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O Espelho índio - Gambini

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111I11Vlfl:1qllu illrormam,outros que di-
111111111, 1111I1110[i que apenas instruem. Es-
!I'Ilvli1IIIIIlldo Isso e vaialém.Ele nos mbs-
II ri '11111iJ nUIlIpl C possível abordar umtema
111 1IIi1 \H 11 Ido (10 modo novo e desvendar ní-
Vldtl dll IlIloI(lção humana até então insus-
I",11, li 1011,
l!llo livro é surpreendente.Ele nos re-
VI111I o:; cumadas mais profundas contidas
11111110 ::Irnplescoleção de cartas velhas. No
f'lllllio XVI os jesuítas que aqui chegaram
Illovldo:jpor sentimentospios tentaramrea-
111(11 umo tarefaúnica: transformar os habi-
Irlllt08da terra recém-conquistada em sú-
dlIOl; optosda Coroa e de Deus. Pretendiam,
lU convertê-Ias,elevá-Iasà categoria de se-
lOU Ilumanos,como se a condição tribal em
lue viviamnão Ihes permitisseatingirtal es-
Irllura,
O saldo foi melancólico;para não dizer
stroso. A conversão ao cristianismo
carretou mortes,deformações e desenga-
no, Em pouco tempo os povos de língua tu-
pl que habitavamao longo da costa passa-
ram a sobreviver apenas nos registros dos
cronistase viajantesque poraquipassaram.
A cruzada cristã, noseu afã de civilizar,sem
se dar conta destruiumuitomais do que po-
deria justificar perante Deus.
Quem foram os autoresda dizimação?
Além dos colonizadores, por certo foram os
missionários jesuítas, agentes por excelên-
cia da Conquista. Em suas cartas à sede da
Companhia de Jesus relatarampasso a pas-
so seu martírio e o trabalhoque faziam pe-
la glória de Deus. A primeira leitura dessa
correspondência nos sugere ter€m sido Os
missionários homens devotos, idealistas e
bnegados. Talvez o fossem. Mas aprofun-
dando a análisedo conteúdodessas cartas,
como o fez Roberto Gambini, chega-se a
uma constatação espantosa: o que os mis-
sionários acreditavam ver no indígena não
passava da projeçãode tudoaquiloque não
onseguiamreconhecerem si mesmos:ero-
tismo,espor1taneidade,espirltualidade, en-
tro outros aspectos. Ao catequlzar o índio,
Jesuíta queriaexorcizarseu própriodemô-
1)10, Mas ao fazê-Io, revelouapenas sua pró-
o ESPELHO ÍNDIO
Os jesuítase a destruiçãodaalmaindígena
© 1988, Editora Espaço e Tempo Ltda.
Rua Francisco Serrador, 2 - gr. 604 - Centro
20031 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (021)262·2011
Capa e Diagramação:
Cláudio Mesquita
Foto de capa do Autor: Paiô, pajé dos Zoró (1987)
AGRADECIMENTOS
G181e
87·1060
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Naciorial dos Editores de Livros, RJ.
Gambini, Roberto, 1944-
O espelho índio: os jesuítas c a destruiçãoda alma
indígena / Roberto Gambini. - Rio de Janeiro : Espaço c
Tempo. 1988.
1nclui bibliografia.
ISBN 85-85114-37-1
1. Trato com os índios - Brasil. 2. lndios da América
do Sul - Brasil. I. Título. lI. Título: Os jesuítase a des-
truição da alma indígena.
CDD - 980.41
Minha gratidão à Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP) e à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
do Ministério da Educação e Cultura, por terem tornado
possível a realização desta pesquisa no Instituto
C. G. Jung de Zurique.
Minha gratidão ao Dr. Heinrich Karl Fierz e à Dra.
Hilde Binswanger; à Dra. Marie·Louise von Franz, minha
orientadora,e aos Drs. John Hill e José Zavala.
Da amiga Carmen Junqueira ouvi as primeiras palavras
sobre os índios do Brasil. O amigo Cândido Procópio
Ferreira de Camargo sempreapoioutudo. Saudade.
No ano de 1978, durante uma pesquisa de campo no
Posto Indígena de Araribá, São Paulo, um índio Terena
me contou o seguinte sonho:
"Fui até o velho cemitérioguarani na Reservae lá vi uma
grande cruz. Uns homens brancos chegarame me pregaram na
cruz de cabeça para baixo. Eles foram embora e eu fiquei
desesperado.Acordei com muito medo."
o presenteestudo é uma tentativade compreenderesse sonho.
SUMÁRIO
PARTE I - PROJEÇÃO E CONHECIMENTO DO OUTRO
1. A visão patológica de projeção 17
2. O mecanismode projeção 35
2. 1. O desconhecido 37
2.2. O papel dos complexos 40
2.3. Ilusões, subjetividade e "participação mística" .43
2.4. O cisco e a trave .47
2 .5. O gancho 51
2.6. Os quatro estágiosda projeção 53
3. A função heurística da projeção 57
PARTE II - A CONVERSÃO DOS fNDIOS BRASILEIROS
NA BrOCA DO DESCOBRIMENTO
1. As cartas jesuíticas 69
2. O novo Mundo e a origem da Missão 73
3. O auto-retratodos jesuítas 95
3. 1. Os Soldados de Cristo e os Exercícios Espirituais 95
3.2. Os pecadosconfessosdos jesuítas 110
3.3. Lamúrias,pobreza,sofrimento 114
3.4. A inflaçãodos jesuítas 116
3.5. Os milagresdosemissáriosde Deus 119
4. O retrato dos índios traçado pelos jesuítas 121
4.1. O espelhoduplo:"Façamoso homemà nossaimagem"121
4.2. O espelhoduplo: a faceobscura 127
4.3. O mundosemDeus 135
4.4. A naturezaexecrada 143
4.5. Antropofagiapensadae vivida 149
5. O Reino das Trevas 159
5. 1. A progeniturado maléfico 159
5.2. A sombrados jesuítas 166
5.3. As índiase a animaausente 173
6. A conversãodas almas 191
6.1. A perdada identidadecultural 191
6.2. Batismo,armade conquista 199
6.3. Umasagradaescravidãoe o grandeplanomissionário202
Bibliografia 209
lndice das ilustrações 213
Relação das cartas 217
PARTE I
PROJEÇÃO
E CONHECIMENTO DO OUTRO
ofenômeno da projeção sempre foi um assunto de grande
interessepara mim. A idéia kantiana de que moldamos a
realidade no-próprio ato de conhecê-Ia,como se fosse argila mole,
foi uma revelaçãoque sempremotivou em mim um sem-númerode
reflexões. Nos círculos universitários, essa concepção acabou dando
ll!gar a outros sistemasde idéias. Recomendava-sea noção melhor
de que-a objetividade do conhecimento,especialmentenas ciências
humanas, só pode ser garantida atravésdo uso do método dialético
de investigação e explicação da realidade social. Conhecimento e
método passavama ser indissociáveis. Quanto à consciência huma-
na em si, já não se duvidava mais que, em última análise, as idéias
são determinadaspela estrutura social e pela posição que se ocupa
com respeito ao modo de produção. As relações sociais estabeleCi-
das com vistas à produção material seriam a realidade primeira a
ser levada em conta; o resto, desdeidéias até sentimentosreligiosos,
não passariade mera derivação.A maneirade uma pessoaencarar-se
a si mesma,aos outros e ao mundo veio a ser denominadaideologia
e tida como condiCionada pela classe social, portanto relativa. A
única possibilidadede evitar as ilusões engendradaspor tantasvisões
contrastantesseria adotar o ponto de vista epistemologicamentepri-
vilegiado dos soCialmentedominados.A identificação com essapers-
pectiva assegurariaum novo padrão de objetividadee transcendênCia
e nessestermos a velha e inquietante questão de Kant poderia ser
definitivamentedescartadacomo resquício de uma condição alienada.
Estou é claro caricaturando um problema que tem há muito
ocupado os espeCialistase que requereria extensiva crítica biblio-
15
gráficacasonossoobjetivofossepromovê-Ioou atacá-Io.Para mim,
aquelasimplesidéia de que moldamosa realidadena tentativade
conhecê-Iacontinuoupor muitosanos comoum germevivo que
acabariapor encontrarseudesenvolvimentoempíricoem meucon-
tatocoma psicologiaanalíticae o modopeloqual C. G. Jung des-
creveo fenômenode projeção.
Comosói acontecercomidéiascruciais,a de projeçãotornou-se
como tempoumaespéciede pedraangularsobrea qual diferentes
sistemaspsicológicostêm erigido vastasramificaçõesteóricas.O
pesode tantoscoroláriostornou-setal que a realidadeda projeção
passoua ser decifrávelapenaspara o especialistaem psicanálise.
Além disso,o fenômenodenotadopor essetermonão é o mesmo
paraas diferentesescolas.Com a intensificaçãode seuuso, a pala-
vra perdeusuaconotaçãoplenae foi reduzidaa um lugar-comum,
a umaexplicaçãoinstantâneado tipo "mas issonão passade uma
projeção".
O que me proponhofazer,de partida,é colocarlado a lado
algunsaspectosdo fenômenode projeçãopeloprismadapsicologia
junguianacomvistasa recomporsuamagnitudee suasimplicações.
16
1. A VISÃO PATOLÓGICA
DE PROJEÇÃO
A palavraprojeçãofoi usadapelaprimeiravez no séculoXIX
·peloneurologistaMeynertem suasteoriassobrea fisiologia
do cérebroe foi nessecontextoqueFreuda encontrou.A idéiacen-
tral era de que o córtexcerebralcontémalgo denominado"siste-
masde projeção",cuja funçãoseriatransmitirao cérebroestímulos
externos,como se um filme mostrandoa realidadeexteriorfosse
projetadonumatela dentrode nossacabeça.Em 1891,em seuen-
saio sobreafasia,Freud menCionaessateoriaao discutiro modo
pelo qual a imagemdo corpoé representadano córtexe diz que
essarepresentaçãodenomina-se"projeção".1
Freud deve certamenteter trabalhadoessa interessantenova
idéia nos anosseguintes,aplicando-aa suasobservações.Em 1894,
enfatizoua dimensãopsicológicado fenômenoem sua tentativade
explicara origemdosestadosde ansiedadee, em 1896,das ilusões
persecutóriasna paranóia.Freudmantevea noçãode representação
interior de uma imagemmasintroduziuo elementode enganoou
distorção.No primeirocaso,afirmouque a ansiedadesentidapelo
sujeitocomoresultantede umasituaçãoobjetivana verdadederiva
deumarepressãosexual,istoé, umacúmulode excitaçãosexualque
passaa serprojetadafora. Estaé a origemda idéiade queprojeção
resultade uma repressão.Dois anos depois,Freud estabeleceua
1 Para o tratamentodestetópico e os primeirosusos do conceito por Freud.
cf. Frey-Rohn,From Freud to Jung, págs.251-253e Sami-Ali, De ia projection,
pág. 14 e segs.
