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111I11Vlfl:1qllu illrormam,outros que di- 111111111, 1111I1110[i que apenas instruem. Es- !I'Ilvli1IIIIIlldo Isso e vaialém.Ele nos mbs- II ri '11111iJ nUIlIpl C possível abordar umtema 111 1IIi1 \H 11 Ido (10 modo novo e desvendar ní- Vldtl dll IlIloI(lção humana até então insus- I",11, li 1011, l!llo livro é surpreendente.Ele nos re- VI111I o:; cumadas mais profundas contidas 11111110 ::Irnplescoleção de cartas velhas. No f'lllllio XVI os jesuítas que aqui chegaram Illovldo:jpor sentimentospios tentaramrea- 111(11 umo tarefaúnica: transformar os habi- Irlllt08da terra recém-conquistada em sú- dlIOl; optosda Coroa e de Deus. Pretendiam, lU convertê-Ias,elevá-Iasà categoria de se- lOU Ilumanos,como se a condição tribal em lue viviamnão Ihes permitisseatingirtal es- Irllura, O saldo foi melancólico;para não dizer stroso. A conversão ao cristianismo carretou mortes,deformações e desenga- no, Em pouco tempo os povos de língua tu- pl que habitavamao longo da costa passa- ram a sobreviver apenas nos registros dos cronistase viajantesque poraquipassaram. A cruzada cristã, noseu afã de civilizar,sem se dar conta destruiumuitomais do que po- deria justificar perante Deus. Quem foram os autoresda dizimação? Além dos colonizadores, por certo foram os missionários jesuítas, agentes por excelên- cia da Conquista. Em suas cartas à sede da Companhia de Jesus relatarampasso a pas- so seu martírio e o trabalhoque faziam pe- la glória de Deus. A primeira leitura dessa correspondência nos sugere ter€m sido Os missionários homens devotos, idealistas e bnegados. Talvez o fossem. Mas aprofun- dando a análisedo conteúdodessas cartas, como o fez Roberto Gambini, chega-se a uma constatação espantosa: o que os mis- sionários acreditavam ver no indígena não passava da projeçãode tudoaquiloque não onseguiamreconhecerem si mesmos:ero- tismo,espor1taneidade,espirltualidade, en- tro outros aspectos. Ao catequlzar o índio, Jesuíta queriaexorcizarseu própriodemô- 1)10, Mas ao fazê-Io, revelouapenas sua pró- o ESPELHO ÍNDIO Os jesuítase a destruiçãodaalmaindígena © 1988, Editora Espaço e Tempo Ltda. Rua Francisco Serrador, 2 - gr. 604 - Centro 20031 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021)262·2011 Capa e Diagramação: Cláudio Mesquita Foto de capa do Autor: Paiô, pajé dos Zoró (1987) AGRADECIMENTOS G181e 87·1060 CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Naciorial dos Editores de Livros, RJ. Gambini, Roberto, 1944- O espelho índio: os jesuítas c a destruiçãoda alma indígena / Roberto Gambini. - Rio de Janeiro : Espaço c Tempo. 1988. 1nclui bibliografia. ISBN 85-85114-37-1 1. Trato com os índios - Brasil. 2. lndios da América do Sul - Brasil. I. Título. lI. Título: Os jesuítase a des- truição da alma indígena. CDD - 980.41 Minha gratidão à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Ministério da Educação e Cultura, por terem tornado possível a realização desta pesquisa no Instituto C. G. Jung de Zurique. Minha gratidão ao Dr. Heinrich Karl Fierz e à Dra. Hilde Binswanger; à Dra. Marie·Louise von Franz, minha orientadora,e aos Drs. John Hill e José Zavala. Da amiga Carmen Junqueira ouvi as primeiras palavras sobre os índios do Brasil. O amigo Cândido Procópio Ferreira de Camargo sempreapoioutudo. Saudade. No ano de 1978, durante uma pesquisa de campo no Posto Indígena de Araribá, São Paulo, um índio Terena me contou o seguinte sonho: "Fui até o velho cemitérioguarani na Reservae lá vi uma grande cruz. Uns homens brancos chegarame me pregaram na cruz de cabeça para baixo. Eles foram embora e eu fiquei desesperado.Acordei com muito medo." o presenteestudo é uma tentativade compreenderesse sonho. SUMÁRIO PARTE I - PROJEÇÃO E CONHECIMENTO DO OUTRO 1. A visão patológica de projeção 17 2. O mecanismode projeção 35 2. 1. O desconhecido 37 2.2. O papel dos complexos 40 2.3. Ilusões, subjetividade e "participação mística" .43 2.4. O cisco e a trave .47 2 .5. O gancho 51 2.6. Os quatro estágiosda projeção 53 3. A função heurística da projeção 57 PARTE II - A CONVERSÃO DOS fNDIOS BRASILEIROS NA BrOCA DO DESCOBRIMENTO 1. As cartas jesuíticas 69 2. O novo Mundo e a origem da Missão 73 3. O auto-retratodos jesuítas 95 3. 1. Os Soldados de Cristo e os Exercícios Espirituais 95 3.2. Os pecadosconfessosdos jesuítas 110 3.3. Lamúrias,pobreza,sofrimento 114 3.4. A inflaçãodos jesuítas 116 3.5. Os milagresdosemissáriosde Deus 119 4. O retrato dos índios traçado pelos jesuítas 121 4.1. O espelhoduplo:"Façamoso homemà nossaimagem"121 4.2. O espelhoduplo: a faceobscura 127 4.3. O mundosemDeus 135 4.4. A naturezaexecrada 143 4.5. Antropofagiapensadae vivida 149 5. O Reino das Trevas 159 5. 1. A progeniturado maléfico 159 5.2. A sombrados jesuítas 166 5.3. As índiase a animaausente 173 6. A conversãodas almas 191 6.1. A perdada identidadecultural 191 6.2. Batismo,armade conquista 199 6.3. Umasagradaescravidãoe o grandeplanomissionário202 Bibliografia 209 lndice das ilustrações 213 Relação das cartas 217 PARTE I PROJEÇÃO E CONHECIMENTO DO OUTRO ofenômeno da projeção sempre foi um assunto de grande interessepara mim. A idéia kantiana de que moldamos a realidade no-próprio ato de conhecê-Ia,como se fosse argila mole, foi uma revelaçãoque sempremotivou em mim um sem-númerode reflexões. Nos círculos universitários, essa concepção acabou dando ll!gar a outros sistemasde idéias. Recomendava-sea noção melhor de que-a objetividade do conhecimento,especialmentenas ciências humanas, só pode ser garantida atravésdo uso do método dialético de investigação e explicação da realidade social. Conhecimento e método passavama ser indissociáveis. Quanto à consciência huma- na em si, já não se duvidava mais que, em última análise, as idéias são determinadaspela estrutura social e pela posição que se ocupa com respeito ao modo de produção. As relações sociais estabeleCi- das com vistas à produção material seriam a realidade primeira a ser levada em conta; o resto, desdeidéias até sentimentosreligiosos, não passariade mera derivação.A maneirade uma pessoaencarar-se a si mesma,aos outros e ao mundo veio a ser denominadaideologia e tida como condiCionada pela classe social, portanto relativa. A única possibilidadede evitar as ilusões engendradaspor tantasvisões contrastantesseria adotar o ponto de vista epistemologicamentepri- vilegiado dos soCialmentedominados.A identificação com essapers- pectiva assegurariaum novo padrão de objetividadee transcendênCia e nessestermos a velha e inquietante questão de Kant poderia ser definitivamentedescartadacomo resquício de uma condição alienada. Estou é claro caricaturando um problema que tem há muito ocupado os espeCialistase que requereria extensiva crítica biblio- 15 gráficacasonossoobjetivofossepromovê-Ioou atacá-Io.Para mim, aquelasimplesidéia de que moldamosa realidadena tentativade conhecê-Iacontinuoupor muitosanos comoum germevivo que acabariapor encontrarseudesenvolvimentoempíricoem meucon- tatocoma psicologiaanalíticae o modopeloqual C. G. Jung des- creveo fenômenode projeção. Comosói acontecercomidéiascruciais,a de projeçãotornou-se como tempoumaespéciede pedraangularsobrea qual diferentes sistemaspsicológicostêm erigido vastasramificaçõesteóricas.O pesode tantoscoroláriostornou-setal que a realidadeda projeção passoua ser decifrávelapenaspara o especialistaem psicanálise. Além disso,o fenômenodenotadopor essetermonão é o mesmo paraas diferentesescolas.Com a intensificaçãode seuuso, a pala- vra perdeusuaconotaçãoplenae foi reduzidaa um lugar-comum, a umaexplicaçãoinstantâneado tipo "mas issonão passade uma projeção". O que me proponhofazer,de partida,é colocarlado a lado algunsaspectosdo fenômenode projeçãopeloprismadapsicologia junguianacomvistasa recomporsuamagnitudee suasimplicações. 16 1. A VISÃO PATOLÓGICA DE PROJEÇÃO A palavraprojeçãofoi usadapelaprimeiravez no séculoXIX ·peloneurologistaMeynertem suasteoriassobrea fisiologia do cérebroe foi nessecontextoqueFreuda encontrou.A idéiacen- tral era de que o córtexcerebralcontémalgo denominado"siste- masde projeção",cuja funçãoseriatransmitirao cérebroestímulos externos,como se um filme mostrandoa realidadeexteriorfosse projetadonumatela dentrode nossacabeça.Em 1891,em seuen- saio sobreafasia,Freud menCionaessateoriaao discutiro modo pelo qual a imagemdo corpoé representadano córtexe diz que essarepresentaçãodenomina-se"projeção".1 Freud deve certamenteter trabalhadoessa interessantenova idéia nos anosseguintes,aplicando-aa suasobservações.Em 1894, enfatizoua dimensãopsicológicado fenômenoem sua tentativade explicara origemdosestadosde ansiedadee, em 1896,das ilusões persecutóriasna paranóia.Freudmantevea noçãode representação interior de uma imagemmasintroduziuo elementode enganoou distorção.No primeirocaso,afirmouque a ansiedadesentidapelo sujeitocomoresultantede umasituaçãoobjetivana verdadederiva deumarepressãosexual,istoé, umacúmulode excitaçãosexualque passaa serprojetadafora. Estaé a origemda idéiade queprojeção resultade uma repressão.Dois anos depois,Freud estabeleceua 1 Para o tratamentodestetópico e os primeirosusos do conceito por Freud. cf. Frey-Rohn,From Freud to Jung, págs.251-253e Sami-Ali, De ia projection, pág. 14 e segs. 17 conexãoentreprojeçãoe paranóia.Essesdois aspectosdevemser levadosem contase quisermosentenderde que tipo de fenômeno psicológicose fala quandose usa o termo"projeção"no sentido freudiano:distorçãoda realidade,repressãoe ilusãoparanóica,tudo a serviçode umadefesa. Freudformulouessaidéiaao estudarum casode psicosepara- nóica,váriosanosantesde aplicá-Iapara interpretaralgunsaspec- tos cruciaisde dois de seusmaisfamososcasos(Dora, de 1905,e Schreber,de 1911).Nessecontexto,a projeçãoé vista do seguinte modo:o egoé incapazde lidar comum conteúdoincômodoe finge queo mesmonãoexiste,suprimindo-odo campoconsciente.