do processo que nós vivemos... neo-liberalismo é pirataria semântica, 
globalização é pirataria semântica... São palavras que você inventa para dar 
um nome novo a um boi velho porque a palavra imperialismo é muito, digamos 
assim, bandeirosa. Então, você tem ou palavras que esvaziam o objeto que 
elas designam ou palavras que têm um sentido específico, como, por exemplo, 
incentivo fiscal, e elas passam a designar qualquer coisa, menos aquilo que 
elas identificam. O exemplo que o Brasil deu foi justamente o do incentivo 
fiscal. Incentivo fiscal não quer dizer mais nada. No evento da Cibele, cidadania 
não quer dizer mais nada. No máximo, hoje, designa direito de consumidor. 
Então, os conceitos recentemente, e não é tão recente assim, estão sendo 
seguidamente vítimas de pirataria semântica, ou por esvaziamento ou por um 
conteúdo que desvia o foco, como globalização. 
Intervenção - ... aconteceu isso com o comunismo. E hoje em dia é uma 
palavra que ninguém gosta de usar... 
Iná 
 
De repente, acho que temos que resgatar: socialismo, comunismo, a 
história de tudo isso, acertar contas com as heranças horrendas... Não pode 
pôr os fatos históricos por baixo do tapete, tem que enfrentar. Aconteceu? O 
Stalin é um fato. Aconteceu? Temos que enfrentar a herança que ele deixou. 
Mas, enfim, isso é outro assunto. O meu exemplo pressuposto foi pirateado 
e passou a designar qualquer antecedente, independente dele ter relação com 
o fenômeno. Quando eu uso pressuposto, tudo o que eu falei aqui é 
pressuposto do conceito de teatro épico. Então, essa palestra que eu dei pode 
ser chamada Pressupostos do Teatro Épico e o Papel do Brecht. Então, os 
pressupostos do teatro épico são de ordem teórica, ideológica, histórica, social, 
política e pessoal, porque a experiência pessoal dele também conta. Tudo isso 
entra como pressuposto. As pessoas que usam não estão pensando assim. 
Intervenção (inaudível) 
Iná 
 
Não. O papel da Internacional naquele momento da China, a 
Internacional Comunista, ao invés de apoiar oMao Tse-Tung, apoiou o Chiang 
Kaichek. O Chiang Kaichek deu Formosa e Mao Tse-Tung fez a revolução. Fez 
a revolução porque brigou com a 3ª Internacional. O Brecht é testemunha 
desse processo: o modo como a Internacional apóia o Kuomintang por causa 
dos interesses de Stalin em Moscou. Então, em nome da manutenção da 
camarilha do Stalin em Moscou, você apóia a burguesia e não os trabalhadores 
chineses. E denunciaram, como fizeram, mundialmente, o Mão Tse-Tung como 
o traidor da revolução. Isso nos anos de 24 a 29. Para o Brecht, o papel anti-
revolucionário que a 3ª Internacional já estava desempenhando é evidente, no 
caso da China. Para vocês terem idéia, o Mão Tse-Tung só foi, por assim dizer, 
se acertar com a União Soviética bem avançados os anos 60, mais de dez 
anos depois da revolução. Ele não teve nenhum apoio de Moscou no período 
em que ele realiza a grande marcha. O Mão Tse-Tung fez a revolução na 
China, apesar de Moscou. E o Brecht é contemporâneo da traição 
 
não tem 
outro nome -, a traição da 3ª Internacional, ao apoiar o Chiang Kaichek. Ora, 
isso que eu estou falando é o assunto da peça do Brecht A Decisão. 
Desmoraliza o jovem militante porque ele se recusa a fazer aliança com o 
comerciante. O comerciante é a burguesia. Então, sem conhecer, inclusive 
esses detalhes, você não entende a peça. 
INTERRUPÇÃO 
Intervenção (inaudível) 
Iná 
 
É só você ler os poemas dele. Ele sempre se sentiu pessoalmente 
concernido pelas questões de que ele tratou, em qualquer dos gêneros. Você 
sabe que ele escreveu inclusive romances, crônicas, pequenos contos. 
É isso o que eu digo, a parte subjetiva, a trajetória pessoal, experiência 
localizada com a família, a coisa da guerra, a coisa da república dos 
conselhos... isso é tudo trajetória pessoal. Ele foi fazendo as escolhas dele. 
Intervenção 
 
Iná 
 
Não. Não é assim. Ele sabe que está subjetivamente envolvido. Mas não 
é só aí não. Por exemplo, nas histórias do sr. Keuner, você vê muito bem isso, 
no Me-ti, que infelizmente não temos traduzido para o português. Vou dar um 
exemplo, que está no Me-ti. Ele era estudante de Medicina. Pela experiência 
na guerra, como enfermeiro, ele abandonou os estudos de Medicina e se 
tornou adepto, como paciente, da homeopatia. E ele faz uma defesa da 
homeopatia em relação a alopatia e acha que os chineses tem algumas dicas 
sobre um pensamento político de tipo homeopático. Fala sério. Isso está no 
Me-ti. 
É isso. No caso do Brecht, não só a subjetividade é relevante, a individualidade 
é relevante, como a dele mesmo também é. Por último, o mais evidente como 
resposta para a sua pergunta, são as observações dele nos diários. Você 
precisa ver que coisa impressionante. Ele faz observações sobre as 
experiências dele que são de cair o queixo. 
Intervenção 
 
Iná 
 
E aquele estudo que ele faz sobre o Charles Laughton. Ele tem um 
estudo sobre o modo como o Charles Laughton ajudou-o a traduzir o Galileu 
para o inglês. E ele começa a contar, vocês, leitores, podem imaginar a 
pândega, um alemão que não sabe inglês trabalhando com um inglês que não 
sabe alemão. Esse foi o trabalho de tradução para o inglês. Aí, as providências 
que o Charles Laughton tomou para criar o personagem do Galileu. É um 
depoimento dele. Então, entra tudo, porque ele não acha que tem que 
esconder nada. O interesse dele naquilo, enfim, a parte subjetiva é importante 
mesmo. Mas sem autocomiseração e sem ideologia. Para o Brecht, a produção 
da subjetividade é uma sucessão de enfrentamentos de interesse e, nesse 
sentido, ele coincide quase 100% com o Freud. Você constitui a sua 
subjetividade afirmando os seus interesses materiais. E por interesse material, 
o Freud está falando em alimento, etc. E fica neurótico quando você não 
consegue nem afirmar e nem se dar conta do porque não conseguiu afirmar. 
Aí, você surta. Então, também é útil estudar uma ou outra coisinha do Freud 
para perceber essa concepção materialista da formação da subjetividade. E, de 
novo, tem que ser dialético, porque o Freud está estudando a neurose e ele 
não responde sobre o que não é neurótico. E tem uma história que eu gosto 
muito de lembrar: a mãe que foi lá 
 
ah, doutor, como é que eu faço para o 
meu filho não ser neurótico? 
 
siga o seu coração porque ele vai ser mesmo, 
qualquer que seja a providência, vai dar errado. 
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