17
conexãoentreprojeçãoe paranóia.Essesdois aspectosdevemser
levadosem contase quisermosentenderde que tipo de fenômeno
psicológicose fala quandose usa o termo"projeção"no sentido
freudiano:distorçãoda realidade,repressãoe ilusãoparanóica,tudo
a serviçode umadefesa.
Freudformulouessaidéiaao estudarum casode psicosepara-
nóica,váriosanosantesde aplicá-Iapara interpretaralgunsaspec-
tos cruciaisde dois de seusmaisfamososcasos(Dora, de 1905,e
Schreber,de 1911).Nessecontexto,a projeçãoé vista do seguinte
modo:o egoé incapazde lidar comum conteúdoincômodoe finge
queo mesmonãoexiste,suprimindo-odo campoconsciente.É então
quesurgemos sintomasparanóicos,porquea repressãose deu atra-
vés de uma projeção.Isto é, o próprio sintomaé uma projeção.
Esse"conteúdoincômodo"querdizerumaexperiênciasexualinfan-
til que,quandoreativada,causaum sentimentode culpa e é refe-
rida pelo sujeitoa algumobjetoexteriorem lugar de seu objeto
original.A pessoaentãodesconfiados outros,pois esteslhe apare-
cemcomojuízese acusadores.Eis aí a projeçãoe a distorçãoque
causa.Seu objetivoé pouparo ego da dificuldadede reconhecer
uma auto-críticae uma dolorosaexperiênciareprimidana origem
dessemecanism9patológico.
Ao analisar"Dora", Freud considerouas acusaçõesque a
jovemlançavacontraos envolvimentossexuaisde seupai comosen-
do na verdadeumaauto-acusaçãodisfarçada:ela atribuíaa outrem
um desejo(em seu caso,pela amantedo pai e tambémpor ele),
que se recusavaa reconhecerem si mesma.Percebe-seassimque
paraFreud a projeçãoé basicamenteum disfarcee uma fonte de
ilusões.Em suasprópriaspalavras:
"Uma série de acusaçõescontraoutremnos faz suspeitara
existênciade umasériede auto-acusaçõescom o mesmocon-
teúdo.Bastaaplicar de voltaao acusadorcada uma de suas
frases.Há inegavelmentealgo de automáticonessemétodode
defender-sede umaauto-acusaçãolançando-asobreoutrem.Um
bommodelodesseprocedimentopodeser encontradona argu-
mentaçãoinfantildo tipo tu quoque( ... ) Na paranóia,a pro-
jeçãode uma acusa~ãoem outra pessoasemqualqueraltera-
ção de conteúdoe portantosem a menorconsideraçãopela
18
realidadetorna-semanifestaenquantoprocessoformadorde
ilusões."2
Dessepontode vista,se um pacienteprojetaao queixar-seou
no momentoem que acusaalguémou algo, seu discursodeveser
ouvidocomum intercâmbiode sujeitoe objetoparaquea situação
real possaser percebida.A projeçãoseria entãosempreum erro
e seumecanismouma sériede malabarismosbaseadosem negação,
reversãoe distorção.
Outro aspectoimportanteé queem sua interpretaçãoda para-
nóia (o caso Schreber)Freud faz uma conexãoentreprojeçãoe
homossexualismonão-reconhecido,afirmandoque em tais casoso
pacientenega seus sentimentos,transformando-osem seu oposto
e a partir de entãoescondeseusinaceitáveisimpulsosjulgandoser
odiado.A descriçãodessemecanismoficou famosae podeser en-
contradaem qualquerdicionáriode psicanáliseou manualde psi-
quiatria. Em suas linhas básicas,trata-seda idéia de que uma
percepçãointerior é suprimidae substituídapor um conteúdo
distorcidoque atingea consciênciacomose viessedo mundoexte-
rior. A sensaçãode perseguiçãoderiva do fato de que o sujeito
alteraa naturezáde sua emoçãoproibida:o que deveriaser sen-
tido internamentecomoamoré percebidoexternamentecomoódio.3
Nestepontopassa-separa o terrenoda lógica,pois a formulação
dessemecanismoé usualmenteapresentadaem textospsiquiátricos
nos seguintestermos:
"A contradiçãonessecasoé 'eu não o amo,eu o odeio',mas
como essaafirmaçãotão familiar não pode se tornar cons-
ciente,o mecanismode projeçãoentraem cenae ao invésde
dizer 'eu o odeio' ocorreumatransformaçãodo tipo 'ele me
odeiae por isso eu o odeio'.Nessepontoa contradiçãoreal-
mentepassaa ser 'eu não o amo,eu o odeioporqueele me
persegue'.,,4
2 S. Freud, "Fragmentof an'analysisof a caseof hysteria"in CaseHistories I,
pág. 67. Tradução minha, como em todas as demais citações de todos os
tipos no decorrer do livro.
3 De Ia projectiol1.pág. 34 e segs.
4 Hendersone GilIespie, Textbook of Psyc1Jiatry,pág.292. Se quisermoscom-
parar essaformulaçãocom o modo pelo qual fung usa a mesmaidéia, veremos
19
III!
Seria esseentão o fenômeno abrangido pelo termo "projeção":
uma estranha manipulação das emoçõese uma confusão das bar-
reiras entre mundo interior e exterior que acabaria levando à lou-
cura. Não pretendo negar que esse aspecto exista; o que me pa-
rece questionávelé que essa percepção,tomada em sentido dema-
siado estreito,acabou por contaminarum aspectomuito mais amplo
da psicologia humana e desse·modo impede seu reconhecimento.
É como se esse insight não pudesse Se libertar do magnetismoda
patologia. Creio que não seria injusto dizer que a maioria das pas-
sagensna literatura psicanalítica contemporâneaque tratam de pro-
jeção ainda carregam esse sinal de origem; de fato, sempre que
projeções são interpretadas percebe-se um certo grau de "anor-
malidade". O leitor pode então descontrair-se,certo de que só os
psicologicamenteperturbados projetam - ele não.
Em textospsiquiátricos pode-seclaramenteperceberque o con-
teúdo reprimido que desencadeiaa projeção é um fracasso ou ato
de má conduta, um desejo sexual não admitido ou então um sen-
timento de hostilidade. Como essesconteúdossão negadose proje-
tados para protegero ego, o sujeito capta erroneamentea realidade
e passaa viver num estadode ilusão. No fundo da questãohaveria
uma incapacidade de lidar com sentimentosde hostilidade; conse-
qüentemente,a projeção é encarada como. uma "desordem do ca-
ráter". Alguns autores se perguntam de que modo se lida com o
ódio conforme as diferentes estruturas de caráter e chegam à con-
clusão de que essaemoçãopode ser reprimida, dirigida para dentro,
expressaou projetada. Em geral, considera·se que no estado psicó-
tico "a agressividadee o ódio são tratados de modo distorcido
que para ele o sujeito não conhecea verdadeiranaturezade seus sentimentos
e por isso ocorre a projeção. Jung não fala de reversãode sentimentosou
mudançade sujeitoe objeto. Num de seussemináriosele conta de uma jovem
que amava a naturezae um dia começoua suspeitarque os outros falavam
dela. Jung então diz o seguinte: "como vêem, essa é a origem das idéias
de perseguição.Em tal condição,o indivíduo não percebe que, ao invés de
amar, odcia os outros; c como não percebe isso, projeta a idéia de ódio c
acredita ser odiado e perseguidopelos outros. Quando alguém diz que nin-guém o ama, trata-seinvariavelmentede uma pessoaque odeia aos demais;
naturalmenteninguéma ama,pois ela reagea todos com ódio." Vemos assim
que na raiz dessacondição se encontraum problemade sentimento. CL The
Vísíons Semínar,vol. 11,pág. 512.
20
através do mecanismo defensivo de projeção".5Como o paranóico
é incapaz de lidar com a própria hostilidade, a única saída é
projetá-Ia - tal qual uma válvula de escapepara liberar um vapor
excessivo - e concretizá-Ia cada vez mais no plano exterior. A
passagemque segue deixa bem claro esse ponto:
"O paranóico cai na teia de suas próprias projeções.Não é
capaz de abrir mão de seus medos projetados e redirecioná-
los porque estes são em si mesmos parte integrante de uma
manobra defensiva para não ser tomado e desintegradopela
própria hostilidade. Nesse ponto, a única coisa que pode fazer
é continuar projetando até atingir uma 'realidade' reconstruída
de modo mais estável,que inclua em sua organizaçãosuas pro-
jeções defensivas."6
A idéia contida nessa teoria é que em primeiro lugar vem a
hostilidade, e depois a projeção e a ilusão. Nos estágios iniciais
da doença a projeção não tem foco e portanto o paciente não é
capaz de localizar um perigo específico. Com o desenvolvimento
da enfermidade,essas projeções gradativamentecompõem um qua-
dro organizadode uma realidade exterior na qual os perigosos"ou-
tros" são finalmente percebidos como um grupo específico num
complô definitivo. O mesmo autor prossegue:
"A pseudo-comunidadeparanóica é uma organização imagllul-
ria, composta de pessoasreais e fictícias, as quais são vistas
pelo paciente como unidas em torno do objetivo de fazer-lhe
algo. A presumida 'ação' corresponde a seus próprios impul-
sos libidinosos e hostis, que são projetados."7
Podemos aqui perceber como essa abordagem teórica atribui
à projeção a função ativa de elaborar uma visão psicótica da reali-
dade. Repetindo, essa noção pode ser pertinente à compreensãoda
psicose - mas o problema é que o fenômeno da projeção acabou
reduzindo-se basicamente a esse aspecto. De fato, essa linha de
5 J. Michaels, "Character Structure, CharacterDisorder", in Amerícan Hand·
book o/ PsycJiiatry, vol. I, pág. 518.
6 N. Cameron, "Paranoid Conditions and Paranoia", in American Handbook
o/ PsycJiiatry,vol. I, pág. 518.
7 Ibidem,pág. 519.
21
["
pensamentocondiciona o uso do termo nos mais variados contextos.
Seria bom lembrar que se encaramos uma "ilusão paranóica" a
partir de um ponto de vista simbólico poderemoschegar a resul-
tados muito diversos. Em meu trabalho analítico em Zurique, tive
oportunidade de tratar de uma mulher que numa certa altura de
sua vida viu-se em meio a grandes dificuldades psicológicas que
culminaram na convicção de que seu marido estava tentando enve-
nená-Ia. A "evidência" de que dispunha consistia num pequeno
ponto irritado em sua pele; mas para ela isso indicava que seu
marido havia lhe aplicado injeções de veneno enquanto dormia.