É então quesurgemos sintomasparanóicos,porquea repressãose deu atra- vés de uma projeção.Isto é, o próprio sintomaé uma projeção. Esse"conteúdoincômodo"querdizerumaexperiênciasexualinfan- til que,quandoreativada,causaum sentimentode culpa e é refe- rida pelo sujeitoa algumobjetoexteriorem lugar de seu objeto original.A pessoaentãodesconfiados outros,pois esteslhe apare- cemcomojuízese acusadores.Eis aí a projeçãoe a distorçãoque causa.Seu objetivoé pouparo ego da dificuldadede reconhecer uma auto-críticae uma dolorosaexperiênciareprimidana origem dessemecanism9patológico. Ao analisar"Dora", Freud considerouas acusaçõesque a jovemlançavacontraos envolvimentossexuaisde seupai comosen- do na verdadeumaauto-acusaçãodisfarçada:ela atribuíaa outrem um desejo(em seu caso,pela amantedo pai e tambémpor ele), que se recusavaa reconhecerem si mesma.Percebe-seassimque paraFreud a projeçãoé basicamenteum disfarcee uma fonte de ilusões.Em suasprópriaspalavras: "Uma série de acusaçõescontraoutremnos faz suspeitara existênciade umasériede auto-acusaçõescom o mesmocon- teúdo.Bastaaplicar de voltaao acusadorcada uma de suas frases.Há inegavelmentealgo de automáticonessemétodode defender-sede umaauto-acusaçãolançando-asobreoutrem.Um bommodelodesseprocedimentopodeser encontradona argu- mentaçãoinfantildo tipo tu quoque( ... ) Na paranóia,a pro- jeçãode uma acusa~ãoem outra pessoasemqualqueraltera- ção de conteúdoe portantosem a menorconsideraçãopela 18 realidadetorna-semanifestaenquantoprocessoformadorde ilusões."2 Dessepontode vista,se um pacienteprojetaao queixar-seou no momentoem que acusaalguémou algo, seu discursodeveser ouvidocomum intercâmbiode sujeitoe objetoparaquea situação real possaser percebida.A projeçãoseria entãosempreum erro e seumecanismouma sériede malabarismosbaseadosem negação, reversãoe distorção. Outro aspectoimportanteé queem sua interpretaçãoda para- nóia (o caso Schreber)Freud faz uma conexãoentreprojeçãoe homossexualismonão-reconhecido,afirmandoque em tais casoso pacientenega seus sentimentos,transformando-osem seu oposto e a partir de entãoescondeseusinaceitáveisimpulsosjulgandoser odiado.A descriçãodessemecanismoficou famosae podeser en- contradaem qualquerdicionáriode psicanáliseou manualde psi- quiatria. Em suas linhas básicas,trata-seda idéia de que uma percepçãointerior é suprimidae substituídapor um conteúdo distorcidoque atingea consciênciacomose viessedo mundoexte- rior. A sensaçãode perseguiçãoderiva do fato de que o sujeito alteraa naturezáde sua emoçãoproibida:o que deveriaser sen- tido internamentecomoamoré percebidoexternamentecomoódio.3 Nestepontopassa-separa o terrenoda lógica,pois a formulação dessemecanismoé usualmenteapresentadaem textospsiquiátricos nos seguintestermos: "A contradiçãonessecasoé 'eu não o amo,eu o odeio',mas como essaafirmaçãotão familiar não pode se tornar cons- ciente,o mecanismode projeçãoentraem cenae ao invésde dizer 'eu o odeio' ocorreumatransformaçãodo tipo 'ele me odeiae por isso eu o odeio'.Nessepontoa contradiçãoreal- mentepassaa ser 'eu não o amo,eu o odeioporqueele me persegue'.,,4 2 S. Freud, "Fragmentof an'analysisof a caseof hysteria"in CaseHistories I, pág. 67. Tradução minha, como em todas as demais citações de todos os tipos no decorrer do livro. 3 De Ia projectiol1.pág. 34 e segs. 4 Hendersone GilIespie, Textbook of Psyc1Jiatry,pág.292. Se quisermoscom- parar essaformulaçãocom o modo pelo qual fung usa a mesmaidéia, veremos 19 III! Seria esseentão o fenômeno abrangido pelo termo "projeção": uma estranha manipulação das emoçõese uma confusão das bar- reiras entre mundo interior e exterior que acabaria levando à lou- cura. Não pretendo negar que esse aspecto exista; o que me pa- rece questionávelé que essa percepção,tomada em sentido dema- siado estreito,acabou por contaminarum aspectomuito mais amplo da psicologia humana e desse·modo impede seu reconhecimento. É como se esse insight não pudesse Se libertar do magnetismoda patologia. Creio que não seria injusto dizer que a maioria das pas- sagensna literatura psicanalítica contemporâneaque tratam de pro- jeção ainda carregam esse sinal de origem; de fato, sempre que projeções são interpretadas percebe-se um certo grau de "anor- malidade". O leitor pode então descontrair-se,certo de que só os psicologicamenteperturbados projetam - ele não. Em textospsiquiátricos pode-seclaramenteperceberque o con- teúdo reprimido que desencadeiaa projeção é um fracasso ou ato de má conduta, um desejo sexual não admitido ou então um sen- timento de hostilidade. Como essesconteúdossão negadose proje- tados para protegero ego, o sujeito capta erroneamentea realidade e passaa viver num estadode ilusão. No fundo da questãohaveria uma incapacidade de lidar com sentimentosde hostilidade; conse- qüentemente,a projeção é encarada como. uma "desordem do ca- ráter". Alguns autores se perguntam de que modo se lida com o ódio conforme as diferentes estruturas de caráter e chegam à con- clusão de que essaemoçãopode ser reprimida, dirigida para dentro, expressaou projetada. Em geral, considera·se que no estado psicó- tico "a agressividadee o ódio são tratados de modo distorcido que para ele o sujeito não conhecea verdadeiranaturezade seus sentimentos e por isso ocorre a projeção. Jung não fala de reversãode sentimentosou mudançade sujeitoe objeto. Num de seussemináriosele conta de uma jovem que amava a naturezae um dia começoua suspeitarque os outros falavam dela. Jung então diz o seguinte: "como vêem, essa é a origem das idéias de perseguição.Em tal condição,o indivíduo não percebe que, ao invés de amar, odcia os outros; c como não percebe isso, projeta a idéia de ódio c acredita ser odiado e perseguidopelos outros. Quando alguém diz que nin-guém o ama, trata-seinvariavelmentede uma pessoaque odeia aos demais; naturalmenteninguéma ama,pois ela reagea todos com ódio." Vemos assim que na raiz dessacondição se encontraum problemade sentimento. CL The Vísíons Semínar,vol. 11,pág. 512. 20 através do mecanismo defensivo de projeção".5Como o paranóico é incapaz de lidar com a própria hostilidade, a única saída é projetá-Ia - tal qual uma válvula de escapepara liberar um vapor excessivo - e concretizá-Ia cada vez mais no plano exterior. A passagemque segue deixa bem claro esse ponto: "O paranóico cai na teia de suas próprias projeções.Não é capaz de abrir mão de seus medos projetados e redirecioná- los porque estes são em si mesmos parte integrante de uma manobra defensiva para não ser tomado e desintegradopela própria hostilidade. Nesse ponto, a única coisa que pode fazer é continuar projetando até atingir uma 'realidade' reconstruída de modo mais estável,que inclua em sua organizaçãosuas pro- jeções defensivas."6 A idéia contida nessa teoria é que em primeiro lugar vem a hostilidade, e depois a projeção e a ilusão. Nos estágios iniciais da doença a projeção não tem foco e portanto o paciente não é capaz de localizar um perigo específico. Com o desenvolvimento da enfermidade,essas projeções gradativamentecompõem um qua- dro organizadode uma realidade exterior na qual os perigosos"ou- tros" são finalmente percebidos como um grupo específico num complô definitivo. O mesmo autor prossegue: "A pseudo-comunidadeparanóica é uma organização imagllul- ria, composta de pessoasreais e fictícias, as quais são vistas pelo paciente como unidas em torno do objetivo de fazer-lhe algo. A presumida 'ação' corresponde a seus próprios impul- sos libidinosos e hostis, que são projetados."7 Podemos aqui perceber como essa abordagem teórica atribui à projeção a função ativa de elaborar uma visão psicótica da reali- dade. Repetindo, essa noção pode ser pertinente à compreensãoda psicose - mas o problema é que o fenômeno da projeção acabou reduzindo-se basicamente a esse aspecto. De fato, essa linha de 5 J. Michaels, "Character Structure, CharacterDisorder", in Amerícan Hand· book o/ PsycJiiatry, vol. I, pág. 518. 6 N. Cameron, "Paranoid Conditions and Paranoia", in American Handbook o/ PsycJiiatry,vol. I, pág. 518. 7 Ibidem,pág. 519. 