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VALTER LUIZ DE MACEDO PROVÍNCIA FLUMINENSE: um território a serviço da nação. Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientadora: Prof. Dra. Fania Fridman Doutora em Economia pela Universidade de Paris VIII, França Rio de Janeiro 2008 2 FICHA CATALOGRÁFICA M121p Macedo, Valter Luiz de. Província fluminense : um território a serviço da nação / Valter Luiz de Macedo. – 2008. 238 f. : il. ; 30 cm. Orientador: Fania Fridman. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. Bibliografia: f. 205-226. 1. Planejamento regional – Rio de Janeiro (Estado). 2. Território nacional. 3. Cidades e vilas – História. 4. Rio de Janeiro (Estado) - História. I. Fridman, Fania. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. III. Título. CDD: 981.53 3 VALTER LUIZ DE MACEDO PROVÍNCIA FLUMINENSE: um território a serviço da nação. Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. 4 Dedico este êxito à Roberta Azevedo da Silva por toda a base afetiva e apoio constante e incondicional para a sua realização e por sua companhia, amor e amizade em todos os momentos da minha vida. 5 Como registrar os meus agradecimentos aqui? Para não esquecer de ninguém, agradeço a todos que de alguma forma contribuíram para que este trabalho pudesse ser construído. Em especial, à minha orientadora Fania Fridman por todos os exemplos e incentivos constantes em nossa intensa e já duradoura trajetória de pesquisa e amizade. Também ao professor Maurício de A. Abreu (IGEO/UFRJ) pela sua presteza e consideração ao aceitar irrestritamente participar da minha banca examinadora, acrescentando-a em muito com as suas observações e presença. 6 O primeiro cuidado de um individuo e de uma Nação he sua conservação. Primeiro se existe, para depois curar-se do modo de existir. O primeiro objecto he vital, o modo de existir he segundário. João Calda Vianna, Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro Quer se situe em 1558 ou no ano da graça de 1958, trata-se, para quem quer compreender o mundo, de definir uma hierarquia de forças, de correntes, de movimentos particulares; depois, apreender de novo uma constelação de conjunto. (...) Cada ‘atualidade’ reúne movimentos de origem, de ritmo diferentes: o tempo de hoje data, ao mesmo tempo, de ontem, de anteontem, de outrora. Fernand Braudel, Escritos sobre a História 7 RESUMO Nossa pesquisa toma por contexto o processo de organização territorial brasileira a partir dos interesses internos pós-Independência, quando surge um ideário de Nação, para investigar as práticas que consolidaram a integração do território da província fluminense. Partimos da hipótese de que a política territorial imperial visava o fortalecimento de uma unidade nacional e procuramos observar que tal objetivo extrapolava a ordem econômica assentada na produção agrícola, apontando para o papel preponderante desempenhado pelas cidades, que, em redes, serviram de instrumentos de regulação e de controle sobre suas regiões. Consideramos que o ideal de Nação desenvolvido serviu como retórica para o controle territorial e que o projeto nacional implementado foi, em essência, um projeto de natureza urbana articulado em um contexto regional. Por envolver a Corte e congregar a maior parte da nobreza e da renda do Império, além da constatação de que o seu número de núcleos urbanos triplicou no período considerado, admitimos o território fluminense e sua sociedade nobiliárquica e estratificada como laboratório para nosso trabalho. Nossa intenção consiste no estudo do processo de integração entre distintas regiões, entre produção e comércio, potencializado pelo advento das ferrovias, mas não iniciado através delas. Visamos, no conjunto das “ideologias geográficas” que nortearam o período imperial brasileiro e seu projeto nacional, identificar a natureza do espaço produzido no caso fluminense. Palavras-Chave: Província Fluminense. Território. Nação. Cidade e Região. Planejamento territorial. 8 ABSTRACT The context of our research is the process of the Brazilian territorial organization through investigating the practices which solidified the integration of the lands of the fluminense province, from the internal interests during the period of post independence, when an idea of creating a Nation came up. We started from the hypothesis that the imperial territorial policy aimed at strenghthening a national unity and tried to observe that such objective overstepped the economical order settled in the agricultural production, pointed to the preponderant role played by the cities, which served as means of regulation and control over their regions. We considered that the ideal of a developed Nation served as a rhetoric for the territorial control and that the implemented national project was urban in essence, which was articulated in a regional context. We took the fluminense territory and its noble stratified society as a laboratory for our work, because the Court was involved and thus it congregated the most part of the nobility and the gains of the Empire. Besides, the triplication of urban centers was an evidence during that period. We mean to study the process of integration between distinct regions, between production and trade, powered but not started by the coming of the railroads. We aimed at identifying the nature of the development of the fluminense area in the set of the “geographical ideologies” which directed the Brazilian imperial period and its national project. Key-Words: Fluminense Province. Territory. Nation. City and Region. Territorial Planning. 9 LISTA DE FIGURAS E QUADROS Figura 1: Surgimento e evolução de núcleos urbanos coloniais a partir de um marco religioso. 123 Figura 2: Organograma da Administração Provincial 1834/1840 155 Figura 3: Organograma da Administração Provincial 1841/1846 156 Figura 4: Organograma da Administração Provincial 1846/1858 157 Figura 5: Organograma da Administração Provincial 1859/1875 158 Figura 6.1: Organograma da Administração Provincial 1876/1889 (1) 159 Figura 6.2: Organograma da Administração Provincial 1876/1889 (2) 160 Quadro 1: Inserção do Império em distintas periodizaçõesda História do Brasil 99 Quadro 2: Comarcas, municípios e freguesias na província fluminense (1843) 145 Quadro 3: Obras de infra-estrutura de circulação na província fluminense em 1843. 177 Quadro 4: Legiões da Guarda Nacional na província fluminense em 1843. 184 Quadro 5: Distritos eleitorais da província fluminense e Corte (1856). 185 Quadro 6: Datas para entrega dos saldos de arrecadação provincial (1882). 191 10 LISTA DE TABELAS E MAPAS Tabela 1: Percentual brasileiro na produção mundial de café (1820-1889). 51 Tabela 2: Principais produtos brasileiros para exportação - % (1821-1890). 51 Tabela 3: Vilas e cidades fluminenses criadas durante o período colonial. 126 Tabela 4: Principais receitas da província fluminense no ano financeiro 1841/1842 133 Tabela 5: Participações das províncias nas rendas gerais do Império (1859/1864) 133 Tabela 6: Vilas e cidades fluminenses criadas durante o período imperial 136 Tabela 7: Receitas da província fluminense por repartições (1841/1842 e 1843/1844) 189 Mapa 1: América Latina em 1830 69 Mapa 2: Desmembramentos da Capitania de São Paulo no século XVIII 102 Mapa 3: Divisão político-administrativa e povoamento em 1822 106 Mapa 4: Comarcas, municípios e freguesias na província fluminense (1843) 125 Mapa 5: “Certões” na Capitania do Rio de Janeiro no final do século XVIII 128 Mapa 6: Caminhos freguesias e aldeias na região de Vassouras no início do século XIX 135 Mapa 7: Aldeias, freguesias, vilas e núcleos coloniais na região de Campos (meados XIX) 143 Mapa 8: Comarcas na província fluminense (século XIX) 148 11 SUMÁRIO Introdução ........................................................................................................... 12 1. A pesquisa e seus caminhos.......................................................................... 1.1. O viés geográfico-histórico ........................................................................ 1.2. Posturas diante do objeto .......................................................................... 18 20 29 2. Território e cidade no Brasil imperial............................................................ 2.1. Notas sobre o período imperial brasileiro .................................................. 2.2. Do conceito de nação ao projeto nacional brasileiro ................................. 2.3. A base material da nação .......................................................................... 34 36 62 97 3. Cidade e nação na província fluminense...................................................... 3.1. O território legado ...................................................................................... 3.2. O movimento da economia fluminense e suas cidades............................. 3.3. Operacionalizando o território.................................................................... 117 118 131 149 Considerações Finais ......................................................................................... 200 Referências Bibliográficas ................................................................................. Fontes de dados primários.................................................................................... 