Não conseguindomais compreendero que se passava,ela decidiu
chamar a polícia. Nessa época a relação matrimonial estava pés-
sima e as brigas eram muito freqüentes. Como ela era estrangeira
e não falava nem o alemão nem o dialeto suíço, o marido en-
tendeu-secom a polícia, declarando que ela tinha enlouquecido;
com base nessa informação, as autoridades levaram-na para uma
clínica psiquiátrica. O diagnóstico então feito sustentavaque ela
tivera um ataque esquizofrênico de natureza paranóide; a paciente
foi então internada e medicada por um curto período, retomando
a casa sem nenhum tratamento psicoterapêutico.O diagnóstico se
baseavaprincipalmentenas informaçõesfornecidas pelo marido, visto
que ninguém podia de fato falar com ela e penetrar em sua si-
tuação psicológica. ·Pouco tempo depois o marido deu entrada a
um processode divórcio alegandoque a esposaestavamentalmente
perturbada e totalmente incapacitada para o desempenhode suas
funções domésticas.Ela nunca pôde pronunciar-se em defesa pró-
pria no tribunal, assim como jamais compreendiaas acusaçõesque
lhe eram feitas - além de não conhecer a língua, seu nível edu-
cacional era bastante rudimentar. Não demorou muito e ela teve
que abandonar a casa do marido, lá deixando todos os bens que
haviam adquirido juntos; viu-se então forçada a viver apenas com
uma pequena pensão. Devido a suas limitações, acabou se empre-
gando como faxineira num hospital.
No início da terapia ela mal conseguia se comunicar - e
não tinha um ponto de vista a partir do qual pudesse julgar sua
situação. Traço algum de ilusão paranóica evidenciou-se durante
a terapia. A história de seu casamentosó começou a vir à tona
depois de muito tempo. Para começar, ela nunca quis casar com
esse homem; sua intenção era antes ter com ele uma experiência
num país estrangeiroe ver o que aconteceria.Ele porém insistiu
22
e ela acabou concordando. Nos primeiros anos de sua vida em
comum ela trabalhava numa fábrica e entregava mensalmenteo
salário ao marido para ajudá-Io a montar um pequeno negócio.
Nesse tempo ela se sentia cheia de energia e entusiasmo, sempre
encorajando-o quando ele vacilava diante da aventura que esco-
lhera. A essa altura ela sentiu necessidadede aprender o dialeto
suíço para melhor integrar-se no novo ambiente mas o marido
impediu, alegando não haver necessidadevisto que lhe daria tudo
o que fosse preciso. Algum tempo depois, ele começou a insistir
que ela ficasse em casa o máximo possível e passou a controlá-Ia
como um detetive.Nesse ponto ela demitiu-seda fábrica, limitando-
se a trabalhar em casa exclusivamentepara o negócio do marido
e sem qualquer remuneração. Ele costumava dizer que esse es-
forço todo era um investimento em seu empreendimentocomum.
Pouco a pouco, todos os seus laços exteriores foram cortados. A
situação chegou a tal ponto que ele passou a exigir que ela usasse
camisola o dia inteiro, argumentandoser essa a única vestimenta
adequada a uma dona de casa que passa o dia no lar. Não de-
morou muito e ela teve uma depressão,perdeu toda a energia e
começou a ter diálogos imaginários com uma amiga fictícia que
lhe fazia companhia. No seu sexto ano de casada essa mulher
vivia uma vida cativa, esgotadae sem a menor compreensãodo
que de. fato estava se passando.Foi então que um dia ela teve o
"delírio paranóico" de que o marido a estava envenenando.Seria
correto dizermos que seu problema era apenas a projeção de hosti-
lidade reprimida e que ela tinha um caráter paranóico? Sua pro-
jeção continha um grão muito importante de verdade simbólica
sobre sua situaçãopsicológica e a realidade de seu casamento,além
de conter um pedido de socorro. Evidentementeela não era apenas
uma vítima inocente de um marido psicopata, pois foi sua pró-
pria constelaçãointerior que a levou àquela experiência. Mas com-
preender sua projeção de que estava sendo envenenadaapenas no
sentido patológicosó serviria para agravar sua condição ainda mais,
além de ser um' grave equívoco.
É interessantenotar que o próprio Freud, originador da vlsao
essencialmentepatológica de projeção na medida em que partiu do
pressupostode que se ligava à paranóia, revelou-seapesar de tudo
mais aberto que alguns de seus seguidores a outras perspectivas
mais amplas para compreenderesse complexo fenômeno. Pelo me-
nos é o que parece depreender-seda passagemque segue,extraída
23
!II
de A Psicopatologiada Vida Cotidiana,embora a idéia não seja
desenvolvida.No texto em questão,Freud vem falando de projeção
e num certo ponto afirma que "na paranóia muitas coisas fazem
pressão para entrar na consciência, coisas essas cuja presença no
inconscientede pessoasnormais e neuróticas só podemos demons-
trar através da psicanálise". O paranóico seria então alguém mais
receptivo a conteúdos inconscientes- mas a ênfase acabaria sen-
do posta pela teoria na própria repressãodessesconteúdos. Freud
prossegue:
"Num certosentido,portanto,o paranóicoestácerto,poisele
reconhecealgo queescapaà pessoanormal:ele vê mais cla-
ramenteque alguémde capacidadeintelectualnormal,maso
fato de deslocarparaoutraspessoasa situaçãoque reconhece
tornainútil seuconhecimento.Esperoquenãomepeçamagora
para justificaras váriasinterpretaçõesparanóicas.Mas a justi-
ficaçãoparcial que concedemosà paranóia( ... ) nos permi-
tirá atingir uma compreensãopsicológicado sensode convic-
ção com que o paranóicofaz todasessasinterpretações.Há
de fato alguma verdade nelas ( ... )."8
Parece-meque essegerme de idéia foi logo posto de lado por-
que levaria logicamentea uma compreensãodistinta da relação en-
tre projeção e o inconscienteque acabaria por contradizer a teoria
dos mecanismosde defesa e do inconsciente como algo que con-
tém principalmente (o advérbio é importante e aparece na formu-
lação do próprio Freud) material reprimido. Alguns comentadores
asseguramque Freud desenvolveuessa idéia de um núcleo de ver-
dade no delírio paranóico em seus escritos posteriores,mas parece
que isso se deu em outra direção, ou seja, a interpretaçãodos mitos
e da história segundo postulados arraigados em sua teoria.
Creio porém não ser preciso ir muito longe para ver como
essa idéia se desenvolve - basta continuar a leitura de alguns
parágrafos no mesmo capítulo mencionado acima Tendo discutido
o comportamentodos paranóicos,e após grifar a frase ..há de fato
8 S. Freud. The Psychopathy0/ EverydayLi/e, capoXII: "Determinism,Belief
in Chance and Superstition- Some Points of View", pág. 318. Grifado no
original.
24
alguma verdade nelas", Freud passa a examinar o fenômeno da
superstição,que novamenteinterpreta como uma projeção de mo-
tivações interiores subjacentes a ações fortuitas. Assim fazendo,
Freud nega-sea admitir qualquer possibilidade de uma interação
significativa entre a psique e eventos externos, visto que não se
inclinava a encarar o inconsciente como algo que pudesse trans-
cender os limites de uma dada personalidade. Como sua preo-
cupação básica era encontrar as motivações secretas ou inaceitá-
veis por trás dos erros e ações fortuitas de nossa vida cotidiana,
ele passaria a ver em toda parte esse problema. O jogo mental de
intenções e seus disfarces seria então a realidade psicológica .pri-
meira, desprovida de fundo, sem nada além do alcance da cons-
ciência - e é precisamenteessa visão redutiva da realidade psí-
quica que ele chamou de "metapsicologia". Creio estar aí a raiz
de toda a diferença entre Freud e Jung e, no que nos concerne
aqui, de sua compreensãodiversa do que seja a projeção.
No encadeamentode idéias que vimos examinando,Freud passa
da paranóia à superstição e daí nega toda e qualquer transcen-
dência - que ele pejorativamentedenomina "metafísica", um eu-
femismo, aqui, para não dizer mera ignorância do sujeito. Como
seu foco era primordialmente desmascararimpulsos mentais negati-
vos escondidos atrás da fachada do comportamento,Freud acabou
concluindo que "a superstiçãoderiva de impulsos suprimidos cruéis
e hostis". Diante de tal asserção,deveríamoster em mente o rico
simbolismo contido nas crendices, superstições e no folclore do
mundo inteiro, e o modo pelo qual esse material pode tornar-se
significativo enquanto expressãodo inconscientecoletivo. Mas para
Freud essaquestãoevidentementeestavafora de cogitaçãopois pre-
ferencialmentepensava na projeção de uma motivação. Se nos per-
guntarmos em que consistiria tal motivação, encontraremos:
"A superstiçãoé em boa parte uma expectativade um pro-
blemaiminente;alguémque tenhaabrigadodesejosmaléficos
freqüentescontraoutrem,masque por ter sido educadopara
ser bom tenhareprimidotais desejosno inconsciente,estará
especialmenteinclinadoa esperarum castigopara sua mal-
dadeinconscientesob a forma de problemasque o ameaçam
no plano exterior."9
9 Ibidem,pág. 323.
25
I'
Devemos notar que Freud deixa de lado superstiçõespositivas
como bons. presságios,simpatias, etc., pois seu foco está nas in-
tençõesmalévolas escondidasque espreitam no inconsciente e que
serviriam de mecanismo de projeção como uma espécie de porta
para o mundo exterior. Ao mesmotempo,a irracionalidadeenquanto
tal não teria o direito de existir, sendo quando muito conseqüên-
cia de um sentimentode culpa. A partir desse ponto, só falta um
passo para negar também o significado psicológico da mitologia e
reduzi-Ia a uma expressãoprojetada do jogo travado entre desejos,
motivaçõese proibições no âmbito do inconscientepessoal. A pas-
sagemseguinterequer especial cuidado, pois seus termos-chavepo-
dem levar a confusão:
"Na verdade,creioqueboaparteda visãomitológicado mun-
do, que se insinuanas religiõesmodernas,não passa de uma
psicologia projetada no mundo exterior. O obscuroreconheci-
mento( ... ) de fatorese relaçõespsicológicasno inconsciente
se espelha- é difícil expressá-loem outros termos,e aqui
a analogiacoma paranóianosserve- na construçãode uma
realidade sobrenatural, destinadaa ser novamenterevertida
pela ciência na psicologia do inconsciente. Poder-se-iadessa
formatentarexplicaros mitosdo paraísoe da quedado ho-
mem,de Deus,do beme do mal, da imortalidade,etc.,trans-
formandoa metafísica em metapsicologia.,,10
Aí temos o quadro completo e agora podemos ver a que le-
vou a idéia de um "grão de verdade" na projeção. Ao pensar em
projeção, Freud parte da paranóia e desembocano problema da
origem da religião, que no fim revelaria a mesmanatureza ilusória.