21 [" pensamentocondiciona o uso do termo nos mais variados contextos. Seria bom lembrar que se encaramos uma "ilusão paranóica" a partir de um ponto de vista simbólico poderemoschegar a resul- tados muito diversos. Em meu trabalho analítico em Zurique, tive oportunidade de tratar de uma mulher que numa certa altura de sua vida viu-se em meio a grandes dificuldades psicológicas que culminaram na convicção de que seu marido estava tentando enve- nená-Ia. A "evidência" de que dispunha consistia num pequeno ponto irritado em sua pele; mas para ela isso indicava que seu marido havia lhe aplicado injeções de veneno enquanto dormia. Não conseguindomais compreendero que se passava,ela decidiu chamar a polícia. Nessa época a relação matrimonial estava pés- sima e as brigas eram muito freqüentes. Como ela era estrangeira e não falava nem o alemão nem o dialeto suíço, o marido en- tendeu-secom a polícia, declarando que ela tinha enlouquecido; com base nessa informação, as autoridades levaram-na para uma clínica psiquiátrica. O diagnóstico então feito sustentavaque ela tivera um ataque esquizofrênico de natureza paranóide; a paciente foi então internada e medicada por um curto período, retomando a casa sem nenhum tratamento psicoterapêutico.O diagnóstico se baseavaprincipalmentenas informaçõesfornecidas pelo marido, visto que ninguém podia de fato falar com ela e penetrar em sua si- tuação psicológica. ·Pouco tempo depois o marido deu entrada a um processode divórcio alegandoque a esposaestavamentalmente perturbada e totalmente incapacitada para o desempenhode suas funções domésticas.Ela nunca pôde pronunciar-se em defesa pró- pria no tribunal, assim como jamais compreendiaas acusaçõesque lhe eram feitas - além de não conhecer a língua, seu nível edu- cacional era bastante rudimentar. Não demorou muito e ela teve que abandonar a casa do marido, lá deixando todos os bens que haviam adquirido juntos; viu-se então forçada a viver apenas com uma pequena pensão. Devido a suas limitações, acabou se empre- gando como faxineira num hospital. No início da terapia ela mal conseguia se comunicar - e não tinha um ponto de vista a partir do qual pudesse julgar sua situação. Traço algum de ilusão paranóica evidenciou-se durante a terapia. A história de seu casamentosó começou a vir à tona depois de muito tempo. Para começar, ela nunca quis casar com esse homem; sua intenção era antes ter com ele uma experiência num país estrangeiroe ver o que aconteceria.Ele porém insistiu 22 e ela acabou concordando. Nos primeiros anos de sua vida em comum ela trabalhava numa fábrica e entregava mensalmenteo salário ao marido para ajudá-Io a montar um pequeno negócio. Nesse tempo ela se sentia cheia de energia e entusiasmo, sempre encorajando-o quando ele vacilava diante da aventura que esco- lhera. A essa altura ela sentiu necessidadede aprender o dialeto suíço para melhor integrar-se no novo ambiente mas o marido impediu, alegando não haver necessidadevisto que lhe daria tudo o que fosse preciso. Algum tempo depois, ele começou a insistir que ela ficasse em casa o máximo possível e passou a controlá-Ia como um detetive.Nesse ponto ela demitiu-seda fábrica, limitando- se a trabalhar em casa exclusivamentepara o negócio do marido e sem qualquer remuneração. Ele costumava dizer que esse es- forço todo era um investimento em seu empreendimentocomum. Pouco a pouco, todos os seus laços exteriores foram cortados. A situação chegou a tal ponto que ele passou a exigir que ela usasse camisola o dia inteiro, argumentandoser essa a única vestimenta adequada a uma dona de casa que passa o dia no lar. Não de- morou muito e ela teve uma depressão,perdeu toda a energia e começou a ter diálogos imaginários com uma amiga fictícia que lhe fazia companhia. No seu sexto ano de casada essa mulher vivia uma vida cativa, esgotadae sem a menor compreensãodo que de. fato estava se passando.Foi então que um dia ela teve o "delírio paranóico" de que o marido a estava envenenando.Seria correto dizermos que seu problema era apenas a projeção de hosti- lidade reprimida e que ela tinha um caráter paranóico? Sua pro- jeção continha um grão muito importante de verdade simbólica sobre sua situaçãopsicológica e a realidade de seu casamento,além de conter um pedido de socorro. Evidentementeela não era apenas uma vítima inocente de um marido psicopata, pois foi sua pró- pria constelaçãointerior que a levou àquela experiência. Mas com- preender sua projeção de que estava sendo envenenadaapenas no sentido patológicosó serviria para agravar sua condição ainda mais, além de ser um' grave equívoco. É interessantenotar que o próprio Freud, originador da vlsao essencialmentepatológica de projeção na medida em que partiu do pressupostode que se ligava à paranóia, revelou-seapesar de tudo mais aberto que alguns de seus seguidores a outras perspectivas mais amplas para compreenderesse complexo fenômeno. Pelo me- nos é o que parece depreender-seda passagemque segue,extraída 23 !II de A Psicopatologiada Vida Cotidiana,embora a idéia não seja desenvolvida.No texto em questão,Freud vem falando de projeção e num certo ponto afirma que "na paranóia muitas coisas fazem pressão para entrar na consciência, coisas essas cuja presença no inconscientede pessoasnormais e neuróticas só podemos demons- trar através da psicanálise". O paranóico seria então alguém mais receptivo a conteúdos inconscientes- mas a ênfase acabaria sen- do posta pela teoria na própria repressãodessesconteúdos. Freud prossegue: "Num certosentido,portanto,o paranóicoestácerto,poisele reconhecealgo queescapaà pessoanormal:ele vê mais cla- ramenteque alguémde capacidadeintelectualnormal,maso fato de deslocarparaoutraspessoasa situaçãoque reconhece tornainútil seuconhecimento.Esperoquenãomepeçamagora para justificaras váriasinterpretaçõesparanóicas.Mas a justi- ficaçãoparcial que concedemosà paranóia( ... ) nos permi- tirá atingir uma compreensãopsicológicado sensode convic- ção com que o paranóicofaz todasessasinterpretações.Há de fato alguma verdade nelas ( ... )."8 Parece-meque essegerme de idéia foi logo posto de lado por- que levaria logicamentea uma compreensãodistinta da relação en- tre projeção e o inconscienteque acabaria por contradizer a teoria dos mecanismosde defesa e do inconsciente como algo que con- tém principalmente (o advérbio é importante e aparece na formu- lação do próprio Freud) material reprimido. Alguns comentadores asseguramque Freud desenvolveuessa idéia de um núcleo de ver- dade no delírio paranóico em seus escritos posteriores,mas parece que isso se deu em outra direção, ou seja, a interpretaçãodos mitos e da história segundo postulados arraigados em sua teoria. Creio porém não ser preciso ir muito longe para ver como essa idéia se desenvolve - basta continuar a leitura de alguns parágrafos no mesmo capítulo mencionado acima Tendo discutido o comportamentodos paranóicos,e após grifar a frase ..há de fato 8 S. Freud. The Psychopathy0/ EverydayLi/e, capoXII: "Determinism,Belief in Chance and Superstition- Some Points of View", pág. 318. Grifado no original. 24 alguma verdade nelas", Freud passa a examinar o fenômeno da superstição,que novamenteinterpreta como uma projeção de mo- tivações interiores subjacentes a ações fortuitas. Assim fazendo, Freud nega-sea admitir qualquer possibilidade de uma interação significativa entre a psique e eventos externos, visto que não se inclinava a encarar o inconsciente como algo que pudesse trans- cender os limites de uma dada personalidade. Como sua preo- cupação básica era encontrar as motivações secretas ou inaceitá- veis por trás dos erros e ações fortuitas de nossa vida cotidiana, ele passaria a ver em toda parte esse problema. O jogo mental de intenções e seus disfarces seria então a realidade psicológica .pri- meira, desprovida de fundo, sem nada além do alcance da cons- ciência - e é precisamenteessa visão redutiva da realidade psí- quica que ele chamou de "metapsicologia". Creio estar aí a raiz de toda a diferença entre Freud e Jung e, no que nos concerne aqui, de sua compreensãodiversa do que seja a projeção. No encadeamentode idéias que vimos examinando,Freud passa da paranóia à superstição e daí nega toda e qualquer transcen- dência - que ele pejorativamentedenomina "metafísica", um eu- femismo, aqui, para não dizer mera ignorância do sujeito. Como seu foco era primordialmente desmascararimpulsos mentais negati- vos escondidos atrás da fachada do comportamento,Freud acabou concluindo que "a superstiçãoderiva de impulsos suprimidos cruéis e hostis". Diante de tal asserção,deveríamoster em mente o rico simbolismo contido nas crendices, superstições e no folclore do mundo inteiro, e o modo pelo qual esse material pode tornar-se significativo enquanto expressãodo inconscientecoletivo. Mas para Freud essaquestãoevidentementeestavafora de cogitaçãopois pre- ferencialmentepensava na projeção de uma motivação. Se nos per- guntarmos em que consistiria tal motivação, encontraremos: "A superstiçãoé em boa parte uma expectativade um pro- blemaiminente;alguémque tenhaabrigadodesejosmaléficos freqüentescontraoutrem,masque por ter sido educadopara ser bom tenhareprimidotais desejosno inconsciente,estará especialmenteinclinadoa esperarum castigopara sua mal- dadeinconscientesob a forma de problemasque o ameaçam no plano exterior."9 9 Ibidem,pág. 323. 25 I' Devemos notar que Freud deixa de lado superstiçõespositivas como bons. presságios,simpatias, etc., pois seu foco está nas in- tençõesmalévolas escondidasque espreitam no inconsciente e que serviriam de mecanismo de projeção como uma espécie de porta para o mundo exterior. Ao mesmotempo,a irracionalidadeenquanto tal não teria o direito de existir, sendo quando muito conseqüên- cia de um sentimentode culpa. A partir desse ponto, só falta um passo para negar também o significado psicológico da mitologia e reduzi-Ia a uma expressãoprojetada do jogo travado entre desejos, motivaçõese proibições no âmbito do inconscientepessoal. A pas- sagemseguinterequer especial cuidado, pois seus termos-chavepo- dem levar a confusão: "Na verdade,creioqueboaparteda visãomitológicado mun- do, que se insinuanas religiõesmodernas,não passa de uma psicologia projetada no mundo exterior. O obscuroreconheci- mento( ... ) de fatorese relaçõespsicológicasno inconsciente se espelha- é difícil expressá-loem outros termos,e aqui a analogiacoma paranóianosserve- na construçãode uma realidade sobrenatural, destinadaa ser novamenterevertida pela ciência na psicologia do inconsciente. Poder-se-iadessa formatentarexplicaros mitosdo paraísoe da quedado ho- mem,de Deus,do beme do mal, da imortalidade,etc.,trans- formandoa metafísica em metapsicologia.,,10 Aí temos o quadro completo e agora podemos ver a que le- vou a idéia de um "grão de verdade" na projeção. Ao pensar em projeção, Freud parte da paranóia e desembocano problema da origem da religião, que no fim revelaria a mesmanatureza ilusória. Voltaremosadiantea essanoção de que a psique (e não uma "psico- logia") pode ser projetada no mundo exterior apoiando-nos num ponto de vista completamentediverso, ou seja, a descoberta de Jung dos arquétipos e do inconsciente coletivo, e nesse momento a imagem de espelho será novamente usada. Ao dizer que toda essa insensatezmitológica deveria ser reduzida pela ciência a uma "psicologia do inconsciente", Freud de fato encara o mito como espelho ou derivativo da patologia, do jogo que postula entre 10 Ibidem,pág. 321. Grifado no origina!. 