205 219 Anexos 1. Os gabinetes do Segundo Reinado................................................................... 2. Reprodução de “A grande política” ................................................................... 227 228 Apêndices 1. Justiça no Brasil e no Rio de Janeiro................................................................ 2. Listagem dos Presidentes da Província Fluminense......................................... 230 233 12 Introdução Quando da transição do Brasil colonial para o Império, o termo “brasileiro” que, muitas vezes, era confundido com o termo “brasiliense”, denotava, em alguns casos, apenas aquele aqui nascido e, em outros, aquele aqui estabelecido, distante que estava da sua acepção moderna de identidade coletiva. Tal distância era compreendida pelo caráter secundário que esta questão mantinha quando da subjugação do Brasil à sua metrópole. No que se refere ao vasto território e a despeito do esforço português, a ocupação ainda era rarefeita, concentrada na faixa litorânea, pouco articulada e formada por aglomerados urbanos simplórios. A capital não fugia à regra. Estes dois exemplos, capturados do cotidiano social e da base física da colônia, mostram alguns dos obstáculos a serem superados a partir de 1822 quando a proclamada independência exigiria um “pensar” e um “fazer” a respeito da emancipação política do novo país. Processo este que, ancorado nas iniciativas do liberalismo nascente europeu no que se referia à formação de unidades políticas constitucionais, prontamente adotou a bandeira da Nação. No entanto, aqui, o projeto nacional defendido estava assentado na manutenção de características estruturais do momento histórico anterior como a forte desigualdade de classes e a escravidão. Marca principal da construção do Estado imperial brasileiro, o conservadorismo das elites dominantes assegurou uma configuração política ímpar no contexto da América Latina. A viabilidade da monarquia constitucional naquele momento foi garantida pelo viés patrimonialista e pelo receio de revoltas escravas como o fora no Haiti ou de radicalizações republicanas como se assistiu em toda a vizinhança. Inaugurada nestes termos, a nação a ser criada teria que encontrar meios para se fazer “brasileira” e abranger e ser soberana sobre seu território. Para além da manutenção da saúde econômica, assentada na produção agrícola, seus mentores deveriam preocupar-se com questões como a conquista de fronteiras, a manutenção da ordem, a gerência do espaço interno e suas relações, a arrecadação de impostos, a imposição de um credo, a unificação da língua e a 13 “civilização” dos seus membros, tomada à moda dos preceitos europeus de sociedade. Neste contexto, uma questão relevante passou a ser a integração territorial e a configuração a ser adotada para o emergente espaço nacional. Nossos estudos têm apontado para uma política imperial voltada para o fortalecimento desta unidade através da instituição de vilas e cidades. É exatamente diante da envergadura de tal projeto que, a nosso ver, o espaço urbano foi tomado como elemento-chave pelos seus idealizadores que se serviram da Nação como retórica para a manutenção do controle social e territorial nas formas até então consagradas. Isto é, sem maiores rupturas. Para o trato de tal questão, consideramos indispensável a pesquisa sobre a gênese da nação brasileira, sua organização, suas normas, seus agentes e conflitos sociais, sobretudo o papel da aristocracia que, concentrando a riqueza da Nação, era agraciada com títulos nobiliárquicos e constituía a força política de apoio ao Império. Neste caminhar, os núcleos urbanos (sobretudo as cidades) foram tomados como centro do exercício do poder concentrando funções tanto administrativas quanto de controle (inclusive social). E se a integração do todo físico da nação era questão de ordem, foram tomados também como nós na rede de comunicações e de transportes que haveria de ser montada. Nos discursos e políticas nacionalistas daquele momento, o sentimento de pertencimento ao Brasil e a identificação com o “ser” brasileiro emanariam dos ambientes urbanos, pois deveriam comportar símbolos e sistemas de representação do novo nível de progresso e civilidade aser alcançado. Mais ainda: seria o meio para se atingir a integração do território, assegurando as áreas de fronteira e ocupando suas imensas áreas a partir das diretrizes estabelecidas na sede da Corte centralizadora. Falamos, no plano ideológico, de um projeto civilizatório que pretendia criar uma história e uma identidade nacional brasileira e, no plano espacial, de uma rede urbana e seus nós como forma de regulação e controle sobre as regiões. Consideramos o ideal nacional apresentado como um projeto urbano em essência, pois foi utilizado intencionalmente como símbolo em um projeto de controle territorial. Afirmamos que o processo de unificação do território brasileiro foi pensado como meta que seria alcançada através da constituição de cidades, visto que é por meio do conjunto delas que a produção, circulação e o consumo (no plano 14 econômico) e a dominação (a partir da representação simbólica dos valores que seriam emanados) acontecem efetivamente. Parece-nos que tal processo se verificou no entorno imediato da capital imperial e, deste modo, originaram-se as bases para a sua integração observada com descontinuidades nas décadas posteriores. A ocupação no Brasil do século XIX se deu, em boa parte, através de uma política de instituição de núcleos coloniais que objetivavam uma conquista do território baseada no elemento étnico europeu que responderia pelo uso técnico do espaço e pelo idealizado branqueamento da população. Por lei, todos os municípios do Império teriam a obrigação de instituir um núcleo colonial e, em cada um deles, uma vila. Estudos recentes revelam que muitos desses núcleos implantados no período, e que contavam com funções econômicas e finalidades geopolíticas e civilizatórias previamente definidas, vieram a constituir-se em cidades que, articulando-se aos demais núcleos urbanos ou diretamente à Corte, conformariam uma rede (incipiente, mas integradora por possibilitar as comunicações pretendidas). Nestes temos, o território fluminense e sua sociedade nobiliárquica e estratificada configuram um laboratório para tal estudo. Afora a experiência dos núcleos coloniais, foi significativo o número de vilas que no período imperial foram elevadas à categoria de cidade. Por um processo ou por outro, a área do atual Estado do Rio de Janeiro viu o seu número de núcleos urbanos (fossem cidades ou vilas) mais que triplicar entre o final do período colonial e a década de 1890. Sabemos que a ocupação do interior da província fluminense se iniciou durante o século XVIII por conta da atividade mineradora nas Gerais. A abertura de caminhos e a instalação de pousos durante o percurso caracterizaram uma certa “empresa povoadora” controlada direta ou indiretamente pelo Estado que visava a conquista do solo para satisfação do mercado interno e estrangeiro. Com objetivos similares, importantes vias partindo da cidade do Rio de Janeiro ou chegando até ela desenhavam o mapa das comunicações estabelecidas até então entre a Capital e sua hinterlândia, seja em traçado “direto” rumo às minas (através de localidades como Petrópolis e Três Rios) ou mais “circulares” como os que atingiam São Paulo ou os que exploravam o baixo curso do rio Paraíba do Sul, na atual região norte do Estado. Abertos por particulares através de cláusula nas cartas de sesmarias e, em muitos casos, aproveitando o traçado derivado de antigas vias de circulação 15 indígena, tais caminhos foram essenciais para o estabelecimento de comunicações e fluxos de mercadorias entre diversas localidades. Também, por estes caminhos, surgiram aglomerados, pontos de feiras periódicas, vilas, cidades, sítios, fazendas, além de outras estradas tributárias. E, sem precedentes, esta dinâmica condicionada pela prática de abertura de novas vias de circulação foi intensificada com a atividade cafeeira. Observamos ainda que um comércio de gêneros alimentícios e de animais que, originário das Minas Gerais se articulava com o Rio de Janeiro, deu origem a um setor de subsistência mercantil também responsável pela ocupação do interior fluminense. Os recursos e os caminhos das tropas tiveram destaque na expansão da economia cafeeira e de seus valores sociais. Por estas vias de penetração, fornecia-se à capital parte dos gêneros agrícolas que ela consumia, circulavam informações e estabeleciam-se engenhos e demais fazendas de café. A articulação entre produção e comércio, viabilizada pelo crescente número de vias de circulação propiciou também a instalação de núcleos de povoamento, como mencionado. Desta forma, podemos entender que desde os primórdios da ocupação e exploração do território fluminense o eixo principal das atividades realizadas eram as estradas coloniais, tendência que persistiu durante o século XIX quando as grandes fazendas cafeicultoras no Vale do Paraíba e o dinamismo açucareiro na região de Campos dos Goytacazes desempenharam papel de referência no “mapa das interações possíveis”, ostentando a riqueza que sustentou o Império. De contrapartida, algumas áreas da província, como o litoral sul em torno de Angra dos Reis e Parati, viveram momento de decadência e isolamento por conta de novas dinâmicas econômicas em outros locais e seus correspondentes eixos espaciais. Sobre estas questões, ressaltamos a articulação de uma renda fundiária brasileira e um capital produtivo internacional para a construção de ferrovias que viriam agilizar a produção e consolidar uma infra-estrutura de transportes. O ponto a ser considerado aqui é o que marca um processo de integração entre produção e comércio entre distintas regiões, potencializado pelo advento das ferrovias, mas não iniciado através delas. Vias de circulação e de comunicação, mesmo que mais lentas, já estavam delineadas como testemunho da lógica social, política e econômica em vigor no território. No entanto, e o caso fluminense nos mostra, a “rede” pensada e estabelecida não fugia de sua definição teórica e afirmava o caráter seletivo do espaço tornado território. 