Voltaremosadiantea essanoção de que a psique (e não uma "psico-
logia") pode ser projetada no mundo exterior apoiando-nos num
ponto de vista completamentediverso, ou seja, a descoberta de
Jung dos arquétipos e do inconsciente coletivo, e nesse momento
a imagem de espelho será novamente usada. Ao dizer que toda
essa insensatezmitológica deveria ser reduzida pela ciência a uma
"psicologia do inconsciente", Freud de fato encara o mito como
espelho ou derivativo da patologia, do jogo que postula entre
10 Ibidem,pág. 321. Grifado no origina!.
26
motivaçõessecretas,e não como expressãode um inconscienteque
na verdade circunda a consciência por todos os lados. A mim pa-
rece que o modo segundo o qual Freud relaciona essa "realidade
sobrenatural" aos conteúdos reprimidos do inconsciente é análogo
à proposição de Marx de derivar a "superestrutura" de idéias, re-
presentaçõese cultura dascondiçõesmateriaisda produçãoeconômica.
Obviamente, o passo seguinte dessa argumentaçãoteórica se-
ria dizer que então os sonhos também são uma projeção e não
algo em si mesmos- e como é sabido, é exatamenteessa a con-
clusão a que Freud chega, novamentepostulando uma similaridade
entre paranóia e o processo de formação do sonho.11 A idéia é
que sonhar é em si um ato narcisístico, pois a libido reflui do
mundo exterior e volta-se para o ego visando proporcionar-lhe uma
satisfaçãoalucinatória de seus desejos- o que explicaria por que
a figura central nos sonhos é sempre o próprio sujeito. É como
se, tendo sonhado, a pessoa pudessecontinuar dormindo em paz,
uma vez que um problema interior seria retratado desenvolvendo-
se e sendo solucionado no plano externo. Assim a teoria afirma
que o sonho é uma projeção, posto que externaliza um processo
interior e transforma um pensamentoou desejo pré-conscienteem
imagens.No que diz respeito a nosso tópico, a conclusão freudiana
é de que a regressãodo ego a um nível narcisista é condição sine
qua non para a projeção, o que seria demonstradopelos sonhos.
E como para Freud todo sonho contém uma distorção produzida
pela "censura", novamentepodemosperceberque para ele projeção
c distorção vêm juntasY Sem nos aprofundarmos ainda mais no
assunto,eu diria que em sua tentativade compreendera estrutura
de nôsso "aparato mental" (como diz) postulando a existência de
duas "agências", uma que expressaum desejo e outra que o cen-
sura, Freud estava de fato projetando no inconsciente algo que na
verdade pertencia à sociedadeemque vivia. Seria interessantecon-
trastar essefato com a negação,por parte de Freud, do modo pelo
qual os povos antigos lidavam com sonhos, isto é, sua crença de
que os mesmos tinham origem divina, eram capazes de predizer
11 Sami-Ali, op. cit.,pág. 51.
12 S. Freud, The Interpretationo/ Dreams,capoIV: "Distortion in Dreams",
págs.224-226.
27
111"1
o futuro, tinham um efeito curativo e. podiam ser interpretados
simbolicamente:
"A visãopré-científicados sonhosadotadapelospovosda An-
tiguidadeestavade certoem completaharmoniacomsuavisão
do universoem geral,a qual os levavaa projetarno mundo
exteriorcomose fossemrealidadescoisasque na verdadesó
eramreaisem suasprópriasmentes."13
Isso certamentese liga à reduçãofeita por Freud daquiloque
denominou"realidadesobrenatural"ou "metafísica".Comovimos,
ao mesmotempoem que projetaum aspectohistoricamentecondi-
cionadoda sociedadevitorianana naturezado inconsciente,Freud
acusaa antigaconcepção,tão combatidapor sua mentecientífica,
de projetaro inconscienteno mundo- quandoestaúltima pro-
jeção,comoserádiscutidoadiante,revelavade fato as "agências"
do inconsciente,ou seja,os deuses:A "mentepré-científica"sus-
tentavaque os sonhosprovêmde outro mundo,e isso podemos
perfeitamentecompreenderno sentidode que os mesmosse ori-
ginamnum nível do inconscienteque ultrapassade longe o al-
cancede nossaconsciência.Mas comopara Freud isso seriamero
obscurantismo,ele agarrou-seà convicçãode queos sonhosseriam
a projeçãode um conflitointeriore nadamais.
Como é de conhecimentogeral, todosos seus insightssobre
projeçãoe aspectoscorrelatosforam classificatoriamenteelabora-
dos num sistemateórico,no qual a projeçãoocupaum lugardefi-
nido. Como não se encontrarájamaisalgo do tipo na psicologia
junguiana,seriatalvezconvenientesumarizaras linhas mestrasdo
esquemafreudianopara clarificarnossadiscussão.
Freudpostuloua existênciade cinco modosdistintosde uma
pessoaresolve'rfrustrações,conflitosou ansiedade:(l) identificação,
(2) deslocamento,(3) sublimação,(4) transformaçãodos instintos
atravésde fusão e compromissoe (5) mecanismosde defesa.14A
teoriaafirma que os mecanismosde defesasurgempara auxiliar
o egoa lidar com perigose ameaçasque afetama pessoae pro-
vocamansiedade.Nestecasohaveriaduaspossibilidades:ou o ego
13 Ibid., capoI: "The Scientific Literature on Dreams", pág. 60.
14 C. HalI, A Primer o/ Freudian Psychology,capo111,"The Developmentaf
Personality",passim.
28
rem uma constituiçãosaudávele é capaz de contornaro perigo
adotandométodosrealistaspara solucionarproblemas,ou então
enveredapor um caminhopatológicoe adotamétodosque negam,
falsificamou distorcema realidadee impedemo desenvolvimento
da personalidade.Dependendode comoo egolida comsituaçõesde
perigo(excluindo-setodosos meiosracionais),entrariaem açãoum
dos seguintesmecanismosde defesa:(a) repressão,se o ego negar
o perigo; (b) formaçãode reações,se ocultá-Io; (c) fixação, se
permanecerimóvel; (d) regressão,se fugir; e finalmente(e) pro-
jeção,se o ego externalizaro perigo.
f: importantetentarmoscompreendercomo Freud concebia
essesmecanismos,pois só assimpoderemosrealmentecaptaro sen-
tidoda projeçãoparaele.Além de falsificara realidade.essescinco
mecanismosde defesaimpediriamo desenvolvimentopsicológicona
medidaem que comprometemuma certa dose de energiaque o
egopoderiausarparaoutrosfins.J5O egoentãose enrijecee vê-se
permanentementeameaçadopor um segundoperigo,ou seja,a possi-
bilidadede seusmecanismosde defesafalharem- caso em que
perderiao controlee seriatomadopela própriaansiedadeda qual
procuravadefender-se.Essas defesassão portantodanosase só
têmrazãode ser porqueo ego infantil - que lança mão de to-
das - é demasiadofraco para poder integrartodas as pressões
queo afetam.As defesassó persistemenquantoo ego for incapaz
de se desenvolver,pela simplesrazãoque a energianecessáriapara
tantoestátoda investida nas defesas- e aí se estabeleceo cír-
culo vicioso.A teoria sustentaque a soluçãoseria o amadureci-
mentosob a forma de mudançasorgânicasno sistemanervoso.
Em condiçõesideaisde educaçãoinfantil tais mecanismosnão de-
veriampersistiralém do necessário.Ê claro que nesseencadea-
mentode idéias a projeçãoé uma das causasdo subdesenvolvi-
mentoda personalidade,quer dizer, seria uma das forças respon-
sáveispela estagnaçãomórbida.A projeçãoé então algo a ser
definitivamentediagnosticadoe erradicado,sendo substituída,na
personalidade"estabilizada",pelo pensamentorealístico.
Essa concepçãode projeçãopermanecebasicamenteinalterada
em boa parte da literaturapsicanalíticamais recente.A despeito
de toda uma gamade elaboraçõesteóricas,o fato é que, nessa
15 J bid., pág. 96.
29
!llllf
abordagempsicológica, pouco ou nada se discutiu c cxplurou ~o-
bre o que viria a ser a manifestação empírica mais gcral desse
estranho fenômeno denominado "projeção". Temos aí um caso
clássico de uma teoria excessivamentebem elaborada fechando a
porta a um contato vivo e não preconceituosocom a realidade da
psique. Hoje há quem chegue a se perguntar se a projeção não
resultaria de lesões cerebrais,16ou a usar o termo como critério
central para caracterizar a psicologia dos "casos limÍtrofes". Por
exemplo:
"São narcisistas; seu superegoe seu julgamentosão pouco de-
senvolvidos, sua motivação é fraca, apresentamnítidos distúr-
bios da volição, e sua relação com a realidade é problemá-
tica. Relutam ou são incapazes de atribuir conseqüências a
seu comportamentoe fazem excessivo uso da projeção e dos
mecanismosde negação."17
Quanto a diferenciaçõesteóricas recentesdo conceito, gostaria
de examinar brevementealguns exemplos,esperandopoder demons-
trar que permanecemnum nível formal e só se aplicam à limitada
esfera da experiência clínica, quer dizer, à transferência, sem ja-
mais abrir-se a áreas mais amplas da vida e ainda menos da
cultura. O tom patológico está sempre presente. Isso se percebe,
por exemplo, no modo de Melanie Klein usar o conceito de "iden-
tificação projetiva", caso especialmentenegativo de transferência
que essa autora concebe como uma espécie de inveja primitiva.IR
Outros autores igualmentepreocupadoscom esse problema concei-
tual tentam aproximar Klein e Jung, a meu ver equivocando-see
limitando-se à transferência patológica.19 Desse ponto de vista, a
"identificação projetiva" é uma tentativa de criar uma fusão em
16 H. Brosin, "Psychiatric Conditions FoIlowing Head Injury", in American
Handbook of Psychiatry,vol. II, pág. 1.188.
17 M. Schneideberg,"The Boderline Patient", in American Handbook of Psy-
chiatry,vol. L pág. 412.
IR R. E. Money-Kyr1e."British Schools of Psychoanalysis- I. Melanie Klein
and Kleinian PsychoanaliticThought" in American Handbook of Psychiatry,
vol. I1I, pág. 228.
19 Por exemplo, R. Gordon, "The Concept of Projective Identification" in
fUlana/ of Ana/ytica/ Psych%gy, vol. 10,n.' 2.
30
bCll1cffe.:iode uma personalidade fragmentada cujas partes encon-
ll'llIn-sc projetadas.Nesse caso a projeção é vista como um ato de
elxCI'cção,imagem a bem dizer apta para quem sempre vê uma
cl'iança por trás de todo ato psicológico. Através do mecanismo
ullsim postulado, o paciente faria com que o analista se sentisse
uo mesmo modo como se sentiu face a seu progenitor negativo e
() pl'Opósitode todo esse malabarismoinconscienteseria "encontrar
um lugar seguro para proteger a vulnerabilidade do self infantil" .20
EHSUS interpretaçõespodem ser de grande utilidade para quem con-
Celntl'atoda a atençãona transferência,como se esta fosse o único
uudo inconsciente; mas os fatos que pretendem relatar só podem
Hell'apreendidos pelos que dominam a teoria. Caberia então per-
guntar se a própria teoria não estaria antes de mais nada criando
luis fatos, posto que ao olho comum eles não se apresentamde
lul forma. Se a projeção fosse unicamenteum tópico de discussões
cspccializadaspoderíamos perfeitamenteviver sem jamais nos preo-cuparmos com ela. Mas não se trata disso, como o presenteestudo
pl'ctende relembrar.