26 motivaçõessecretas,e não como expressãode um inconscienteque na verdade circunda a consciência por todos os lados. A mim pa- rece que o modo segundo o qual Freud relaciona essa "realidade sobrenatural" aos conteúdos reprimidos do inconsciente é análogo à proposição de Marx de derivar a "superestrutura" de idéias, re- presentaçõese cultura dascondiçõesmateriaisda produçãoeconômica. Obviamente, o passo seguinte dessa argumentaçãoteórica se- ria dizer que então os sonhos também são uma projeção e não algo em si mesmos- e como é sabido, é exatamenteessa a con- clusão a que Freud chega, novamentepostulando uma similaridade entre paranóia e o processo de formação do sonho.11 A idéia é que sonhar é em si um ato narcisístico, pois a libido reflui do mundo exterior e volta-se para o ego visando proporcionar-lhe uma satisfaçãoalucinatória de seus desejos- o que explicaria por que a figura central nos sonhos é sempre o próprio sujeito. É como se, tendo sonhado, a pessoa pudessecontinuar dormindo em paz, uma vez que um problema interior seria retratado desenvolvendo- se e sendo solucionado no plano externo. Assim a teoria afirma que o sonho é uma projeção, posto que externaliza um processo interior e transforma um pensamentoou desejo pré-conscienteem imagens.No que diz respeito a nosso tópico, a conclusão freudiana é de que a regressãodo ego a um nível narcisista é condição sine qua non para a projeção, o que seria demonstradopelos sonhos. E como para Freud todo sonho contém uma distorção produzida pela "censura", novamentepodemosperceberque para ele projeção c distorção vêm juntasY Sem nos aprofundarmos ainda mais no assunto,eu diria que em sua tentativade compreendera estrutura de nôsso "aparato mental" (como diz) postulando a existência de duas "agências", uma que expressaum desejo e outra que o cen- sura, Freud estava de fato projetando no inconsciente algo que na verdade pertencia à sociedadeemque vivia. Seria interessantecon- trastar essefato com a negação,por parte de Freud, do modo pelo qual os povos antigos lidavam com sonhos, isto é, sua crença de que os mesmos tinham origem divina, eram capazes de predizer 11 Sami-Ali, op. cit.,pág. 51. 12 S. Freud, The Interpretationo/ Dreams,capoIV: "Distortion in Dreams", págs.224-226. 27 111"1 o futuro, tinham um efeito curativo e. podiam ser interpretados simbolicamente: "A visãopré-científicados sonhosadotadapelospovosda An- tiguidadeestavade certoem completaharmoniacomsuavisão do universoem geral,a qual os levavaa projetarno mundo exteriorcomose fossemrealidadescoisasque na verdadesó eramreaisem suasprópriasmentes."13 Isso certamentese liga à reduçãofeita por Freud daquiloque denominou"realidadesobrenatural"ou "metafísica".Comovimos, ao mesmotempoem que projetaum aspectohistoricamentecondi- cionadoda sociedadevitorianana naturezado inconsciente,Freud acusaa antigaconcepção,tão combatidapor sua mentecientífica, de projetaro inconscienteno mundo- quandoestaúltima pro- jeção,comoserádiscutidoadiante,revelavade fato as "agências" do inconsciente,ou seja,os deuses:A "mentepré-científica"sus- tentavaque os sonhosprovêmde outro mundo,e isso podemos perfeitamentecompreenderno sentidode que os mesmosse ori- ginamnum nível do inconscienteque ultrapassade longe o al- cancede nossaconsciência.Mas comopara Freud isso seriamero obscurantismo,ele agarrou-seà convicçãode queos sonhosseriam a projeçãode um conflitointeriore nadamais. Como é de conhecimentogeral, todosos seus insightssobre projeçãoe aspectoscorrelatosforam classificatoriamenteelabora- dos num sistemateórico,no qual a projeçãoocupaum lugardefi- nido. Como não se encontrarájamaisalgo do tipo na psicologia junguiana,seriatalvezconvenientesumarizaras linhas mestrasdo esquemafreudianopara clarificarnossadiscussão. Freudpostuloua existênciade cinco modosdistintosde uma pessoaresolve'rfrustrações,conflitosou ansiedade:(l) identificação, (2) deslocamento,(3) sublimação,(4) transformaçãodos instintos atravésde fusão e compromissoe (5) mecanismosde defesa.14A teoriaafirma que os mecanismosde defesasurgempara auxiliar o egoa lidar com perigose ameaçasque afetama pessoae pro- vocamansiedade.Nestecasohaveriaduaspossibilidades:ou o ego 13 Ibid., capoI: "The Scientific Literature on Dreams", pág. 60. 14 C. HalI, A Primer o/ Freudian Psychology,capo111,"The Developmentaf Personality",passim. 28 rem uma constituiçãosaudávele é capaz de contornaro perigo adotandométodosrealistaspara solucionarproblemas,ou então enveredapor um caminhopatológicoe adotamétodosque negam, falsificamou distorcema realidadee impedemo desenvolvimento da personalidade.Dependendode comoo egolida comsituaçõesde perigo(excluindo-setodosos meiosracionais),entrariaem açãoum dos seguintesmecanismosde defesa:(a) repressão,se o ego negar o perigo; (b) formaçãode reações,se ocultá-Io; (c) fixação, se permanecerimóvel; (d) regressão,se fugir; e finalmente(e) pro- jeção,se o ego externalizaro perigo. f: importantetentarmoscompreendercomo Freud concebia essesmecanismos,pois só assimpoderemosrealmentecaptaro sen- tidoda projeçãoparaele.Além de falsificara realidade.essescinco mecanismosde defesaimpediriamo desenvolvimentopsicológicona medidaem que comprometemuma certa dose de energiaque o egopoderiausarparaoutrosfins.J5O egoentãose enrijecee vê-se permanentementeameaçadopor um segundoperigo,ou seja,a possi- bilidadede seusmecanismosde defesafalharem- caso em que perderiao controlee seriatomadopela própriaansiedadeda qual procuravadefender-se.Essas defesassão portantodanosase só têmrazãode ser porqueo ego infantil - que lança mão de to- das - é demasiadofraco para poder integrartodas as pressões queo afetam.As defesassó persistemenquantoo ego for incapaz de se desenvolver,pela simplesrazãoque a energianecessáriapara tantoestátoda investida nas defesas- e aí se estabeleceo cír- culo vicioso.A teoria sustentaque a soluçãoseria o amadureci- mentosob a forma de mudançasorgânicasno sistemanervoso. Em condiçõesideaisde educaçãoinfantil tais mecanismosnão de- veriampersistiralém do necessário.Ê claro que nesseencadea- mentode idéias a projeçãoé uma das causasdo subdesenvolvi- mentoda personalidade,quer dizer, seria uma das forças respon- sáveispela estagnaçãomórbida.A projeçãoé então algo a ser definitivamentediagnosticadoe erradicado,sendo substituída,na personalidade"estabilizada",pelo pensamentorealístico. Essa concepçãode projeçãopermanecebasicamenteinalterada em boa parte da literaturapsicanalíticamais recente.A despeito de toda uma gamade elaboraçõesteóricas,o fato é que, nessa 15 J bid., pág. 96. 29 !llllf abordagempsicológica, pouco ou nada se discutiu c cxplurou ~o- bre o que viria a ser a manifestação empírica mais gcral desse estranho fenômeno denominado "projeção". Temos aí um caso clássico de uma teoria excessivamentebem elaborada fechando a porta a um contato vivo e não preconceituosocom a realidade da psique. Hoje há quem chegue a se perguntar se a projeção não resultaria de lesões cerebrais,16ou a usar o termo como critério central para caracterizar a psicologia dos "casos limÍtrofes". Por exemplo: "São narcisistas; seu superegoe seu julgamentosão pouco de- senvolvidos, sua motivação é fraca, apresentamnítidos distúr- bios da volição, e sua relação com a realidade é problemá- tica. Relutam ou são incapazes de atribuir conseqüências a seu comportamentoe fazem excessivo uso da projeção e dos mecanismosde negação."17 Quanto a diferenciaçõesteóricas recentesdo conceito, gostaria de examinar brevementealguns exemplos,esperandopoder demons- trar que permanecemnum nível formal e só se aplicam à limitada esfera da experiência clínica, quer dizer, à transferência, sem ja- mais abrir-se a áreas mais amplas da vida e ainda menos da cultura. O tom patológico está sempre presente. Isso se percebe, por exemplo, no modo de Melanie Klein usar o conceito de "iden- tificação projetiva", caso especialmentenegativo de transferência que essa autora concebe como uma espécie de inveja primitiva.IR Outros autores igualmentepreocupadoscom esse problema concei- tual tentam aproximar Klein e Jung, a meu ver equivocando-see limitando-se à transferência patológica.19 Desse ponto de vista, a "identificação projetiva" é uma tentativa de criar uma fusão em 16 H. Brosin, "Psychiatric Conditions FoIlowing Head Injury", in American Handbook of Psychiatry,vol. II, pág. 1.188. 17 M. Schneideberg,"The Boderline Patient", in American Handbook of Psy- chiatry,vol. L pág. 412. IR R. E. Money-Kyr1e."British Schools of Psychoanalysis- I. Melanie Klein and Kleinian PsychoanaliticThought" in American Handbook of Psychiatry, vol. I1I, pág. 228. 