16 O respeitado geógrafo Roberto Lobato Corrêa já apontou a lacuna existente nos estudos sobre a estruturação do território brasileiro no que se refere à questão das redes estabelecidas nos sucessivos momentos históricos. Foi adiante ao afirmar que a análise acerca da organização sócio-espacial brasileira seria enriquecida se compreendida à luz das relações entre rede urbana e oligarquias rurais. Nossa intenção, assim, consiste em enfatizar o espaço fluminense, pesquisando a organização territorial pensada para tal província, uma vez que não se trata apenas do surgimento de núcleos articulados e com funções distintas, mas de uma intenção no âmbito de um projeto maior. A despeito da visão de que as práticas de planejamento territorial têm uma tradição associada ao século XX, parece-nos relevante considerar as discussões atuais em fóruns de História do Urbanismo e de Planejamento Urbano e Regional que mostram que programas de ação governamental e intervenções de base urbana no espaço brasileiro são mais antigos. As implicações deste fato nos levam a novos entendimentos sobre a ordenação do “chão” fluminense. Buscamos compreender a base territorial do planejamento político imperial e observamos tal questão a partir do viés geográfico-histórico. Em outras palavras, buscamos nas políticas territoriais e nos espaços produzidos as “ideologias geográficas” que nortearam o império brasileiro quando de seu projeto nacional, avaliando até que ponto as idéias de cidade e região foram efetivamente operacionalizadas e relacionadas. Como dito, nossa lupa centra atenção no caso fluminense. Para tanto, esta tese está estruturada em três partes. Na primeira delas, buscamos assinalar nossas posturas metodológicas diante do objeto e indicar os caminhos tomadospela pesquisa. Nosso objeto se mostra aqui através de suas principais características e questões sugeridas. A intenção é fundamentar a necessidade de um olhar para os processos envolvidos através de suas relações com a “ampla escala”. Também o é indicar a centralidade que o entendimento sobre os mecanismos de representação e consciência do espaço assumem neste trabalho. Este, ao considerar a hipótese de um projeto nacional de unidade territorial a partir de um urbano simbólico e também materialidade em suas relações com a região em que se insere, aponta para duas questões operacionais imprescindíveis: a compreensão desse ideário nacional e a configuração espacial que ele alude. 17 Neste sentido, a segunda parte deste trabalho busca indicar as especificidades da cena brasileira no período em tela buscando perceber o território como reflexo e condição em cada momento. Entendemos que este esforço não seria possível sem uma leitura sobre o arcabouço teórico a respeito da nação e do território e o fizemos de forma a inserir o nosso objeto na própria discussão e não apenas na sua seqüência. A terceira e última parte desta tese resgata as considerações realizadas nas unidades anteriores sobre a província do Rio de Janeiro a partir dos dados que nos permitiram alinhar a pesquisa. Não se trata porém de apresentar nosso objeto neste momento, mas de verificá-lo a partir das suas informações específicas. Aqui, discursos do poder executivo, planos de infraestrutura física, documentos administrativos, textos de lei, entre outros documentos, são examinados para se buscar um entendimento sobre a conformação territorial fluminense em um contexto em que o Estado monárquico brasileiro buscava ser nacional nos moldes de sociedades que construíam a sua nação a partir de realidades outras. É a captura desse descompasso que julgamos poder observar na escala da província. 18 1. A pesquisa e seus caminhos Analisar o processo histórico de formação do território fluminense durante o século XIX, quando se realizou no Brasil a efetivação de um projeto nacional significa observar como determinadas frações desse território passaram a se configurar como espaços delimitados e diferenciados no contexto político, econômico e social da província durante o período imperial. Tal temática torna-se oportuna quando observamos que há um hiato na literatura sobre o Estado do Rio de Janeiro naquilo que se refere à sua conformação territorial, não nos oferecendo uma informação precisa sobre sua constituição. Tentando contribuir para o preenchimento desta lacuna, o campo problemático de nossa pesquisa pode ser enunciado como a relação entre o projeto de constituição de Nação no Brasil pós-Independência e o processo de organização urbana e territorial fluminense. Trabalharemos especificamente com a idéia de que o projeto nacional pretendido para o Brasil independente pode ser visto como aquele que, na base territorial, considera o urbano como mecanismo de articulação das esferas regionais e, na vertente simbólica, pensa este urbano como instrumento civilizatório. Através deste foco, observamos que se o processo de articulação do território fluminense se deu através de uma economia agrícola e da consolidação de uma aristocracia composta por senhores rurais que giravam em torno do poder central, tal processo só poderia acontecer pela constituição de uma rede de cidades, visto que é através dela que produção, circulação, consumo e dominação política efetivamente acontecem. Assim, partimos da premissa de que existiu uma relação direta entre cidade, região e a política territorial imperial e, para dar conta de uma análise por este viés, temos a consciência de que o nosso esforço deverá conjugar uma dimensão temporal ao estudo de uma dada forma de organização do espaço. Seguindo os ensinamentos de Santos (1985), quando nos alerta da “geografização” dos espaços produzidos como resultado de um conjunto de variáveis que interagem entre si e que mudam no transcurso da história dos lugares, pensamos priorizar os sistemas que se sucedem em detrimento dos fatos isolados. 19 No contexto da expansão econômica européia no período considerado, indicamos as seguintes questões em nosso trabalho: 1) A partir da política colonial portuguesa de gestão do espaço, pensamos nos termos do processo de organização territorial fluminense que passam a vigorar no período pós- Independência do Brasil, quando dos ideais nacionalistas; 2) Entendido que, do jogo político em torno do Estado Imperial, consolidaram-se determinadas forças que definiram os moldes da construção de valores e de espaços unificados, assinalamos a emergência de um projeto centralizador/civilizador de base territorial urbana e regional; 3) Por tal premissa, importante será entender as características de tal política centralizadora no espaço que envolve a então capital do Brasil e sua hinterlândia mais imediata, correspondente ao atual Estado do Rio de Janeiro; 4) Ademais, há de se considerar as formas de ação dos atores envolvidos (Estado, nobreza cafeeira e do açúcar e demais proprietários de escravos e de terras) para a manutenção do prestígio e da legitimidade; e 5) Reflexo dos interesses em pauta, pensamos na importância conferida às vias de comunicação e de circulação para a unidade a ser dada ao território fluminense, reportando-nos aqui à operacionalidade de uma rede urbana que permitiria a dinamização de distintas regiões comandadas pela sede do poder imperial e que, diminuindo a autonomia municipal, possibilitou arranjos políticos em torno de interesses regionais. Tais questionamentos revelam os objetivos da tese. Em primeiro lugar, relembramos que nosso trabalho está atento ao fato de que “o tema rede urbana e oligarquias rurais parece ser de extrema relevância para se compreender a organização sócio-espacial brasileira” (CORRÊA, 1998, p. 114), apresentando um estudo sobre o território fluminense que se insere nos debates atuais sobre as determinações históricas da urbanização brasileira. Em última análise, visamos somar esforços no sentido de apresentar um “olhar” sobre o processo de ocupação territorial na província do Rio de Janeiro que articula as dimensões do local e do regional em um contexto de afirmação nacional. Nosso trabalho, ao tentar cumprir seus objetivos e abordar as questões listadas, terá que buscar na interdisciplinaridade o tratamento de seus marcos teóricos. Se já enfatizamos que será priorizado o olhar da “geografia retrospectiva” nos moldes apresentados por autores como Azevedo (1956, 1957a), Abreu (1996) e Moraes (2002), também é verdade que não poderemos nos distanciar de campos disciplinares como o das Ciências Políticas (no que se relaciona com as discussões sobre “nação”, “Estado” 20 e “poder”), do Urbanismo em sua interface com a História (“urbanização pretérita”, Império no Brasil) e com a própria Geografia (“território”, “rede geográfica”, “rede urbana”, “região”). Ao indicarmos tais campos, fica assinalado que nosso estudo sugere a hipótese de que podemos pensar em um projeto nacional de unidade territorial a partir de um urbano simbólico e também materialidade que considera a dimensão política da região em que se insere. Dialogamos inicialmente com os escritos do historiador francês Fernand Braudel e sua defesa em nome de uma “ampla escala” para se compreender a História e, de forma específica, com os textos do geógrafo brasileiro Antonio Carlos Robert Moraes quando discute a questão da representação e da consciência do espaço. 