A mesmacrítica pode ser feita ao trabalho de Sami Ali sobre
li teoria e o uso clínico da projeção.O autor serve-seda comparação
dc Freud entre um sonho e um rébus e aplica a mesma analogia
II projeção, que passa a ser vista como um texto hieroglífico não
decifrado. Concebendo a projeção não como um modo fundamen-
lul de expressão do inconsciente, mas antes como uma condição
deturpada e circunscrita, o autor faz a seguinte descrição do
fenômeno:
..Esse mundo cifrado fala uma língua que o sujeito capta sem
poder compreender.Tudo se transforma em signos, misteriosas
intenções se escondem atrás de coincidências fortuitas e o
acaso é excluído de um universo repentinamentepovoado de
premonições. Nem as pessoas nem as coisas são o que pa-
recem. da mesma forma que as palavras e os gestos aludem
a um sentido que se pode apenas entrever sem qualquer cer-
teza de tê-lo adivinhado, e os acontecimentos,dada sua corres-
pondência, querem dizer algo que permaneceindizível. "ZI
20 Ibid., pág. 140.
li Sami-Ali, De /(1 projectiol1.pág. 127.
31
Essa abordagemparte do pressupostode que a projeção é uma
espécie de defeito ou disfunção do aparato perceptivo e, o que é
pior, a pessoaque vê o mundo a tal ponto distorcido acredita ver
uma l"ealidadeobjetiva - em contraste com aqueles que, por de-
finição, perceberiam a realidade tal qual é. f: exatamentenesse
aspecto que me parece estar a redução da abordagem patológica,
pois esta só apreende uma fração do fenômeno e ignora o resto.
A crítica neste caso seria no mesmoespírito daquela feita P0l" Jung
ao dogma freudiano de que todos os sonhos são a realização de
um desejo. Alguns certamenteo são, mas outros são de natureza
completamentediversa. A partir do momentoem que se reconhece,
através da observaçãoempírica, a generalidadeda projeção, pode-
se igualmente abrir mão da abordagem patológica. Sami-Ali, po-
rém, opera com cortes abruptos; para ele, projeção e falsidade an-
dam juntas e o problema passa a ser do tipo ou ist%u aquilo.
Para percebera realidade corretamentenão se deveprojetar, como
se isso dependessede uma auto-disciplina. Como diz esseautor, "o
contrário da projeção não é portanto o real mas o verdadeiro".22
Trata-se assim, segundo suas palavras, de um processo psicótico;23
a percepção,voltada para a satisfação de um desejo inconsciente,
funcionaria exatamentecomo uma alucinação.24
O interessanteé que essa teoria toda se sustenta numa fan-
tasia sobre a vida intra-uterina e não numa observação empírica
da psique. A idéia é que a projeção, assim como os sonhos, seria
um mecanismo primitivo operante no interior do útero e no de-
correr de toda a primeira infância para reduzir as tensõesdo bebê.
Como tais teóricos conseguemobservar tais fatos é algo que me
escapa! Tanto a projeção como os sonhos seriam então vestígios
desse estado inicial. Como diz o autor, "somente quando esse jogo
se revela inútil é que a criança busca alhures.Esse 'alhures' é o
real".25O que se passa aqui é de fato irônico: os autores dessa
linha projetam no momento exato em que tentam explicar o que
é projeção, mas recusam-sea reconhecer aquela de sua autoria.
Já em 1912,na época em que começavaa romper com Freud, Jung
22 I bid., pág. 178.
21 I bid .• pág. 183.
2. I bid .. pág. 196.
2' Ibid., pág. 198.
32
fez uma conferência sobre a psicanálise e não deixou de perceber
esse ponto. Disse então: "a expressão 'polimorfo-perverso' foi to-
mada de empréstimo da psicologia da neurose e projetadaregres-
sivamentena psicologia da criança, onde na verdade está comple-
tamentefora de lugar".26O modo de Jung usar o conceito - não
como um mecanismode defesa! - numa época em que procurava
explicar para um público mais amplo o que era a psicanáliserevela
que a projeção, desde o começo, era para ele algo muito diverso.
26 C. G. Jung, "'The Theorv 01'Psyehoanalysis"in FrelUl and Psychoanalysis.
Collecled Works - (daqui por diante.apenasCW), § 293; e tambémL. Frey-
Rohn, From FreL/d 10 fung. pág. 149. Grifo nosso.
3)
2. O MECANISMO DE PROJEÇÃO
Distintamente de Freud, Jung não se preocupava essencial-
mente em erigir um sistema teórico e articular conceitos
definitivos. Seu interesseera antes o de expressar de forma sem-
pre renovada as descobertasque fez no decorrer de uma longa e
persistenteobservaçãoempírica da psique. Quem se interessarpelo
mecanismode projeção - expressãoque Jung jamais usou - terá
diante de si um longo trabalho, pois em sua vasta obra Jung
freqüentementese refere a projeção em diferentes contextos, sem-
pre apresentandoo fenômeno a partir de um ângulo novo. Como
pretendo demonstrar,a atitude de Jung a esse respeito permaneceu
estritamenteconsistentee mesmo o mais classificatório dos pesqui-
sadores não encontraria a menor base para falar de "diferentes
fases" nas várias descriçõese interpretaçõesda projeção enquanto
fenômenopsíquico encontráveisnas Obras Completase em escritos
de outra natureza. Isso se deve ao fato de que Jung não se sentia
compelido a reformular seus conceitos de tempos em tempos para
ajustá-Ios a um sistema; muito pelo contrário, o que se percebe
através da leitura de sua obra de 1902 a 1956 é que novos cam-
pos de investigação sempre deram lugar a novas ramificações e
implicações. Por essa razão, não me parece necessário abordar o
nosso tópico acompanhandoos trabalhos de Jung em ordem cro-
nológica. Na verdade, não encontrei um "conceito" de projeção,
uma formulação teórica do tipo "se presumirmos que a psique
humana é assim e assado,e se postularmosque funciona de modo
')5
tal e tal, então projeção é isso ou aquilo"; pelo contrário, o que
se encontra, na maioria dos casos, são descrições,exemplos e ex-
plicações do que ocorre, num certo caso, ao nível psicológico.
Não seria este o lugar para discutirmos até q1je ponto Jung
assimilou ou reformulou as idéias de Freud e nem cabe a mim
fazê-lo. O fato é que já em 1902, .em sua dissertação de douto-
ramento e antes de seu contato com Freud, Jung mostra como os
conteúdos inconscientessão projetados, sem no entanto usar o ter-
mo. Vê-se assim que desde seu primeiro exame do problema, Jung
nunca associou projeção a repressão ou a qualquer outro meca-
nismo psicológico postulado por definição, mas simplesmenteen-
carou-a como um fato natural inerente à psique humana.1
Comecemos perguntando o que é projeção. Em primeiro lu-
gar, é um fato que ocorre involuntariamente, sem qualquer inter-
ferência da mente consciente, quando um conteúdo inconsciente
pertencentea um sujeito (um indivíduo ou grupo) aparece como
se pertencessea um objeto (outro indivíduo ou grupo ou o que
quer que seja, desde seres vivos até sistemas de idéias, a natu-
reza ou a matéria inorgânica). Como isso ocorre involuntáriamente
e inconscientemente,o sujeito não sabe que uma projeção está
ocorrendo, da mesma forma como é incapaz de produzi-Ia ou im-
pedi-Ia. O que pode fazer, ex post jacto, é talvez reconhecer que
o que à primeira vista parecia pertencer ao objeto poderia na
verdade ser seu. Mas como isso nem sempre ocorre, pode-se dizer
que vivemos e temos sempre vivido sob condições de incomensu-
ráveis projeções pois é assim que funciona a psique humana.
A chave para compreendero que é projeção está no fato de
que através dela tudo o que é desconhecidona psique _ ou seja,
inconsciente - pode se manifestar, uma vez que não pode ser
visto ou integrado diretamente.2Esse modo de expressãoé um fato
natural e não uma patologia de uma personalidadeperturbada,pois
o inconsciente aparece inicialmente de forma projetada.3Os con-
teúdos inconscientesnão podem "subir" diretamenteà consciência,
pois se assentamfora de seu campo de luz; só conseguemapro-
1 Como diz Jung em MysteriumConiunctionis:"( ... ) a projeção não é um
ato voluntário; é um fenômenonatural fora da interferênciadamente cons-
cientee peculiar à naturezada psique humana." (CW 14, §131).
2 Essa idéia apareceem CW 10, §714 e em CW 16, §469.
3 CWI6, §383.
36
I
~.
:.§Ii
Jt
ximar-se da área limítrofe, e a questão que se coloca é o grau de
abertura e a habilidade da atitude consciente para "pescá-Ios".
Essa situação peculiar deve-seao fato de que apesar da consciên-
cia ser gerada, envolvida e nutrida pelo inconsciente,esta só pode
aproximar-sedele gradualmente,caso contrário corre o risco de ani-
quilamento. A observaçãoempírica desteprocesso tem demonstrado
suficientementeque o próprio inconscientedetermina o andamento
e o grau de sua absorção. Cada integração de um conteúdo in-
conscienteimplica uma alteraçãoda consciência; se repentinamente
invadida pelo inconsciente,esta perderia sua continuidade e assim
o continentenão abrigaria conteúdoalgum. 'É preciso lembrar que o
dinamismo desta relação peculiar entre um campo de luz relativa-
mente recente e outro sombrio e muito anterior é dado pelo fato
de que este'último quer ser reconhecido e o faz através da via
indireta da' projeção. Ocorre que a intensidade de uma projeção
é proporcional à abertura relativa da atitude consciente.Se a cons-
ciência combater obstinadamentea emergênciade um conteúdo in-
consciente, este poderá recorrer a medidas drásticas para ser re"
conhecido. Como? Segundo Jung, "o inconscienteo faz claramente
através da projeção, extrapolando seus conteúdosnum objeto, que
passa então a refletir o que antesnele se escondia."4
2,1. O desconhecido
Uma das melhores situaçõespara esse modo de expressãodo
inconscientesurge quando o homem confronta o desconhecido,seja
em outra pessoa,outra cultura, uma idéia diferente, um novo am-
biente ou tudo aquilo ainda por ser explorado e investigado.Este
ponto, que Jung iluminou através de seu estudo da alquimia, com
sua suposta descoberta das leis da natureza pelo iniciado, é de
enorme importância para a teoria do conhecimento.Tudo o que
é obscuro, e precisamentepor isso, é um espelho. Em Psicologiae
Alquimia pode-se ler:
"Tudo o que é desconhecidoe vazio estácheiode projeções
psicológicas;é como se o próprio pano de fundo do inves-
tigadorse espelhassena escuridão.O que vê no escuro,ou
4 CW 10,§609; tambémMarie-Louise von Franz, The PsychologicalMeaning
01 Redemption Motils in Fairytales,pág. 98.
37
acreditapoderver, é principalmenteum dado de seu próprio
inconscienteque aí projeta.Em outraspalavras,certasquali-
dadese significadospotenciaisde cuja naturezapsíquicaele
é totalmenteinconsciente."5
o desconhecidoatua portantocomo uma espéciede estimu-
lante da projeção.B interessantenotar que o trechoacima tem
um certotoquekantiano;a diferença,porém,é queenquantoKant
enfatizariaa impossibilidadede um conhecimento'objetivodireto
desprovidode uma dimensãosubjetiva,Jung mostraque através
da projeçãoa psiquesub-repticiamenteseinfiltra frenteaosolhosdo
observadorno momentoem que ele acreditaestar vendo outra
coisa.Creio que a descobertade Jung sobrea naturezada pro-
jeção e sua relaçãotanto com o inconscientecomo com o des-
conhecidofoi a chaveque lhe permitiupenetrarnas obscuridades
da alquimiae nela encontrarum sentido.Se tivesseadotadouma
compreensãorestritivae patológicade projeçãocomoexpressãode
um conflitopessoalreprimido,Jung não teria sido capazde per-
ceberque o inconscientecoletivorevelavaalgunsde seusaspectos
mi visãoqueo alquimistadesenvolveusobrea matériae suastrans-
formações.Em suasprópriaspalavras,
"( ... ) a verdadeiraraiz da alquimia deve ser buscadanão
nas doutrinasfilos6ficas,mas nas projeçõesde investigadores
individuais.Com issoquerodizer que enquantotrabalhavaem
seusexperimentosquímicoso operadortinha certasexperiên-
cias psíquicasque lhe pareciamestarexpressandoas peculia-
ridadesdo próprioprocessoquímico.Comose tratavade pro-
jeção,o alquimistanaturalmentenão tinhaa menorconsciência
do fato de que o experimentonão tinha nada a ver com a
matériaem si."6
o que se deve ter em menteé que tais projeçõesocorriam
involuntariamente.No linguajarcomum,dizemosque alguémpro-
jeta,comose isso implicasseumaaçãoconsciente.Não é o egoque
projeta;o inconscienteé quese projeta.No mesmoparágrafoacima
CW 12,§332.A mesmaidéiaaparecenovamenteno §345.
CW 12,§346.
38
,
f
J'i
citado,Jung afirma que "a bem dizer, não se faz uma projeçao,
ela simplesmenteocorre". Essefato naturalse dá porquetudo o
que é desconhecidono planoexterioré comoum eco de um des-
conhecidointerior. E prossegue:"na obscuridadede tudo o que
é exteriora mim encontro,semreconhecê-Iacomo tal, uma vida
interiorou psíquicaqueé minha".Não se tratade narcisismo,mas
de uma afirmaçãosobre a condiçãohumanae a relaçãoentre
psiquee mundo.No ensaioO Espírito Mercuriusencontramosou-
trareferênciaaodesconhecidoqueigualmentediz respeitoa projeção:
"A experiênciaprática tem repetidasvezes evidenciadoque
qualquerpreocupaçãomais prolongadacom um objetodesco-
nhecidofuncionacomouma isca quaseirresistívelparaque o
inconscientese projetena naturezadesconhecidado objetoe
para que se aceitea percepçãoresultante,bemcomoa inter-
pretaçãodela deduzida, comoalgo objetivo."7
o mecanismode projeçãopostoem açãoquandonos defron-
tamoscomo desconhecidoé admiravelmentebemdescritopor um
esquimóque explicavaa Knud Rasmussencomo o mundo foi
criado.Ele dizia que é muito difícil sabercomoviemosa existir
e o que acontecequandomorremos,visto haverescuridãotanto
no princípio como no fim. Daí ele prosseguee diz algo absolu-
tamenteanálogoà idéia de Jung de que o inconscientese projeta
nas brechasde nossospensamentos:
"Ninguémpodesabernadaao certosobreo começoda vida.
Mas quemabrir seusolhos e ouvidose tentarlembrar-sedo
que diziam os velhospoderápreenchero vazio de seu pen-
samentocomesseou aqueleconhecimento."8
Atravésdesse"vazio no pensamento"o inconscientese pro-
jeta e produzum mito de criação,o qual, comodiz Marie-Louise
von Franz, retrataa origemnão de nossocosmos,mas da cons-
ciênciaque o homemtem do mundo.9 O mesmomecanismoapa-
7 CW 13,§253.
8 Citadopor M.-L. von Franzin CreationMyths,pág.21.
9 Ibidem,pág.8. Ver tambémseuAlchemicalActiveImagination,pág.16:
"( ... ) comosempreocorrequandonos defrontamoscomo desconhecido,a
imaginaçãohiconscienteprojetahipotéticasimagensarquetípicas."
39
recede forma gráfica ao analisarmosmapasantigos,como von Franz
sugere em Creation Myths: no centro do campo visual, por exem-
plo, estaria a Grécia. Nas margensos contornos estão ligeiramente
distorcidos e os países vizinhos se fundem numa espéciede conglo-
merado disforme; a área conhecida é circundada por um Uroboros
e nos quatro cantos do mapa os quatro ventos sopram em direção
ao centro. O mesmo pode se observar nos mapas desenhadospelos
descobridoresdo Novo Mundo: apesarde mal terem tocado a costa,
eles retratama terra inteira, primeiro como ilha e depois como todo
um continente,com as mais inesperadasformas e habitada por es-
tranhos seres e animais mitológicos. Vemos assim que a descoberta
de Jung sobre o mecanismode projeção na alquimia pode aplicar-
se a várias outras áreas da experiência humana. Nas palavras de
von Franz, "esses mapas demonstram ad oculos que onde cessa
a realidade conhecida, lá onde se toca o desconhecidouma ima-
gem arquetípica é projetada."1O
2.2. O papeldoscomplexos
Acabamos de examinar um aspecto do mecanismo de proJe-
ção: seu caráter involuntário, sua relação com um conteúdo in-
consciente que se desloca em direção à consciência e a ativação
exercida pelo desconhecido.A questão que se coloca agora é saber
o quc desencadeiaa projeção. Para responder a essa pergunta, de-
vemos considerar o que a psicologia junguiana tem a dizer sobre
o papel dos complexos.
Em seu ensaio Os fundamentospsicológicos da crença em espí-
ritos'l Jung nos fornece um claro exemplo bíblico desse problema
comentandoa conversão de Saulo. A idéia básica é que um com-
plexo autônomo,ou seja, não associado diretamenteao ego, pode
aparecer através da projeção como se não pertencesseao sujeito.
Saulo cra inconscientementecristão, mas como sua consciência _
assim como a consciência coletiva dominante em seu tempo _
não podia aceitar tal fato, ele odiava e perseguiaos que prOfessa-
vam essa fé. O momentoem que essecomplexo-Cristoaparecepro-
jetado exteriormentesob a forma de visão - deixando de lado as
10 Creatíon Myths. pág. 5.
11 The PsychologicalFOllndationsof Belief in Spirits. CW 8, § 582-584.
40
possibilidades metafísicas e focalizando apenas o nível psicológico
- correspondeà sua abrupta associaçãoao ego. Esse é pois o me-
canismo: Saulo, ou de fato qualquer pessoacom idéias persecutórias,
atribuía a outrem as peculiaridadesde seu complexo desconhecido,
encarandoos demais como hostis porque ele próprio era hostil para
com seu complexo. Essa, em suma, seria a descrição de um fenô-
meno psíquico imemorial.
Podemos acompanhar o desenvolvimentodesse mesmo pensa-
mento no Comentário sobre o Segredo da Flor de Ouro. Nesse en-
saio Jung diz que complexos dissociados,isto é, conteúdos'psíqui-
cos autônomos,são uma experiênciaque todos nós temose que seu
efeito desintegrador sobre a consciência manifesta-se quando os
mesmos se tornam um sistema psíquico separado e fragmentário.
Tais sistemas,que apresentamas característicasde "pessoas" dis-
tintas do sujeito, aparecemcom toda a força na doença mental, em
casos de cisão da personalidadee em fenômenos mediúnicos
assim como na fenomenologiada religião. Segundo Jung, "conteú-
dos inconscientesativados sempre aparecemprimeiro como próje-
ções sobre o mundo exterior, mas no decorrer do desenvolvimento
mental eles são gradualmenteassimilados pela consciência e re/or-
mulados em idéias conscientesdesprovidas de seu caráter original
autônomoe pessoal".J2Enfatizo mais uma vez que não se trata de
uma condição patológica em si (apesar desta poder vir a prevale-
cer), pois tais tendênciasà dissociação são inerentes à psique hu-
mana - caso contrário, conteúdos dissociados não seriam proJeta-
dos e nem espíritos ou deuses teriam jamais existidoY O perigo
psicológico reside exatamenteem negar a existência de tais siste-
mas autônomos,pois eles continuam a funcionar de qualquer jeito,
criando distúrbios dos mais variados tipos - e nessecaso não serão
compreendidosnem assimilados, permanecendocomo resultado de
algo maléfico operando fora de nós. Quando "os deuses" não são
reconhecidoscai-se na egomania - não há nada senão o ego. o
único senhor da casa - e aí já se está perto da doença. Percebe-
mos assim o dilema e a sutileza da projeção: ou se aceita tais con-
teúdos como psicologicamentereais, ou então eles se tornam con-
cretamente reais enquanto projeções no mundo exterior. Jung é
12 Commentaryon "1'heSecretof the Golden Flower", CW 13. ~ 49. (Grife>
nosso,)
13 Ibídem, §51.
41
muito claro a esserespeito,lembrando-nosque tendênciasdisso-
ciativasconfiguram-secomoverdadeiraspersonalidadespossuidoras
de realidadeprópria:
"São 'reais'enquantonão reconhecidascomotaise conseqüen-
tementeprojetadas;são relativamentereais quandose estabe-
leceum relacionamentocoma consciência(em termosreligio-
sos,quandohá um culto),massão irreaisna medidaem que
a consciênciase desligade seusconteúdos."14
No antigotextochinêscomentadopor Jung há uma ilustração
mostrandoum sábiosentadona posiçãode lótusnumaatitudede
profundameditação.Uma aura que contornasua cabeçairradia
cincocorrentesmentaisque se abrem,cadauma,comoplataformas
para cincooutroshomensem dimensãomenor.A mesmadissocia-
ção ocorrenovamente,e cinco homensemanamde cadauma das
cincopersonalizaçõesanteriores.O sábiómeditantecontemplaassim
a dissociaçãode sua própriaconsciênciae a progressivadiferencia-
.ção de cada fragmento.Ao meditar,estabelececom os conteúdos
inconscientesum relacionamentoqueos integra,mantendo-osporém
dentrodo receptáculode suaprópriapsique.Permiteque se proje-
tema si mesmose adquiramformahumanaemsuatelamentalpara
atingirum nível de consciênciano qual nãose é maisapanhadoou
confundidocom essasfiguras.O aspectomais importantepara a
nossadiscussãoé que esseindivíduocertamentenão precisapro-
jetar essesconteúdosexteriormentee combatê-Iosou amá-Ioslá
ondenão se encontram.