19 Por exemplo, R. Gordon, "The Concept of Projective Identification" in fUlana/ of Ana/ytica/ Psych%gy, vol. 10,n.' 2. 30 bCll1cffe.:iode uma personalidade fragmentada cujas partes encon- ll'llIn-sc projetadas.Nesse caso a projeção é vista como um ato de elxCI'cção,imagem a bem dizer apta para quem sempre vê uma cl'iança por trás de todo ato psicológico. Através do mecanismo ullsim postulado, o paciente faria com que o analista se sentisse uo mesmo modo como se sentiu face a seu progenitor negativo e () pl'Opósitode todo esse malabarismoinconscienteseria "encontrar um lugar seguro para proteger a vulnerabilidade do self infantil" .20 EHSUS interpretaçõespodem ser de grande utilidade para quem con- Celntl'atoda a atençãona transferência,como se esta fosse o único uudo inconsciente; mas os fatos que pretendem relatar só podem Hell'apreendidos pelos que dominam a teoria. Caberia então per- guntar se a própria teoria não estaria antes de mais nada criando luis fatos, posto que ao olho comum eles não se apresentamde lul forma. Se a projeção fosse unicamenteum tópico de discussões cspccializadaspoderíamos perfeitamenteviver sem jamais nos preo-cuparmos com ela. Mas não se trata disso, como o presenteestudo pl'ctende relembrar. A mesmacrítica pode ser feita ao trabalho de Sami Ali sobre li teoria e o uso clínico da projeção.O autor serve-seda comparação dc Freud entre um sonho e um rébus e aplica a mesma analogia II projeção, que passa a ser vista como um texto hieroglífico não decifrado. Concebendo a projeção não como um modo fundamen- lul de expressão do inconsciente, mas antes como uma condição deturpada e circunscrita, o autor faz a seguinte descrição do fenômeno: ..Esse mundo cifrado fala uma língua que o sujeito capta sem poder compreender.Tudo se transforma em signos, misteriosas intenções se escondem atrás de coincidências fortuitas e o acaso é excluído de um universo repentinamentepovoado de premonições. Nem as pessoas nem as coisas são o que pa- recem. da mesma forma que as palavras e os gestos aludem a um sentido que se pode apenas entrever sem qualquer cer- teza de tê-lo adivinhado, e os acontecimentos,dada sua corres- pondência, querem dizer algo que permaneceindizível. "ZI 20 Ibid., pág. 140. li Sami-Ali, De /(1 projectiol1.pág. 127. 31 Essa abordagemparte do pressupostode que a projeção é uma espécie de defeito ou disfunção do aparato perceptivo e, o que é pior, a pessoaque vê o mundo a tal ponto distorcido acredita ver uma l"ealidadeobjetiva - em contraste com aqueles que, por de- finição, perceberiam a realidade tal qual é. f: exatamentenesse aspecto que me parece estar a redução da abordagem patológica, pois esta só apreende uma fração do fenômeno e ignora o resto. A crítica neste caso seria no mesmoespírito daquela feita P0l" Jung ao dogma freudiano de que todos os sonhos são a realização de um desejo. Alguns certamenteo são, mas outros são de natureza completamentediversa. A partir do momentoem que se reconhece, através da observaçãoempírica, a generalidadeda projeção, pode- se igualmente abrir mão da abordagem patológica. Sami-Ali, po- rém, opera com cortes abruptos; para ele, projeção e falsidade an- dam juntas e o problema passa a ser do tipo ou ist%u aquilo. Para percebera realidade corretamentenão se deveprojetar, como se isso dependessede uma auto-disciplina. Como diz esseautor, "o contrário da projeção não é portanto o real mas o verdadeiro".22 Trata-se assim, segundo suas palavras, de um processo psicótico;23 a percepção,voltada para a satisfação de um desejo inconsciente, funcionaria exatamentecomo uma alucinação.24 O interessanteé que essa teoria toda se sustenta numa fan- tasia sobre a vida intra-uterina e não numa observação empírica da psique. A idéia é que a projeção, assim como os sonhos, seria um mecanismo primitivo operante no interior do útero e no de- correr de toda a primeira infância para reduzir as tensõesdo bebê. Como tais teóricos conseguemobservar tais fatos é algo que me escapa! Tanto a projeção como os sonhos seriam então vestígios desse estado inicial. Como diz o autor, "somente quando esse jogo se revela inútil é que a criança busca alhures.Esse 'alhures' é o real".25O que se passa aqui é de fato irônico: os autores dessa linha projetam no momento exato em que tentam explicar o que é projeção, mas recusam-sea reconhecer aquela de sua autoria. Já em 1912,na época em que começavaa romper com Freud, Jung 22 I bid., pág. 178. 21 I bid .• pág. 183. 2. I bid .. pág. 196. 2' Ibid., pág. 198. 32 fez uma conferência sobre a psicanálise e não deixou de perceber esse ponto. Disse então: "a expressão 'polimorfo-perverso' foi to- mada de empréstimo da psicologia da neurose e projetadaregres- sivamentena psicologia da criança, onde na verdade está comple- tamentefora de lugar".26O modo de Jung usar o conceito - não como um mecanismode defesa! - numa época em que procurava explicar para um público mais amplo o que era a psicanáliserevela que a projeção, desde o começo, era para ele algo muito diverso. 26 C. G. Jung, "'The Theorv 01'Psyehoanalysis"in FrelUl and Psychoanalysis. Collecled Works - (daqui por diante.apenasCW), § 293; e tambémL. Frey- Rohn, From FreL/d 10 fung. pág. 149. Grifo nosso. 3) 2. O MECANISMO DE PROJEÇÃO Distintamente de Freud, Jung não se preocupava essencial- mente em erigir um sistema teórico e articular conceitos definitivos. Seu interesseera antes o de expressar de forma sem- pre renovada as descobertasque fez no decorrer de uma longa e persistenteobservaçãoempírica da psique. Quem se interessarpelo mecanismode projeção - expressãoque Jung jamais usou - terá diante de si um longo trabalho, pois em sua vasta obra Jung freqüentementese refere a projeção em diferentes contextos, sem- pre apresentandoo fenômeno a partir de um ângulo novo. Como pretendo demonstrar,a atitude de Jung a esse respeito permaneceu estritamenteconsistentee mesmo o mais classificatório dos pesqui- sadores não encontraria a menor base para falar de "diferentes fases" nas várias descriçõese interpretaçõesda projeção enquanto fenômenopsíquico encontráveisnas Obras Completase em escritos de outra natureza. Isso se deve ao fato de que Jung não se sentia compelido a reformular seus conceitos de tempos em tempos para ajustá-Ios a um sistema; muito pelo contrário, o que se percebe através da leitura de sua obra de 1902 a 1956 é que novos cam- pos de investigação sempre deram lugar a novas ramificações e implicações. Por essa razão, não me parece necessário abordar o nosso tópico acompanhandoos trabalhos de Jung em ordem cro- nológica. Na verdade, não encontrei um "conceito" de projeção, uma formulação teórica do tipo "se presumirmos que a psique humana é assim e assado,e se postularmosque funciona de modo ')5 tal e tal, então projeção é isso ou aquilo"; pelo contrário, o que se encontra, na maioria dos casos, são descrições,exemplos e ex- plicações do que ocorre, num certo caso, ao nível psicológico. Não seria este o lugar para discutirmos até q1je ponto Jung assimilou ou reformulou as idéias de Freud e nem cabe a mim fazê-lo. O fato é que já em 1902, .em sua dissertação de douto- ramento e antes de seu contato com Freud, Jung mostra como os conteúdos inconscientessão projetados, sem no entanto usar o ter- mo. Vê-se assim que desde seu primeiro exame do problema, Jung nunca associou projeção a repressão ou a qualquer outro meca- nismo psicológico postulado por definição, mas simplesmenteen- carou-a como um fato natural inerente à psique humana.1 Comecemos perguntando o que é projeção. Em primeiro lu- gar, é um fato que ocorre involuntariamente, sem qualquer inter- ferência da mente consciente, quando um conteúdo inconsciente pertencentea um sujeito (um indivíduo ou grupo) aparece como se pertencessea um objeto (outro indivíduo ou grupo ou o que quer que seja, desde seres vivos até sistemas de idéias, a natu- reza ou a matéria inorgânica). Como isso ocorre involuntáriamente e inconscientemente,o sujeito não sabe que uma projeção está ocorrendo, da mesma forma como é incapaz de produzi-Ia ou im- pedi-Ia. O que pode fazer, ex post jacto, é talvez reconhecer que o que à primeira vista parecia pertencer ao objeto poderia na verdade ser seu. Mas como isso nem sempre ocorre, pode-se dizer que vivemos e temos sempre vivido sob condições de incomensu- ráveis projeções pois é assim que funciona a psique humana. A chave para compreendero que é projeção está no fato de que através dela tudo o que é desconhecidona psique _ ou seja, inconsciente - pode se manifestar, uma vez que não pode ser visto ou integrado diretamente.2Esse modo de expressãoé um fato natural e não uma patologia de uma personalidadeperturbada,pois o inconsciente aparece inicialmente de forma projetada.3Os con- teúdos inconscientesnão podem "subir" diretamenteà consciência, pois se assentamfora de seu campo de luz; só conseguemapro- 1 Como diz Jung em MysteriumConiunctionis:"( ... ) a projeção não é um ato voluntário; é um fenômenonatural fora da interferênciadamente cons- cientee peculiar à naturezada psique humana." (CW 14, §131). 2 Essa idéia apareceem CW 10, §714 e em CW 16, §469. 3 CWI6, §383. 36 I ~. :.