1.1. O viés geográfico-histórico Na linhagem da revolução metodológica no campo dos estudos históricos a partir da revista Annales d’histoire Économique et Sociale, publicada na Françaem 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch, os trabalhos de Braudel o alçaram ao posto de principal continuador e herdeiro de uma nova maneira de se conceber e escrever a História. Aberto sem concessões à interdisciplinaridade em uma proposta em que a Geografia e a Economia se revestiam de um interesse especial, Braudel ampliou a dimensão do historiador ao observar o caminhar das sociedades humanas através de seus variados ritmos, superando o método tradicional de olhar para o passado através da escala humana, da ação dos “grandes homens”. Sem se desfazer do interesse por esses relatos, ele concebe níveis distintos para os tempos da História, centrando atenção nos processos mais extensos do que o da vida dos indivíduos. Em última análise, ele buscava a relação entre os fatos e as estruturas que modelam as sociedades, sejam elas materiais ou relativas às mentalidades. Com esta nova postura metodológica, a História mudou de objeto uma vez que mudou de temporalidade. Nas palavras do próprio autor: A recente ruptura com as formas tradicionais da história do século XIX não foi uma ruptura total com o tempo curto. Sabe-se que ela 21 redundou em benefício da história econômica e social, em detrimento da história política. Daí, uma reviravolta e uma inegável renovação; daí, inevitavelmente, modificações de método, deslocamentos de centros de interesses com a aparição de uma história quantitativa que, certamente, não disse sua última palavra (BRAUDEL, 1992, p. 47). Neste processo de mudanças, a influência desempenhada por outras ciências no grupo dos Annales muito se deveu ao monumental texto, organizado em 1903, do geógrafo Vidal de la Blache sobre a história francesa. Neste trabalho, que no contexto daquele país visava fundar um patriotismo legitimador da República, o autor partia do território para construir a idéia de um grupo social que, limitado e condicionado por circunstâncias objetivas do meio geográfico, havia constituído uma pátria e um Estado. Não que Vidal de la Blache visse no meio impedimentos para os impulsos sociais, mas lembrava dele como uma resistência a ser percebida e impossível de ser dissociada da História. Assim, o tempo dos homens encontrava o “atrito” do espaço, mas não o espaço através do determinismo físico defendido pela Geografia que se fazia na Alemanha e que se afirmava como referência em tempos de institucionalização desta ciência.1 Ao romper com esta corrente, acabou tomado como influência no processo através do qual os historiadores descobriam no espaço o elemento responsável por uma maior densidade do tempo histórico. Em particular, para Braudel, a Geografia passou a configurar um instrumental de trabalho que o possibilitaria encontrar as realidades mais lentas e importantes no trato explicativo sobre as características observadas nos seus objetos de estudo. Importante frisar que este instrumental passava agora a ser manuseado de forma completamente distinta da tradição, uma vez que não mais se oferecia apenas para descrição introdutória do meio físico a ser considerado. Nas obras assim organizadas, estas introduções geográficas à História viam o espaço como palco para os acontecimentos das sociedades. Através de Braudel, o espaço passou a ser considerado também no âmbito da análise histórica como elemento condicionante e reflexo da ação humana. Este caminho possibilitou a mais importante mudança metodológica sentida na História durante o século XX e aproximou de vez os textos dos Annales dos 1 Seguindo Moraes (1991), é paradigmático o fato de, no contexto de afirmação dos Estados Nacionais europeus, ter sido exatamente a Alemanha (com sua tardia unificação política) o principal locus de desenvolvimento da reflexão geográfica. É verdadeiro dizer que tal ciência encontrou expressivo desenvolvimento e reconhecimento exatamente nos países que dificuldades encontraram neste processo. 22 geógrafos de ponta, notadamente franceses e alemães. Destes últimos, por exemplo, Braudel tomou a habitual tríplice divisão da Geografia em “espaço”, “economia” e “sociedade” como base analítica para o seu principal trabalho (“O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Philippe II”) e suas postulações quanto à episteme da História. Para ele, esta tríplice divisão se confirma quando enfatiza que a História para ser vista em “ampla escala” deve ser decomposta em três planos escalonados que se referem aos distintos tempos em que transcorrem os acontecimentos estudados: um “tempo geográfico”, um “tempo social” e um “tempo individual”. O primeiro se refere à “história quase imóvel, a do homem em suas relações com o meio que o cerca; uma história lenta no seu transcorrer e a transformar-se, feita com freqüência de retornos insistentes, de ciclos incessantemente recomeçados”, o segundo tempo à “história lentamente ritmada, (...) dos grupos [sociais] e dos agrupamentos” e o terceiro tempo que se refere à história tradicional, da dimensão do indivíduo, a história ocorrencial, dos eventos, “uma história com oscilações breves, rápidas, nervosas” (BRAUDEL, 1992, p. 13-14). Ao discorrer sobre este último, ele o considerou como “agitação de superfície” e alertou: Desconfiemos dessa história ainda ardente, tal como os contemporâneos a sentiram, descreveram, viveram, no ritmo de sua vida, breve como a nossa. Ela tem a dimensão de suas cóleras, de seus sonhos e de suas ilusões. (...) Os acontecimentos retumbantes não são amiúde mais que instantes, que manifestações dos largos destinos e só se explicam por eles (BRAUDEL, 1992, p. 14-15). Ao falar ainda sobre a apropriação da História pelas demais ciências sociais, enfatizou que a tendência era a de desconhecer um aspecto da realidade importante para a primeira: a duração social, os “tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens, que não são apenas a substância do passado, mas também o estofo da vida social atual” (BRAUDEL, 1992, p. 43). E, neste sentido, para ele, que deu ênfase ao fato de que “nada é mais importante, no centro da realidade social do que a oposição viva, íntima, repetida indefinidamente entre o instante e o tempo lento a escoar-se”, a conclusão a ser concebida ressaltava que os estudos importantes realizados por historiadores vinham contribuindo para a afirmação da multiplicidade 23 do tempo e da centralidade do “tempo longo” para as análises mais profícuas. Neste sentido, é emblemática a seguinte citação: Todo trabalho histórico decompõe o tempo decorrido, escolhe entre suas realidades cronológicas, segundo preferências e opções exclusivas mais ou menos conscientes. A história tradicional, atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao evento, habituou-nos há muito tempo à sua narrativa precipitada, dramática, de fôlego curto (BRAUDEL, 1992, p. 44). E defendendo a “grande medida” como mecanismo de superação a este entrave, enfatizou que a “nova história econômica e social” articula ao relato ou “recitativo tradicional” um interesse pela “conjuntura que põe em questão o passado por largas fatias: dez, vinte ou cinqüenta anos”, chamando a atenção para sua premissa de que “bem além desse segundo recitativo, situa-se uma história de respiração mais contida ainda, e desta vez, de amplitude secular: a história de longa, e mesmo, de longuíssima duração” (BRAUDEL, 1992, p. 44). Nestes termos, o autor passava a considerar como essencial o entendimento das estruturas na compreensão voltada para o passado mais distante e que persistia. Convém, no entanto, salientar que, aqui, ele tratou de diferenciar sua idéia do próprio estruturalismo afirmando que: Por estrutura, os observadores do social entendem uma organização, uma coerência, relações bastante fixasentre realidade e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida, articulação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações; atravancam a história, incomodam-na, portanto, comandando-lhe o escoamento. Outras estão mais prontas a se esfarelar. Mas todas são ao mesmo tempo, sustentáculos e obstáculos. Obstáculos, assinalam-se como limites (envolventes, no sentido matemático) dos quais o homem e suas experiências não podem libertar-se. Pensai na dificuldade de quebrar certos quadros geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da produtividade, até mesmo, estas ou aquelas coerções espirituais: os quadros mentais também são prisões de longa duração (BRAUDEL, 1992, p. 49-50). Ao pensar desta forma, Braudel avançou em relação