Talvez não me enganede todo ao suspeitarque o insightde
Jung sobreprojeçãoe complexosautônomos- que tão bempôde
formularno momentoem queum velhotextochinêslhe foi envia-
do pelo amigoRichardWilhelm- já estavapresentecomogerme
quandoestudoufenômenosde mediunidadeno princípio de sua
carreira(isto é, 27 anos antes).Com algumareserva,poderíamos
dizerquea médiumobservadapor Jung teveumaexperiênciasimi-
lar à acimadescrita,ou seja,figurasespirituaisgradualmenteemer-
giramde Suamentesob formahumanae se manifestaramverbal-
mente.A diferençaóbvia é que a jovem médiumnão meditava,
14 Ibidem,§55.
42
sendoantesa vítimapassivade um ataquepor partede conteúdos
inconscientesque ela interpretavacomoespíritosvindos do além.
Esta atitude,é claro, impedequalquerpossibilidadede assimilação
e temum efeitonegativosobreo desenvolvimentoda personalidade.
Comojá indiquei,Jung nãousavanessaocasiãoo termo"projeção".
Sua interpretaçãodo que observou,na teseintituladaSobrea Psi-
cologiados Assim-ChamadosFenômenosOcultos,é, em suma,a
seguinte:
"A influênciada escuridãosobrea sugestibilidade( ... ) é bem
conhecida.( ... ) A pacientese encontravanumestadode hip-
nose parcial, e além disso uma personalidadesubconsciente
intimamenteligadaà áreado discursojá se haviaconstituído.
( ... ) Tratava-seprovavelmentede uma dissociaçãoda perso-
nalidadeexistente,e essaparteseparadaapropriou-sedo mate-
rial disponívelmaispróximopara expressar-se."15
2.3. Ilusões,subjetividadee "participaçãomística"
Fazendoum pequenodesvio,passaremosa encararo problema
quenos interessaa partir de um novo ângulo,ou seja:se é que a
projeçãointerferenos atos de cogniçãoe percepção,como conse-
guireide fatoveremsuaprópriarealidadeesseOutroquese coloca
diantede mim? Será que só vejo pedaçosde mim refletidosnele
no momentoemqueacreditoestarvendosuaverdadeiraface?Se o
Outro e o Mundo nãopassamde espelhosde minhapsique,haverá
tambémum sujeitoe umarealidadedo outro lado do vidro? Com
baseemJung,afirmamosquea projeçãoé um mecanismointrínsecO
da psiquehumana,e quesimplesmentenosdeparamoscomela.Por
outrolado, a projeçãoisolae cria um relacionamentoilusóriocom
o ambiente.Comodiz Jung em Aion:
"As projeçõestransformamo mundonumaréplica de nossa
face desconhecida.Em últimaanálise,portanto,levama uma
condiçãoauto-eróticaou autistana qual sonha-seum mundo
cujarealidadepermaneceparasempreinatingível.( ... ) Quanto
15 CW 1, §97.
43
maisprojeçõesexistirementreo sujeitoe o ambiente,maisdi-
ficuldadeteráo egode ver atravésdas ilusões."16
Jung serve-seda imagemde um fator inconscientetecendoilu-
sõesem tornode umapessoacomoum casulo,queno fim poderia
envolvê-Iapor completo.Um bom modode discutiresseproblema
seriaseguirde pertoas consideraçõesde Jung a respeitodo nível
subjetivode interpretaçãode materialinconscienteem seu ensaio
AspectosGerais da Psicologiados Sonhos.Procurareisintetizaro
argumentocentral.
Todos nós criamosuma sériede relacionamentosimaginários
porquesemprepresumimosqueo mundoé tal comoo vemose os
outroscomoos imaginamos.O problemaé que não existenenhum
testeparaprovarque isto é umarealidadee aquiloumaprojeção.
A únicasaídadesseemaranhado- ou casulo- seriao auto-conhe-
cimento,empreitadasemprelonga,durae dolorosa.Isso se dá "por-
que a mente,em seuestadonatural,pressupõea existênciade tais
projeções.Para os conteúdosinconscientes,a coisa mais natural
é seremprojetados".17Toda pessoanormalprende-seao ambiente
emqueviveatravésde um sistemade projeções;na medidaemque
as coisascaminhamsemmaiorescomplicações,não se tema menor
idéiado carátercompulsivodosrelacionamentos.A solução,ou alte-
raçãodesseestado,sósurgeno momentoem que a imagem(Jung
usao termoimago)queseespelhavano objetoexterioré restituída,
comseusentido,ao sujeito- quea partir de entãopodereconhe-
cero valorsimbólicodo objeto.O pontocrucialda questão- base
para qualquertrabalhopsicológico- é que imagoe objetonão
sãoa mesmacoisa,apesardo primitivoemnóspreferirpermanecer
nesseestadode identificaçãocom o objeto.No momentoem que
tomamosconsciênciade umaprojeçãoperdemosumapontede ilu-
sãoe daí somosobrigadosa carregarnascostastudoo quesempre
detestamosnosoutros.O interessanteé queo neurótico,atravésda
terapia,é forçadoa daressepasso- e nãoa assim-chamada"pessoa
normal".Talvezsejaessauma das razõesque levou Jung a dizer
que a neurosepodeser um ato de graça. .
16 CW 911.§17.
17 CW 8, §508. O sumário que seguecobre §508-524.
44
É esseo valor de interpretarmaterialpsicológicoa nível sub-
jetivo.Somenteassima relaçãoentreimagoe objetopodeser exa-
minada.Mas aí nos defrontamoscom um novo problema,ou seja:
até onde deveser levadaa interpretaçãosubjetiva?Algum traço
qualitativopodede fato pertencerao objeto.Poderse-iaaindaassim
falar de projeção?A respostade Jung a essaquestãoé quemesmo
em tal casoa projeçãoaindatemum significadopuramentesubje-
tivo na medidaemqueexagerao valordaquelaqualidadeno objeto.
De modo que se uma projeçãocorrespondea uma qualidadeno
objeto- o quenãoé sempreo caso- esseconteúdoestáao mes-
mo tempopresenteno sujeito,postoquea imagodo objetoé psico-
logicamentedistintada percepçãodo mesmo.Em outraspalavras,
trata-sede uma imagembaseadana percepçãomas independente
dela,pois em última instânciasua baseé um arquétipo,uma dis-
posiçãoa priori.18 Não é possívelperceberque essaimagoé autô-
nomae realmentepertencea nós enquantocoincidircom o com-
portamentodo objetoexterno.Isto é, a projeçãotornaa realidade
do objetotão forte que estaencobreo conteúdointerior.O resul·
tadodessemecanismoé que,devidoa essaidentidade,o objeto-
por exemplo,uma situaçãoou pessoaque "vemos"comoextrema-
mentenegativa- adquireum acessodireto a nossapsique,algo
assimcomoum podermágico.Como vemos,a projeçãopode nos
tornarmenoslivres do queacreditamos.Se o objetofor valorizado
demais,o sujeitonão podese desenvolvere diferenciar-seenquanto
indivíduo,pois a energianecessáriapara tantoprende-seao objeto
e nãopodeserusadaparaoutro fim. Nisso consistea importância
da interpretaçãoao nível subjetivo,e aí estáa dificuldade:acaba-
mos ficandosemum inimigoexterno.19
Para examinaresseaspectode formaampladevemostambém
consideraro que Jung tema dizer sobreempatiaem Tipos Psico-
lógicos,o quepor suavez nos levaráao conceitode "participação
18 CW 8, §521 e nota 17.
19 Há uma passagemde von Franz em The PsychologicalMeaning of Re-
demption Motifs in Fairytales que aborda claramenteesseaspecto,nas págs.
96-97: "O que projeto é algo que nunca tornei meu; algo que permanece
numa era arcaica e que pode projetar-seem alguém. Enquanto há um 'dique'
não se pode falar de projeçãoporque há um fato, uma verdade. Se sua SOI11-
bra mente,e você encontra alguémque tambémmente.como provar que hú
uma projeção? É a verdade. Mas se minha sombramentee acusooutra pessoa
4-)
mística". No capítulo intitulado "O problemados tiposna Estética"
Jung diz que há duas atitudespossíveis frente ao objeto estético_
empatia e abstração. Sendo um processo elementarde assimilação,
a empatia é um ato perceptivo através do qual, passandopelo sen-
timento,um conteúdopsicológico é projetadono objeto, o qual passa
a ser a tal ponto assimiladopelo sujeito que estesente-seno objeto.2o
Este apareceentão como animado. O pressupostoé de que o objeto
é vazio e precisa ser imbuído de vida. Já a atitude contrária, abstra-
ção, pressupondo que o objeto é vivo e ameaçadoramenteativo, é
uma tentativade afastar essa influência. O que ocorre é que ambas
as atitudes, enquanto atos conscientes,são precedidaspor uma pro-
jeção inconsciente.No caso da abstração, trata-se de uma projeção
negativa,pois o objeto é visto,como ameaça;na empatia,temosuma
projeção que neutraliza o objeto, transformando-onum receptáculo
adequadopara conteúdos subjetivos. A abstraçãocOlTespondeà ex-
troversão,e a empatia à introversão. Ou o mundo é pleno de alma
e nos confundimos'com ele, ou então nos afastamosdo mundo para
encontrar a própria alma.
A relação arcaica ou primordial, em que sujeito e objeto se
confundem, foi denominadaparticipationmystiquepelo antropólogo
Lévy-Bruhl. J ung foi capaz de compreender essa expressão e de
corroborá-Ia çom seus próprios achados numa época em que a An-
tropologia acadêmicacondenavao termo a um crescentedescrédito
- assim como o conceito de animismo.O fato é que enquanto
Jung se interessavaem conhecer o homem - e sua compreensão
da psicologia dos povos aborígenesé uma prova de quão longe con-
seguia chegar- os antropólogosse afastavamdo homem em busca
da estrutura social e de uma base mais "científica" para sua disci-
plina. Essa atitude contribuiu para aguçar a linha de demarcação
entre "nós" e "eles", ao passo que Jung sempre foi capaz de ver
o primitivo em nós. Diz ele em seu ensaio O HomemArcaico:
que na verdadenão mentehá um mal-estar,um incômodo,algo não faz 'dique'.
Fica-secom má consciência,uma parte da personalidadenão acreditana coisa,
e daí podemosdizer que projetamosalgo. Foram feitas falsas suposiçõesque
não correspondemà verdade,mas só quando surgeeSSafase de desarmoniaé
que se pode falar de projeção. Até então havia uma identidadearcaica entre
duas pessoas,um fenômenorealmenteinterpessoal,que impedia questionaro
que p,ertencea cada um."