§Ii Jt ximar-se da área limítrofe, e a questão que se coloca é o grau de abertura e a habilidade da atitude consciente para "pescá-Ios". Essa situação peculiar deve-seao fato de que apesar da consciên- cia ser gerada, envolvida e nutrida pelo inconsciente,esta só pode aproximar-sedele gradualmente,caso contrário corre o risco de ani- quilamento. A observaçãoempírica desteprocesso tem demonstrado suficientementeque o próprio inconscientedetermina o andamento e o grau de sua absorção. Cada integração de um conteúdo in- conscienteimplica uma alteraçãoda consciência; se repentinamente invadida pelo inconsciente,esta perderia sua continuidade e assim o continentenão abrigaria conteúdoalgum. 'É preciso lembrar que o dinamismo desta relação peculiar entre um campo de luz relativa- mente recente e outro sombrio e muito anterior é dado pelo fato de que este'último quer ser reconhecido e o faz através da via indireta da' projeção. Ocorre que a intensidade de uma projeção é proporcional à abertura relativa da atitude consciente.Se a cons- ciência combater obstinadamentea emergênciade um conteúdo in- consciente, este poderá recorrer a medidas drásticas para ser re" conhecido. Como? Segundo Jung, "o inconscienteo faz claramente através da projeção, extrapolando seus conteúdosnum objeto, que passa então a refletir o que antesnele se escondia."4 2,1. O desconhecido Uma das melhores situaçõespara esse modo de expressãodo inconscientesurge quando o homem confronta o desconhecido,seja em outra pessoa,outra cultura, uma idéia diferente, um novo am- biente ou tudo aquilo ainda por ser explorado e investigado.Este ponto, que Jung iluminou através de seu estudo da alquimia, com sua suposta descoberta das leis da natureza pelo iniciado, é de enorme importância para a teoria do conhecimento.Tudo o que é obscuro, e precisamentepor isso, é um espelho. Em Psicologiae Alquimia pode-se ler: "Tudo o que é desconhecidoe vazio estácheiode projeções psicológicas;é como se o próprio pano de fundo do inves- tigadorse espelhassena escuridão.O que vê no escuro,ou 4 CW 10,§609; tambémMarie-Louise von Franz, The PsychologicalMeaning 01 Redemption Motils in Fairytales,pág. 98. 37 acreditapoderver, é principalmenteum dado de seu próprio inconscienteque aí projeta.Em outraspalavras,certasquali- dadese significadospotenciaisde cuja naturezapsíquicaele é totalmenteinconsciente."5 o desconhecidoatua portantocomo uma espéciede estimu- lante da projeção.B interessantenotar que o trechoacima tem um certotoquekantiano;a diferença,porém,é queenquantoKant enfatizariaa impossibilidadede um conhecimento'objetivodireto desprovidode uma dimensãosubjetiva,Jung mostraque através da projeçãoa psiquesub-repticiamenteseinfiltra frenteaosolhosdo observadorno momentoem que ele acreditaestar vendo outra coisa.Creio que a descobertade Jung sobrea naturezada pro- jeção e sua relaçãotanto com o inconscientecomo com o des- conhecidofoi a chaveque lhe permitiupenetrarnas obscuridades da alquimiae nela encontrarum sentido.Se tivesseadotadouma compreensãorestritivae patológicade projeçãocomoexpressãode um conflitopessoalreprimido,Jung não teria sido capazde per- ceberque o inconscientecoletivorevelavaalgunsde seusaspectos mi visãoqueo alquimistadesenvolveusobrea matériae suastrans- formações.Em suasprópriaspalavras, "( ... ) a verdadeiraraiz da alquimia deve ser buscadanão nas doutrinasfilos6ficas,mas nas projeçõesde investigadores individuais.Com issoquerodizer que enquantotrabalhavaem seusexperimentosquímicoso operadortinha certasexperiên- cias psíquicasque lhe pareciamestarexpressandoas peculia- ridadesdo próprioprocessoquímico.Comose tratavade pro- jeção,o alquimistanaturalmentenão tinhaa menorconsciência do fato de que o experimentonão tinha nada a ver com a matériaem si."6 o que se deve ter em menteé que tais projeçõesocorriam involuntariamente.No linguajarcomum,dizemosque alguémpro- jeta,comose isso implicasseumaaçãoconsciente.Não é o egoque projeta;o inconscienteé quese projeta.No mesmoparágrafoacima CW 12,§332.A mesmaidéiaaparecenovamenteno §345. CW 12,§346. 38 , f J'i citado,Jung afirma que "a bem dizer, não se faz uma projeçao, ela simplesmenteocorre". Essefato naturalse dá porquetudo o que é desconhecidono planoexterioré comoum eco de um des- conhecidointerior. E prossegue:"na obscuridadede tudo o que é exteriora mim encontro,semreconhecê-Iacomo tal, uma vida interiorou psíquicaqueé minha".Não se tratade narcisismo,mas de uma afirmaçãosobre a condiçãohumanae a relaçãoentre psiquee mundo.No ensaioO Espírito Mercuriusencontramosou- trareferênciaaodesconhecidoqueigualmentediz respeitoa projeção: "A experiênciaprática tem repetidasvezes evidenciadoque qualquerpreocupaçãomais prolongadacom um objetodesco- nhecidofuncionacomouma isca quaseirresistívelparaque o inconscientese projetena naturezadesconhecidado objetoe para que se aceitea percepçãoresultante,bemcomoa inter- pretaçãodela deduzida, comoalgo objetivo."7 o mecanismode projeçãopostoem açãoquandonos defron- tamoscomo desconhecidoé admiravelmentebemdescritopor um esquimóque explicavaa Knud Rasmussencomo o mundo foi criado.Ele dizia que é muito difícil sabercomoviemosa existir e o que acontecequandomorremos,visto haverescuridãotanto no princípio como no fim. Daí ele prosseguee diz algo absolu- tamenteanálogoà idéia de Jung de que o inconscientese projeta nas brechasde nossospensamentos: "Ninguémpodesabernadaao certosobreo começoda vida. Mas quemabrir seusolhos e ouvidose tentarlembrar-sedo que diziam os velhospoderápreenchero vazio de seu pen- samentocomesseou aqueleconhecimento."8 Atravésdesse"vazio no pensamento"o inconscientese pro- jeta e produzum mito de criação,o qual, comodiz Marie-Louise von Franz, retrataa origemnão de nossocosmos,mas da cons- ciênciaque o homemtem do mundo.9 O mesmomecanismoapa- 7 CW 13,§253. 8 Citadopor M.-L. von Franzin CreationMyths,pág.21. 9 Ibidem,pág.8. Ver tambémseuAlchemicalActiveImagination,pág.16: "( ... ) comosempreocorrequandonos defrontamoscomo desconhecido,a imaginaçãohiconscienteprojetahipotéticasimagensarquetípicas." 39 recede forma gráfica ao analisarmosmapasantigos,como von Franz sugere em Creation Myths: no centro do campo visual, por exem- plo, estaria a Grécia. Nas margensos contornos estão ligeiramente distorcidos e os países vizinhos se fundem numa espéciede conglo- merado disforme; a área conhecida é circundada por um Uroboros e nos quatro cantos do mapa os quatro ventos sopram em direção ao centro. O mesmo pode se observar nos mapas desenhadospelos descobridoresdo Novo Mundo: apesarde mal terem tocado a costa, eles retratama terra inteira, primeiro como ilha e depois como todo um continente,com as mais inesperadasformas e habitada por es- tranhos seres e animais mitológicos. Vemos assim que a descoberta de Jung sobre o mecanismode projeção na alquimia pode aplicar- se a várias outras áreas da experiência humana. Nas palavras de von Franz, "esses mapas demonstram ad oculos que onde cessa a realidade conhecida, lá onde se toca o desconhecidouma ima- gem arquetípica é projetada."1O 2.2. O papeldoscomplexos Acabamos de examinar um aspecto do mecanismo de proJe- ção: seu caráter involuntário, sua relação com um conteúdo in- consciente que se desloca em direção à consciência e a ativação exercida pelo desconhecido.A questão que se coloca agora é saber o quc desencadeiaa projeção. Para responder a essa pergunta, de- vemos considerar o que a psicologia junguiana tem a dizer sobre o papel dos complexos. Em seu ensaio Os fundamentospsicológicos da crença em espí- ritos'l Jung nos fornece um claro exemplo bíblico desse problema comentandoa conversão de Saulo. A idéia básica é que um com- plexo autônomo,ou seja, não associado diretamenteao ego, pode aparecer através da projeção como se não pertencesseao sujeito. Saulo cra inconscientementecristão, mas como sua consciência _ assim como a consciência coletiva dominante em seu tempo _ não podia aceitar tal fato, ele odiava e perseguiaos que prOfessa- vam essa fé. O momentoem que essecomplexo-Cristoaparecepro- jetado exteriormentesob a forma de visão - deixando de lado as 10 Creatíon Myths. pág. 5. 11 The PsychologicalFOllndationsof Belief in Spirits. CW 8, § 582-584. 40 possibilidades metafísicas e focalizando apenas o nível psicológico - correspondeà sua abrupta associaçãoao ego. Esse é pois o me- canismo: Saulo, ou de fato qualquer pessoacom idéias persecutórias, atribuía a outrem as peculiaridadesde seu complexo desconhecido, encarandoos demais como hostis porque ele próprio era hostil para com seu complexo. Essa, em suma, seria a descrição de um fenô- meno psíquico imemorial. Podemos acompanhar o desenvolvimentodesse mesmo pensa- mento no Comentário sobre o Segredo da Flor de Ouro. Nesse en- saio Jung diz que complexos dissociados,isto é, conteúdos'psíqui- cos autônomos,são uma experiênciaque todos nós temose que seu efeito desintegrador sobre a consciência manifesta-se quando os mesmos se tornam um sistema psíquico separado e fragmentário. Tais sistemas,que apresentamas característicasde "pessoas" dis- tintas do sujeito, aparecemcom toda a força na doença mental, em casos de cisão da personalidadee em fenômenos mediúnicos assim como na fenomenologiada religião. Segundo Jung, "conteú- dos inconscientesativados sempre aparecemprimeiro como próje- ções sobre o mundo exterior, mas no decorrer do desenvolvimento mental eles são gradualmenteassimilados pela consciência e re/or- mulados em idéias conscientesdesprovidas de seu caráter original autônomoe pessoal".J2Enfatizo mais uma vez que não se trata de uma condição patológica em si (apesar desta poder vir a prevale- cer), pois tais tendênciasà dissociação são inerentes à psique hu- mana - caso contrário, conteúdos dissociados não seriam proJeta- dos e nem espíritos ou deuses teriam jamais existidoY O perigo psicológico reside exatamenteem negar a existência de tais siste- mas autônomos,pois eles continuam a funcionar de qualquer jeito, criando distúrbios dos mais variados tipos - e nessecaso não serão compreendidosnem assimilados, permanecendocomo resultado de algo maléfico operando fora de nós. Quando "os deuses" não são reconhecidoscai-se na egomania - não há nada senão o ego. o único senhor da casa - e aí já se está perto da doença. Percebe- mos assim o dilema e a sutileza da projeção: ou se aceita tais con- teúdos como psicologicamentereais, ou então eles se tornam con- cretamente reais enquanto projeções no mundo exterior. Jung é 12 Commentaryon "1'heSecretof the Golden Flower", CW 13. ~ 49. (Grife> nosso,) 13 Ibídem, §51. 