aos pioneiros da Annales olhando para a História como um conjunto de rupturas e continuidades. Para ele, ela traz não apenas o que muda (como pensava Marc Bloch), mas também 24 permanências. Assim, pode compreendê-la como globalidade, marcada pela dialética permanente entre mudança e não-mudança e associá-la a uma constante interdisciplinaridade para o seu entendimento. E, neste sentido, dois outros conceitos que ele associa à sua idéia de tempo longo e que são fundamentais em nosso trabalho são os de “civilização” e o de “economia-mundo”. O primeiro deles, cuja definição remonta do século XVIII, é, para o autor, a própria tradução da “larga medida” por traduzir pares como estrutura-conjuntura e instante-duração através de sua idéia de oposição à barbárie. O segundo conceito, proveniente do pensamento alemão, interage com a questão da vida material em sua relação com a história econômica e diz respeito às distintas regiões do planeta integradas pela atividade econômica. Nestes termos, se constrói a globalidade defendida em sua nova História. Para o caso de crítica ou incompreensão, Braudel esclarece recorrendo ao quadro da Europa entre os séculos XIV e XVIII e olhando, especificamente, para os seus numerosos surtos de progresso e repetidos abalos de crises agrícolas estacionais: A dificuldade, por um paradoxo apenas aparente, é discernir a longa duração no domínio onde a pesquisa histórica acaba de obter seus inegáveis sucessos: o domínio econômico. Ciclos, interciclos, crises estruturais ocultam aqui as regularidades, as permanências de sistema, alguns disseram de civilizações (...) evoquei após alguns outros, os traços principais do capitalismo comercial para a Europa Ocidental, etapa de longa duração. Não obstante todas as modificações evidentes que os percorrem, esses quatro ou cinco séculos de vida econômica tiveram uma certa coerência, até a agitação do século XVIII e da revolução industrial da qual ainda não saímos. Alguns traços lhes são comuns e permanecem imutáveis, enquanto que em torno deles, entre outras continuidades, mil rupturas e agitações renovavam o aspecto do mundo (BRAUDEL, 1992, p. 51- 52). Em síntese, a História decorrente dos escritos de Braudel é aquela que se impõe por constantes variações e continuidades e na qual importantes eventos nestes ciclos nem sempre são percebidos se a medida para a análise for a curta e tênue escala temporal humana. Para o autor, os três tempos indicados devem ser considerados pelo pesquisador para que ele fuja do inadmissível “erro historizante” que consiste em trabalhar com uma dessas escalas em detrimento das demais. Marcada a influência em nosso trabalho de uma análise histórica que perceba também a longa duração, o outro ponto a ser destacado se refere à visão da 25 Geografia como materialidade e representação. E, neste contexto, foi importante no olhar sobre o nosso objeto a relação que Robert Moraes aponta entre a História do Brasil e a questão do território (MORAES, 1988, 1991 e 2002). Com apoio decisivo nestes textos, caminhamos na busca por um entendimento das determinações geográficas de um momento específico do Brasil. Ao tentar a compreensão das bases territoriais do discurso e das políticas imperiais, enfatizamos a dimensão espacial como norteadora de pressupostos básicos do nosso processo histórico. Nesses textos, ao discutir de modo sistemático o tema da representação e da consciência do espaço, o autor distinguiu três níveis de sua abordagem: o do “horizonte geográfico”, o do “pensamento geográfico” e o das “ideologias geográficas”. A primeira destas abordagens faz referência ao conhecimento do senso geral sobre o meio físico da superfície terrestre e está circunscrita ao conjunto de informações geográficas do indivíduo comum. No estágio mais elaborado de construção mental, o “pensamento geográfico” diz respeito àquela abordagem constituída pelo discurso do saber culto e pelas representações sistemáticas e normatizadas da consciência do espaço do planeta. Por sua vez, o autor considera como “ideologias geográficas” o conjunto de representações sobre o espaço com um caráter político explícito, conferindo ao território uma importância fundamental no debate sobre as relações entre política e cultura e desvendando os diferentes usos ideológicos da Geografia em momentos importantes da História. Não é sem propósito que o autor, atentando para o contexto de afirmação das nações européias, afirma que: Na verdade, as teorias modernas dessa disciplina foram, em muito, veículos de legitimação das nacionalidades e dos respectivos projetos nacionais. O discurso geográfico foi, sem dúvida, um elemento central na consolidação do sentimento de pátria. Pode-se mesmo dizer que esse seria o principal núcleo divulgador da idéia da identidade pelo espaço (MORAES, 1991, p. 166). A valorização dos atributos espaciais como base para as formulações ideológicas de medidas de cunho político caracteriza o uso do território como suporte e produto destas ações e, de uma forma geral, este processo resulta na valorização de determinadas partes do território em detrimento das demais. Além do mais, por esta análise, podemos perceber que o “pensamento geográfico” pode constituir-se em veículo para as “ideologias geográficas”, mesmo que estas sejam 26 antagônicas entre si. Interessa-nos, em particular, perceber como e quais temas desta ciência estiveram presentes nos diversos tipos de representações discursivas que emanam da vida política brasileira em determinados momentos de sua trajetória. Entender tal questão requer pensar inicialmente que, de acordo com Moraes, todo grupo ou indivíduo social carrega consigo uma forma particular de representação do espaço e é decorrente dela que cada um projeta suas intervenções materiais no meio concreto. Toda representação do espaço, portanto, acaba por denotar uma ação política, pois se insere na produção material das sociedades e na disputa por formas hegemônicas de ação entre os mesmos grupos ou indivíduos sociais. Se adotarmos uma concepção gramsciana de hegemonia na qual ela é entendida como uma situação de domínio de uma dada classe ou indivíduo através do controle tanto das condições intelectuais quanto materiais de produção, “universalizando” seus interesses, perceberemos a centralidade do conceito de “ideologias geográficas” para a reflexão sobre a produção material dos territórios, tomados também como locus dos sistemas de representação dominante. Pensamos ser esta ótica apontada eficaz para avaliar as questões do nosso trabalho, sobretudo por ser o período imperial rico na construção de símbolos e sistemas de representação para afirmação dos propósitos da nação que estava sendo implantada. A partir desta noção de “ideologia geográfica”, outros textos fundamentais para a análisee compreensão da carga simbólica dos espaços se somaram em nosso estudo, como os escritos de Milton Santos e de Pierre Bourdieu. Seguindo a linha que discute tal questão a partir das ideologias dominantes, Santos (1999) nos lembra que a totalidade social é composta por aspectos de realidade e de ideologia e que esta última é importante ao produzir símbolos que assumem forma de objetos concretos ou de discursos criadores do real. Lembramos ainda das “representações objectais” definidas teoricamente por Bourdieu (1989) que se materializam em coisas ou atos a partir de manipulações simbólicas que alvejam a determinação das representações mentais que baseiam os interesses e os pressupostos dos agentes sociais. Corroborando a idéia já apresentada, é importante reafirmar que, na base das construções concretas está uma ideologia hegemônica e que a realidade é densa de metáforas e se impõe através da produção recorrente de imagens e do 27 imaginário que, naturalizando um pensamento dominante, o faz passar por único (SANTOS, 2000). Ao considerar tais questões a partir ainda desse olhar miltoniano, pensamos que a análise dos fatos deve ser travada de maneira a perceber que o próprio movimento da sociedade que se estuda transforma a significação de suas variáveis constitutivas e “por isso mesmo, a cada nova divisão do trabalho, a cada nova transformação social, há, paralelamente, para os fabricantes de significados, uma exigência de renovação das ideologias e dos universos simbólicos, ao mesmo tempo em que, aos outros, tornam-se possíveis o entendimento do processo e a busca de um sentido” (SANTOS, 1999, p. 103). No nosso estudo em particular, tais indicações impõem considerar que refletir sobre a organização espacial em um território (sobretudo no que se refere à conformação de sua rede urbana) significa considerar o discurso dominante e sua gama de representações. Perguntamo-nos sobre as lógicas que norteiam a conformação das morfologias espaciais, em especial aquelas concentradoras, observando, por exemplo, o padrão de urbanização estabelecido, as relações da economia imperial com a Europa e o modelo de desenvolvimento das economias regionais. Ao eleger o modo como se redesenhou a rede de cidades fluminenses, intentamos superar a prática comum de se considerar as variáveis econômicas como determinantes nas dinâmicas territoriais e considerar a organização do sistema urbano não como resultante, mas como parte constitutiva nos processos de mudança na província e no império. A dinâmica e as alternativas de localização da atividade econômica, bem