20 CW 6, §486-493.
46
"A projeçãoé um dos fenômenospsíquicosmaiscomuns.É o
mesmo que participation mystique, que Lévy-Bruhlteveo·mé-
rito de enfatizarcomosendoum traçoespecialmentecaracte-
rísticodo homemprimitivo.Nós apenaslhe damosoutronome,
e em geral negamosque a cometemos.Tudo o que é incons-
cienteem nós mesmosdescobrimosno vizinho,e assimo tra-
tamos."21
Essa situação é mais comum em nossa vida civilizada do que
acreditamos.Basta considerar a identificação inconsciente entre os
membrosde uma família em nossa sociedadepara que se tenha um
exemplo gritante desse fenômeno bem à nossa frente. A identifica-
ção arcaica impede o reconhecimentoda dimensão subjetiva e a
interiorização do processo consciente.No ensaio de Jung Mente e
Terraencontramosuma passagemna qual participaçãomística, pro-
jeção e complexo acham-seinterligados nesse "estado de identidade
na inconsciênciamútua".22Quando o mesmocomplexo é constelado
em duas pessoasao mesmotempo o'resultado é uma projeção, uma
forte emoçãoque leva à atraçãorecíproca ou à repulsa; um se torna
idêntico ao outro e se comporta frente ao parceiro da mesmaforma
como inconscientementese coloca face ao complexoem questão.
2.4.O ciscoe a trave
Gostaria agorade examinarnossotópico a partir de outro ponto
de vista. Desta vez, consideraremoso problema ético colocado pela
projeção, ou seja, a crítica e o julgamento. Levando em conta tudo
o que foi dito até agora, a questãopassa a ser: "como posso julgar
e condenar os outros? O que vejo e critico é uma falha real ou
uma projeção minha?" A pergunta pode parecer supérflua; na ver-
dade, porém, a resposta é extremamentedifícil. O certo é 'que a
maioria das pessoassimplesmentea ignora. Entretanto, ao nível co-
----,.,-
21 CW 10, §131. Ver tambémCW 13, §66: "Quando não há consciênciada
diferençaentre sujeito e objeto, prevaleceuma identidadeinconsciente.O in-
conscienteé então projetado no objeto, e este é introjetado no sujeito, tor-
nando-separte de sua psicologia. Daí plantas e animais se comportamcomo
scres humanos,sereshumanossão ao mesmotempo animais,e tudo.vive per-
meadode espíritos e divindades."
22 CW 10,§69.
47
letivo, esseproblema está na raiz das guerras e todas as demais for-
mas de conflito social. Em termos individuais, essa questão é que
estimula a auto-reflexão.Como se referea um traço humano uni-
versal, esseproblema tem sido expressodogmaticamentena maioria
dos textos religiosos. Por exemplo, podemos encontrar uma descri.
ção bíblica do mecanismo de projeção no Sermão da Montanha,
Mateus 7:1-5, quando Cristo diz a seus discípulos:
"Não julgueisparanãoserdesjulgados.Pois como julgamento
com que julgais sereisjulgados,e com a medidacom que
medissereismedidos.Por que reparasno cisco que está no
olho do teu irmão,quandonão percebesa traveque estáno
teu? Ou comopoderásdizer ao teu irmão: 'Deixa-metirar o
ciscodo teu olho', quandotu mesmotensumatraveno teu?
Hipócrita,tira primeiroa travedo teuolho,e entãoverásbem
para tirar o ciscodo olho do teu irmão."
A chave está no terceiro versículo. O texto latino é mais direto
e diz simplesmente:"Vês o cisco no olho do teu irmão e não a
trave no teu". Esta frase contém uma dimensão ética e outra psi-
cológica, mas a doutrina cristã só enfatizou a primeira. Um certo
comentadorda Bíblia interpretaessapassagemnos seguintestermos:
Cristo ensina o amor e proíbe o julgamento (apesar, acrescentaría·
mos, de tê-Ia pronunciado várias vezes, chegando a condenar uma
pobre figueira!). Um cisco, para esse comentador, representariaum
pecado menor, algo assim como um graveto, enquanto uma trave,
que sustentao telhado de uma casa, seria mil vezes maior que o
próprio olho e corresponderiaà "falta de amor, o mais monstruoso,
na lei de Cristo. de todos os vícios".24A despeitodesseconcretismo
um tanto forçado, percebe-seque do ponto de vista ético não há
psicologia alguma, resumindo-se tudo a uma questão de amor e
ao reconhecimentodos próprios pecados em primeiro lugar. Não
lanço pedras porque minha casa tem telhado de vidro, e assim por
diante. E como as máximas dogmáticasse desgastamcom o tempo,
21 O tcxto da Vulgata é: "Quid autemvicies festucamin oculo fratris tui et
trabem in oCldo tua non vides". Cf. tambéma Logia 26 no Evangelho Se-
gundo Tomás e Lucas 6:41.
2-1 Dummclow. J. R.: A COI1l/lle/1lary 0/1 lhe Holy Bible. pág. 649.
c~8
esta em particular acabou se diluindo num mero problema de boa-
vontade para com os "pecados" alheios que na verdade equivale
a um cinismo pragmático.
Mas se encaramosessa passagema partir de um ângulo psico-
lógico veremos algo mais profundo, que acaba nos levando a um
problema ético mais complexo. Em termos simples, o terceiro ver-
sículo do Sermãoda Montanha poderia ser parafraseadoassim: meu
olho tem um defeito que não reconheçomas, no entanto, com esse
olho falho vejo um problema ainda maior no olho de meu irmão.
Isto é, minha consciênciade ego (olho) não sabe que pode ser afe-
tada por complexos inconscientes (trave) e julga-se perfeitamente
apta para ver a realidade objetiva do próximo, quando na verdade
o que vejo nele é um incômodo reflexo (cisco) de meu próprio ponto
obscuro - e tragicamenteequivocado quanto à natureza de meu
problema quero acusá-Ia pelo seu. O reverso dessa situação seria
expressopelo dito popular "a beleza está nos olhos de quem vê".
Çoethe, repetindo um velho dito de Plotino, perguntava: "como
poderia o olho percebero sol se não contivesseum pouco de seu
poder?" Em todos esses casos, há claramente uma conexão entre
quem vê e o visto, e creio que a verdademais profunda contida no
terceiro versÍCulo de Mateus é que ter olhos impuros faz parte da
condição humana. SomenteDeus pode ver as coisas como são; nós
temos o olho travado e se não podemos eliminar o problema por
completo, devemosao menos ter consciência dele.
Jung freqüentementealude a Mateus 7:3 em diferentes con-
textos. Levando apenas alguns casos em consideração, poderemos
perceber o significado pleno dessa passagemdo Sermão da Mon-
tanha. Em seu livro Psicologiae ReligiãoJung discute o poder avas-
salador do inconsciente e diz:
"Comoninguémé capazde perceberexatamenteem queponto
e em que medidasomospossuídospelo inconsciente,simples-
menteprojetamosnossaprópriacondiçãono próximo."25
Em TiposPsicológicos,ao examinaro papel desempenhadopela
constelaçãopsicológica do investigador no processo de conhecimen-
to, Jung afirma:
2ó CW I I, §85.
-lL)
"O efeito da equaçãopessoal já se faz sentir no ato de obser-
vação. Vemos o que conseguimosver melhor. Assim, antes de
mais nada, vemos o cisco no olho de nosso irmão. Sem dúvida
o cisco está lá, mas a trave pesa em nosso próprio olho
muitas vezes impedindo consideravelmenteo ato de ver."26
Esse fato tem conseqüênciasepistemológicasde longo alcance.
Sua implicação central é que a aceitaçãode uma determinaçãosub-
jetiva do conhecimentoé condição básica para o reconhecimentoda
psique. Nas palavras de Jung,
"O fato de que a observaçãoe a interpretaçãosubjepva esteja
de acordo com dados objetivos só prova a verdade da inter-
pretação na medida em que esta não tenha pretensõesde vali-
dade universal, mas apenascom respeito àquela faceta do obje-
to que está sendo considerada. Nesses termos, é a trave em
nosso olho que nos permite detectaro cisco no de nosso irmão.
Essa trave em nosso olho, como dissemos,não prova que nosso
irmão não tenha um cisco no seu. Mas a reduçãode nossa visão
poderia facilmente dar lugar a uma teoria geral de que todos
os ciscos são traves.,,27
Pouco antes de morrer, Jung foi filmado respondendo a per.
guntas. O entrevistador lhe perguntou se é verdade que em nossa
vida diária reprimimos o que cria tensão. Jung explicou claramente
em que termos diverge da teoria freudiana de repressão,afirmando
que essas coisas desagradáveissimplesmentedesaparecem,ou não
aparecemporque nunca chegarama ser conscientes- o mesmo se
dando com a projeção:
"As pessoascostumamdizer que se faz projeções. Isso não tem
o menor sentido. Não se faz, mas se encontraas projeções!Elas
já estão lá, porque aqui o inconscientenão é consciente,mas
lá, em meu irmão, ele é. Lá eu vejo a trave de meu olho como
um cisco no dele. E assim essesdesaparecimentos.ou assim-
chamadas repressões, são exatament(!como projeções. ( ... )
26 CW 6, §9.
27 lbidem,§10.
50
Essa foi minha primeira diferença com Freud. ( ... ) Pois, como
vêem, o inconscienteé real, é uma entidade, funciona por si
e é autônomo.,,28
o equivalente moderno da imagem de cisco e trave aparece
na obra final de Jung: alguémvê um certo brilho num objeto e não
percebe que ele próprio é a fonte de luz que faz reluzir o olho
de gato da projeção,29
2.5. O gancho
Passaremosagora a examinar um aspecto final do mecanismo
de projeção, isto é, o fato de haver uma semelhançaentre o objeto
receptor e o conteúdo inconsciente projetado. Esse aspecto já foi
mencionadoem nossa discussãoa respeito de imago e agora iremos
um pouco além. "Projicere", em latim, significa lançar algo adiante;
se aquilo que é lançado ou jogado para a frente permaneceonde
caiu é porque algo o reteve. Uma imagem concretista seria a de
atirar um anel numa árvore: se não se prender num dos galhos
e cair no chão a projeção não se consolida. A polaridade entre um
impulso para a frente e um recipientepassivo é uma condição indis-
pensável à vida psicológica, não podendo portanto ser encarada
apenas como problema patológico.
Essa qualidade de um objeto que possibilita a aderênciade uma
projeção chama-se "gancho" no jargão psicológico. Em seu livro
A Psicologia da Transferência J ung aborda esse ponto dizendo o
seguinte:
"A experiência demonstra que o portador da projeçãó não é
um objeto qualquer, mas sempre aquele que se revela adequa-
do à natureza do conteúdo projetado - isto é, que oferece a
este um 'gancho' onde pendurar-se."30
A existênciaou não de tal gancho no objeto costumacriar ener-
vantesdificuldades para quem procura conscientizar-sede suas pró-
prias projeçõesou para alguém que se proponha a analisar relacio-
2& C. G. Jung Speaking,"The Houston Films", pág. 304.
29 CW 14, §129.
30 CW 16, §409.
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namentos- como será o caso na segunda parte deste estudo. A
questãoque essaatitude

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