41 muito claro a esserespeito,lembrando-nosque tendênciasdisso- ciativasconfiguram-secomoverdadeiraspersonalidadespossuidoras de realidadeprópria: "São 'reais'enquantonão reconhecidascomotaise conseqüen- tementeprojetadas;são relativamentereais quandose estabe- leceum relacionamentocoma consciência(em termosreligio- sos,quandohá um culto),massão irreaisna medidaem que a consciênciase desligade seusconteúdos."14 No antigotextochinêscomentadopor Jung há uma ilustração mostrandoum sábiosentadona posiçãode lótusnumaatitudede profundameditação.Uma aura que contornasua cabeçairradia cincocorrentesmentaisque se abrem,cadauma,comoplataformas para cincooutroshomensem dimensãomenor.A mesmadissocia- ção ocorrenovamente,e cinco homensemanamde cadauma das cincopersonalizaçõesanteriores.O sábiómeditantecontemplaassim a dissociaçãode sua própriaconsciênciae a progressivadiferencia- .ção de cada fragmento.Ao meditar,estabelececom os conteúdos inconscientesum relacionamentoqueos integra,mantendo-osporém dentrodo receptáculode suaprópriapsique.Permiteque se proje- tema si mesmose adquiramformahumanaemsuatelamentalpara atingirum nível de consciênciano qual nãose é maisapanhadoou confundidocom essasfiguras.O aspectomais importantepara a nossadiscussãoé que esseindivíduocertamentenão precisapro- jetar essesconteúdosexteriormentee combatê-Iosou amá-Ioslá ondenão se encontram. Talvez não me enganede todo ao suspeitarque o insightde Jung sobreprojeçãoe complexosautônomos- que tão bempôde formularno momentoem queum velhotextochinêslhe foi envia- do pelo amigoRichardWilhelm- já estavapresentecomogerme quandoestudoufenômenosde mediunidadeno princípio de sua carreira(isto é, 27 anos antes).Com algumareserva,poderíamos dizerquea médiumobservadapor Jung teveumaexperiênciasimi- lar à acimadescrita,ou seja,figurasespirituaisgradualmenteemer- giramde Suamentesob formahumanae se manifestaramverbal- mente.A diferençaóbvia é que a jovem médiumnão meditava, 14 Ibidem,§55. 42 sendoantesa vítimapassivade um ataquepor partede conteúdos inconscientesque ela interpretavacomoespíritosvindos do além. Esta atitude,é claro, impedequalquerpossibilidadede assimilação e temum efeitonegativosobreo desenvolvimentoda personalidade. Comojá indiquei,Jung nãousavanessaocasiãoo termo"projeção". Sua interpretaçãodo que observou,na teseintituladaSobrea Psi- cologiados Assim-ChamadosFenômenosOcultos,é, em suma,a seguinte: "A influênciada escuridãosobrea sugestibilidade( ... ) é bem conhecida.( ... ) A pacientese encontravanumestadode hip- nose parcial, e além disso uma personalidadesubconsciente intimamenteligadaà áreado discursojá se haviaconstituído. ( ... ) Tratava-seprovavelmentede uma dissociaçãoda perso- nalidadeexistente,e essaparteseparadaapropriou-sedo mate- rial disponívelmaispróximopara expressar-se."15 2.3. Ilusões,subjetividadee "participaçãomística" Fazendoum pequenodesvio,passaremosa encararo problema quenos interessaa partir de um novo ângulo,ou seja:se é que a projeçãointerferenos atos de cogniçãoe percepção,como conse- guireide fatoveremsuaprópriarealidadeesseOutroquese coloca diantede mim? Será que só vejo pedaçosde mim refletidosnele no momentoemqueacreditoestarvendosuaverdadeiraface?Se o Outro e o Mundo nãopassamde espelhosde minhapsique,haverá tambémum sujeitoe umarealidadedo outro lado do vidro? Com baseemJung,afirmamosquea projeçãoé um mecanismointrínsecO da psiquehumana,e quesimplesmentenosdeparamoscomela.Por outrolado, a projeçãoisolae cria um relacionamentoilusóriocom o ambiente.Comodiz Jung em Aion: "As projeçõestransformamo mundonumaréplica de nossa face desconhecida.Em últimaanálise,portanto,levama uma condiçãoauto-eróticaou autistana qual sonha-seum mundo cujarealidadepermaneceparasempreinatingível.( ... ) Quanto 15 CW 1, §97. 43 maisprojeçõesexistirementreo sujeitoe o ambiente,maisdi- ficuldadeteráo egode ver atravésdas ilusões."16 Jung serve-seda imagemde um fator inconscientetecendoilu- sõesem tornode umapessoacomoum casulo,queno fim poderia envolvê-Iapor completo.Um bom modode discutiresseproblema seriaseguirde pertoas consideraçõesde Jung a respeitodo nível subjetivode interpretaçãode materialinconscienteem seu ensaio AspectosGerais da Psicologiados Sonhos.Procurareisintetizaro argumentocentral. Todos nós criamosuma sériede relacionamentosimaginários porquesemprepresumimosqueo mundoé tal comoo vemose os outroscomoos imaginamos.O problemaé que não existenenhum testeparaprovarque isto é umarealidadee aquiloumaprojeção. A únicasaídadesseemaranhado- ou casulo- seriao auto-conhe- cimento,empreitadasemprelonga,durae dolorosa.Isso se dá "por- que a mente,em seuestadonatural,pressupõea existênciade tais projeções.Para os conteúdosinconscientes,a coisa mais natural é seremprojetados".17Toda pessoanormalprende-seao ambiente emqueviveatravésde um sistemade projeções;na medidaemque as coisascaminhamsemmaiorescomplicações,não se tema menor idéiado carátercompulsivodosrelacionamentos.A solução,ou alte- raçãodesseestado,sósurgeno momentoem que a imagem(Jung usao termoimago)queseespelhavano objetoexterioré restituída, comseusentido,ao sujeito- quea partir de entãopodereconhe- cero valorsimbólicodo objeto.O pontocrucialda questão- base para qualquertrabalhopsicológico- é que imagoe objetonão sãoa mesmacoisa,apesardo primitivoemnóspreferirpermanecer nesseestadode identificaçãocom o objeto.No momentoem que tomamosconsciênciade umaprojeçãoperdemosumapontede ilu- sãoe daí somosobrigadosa carregarnascostastudoo quesempre detestamosnosoutros.O interessanteé queo neurótico,atravésda terapia,é forçadoa daressepasso- e nãoa assim-chamada"pessoa normal".Talvezsejaessauma das razõesque levou Jung a dizer que a neurosepodeser um ato de graça. . 16 CW 911.§17. 17 CW 8, §508. O sumário que seguecobre §508-524. 44 É esseo valor de interpretarmaterialpsicológicoa nível sub- jetivo.Somenteassima relaçãoentreimagoe objetopodeser exa- minada.Mas aí nos defrontamoscom um novo problema,ou seja: até onde deveser levadaa interpretaçãosubjetiva?Algum traço qualitativopodede fato pertencerao objeto.Poderse-iaaindaassim falar de projeção?A respostade Jung a essaquestãoé quemesmo em tal casoa projeçãoaindatemum significadopuramentesubje- tivo na medidaemqueexagerao valordaquelaqualidadeno objeto. De modo que se uma projeçãocorrespondea uma qualidadeno objeto- o quenãoé sempreo caso- esseconteúdoestáao mes- mo tempopresenteno sujeito,postoquea imagodo objetoé psico- logicamentedistintada percepçãodo mesmo.Em outraspalavras, trata-sede uma imagembaseadana percepçãomas independente dela,pois em última instânciasua baseé um arquétipo,uma dis- posiçãoa priori.18 Não é possívelperceberque essaimagoé autô- nomae realmentepertencea nós enquantocoincidircom o com- portamentodo objetoexterno.Isto é, a projeçãotornaa realidade do objetotão forte que estaencobreo conteúdointerior.O resul· tadodessemecanismoé que,devidoa essaidentidade,o objeto- por exemplo,uma situaçãoou pessoaque "vemos"comoextrema- mentenegativa- adquireum acessodireto a nossapsique,algo assimcomoum podermágico.Como vemos,a projeçãopode nos tornarmenoslivres do queacreditamos.Se o objetofor valorizado demais,o sujeitonão podese desenvolvere diferenciar-seenquanto indivíduo,pois a energianecessáriapara tantoprende-seao objeto e nãopodeserusadaparaoutro fim. Nisso consistea importância da interpretaçãoao nível subjetivo,e aí estáa dificuldade:acaba- mos ficandosemum inimigoexterno.19 Para examinaresseaspectode formaampladevemostambém consideraro que Jung tema dizer sobreempatiaem Tipos Psico- lógicos,o quepor suavez nos levaráao conceitode "participação 18 CW 8, §521 e nota 17. 