como os movimentos da população, constituem-se em aspectos indutores importantes e conformaram um território em constante transformação. O movimento da economia associado às políticas de urbanização acabou por imprimir formas fazendo-se valer de um conjunto de representações como as de “sociedade moderna” e “nação”. Por último, vale lembrar que, ao centrar nossa atenção na temática da rede urbana, temos a consciência de que operamos com escalas ou, de forma mais enfática, trabalhamos com o “problema da escala” tal como enunciado por Castro (1995), que ressaltou ser esta uma estratégia de compreensão do real via representação. Assim, nos é imposta a obrigação de laborar continuamente com a mudança de escalas tanto cartográficas quanto as conceituais (ora a da rede urbana, do espaço urbano e ora a da província). E com este rol de preceitos, é 28 sempre oportuno resgatar Roberto Lobato Corrêa e o seu alerta de que o importante, para o pesquisador, é não perder de vista as relações entre os modos como o urbano pode ser geograficamente analisado, não esquecendo ainda de que “a operação escalar não introduz uma visão deformada, geradora de dicotomia, mas, ao contrário, ressalta as ricas possibilidades de se analisar o mundo real, o urbano no caso, em dois níveis conceituais complementares” (CORRÊA, 2003, p. 136). O objetivo é o de chamar a atenção para os processos sociais que ocorrendo no âmbito da rede urbana, conformam o espaço urbano ou vice-versa, entendendo que tais conexões entre escalas impõem uma análise que as utilize como método para dar unidade ao estudo do espaço tomado como objeto de pesquisa. Podemos ainda resgatar a primeira citação desta unidade para reafirmar os cuidados tomados para um trabalho consciente das variáveis que interagem entre si e que podem mudar no transcurso da história dos lugares. Para cada aspecto desta atenção, um grupo de indicações teóricas foi buscado para a nossa tentativa de integração das diferentes escalas (inclusive de temporalidade) de análise. Afinal: (...) não se pode fazer uma interpretação válida dos sistemas locais na escala local. Eventos à escala mundial, sejam os de hoje ou os de ontem, contribuem mais para o entendimento dos subespaços que os fenômenos locais. Estes últimos não são mais que o resultado, direto ou indireto, de forças cuja gestação ocorre à distância. Isto não impede que estes subespaços sejam dotados de alguma autonomia em razão do peso da inércia gerada pelas forças produzidas ou amalgamadas localmente (SANTOS, 1985, p. 22). Os autores citados até o momento se somam nesta citação e nos mostram que não existe uma escala ideal para a análise da realidade, uma vez que esta é complexa e demanda soluções práticas para o entendimento do objeto. No mais, sabemos que a cada enfoque sua variação ocorrerá pela importância e abrangência das ações de cada grupo de atores sociais envolvidos. Por esta imposição envolver juízo de valores, algumas posturas do texto merecem indicação. Assim, ressaltados até aqui os pressupostos que orientam o nosso trabalho de tese, justificando a opção pelo método geográfico-histórico e destacando a importância do discurso e das escalas para o processo explicativo a respeito da formação territorial fluminense, cabe indicar a seguir as posturas diante do objeto de pesquisa, fortalecendo o caminho a ser trilhado. 29 1.2. Posturas diante do objeto Já havíamos dito que a área do atual Estado do Rio de Janeiro viu o seu número de núcleos urbanos mais que triplicar entre o final do período colonial e a década de 1890. Para sermos mais precisos, nela existiam 15 aglomerados urbanos (entre cidades e vilas) antes de 1822 e, no pós-1889, já havia um total de 48 sedes de municípios (CIDE, 1998). Se de caráter espontâneo, conveniente ou racional2, o fato é que esse acréscimo carece de um entendimento no contexto do período imperial brasileiro. E, no olhar para o nosso objeto e nossas questões, pensamos nas janelas reflexivas propostas por importantes autores que têm se debruçado sobre os “movimentos do pensamento” a serem considerados no trato prático e metodológico da pesquisa nas ciências sociais. Em particular, nos apoiamos em Bourdieu et al (2004) e em Lefèbvre (1995). Por um lado, temos nos primeiros autores a radicalidade da crítica no sentido de que eles defendem a reflexão sobre a efetiva relevância social e histórica do trabalho do pesquisador, enfatizando que este é um ser com maneira específica de pensar em relação aos demais membros do seu tempo e espaço. Desta forma, assinalam a preocupação com uma análise constante do trabalho como medida fundamental para se fugir da mecanização em que podem se transformar os preceitos do método e para que não se ceda ao risco das prenoções e da naturalização dos termos. O método do racionalismo aplicado, defendido pelos autores, confirma e constrói um novo objeto real a cada momento da pesquisa, uma vez que prega que os atos epistemológicos não são lineares e que, portanto, as operações de pesquisa se consubstanciam na dialética teoria/verificação. E nela, as teorias podem ser reconstruídas o tempo todo pelas especificidades do objeto.Por outro lado, Lefèbvre, mesmo centrado no pensamento dialético, não descarta de forma alguma o pensamento lógico, reconhecendo que sua construção foi momento importante na história do conhecimento humano e continua fundamental quando é necessário classificar, definir, organizar e distinguir metodicamente os conteúdos do conhecimento. No entanto, e confirmando o que já havíamos construído anteriormente, o autor enfatiza que a lógica formal parte da 2 Entre os estudiosos, no que se refere especificamente à formação urbana mineira, existe uma discussão sobre o caráter deste processo, existindo a defesa por um urbanismo espontâneo (Robert Smith e Sylvio de Vasconcellos), conveniente (Rodrigo Bastos e Cláudia Damasceno Fonseca) ou racional (Nestor Goulart Reis) (LIMA, 2006). 30 não contradição (do que não muda, da estabilidade), sendo mais apropriada para a pesquisa científica a lógica dialética por partir do princípio da contradição e totalidade, segundo a qual a realidade é essencialmente processo, mudança, devir. Partindo do pressuposto de que estamos sempre diante de verdades parciais, Lefèbvre define um conjunto de categorias pelas quais o pensamento se move e que consubstanciam tensões analíticas entre pares de termos polares, opostos e indissoluvelmente relacionados. São eles: entendimento-razão, verdade-erro, absoluto-relativo e mediato-imediato. A título de exemplo, no caso da primeira tensão, o autor discorre sobre qual pensamento estará transitando da decomposição de seu objeto em elementos para a restauração da unidade desse mesmo objeto. O entendimento, aplicado aos objetos do conhecimento, buscará definir seus elementos constitutivos que, por sua vez, isolados, tomam vida própria. O pensamento em movimento recorre à razão no sentido de reconstituir o todo e a razão irá proceder a esta reconstituição a partir da compreensão de como cada um dos detalhes contribui para a constituição do todo. Desta forma, para ele, o conhecimento se afirma, transitando ainda pelos demais pares analíticos. As orientações indicadas até aqui não são mais que exercícios de vigilância epistemológica que devemos incorporar ao nosso processo de pesquisa. Assim, necessárias se fazem algumas reflexões. Em primeiro lugar, exercitando a radicalidade da crítica a partir de Bourdieu et al (2004), vemos que, ao olharmos para o nosso objeto de pesquisa, constatamos que a relevância do nosso trabalho reside no fato de que, no contexto dos debates afins, ele caminha para a afirmativa de que o controle do território fluminense no século XIX se deu através de uma política de instituição de núcleos urbanos dotados de funções regionais diferenciadas. Até então, pensávamos que esta assertiva, considerada no projeto como uma hipótese, era bastante para a realização do trabalho, observando apenas as determinações para a criação de vilas e cidades. No entanto, quando nos dirigimos ao objeto, percebemos que a idéia de algo semelhante a uma rede de cidades pressupõe mais que os pontos físicos, implica as relações entre eles. A partir daí, o tratamento teórico a respeito dessa rede teria que dar conta efetivamente da natureza dessas relações e de suas informações e dados. Esta imposição do objeto nos levaria para o questionamento sobre a posição ocupada pelo empírico em nosso trabalho. 31 Indagando sobre a natureza da tarefa analítica assumida em nossa pesquisa, ficou nítida a necessidade de investigação sobre as premissas alegadas para a criação por parte do governo imperial de vilas e cidades no território em questão. Tal universo de investigação nos permite perceber que a tarefa analítica assumida em nosso projeto se baseia em questões que devem ser pensadas tanto em sua totalidade quanto na conexão dos seus elementos, acionando algumas das “regras práticas” do método proposto por Lefèbvre (1995). Cabe ressaltar o contexto das nossas questões para que possamos respondê-las. Ao olharmos para o nosso objeto, enumeramos os seguintes fenômenos que especificam o seu campo problemático: instituição de políticas de estruturação do território para definição de fronteiras, articulação, integração e ordenação segundo propósito pré-estabelecido (autorização para aberturas de caminhos, criação de vilas e cidades, solicitação para abertura de portos fluviais, incremento nos fluxos de pessoas e produtos no território são alguns exemplos). Estes fenômenos, por sua vez, suscitam determinados agentes: o Imperador, os Presidentes da Província e os “homens bons”3, representantes das Câmaras Municipais e, ao mesmo tempo, senhores de terras e de escravos que, em sua maioria, eram agraciados com títulos nobiliárquicos e constituíam a força política e econômica de apoio ao Império. No tratamento empírico do nosso objeto, ficou evidente a necessidade do trato teórico e metodológico das seguintes categorias-chave: a natureza do Estado em vigor no período em questão (imperial, centrado no poder moderador e com discurso nacionalista e integracionista), sua estrutura e distinções em relação ao período anterior; a imbricação entre esferas da produção econômica e influências, inclusive sociais, como norteadoras das relações de poder observadas no período em estudo (interesses imediatistas nas práticas e discurso pseudo-nacionalista); e as formas de uso do território fluminense, então sob os princípios de Nação e de centralização do poder (políticas de ordenação territorial via instituição de núcleos urbanos). Em relação à estrutura do Estado em vigor no período considerado, a própria Constituição Imperial denota a forma jurídico-institucional tomada, sendo ajustada a cada momento via decretos promulgados que ora ampliavam, ora descentralizavam o poder de decisão conferido ao Moderador, ora delegavam autonomia para as 3 Este termo era adotado desde o período colonial para designar todo aquele que possuía projeção social, geralmente pertencente à classe proprietária de terras e de escravos negros ou indígenas. 32 localidades, ora as submetiam ao crivo do poder central em movimentos que funcionam como termômetro dos seguidos levantes revolucionários ocorridos e das pressões exercidas também pela “boa sociedade”4 do Império. No que se refere às políticas de ordenação territorial, consideramos como indicadores os decretos criando núcleos urbanos (vilas ou cidades), aldeias de povoamento e núcleos coloniais ou promovendo arraiais e vilas a status superiores na hierarquia urbana, anunciando licitação para abertura de caminhos e/ou criação de vilas e benfeitorias territoriais (pontes, aterramentos, portos, etc). Também são indicadores os Registros de Terras das diversas paróquias e freguesias da província a respeito de sua dinâmica fundiária. Estes aspectos específicos podem ser compreendidos, segundo Lefèbvre, a partir da consciência de que todo objeto é totalidade e “unidade de contraditórios” e, desta forma, lembramos que as condições econômicas e políticas vigentes no nosso recorte temporal mantinham as contradições entre grupos concorrentes e o Estado Imperial, além de estarem também presentes internamente em ambos os casos. A articulação do território fluminense não ocorreu de maneira homogênea nem atendendo a todos os interesses em questão. Observar este fato nos permite fugir do risco da generalização. No mais, ressaltemos que a lógica clássica cultiva o pensamento linear, racional, buscando superar incertezas e dúvidas para se chegar à segurança de “verdades” incontestáveis. A lógica dialética, por sua vez, considera a incerteza e o contraditório como as bases da natureza do conhecimento e da realidade. Por esta premissa, percebemos que todo conhecimento julgadoobjetivo, na verdade, se inicia na esfera da subjetividade ficando registrado que nossas posturas e vigilâncias em relação ao objeto de pesquisa se inserem em um contexto em que não nos interessa o pragmatismo do método, mas o seu entendimento como instrumento de reflexão. Por fim, ao avançar nestas questões de caráter teórico e metodológico, apontamos também para novos papéis do empírico em nosso trabalho e, novamente seguindo as “regras práticas”, conseguimos aprofundar o nosso objeto ao agregar a ele um novo ângulo analítico. Ao fazermos uso da expressão “ação 4 “Resgatada das reminiscências de Francisco de Paula Ferreira Rezende (1832-93) por Ilmar Mattos, a expressão procura designar a reduzida elite econômica, política e cultural do Império, que partilhava códigos de valores e de comportamento modelados na concepção européia de civilização” (NEVES, 2002a, p. 95). 33 organizadora do território”, estamos nos referindo, em outras palavras, a uma prática planejadora por parte do Estado visto que havia uma intencionalidade e seletividade no uso do território. No entanto, sabemos ser “planejamento” um conceito, uma construção datada e de uso direcionado. Atentamos, aqui, para o problema da “naturalização dos termos”, da necessidade de superação das “pré- noções” e para a importância do par dialético “imediato/mediato”. Achamos que a pesquisa histórica apresenta grandes impasses metodológicos. Mas, ganhamos a consciência de que não poderemos olhar para o passado, procurando nele o presente e os seus termos. A tarefa parece ser a de atingir o século XIX e suas lógicas, “distinguindo seus movimentos longos e impulsos breves”, fugindo das naturalizações e buscando as conexões que revelem o específico em nosso objeto. O primeiro passo será dado a seguir. 34 2. Território e cidade no Brasil imperial Analisar o período imperial brasileiro através de suas premissas e realizações não tem sido tarefa fácil para os estudiosos, por conta das múltiplas nuances que carrega. No entanto, importantes obras têm lançado luz sobre este momento definidor de muitas das características atuais do Brasil e entre elas podemos citar como referência para o debate os trabalhos de fôlego de Nelson Werneck Sodré (1935), José Murilo de Carvalho (1988), Ilmar Mattos (1994), Richard Graham (1997), Demétrio Magnoli (1997) e Lília Moritz Schwarcz (2000). Do conjunto destas contribuições, entendemos que a ruptura do Brasil com os coloniais laços de dominação pressupunha, evidentemente, a construção de um novo Estado. Mais ainda: o novo arranjo institucional a ser montado estaria fatalmente assentado em arraigados traços do conservadorismo que marcava o arranjo social existente até então. O que nos chama a atenção é o fato de que não são apenas os laços de sociabilidade estabelecidos que se manterão a partir da Independência, mas também a forte relação (diríamos, a centralidade) já estabelecida entre a dimensão espacial e a conformação desta sociabilidade. Além do contexto histórico, que se inseria em um movimento externo de expansão territorial e de ocupação de espaços, o desenvolvimento econômico, político, social e cultural da colônia também fora pautado na apropriação de “novas” terras de tal forma que todas as dimensões do poder passavam necessariamente pela propriedade fundiária. Queremos enfatizar, a manutenção desta premissa mesmo diante da emancipação em relação a Portugal e diante do fato que, apesar dela, o Brasil ainda não havia se desvencilhado das frentes de povoamento. A questão espacial é reforçada, então, com o advento da construção de um novo Estado e, voltando aos autores enumerados, com a emergência de um projeto nacional que lhe dará forma e a necessária e imposta identidade brasileira. Em uma sociedade marcada por uma espacialidade latente que lhe imprimia uma dinâmica social notadamente desigual e coercitiva, as representações da nação muitas vezes foram reduzidas à consideração do país como apenas território (MORAES, 1988), 35 justificando a busca pela unidade e por (mais) controle. Pensamos na importância das cidades exatamente neste momento. Assim, em nosso trabalho, mister se faz reunir os principais elementos que definiram o Brasil depois de sua emancipação política no que alude, em especial, ao contexto e fatos do Império que nos permitem refletir sobre a centralização administrativa e o uso do território. Tal contexto se refere ao momento vivido na Europa ao qual estávamos estreitamente relacionados. Se lembrarmos que, em boa parte daquele continente, a industrialização e a urbanização foram a marca do século XIX, estaremos fazendo alusão a uma conjuntura de mudanças que vinha tomando corpo e que, ocorrendo também no âmbito das relações sociais, deu origem a um modelo específico de sociedade instituída como “moderna”. De forma meramente pedagógica, podemos apresentar esta sociedade a partir das seguintes características gerais que se contrapõem àquelas “tradicionais”: capitalismo como modo de produção, especialização de funções, diversidade de valores individuais (diversidade ética, religiosa e normativa), estratificação social por critério econômico, questionamento das bases da hierarquia social e alcance crescente na escala mundial.5 No escopo dessas características estão processos como o ritmo inédito de desenvolvimento tecnológico atingido por estas sociedades, o rompimento dos antigos vínculos entre as atividades mundanas e a religião, a ascensão da burguesia ao poder, o surgimento de ideologias proletárias, o desenvolvimento das ciências, a expansão de sua influência e interconexão a quase todo o planeta6 e o surgimento de novos marcos institucionais no âmbito dessas sociedades. A respeito deste último processo, destacamos que: Algumas formas sociais modernas simplesmente não se encontram em períodos históricos precedentes, tais como o sistema político do 5 Não se pode esquecer o fato de que “sociedade moderna” encontra nas ciências sociais diferentes acepções. No entanto, os clássicos da Sociologia, através de caminhos distintos, são unânimes quanto ao seu caráter conflituoso. Para Durkheim, o conflito provém da grande e progressiva divisão do trabalho, exigindo novos mecanismos de integração social como a normatização, a educação e a produção da consciência do pertencimento ao todo. Marx a definia por suas relações de produção, sendo a própria sociedade capitalista e seus mecanismos de exploração das classes sociais que expõem os limites da igualdade e liberdade. Por último, Weber a concebia pela ótica do conflito de valores, uma vez que notava nela a ausência de unidade em termos de justiça, ética e estética, decorrente que era de um longo processo de racionalização das atividades humanas. 6 Santos (1994) afirma que o nível técnico alcançado por aquelas sociedades permitia a consideração de alguns territórios com espaços internacionalizados, diferente do que ocorria na maior parte do planeta (já conhecido pela humanidade). 36 Estado-Nação, a dependência por atacado da produção de fontes de energia inanimadas ou a completa transformação em mercadoria de produtos e trabalho assalariado. Outras têm apenas uma continuidade especiosa como ordens sociais pré-existentes. Um exemplo é a cidade. Os modernos assentamentos urbanos freqüentemente incorporam os lugares das cidades tradicionais e isto faz parecer que meramente expandiram-se a partir delas. Na verdade, o urbanismo moderno é ordenado segundo princípios completamente diferentes dos que estabeleceram a cidade pré - moderna em relação ao campo em períodos anteriores (GIDDENS, 1991, p.16).Aqui estão alguns pressupostos da idéia de “nação” e suas imbricações com o território. E, mais especificamente, com as cidades (modernas ou que assim desejem ser). Neste sentido, ler a construção conceitual do primeiro termo nos dará suporte para as reflexões sobre nosso objeto no que ele nos suscita em particular. Por isso, esta unidade da tese se estrutura a partir das relações entre tais conceitos no recorte temporal indicado e na constante relação entre o Brasil e suas determinações externas. Se lembrarmos que a Geo-História proposta considera um duplo vínculo entre homem e natureza, assimilando as diferentes velocidades próprias dos processos históricos, e observando-as em diferentes escalas, perceberemos que determinadas realidades podem ser simultâneas e não necessariamente contemporâneas. Uma vez que estávamos fortemente vinculados à Europa, mas em uma posição subalterna em qualquer aspecto que se considerasse, olhar para o Império do Brasil significa apreender, no contexto dos países de formação colonial, seus processos de longa duração e os seus impulsos breves, que denotam suas particularidades. Sigamos os fatos para tentar destacar o rebatimento das transformações materiais e intelectuais européias na realidade que efetivamente nos interessa. 2.1. Notas sobre o período imperial brasileiro A despeito da Inconfidência Mineira, no final do século XVIII, ou da abertura dos portos “às nações amigas” em 1808, o processo de independência brasileira começou a tomar faces concretas quando do regresso de D. João VI a Portugal em agosto de 1821. Desde a criação do Reino Unido no Brasil, seis anos antes, as elites 37 portuguesas haviam se empenhado por medidas que diminuíssem a importância brasileira frente ao império lusitano cujo evento mais relevante foi a Revolução do Porto em 1820 e a conseqüente convocação das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa no ano seguinte, forçando a volta do rei a Lisboa. Ao sair do Brasil, D. João VI deixou seu filho Pedro no papel de príncipe- regente pensando em uma continuidade administrativa e política. No entanto, a realidade não tardaria em mostrar novos caminhos uma vez que a aristocracia latifundiária brasileira começou a observar na figura de D. Pedro a saída para uma independência pacífica, pois o seu apoio impediria a atuação dos grupos republicanos e abolicionistas e, ainda, a participação das camadas populares no processo separatista. Diante do que ocorria nas demais regiões da América, apostavam na manutenção da monarquia como garantia da unidade do país contra possíveis movimentos revolucionários que pleiteassem a divisão territorial. Contrariando os interesses de Portugal, sobretudo os propósitos recolonizadores, D. Pedro iniciou uma série de reformas políticas e administrativas que encaminhariam o Brasil para um confronto com as ordens vindas de D. João VI. Estão, do início de 1822, entre elas, a nomeação de José Bonifácio (líder da bancada brasileira nas Cortes Constituintes em Lisboa e ardoroso defensor da independência e de uma monarquia constitucional, mesclando posições liberais e conservadoras) para o cargo de Ministro do Reino e Estrangeiros (o mais alto ocupado até então por um brasileiro) e a criação do Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil (uma espécie de parlamento que examinaria as decisões vindas das Cortes, julgando a sua aplicabilidade na colônia). Em seguida, recebeu amplo apoio da maçonaria do Rio de Janeiro, instituição de grande influência nos movimentos de independência, através da condecoração com o título de Protetor e Defensor Perpétuo do Brasil. Se, por um lado, D. Pedro continuava a tomar medidas de cunho rebelde como o decreto que qualificava como inimigas as tropas portuguesas desembarcadas no Brasil sem o seu consentimento e o Manifesto às Nações Amigas, escrito por Bonifácio, que assegurava o Brasil como “reino irmão de Portugal”, por outro lado, D. João VI ampliava sua política de controle da colônia, anulando a convocação da Constituinte proposta por seu filho para substituir o Conselho de Procuradores; 38 ameaçando o envio de tropas militares e exigindo o imediato retorno do príncipe- regente a Portugal. Incentivado pelo Ministro do Reino e por sua esposa Leopoldina, proclama a separação do Brasil em relação à Portugal, sendo coroado D. Pedro I no final daquele 1822.7 Diferentemente de toda a América espanhola, o Brasil marcaria a sua passagem do período colonial para a independência de forma pacífica por conta de uma série de motivos específicos: o trono brasileiro passaria a ser ocupado por um nobre da mesma casa reinante da antiga metrópole da qual era herdeiro em linha direta de sua coroa e, sobretudo, a manutenção de uma ordem estruturada em privilégios das elites, notadamente a manutenção do trabalho escravo. O Brasil, que teve sua independência formal reconhecida internacionalmente apenas a partir do Tratado de Paz e Amizade com Portugal de 1825, se configurou como o único país independente da América do Sul adepto da escravidão como força de trabalho característica e a única monarquia instaurada no continente no pós-emancipação. Na tentativa de garantir e criar uma nova nação, (...) as elites do sul do país apostavam claramente na monarquia e na conformação de uma ritualística local. A realeza aparecia, em tal contexto, como o único sistema capaz de assegurar a unidade do vasto território e impedir o fantasma do desmembramento vivido pelas ex-colônias espanholas. É nesse sentido que a monarquia se transforma em um símbolo fundamental em face da fragilidade da situação (SCHWARCZ, 2000, p. 18). No entanto, consolidar a independência do Brasil não foi missão fácil para D. Pedro I que tinha que enfrentar os movimentos no interior das províncias que contestavam sua autoridade e os embates na elaboração daquela que seria a primeira constituição brasileira. Era necessário, portanto, um governo de equilíbrio, discernimento e de apoio popular, mas os tons assumidos foram os da centralização e do despotismo, minando sua base de apoio político ao desagradar interesses provinciais. O primeiro grande embate ocorreu durante a Assembléia Constituinte quando os grupos que o haviam apoiado iniciam a luta por interesses específicos e trazem à tona três nítidas tendências políticas: a liberal (que, mesmo formada por moderados e radicais, defendia uma monarquia constitucionalista que limitasse os poderes do imperador ao reconhecer o legislativo como representante legítimo da 7 Como tudo era discurso, D. Pedro foi coroado imperador, sugerindo, apesar do direito monárquico, uma aproximação maior com um desejo popular que o título de rei não comportaria. 39 nação a ser construída), a conservadora (que defendia um executivo forte e centralizado pelo monarca como mecanismo institucional para manter a ordem social e a unidade do Império) e a republicana (que, mesmo sem maior expressão, estaria presente em todos os movimentos de oposição que caracterizaram o período). Instalada em março de 1823 e presidida por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, irmão de Bonifácio, a nossa primeira Assembléia Constituinte foi formada por 80 deputados (dos quais bacharéis, padres, magistrados e senhores de terras e de escravos formavam o conjunto) que, representando as províncias eram, na maioria, comprometidos com ideais liberais. Este fato logo gerou um mal estar nos trabalhos diante do poder absoluto pretendido por D. Pedro I. Mesmo assim, esses seguiram em meio às discussões quanto à autoridade do imperador na Constituinte e à cidadania dos portugueses residentes no Brasil (fato que assumiu contornos críticos e ocasionou a separação
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