19 Há uma passagemde von Franz em The PsychologicalMeaning of Re- demption Motifs in Fairytales que aborda claramenteesseaspecto,nas págs. 96-97: "O que projeto é algo que nunca tornei meu; algo que permanece numa era arcaica e que pode projetar-seem alguém. Enquanto há um 'dique' não se pode falar de projeçãoporque há um fato, uma verdade. Se sua SOI11- bra mente,e você encontra alguémque tambémmente.como provar que hú uma projeção? É a verdade. Mas se minha sombramentee acusooutra pessoa 4-) mística". No capítulo intitulado "O problemados tiposna Estética" Jung diz que há duas atitudespossíveis frente ao objeto estético_ empatia e abstração. Sendo um processo elementarde assimilação, a empatia é um ato perceptivo através do qual, passandopelo sen- timento,um conteúdopsicológico é projetadono objeto, o qual passa a ser a tal ponto assimiladopelo sujeito que estesente-seno objeto.2o Este apareceentão como animado. O pressupostoé de que o objeto é vazio e precisa ser imbuído de vida. Já a atitude contrária, abstra- ção, pressupondo que o objeto é vivo e ameaçadoramenteativo, é uma tentativade afastar essa influência. O que ocorre é que ambas as atitudes, enquanto atos conscientes,são precedidaspor uma pro- jeção inconsciente.No caso da abstração, trata-se de uma projeção negativa,pois o objeto é visto,como ameaça;na empatia,temosuma projeção que neutraliza o objeto, transformando-onum receptáculo adequadopara conteúdos subjetivos. A abstraçãocOlTespondeà ex- troversão,e a empatia à introversão. Ou o mundo é pleno de alma e nos confundimos'com ele, ou então nos afastamosdo mundo para encontrar a própria alma. A relação arcaica ou primordial, em que sujeito e objeto se confundem, foi denominadaparticipationmystiquepelo antropólogo Lévy-Bruhl. J ung foi capaz de compreender essa expressão e de corroborá-Ia çom seus próprios achados numa época em que a An- tropologia acadêmicacondenavao termo a um crescentedescrédito - assim como o conceito de animismo.O fato é que enquanto Jung se interessavaem conhecer o homem - e sua compreensão da psicologia dos povos aborígenesé uma prova de quão longe con- seguia chegar- os antropólogosse afastavamdo homem em busca da estrutura social e de uma base mais "científica" para sua disci- plina. Essa atitude contribuiu para aguçar a linha de demarcação entre "nós" e "eles", ao passo que Jung sempre foi capaz de ver o primitivo em nós. Diz ele em seu ensaio O HomemArcaico: que na verdadenão mentehá um mal-estar,um incômodo,algo não faz 'dique'. Fica-secom má consciência,uma parte da personalidadenão acreditana coisa, e daí podemosdizer que projetamosalgo. Foram feitas falsas suposiçõesque não correspondemà verdade,mas só quando surgeeSSafase de desarmoniaé que se pode falar de projeção. Até então havia uma identidadearcaica entre duas pessoas,um fenômenorealmenteinterpessoal,que impedia questionaro que p,ertencea cada um." 20 CW 6, §486-493. 46 "A projeçãoé um dos fenômenospsíquicosmaiscomuns.É o mesmo que participation mystique, que Lévy-Bruhlteveo·mé- rito de enfatizarcomosendoum traçoespecialmentecaracte- rísticodo homemprimitivo.Nós apenaslhe damosoutronome, e em geral negamosque a cometemos.Tudo o que é incons- cienteem nós mesmosdescobrimosno vizinho,e assimo tra- tamos."21 Essa situação é mais comum em nossa vida civilizada do que acreditamos.Basta considerar a identificação inconsciente entre os membrosde uma família em nossa sociedadepara que se tenha um exemplo gritante desse fenômeno bem à nossa frente. A identifica- ção arcaica impede o reconhecimentoda dimensão subjetiva e a interiorização do processo consciente.No ensaio de Jung Mente e Terraencontramosuma passagemna qual participaçãomística, pro- jeção e complexo acham-seinterligados nesse "estado de identidade na inconsciênciamútua".22Quando o mesmocomplexo é constelado em duas pessoasao mesmotempo o'resultado é uma projeção, uma forte emoçãoque leva à atraçãorecíproca ou à repulsa; um se torna idêntico ao outro e se comporta frente ao parceiro da mesmaforma como inconscientementese coloca face ao complexoem questão. 2.4.O ciscoe a trave Gostaria agorade examinarnossotópico a partir de outro ponto de vista. Desta vez, consideraremoso problema ético colocado pela projeção, ou seja, a crítica e o julgamento. Levando em conta tudo o que foi dito até agora, a questãopassa a ser: "como posso julgar e condenar os outros? O que vejo e critico é uma falha real ou uma projeção minha?" A pergunta pode parecer supérflua; na ver- dade, porém, a resposta é extremamentedifícil. O certo é 'que a maioria das pessoassimplesmentea ignora. Entretanto, ao nível co- ----,.,- 21 CW 10, §131. Ver tambémCW 13, §66: "Quando não há consciênciada diferençaentre sujeito e objeto, prevaleceuma identidadeinconsciente.O in- conscienteé então projetado no objeto, e este é introjetado no sujeito, tor- nando-separte de sua psicologia. Daí plantas e animais se comportamcomo scres humanos,sereshumanossão ao mesmotempo animais,e tudo.vive per- meadode espíritos e divindades." 22 CW 10,§69. 47 letivo, esseproblema está na raiz das guerras e todas as demais for- mas de conflito social. Em termos individuais, essa questão é que estimula a auto-reflexão.Como se referea um traço humano uni- versal, esseproblema tem sido expressodogmaticamentena maioria dos textos religiosos. Por exemplo, podemos encontrar uma descri. ção bíblica do mecanismo de projeção no Sermão da Montanha, Mateus 7:1-5, quando Cristo diz a seus discípulos: "Não julgueisparanãoserdesjulgados.Pois como julgamento com que julgais sereisjulgados,e com a medidacom que medissereismedidos.Por que reparasno cisco que está no olho do teu irmão,quandonão percebesa traveque estáno teu? Ou comopoderásdizer ao teu irmão: 'Deixa-metirar o ciscodo teu olho', quandotu mesmotensumatraveno teu? Hipócrita,tira primeiroa travedo teuolho,e entãoverásbem para tirar o ciscodo olho do teu irmão." A chave está no terceiro versículo. O texto latino é mais direto e diz simplesmente:"Vês o cisco no olho do teu irmão e não a trave no teu". Esta frase contém uma dimensão ética e outra psi- cológica, mas a doutrina cristã só enfatizou a primeira. Um certo comentadorda Bíblia interpretaessapassagemnos seguintestermos: Cristo ensina o amor e proíbe o julgamento (apesar, acrescentaría· mos, de tê-Ia pronunciado várias vezes, chegando a condenar uma pobre figueira!). Um cisco, para esse comentador, representariaum pecado menor, algo assim como um graveto, enquanto uma trave, que sustentao telhado de uma casa, seria mil vezes maior que o próprio olho e corresponderiaà "falta de amor, o mais monstruoso, na lei de Cristo. de todos os vícios".24A despeitodesseconcretismo um tanto forçado, percebe-seque do ponto de vista ético não há psicologia alguma, resumindo-se tudo a uma questão de amor e ao reconhecimentodos próprios pecados em primeiro lugar. Não lanço pedras porque minha casa tem telhado de vidro, e assim por diante. E como as máximas dogmáticasse desgastamcom o tempo, 21 O tcxto da Vulgata é: "Quid autemvicies festucamin oculo fratris tui et trabem in oCldo tua non vides". Cf. tambéma Logia 26 no Evangelho Se- gundo Tomás e Lucas 6:41. 2-1 Dummclow. J. R.: A COI1l/lle/1lary 0/1 lhe Holy Bible. pág. 649. c~8 esta em particular acabou se diluindo num mero problema de boa- vontade para com os "pecados" alheios que na verdade equivale a um cinismo pragmático. Mas se encaramosessa passagema partir de um ângulo psico- lógico veremos algo mais profundo, que acaba nos levando a um problema ético mais complexo. Em termos simples, o terceiro ver- sículo do Sermãoda Montanha poderia ser parafraseadoassim: meu olho tem um defeito que não reconheçomas, no entanto, com esse olho falho vejo um problema ainda maior no olho de meu irmão. Isto é, minha consciênciade ego (olho) não sabe que pode ser afe- tada por complexos inconscientes (trave) e julga-se perfeitamente apta para ver a realidade objetiva do próximo, quando na verdade o que vejo nele é um incômodo reflexo (cisco) de meu próprio ponto obscuro - e tragicamenteequivocado quanto à natureza de meu problema quero acusá-Ia pelo seu. O reverso dessa situação seria expressopelo dito popular "a beleza está nos olhos de quem vê". Çoethe, repetindo um velho dito de Plotino, perguntava: "como poderia o olho percebero sol se não contivesseum pouco de seu poder?" Em todos esses casos, há claramente uma conexão entre quem vê e o visto, e creio que a verdademais profunda contida no terceiro versÍCulo de Mateus é que ter olhos impuros faz parte da condição humana. SomenteDeus pode ver as coisas como são; nós temos o olho travado e se não podemos eliminar o problema por completo, devemosao menos ter consciência dele. Jung freqüentementealude a Mateus 7:3 em diferentes con- textos. Levando apenas alguns casos em consideração, poderemos perceber o significado pleno dessa passagemdo Sermão da Mon- tanha. Em seu livro Psicologiae ReligiãoJung discute o poder avas- salador do inconsciente e diz: "Comoninguémé capazde perceberexatamenteem queponto e em que medidasomospossuídospelo inconsciente,simples- menteprojetamosnossaprópriacondiçãono próximo."25 Em TiposPsicológicos,ao examinaro papel desempenhadopela constelaçãopsicológica do investigador no processo de conhecimen- to, Jung afirma: 2ó CW I I, §85. -lL) "O efeito da equaçãopessoal já se faz sentir no ato de obser- vação. Vemos o que conseguimosver melhor. Assim, antes de mais nada, vemos o cisco no olho de nosso irmão. Sem dúvida o cisco está lá, mas a trave pesa em nosso próprio olho muitas vezes impedindo consideravelmenteo ato de ver."26 Esse fato tem conseqüênciasepistemológicasde longo alcance. Sua implicação central é que a aceitaçãode uma determinaçãosub- jetiva do conhecimentoé condição básica para o reconhecimentoda psique. Nas palavras de Jung, "O fato de que a observaçãoe a interpretaçãosubjepva esteja de acordo com dados objetivos só prova a verdade da inter- pretação na medida em que esta não tenha pretensõesde vali- dade universal, mas apenascom respeito àquela faceta do obje- to que está sendo considerada. Nesses termos, é a trave em nosso olho que nos permite detectaro cisco no de nosso irmão. Essa trave em nosso olho, como dissemos,não prova que nosso irmão não tenha um cisco no seu. Mas a reduçãode nossa visão poderia facilmente dar lugar a uma teoria geral de que todos os ciscos são traves.,,27 Pouco antes de morrer, Jung foi filmado respondendo a per. guntas. O entrevistador lhe perguntou se é verdade que em nossa vida diária reprimimos o que cria tensão. Jung explicou claramente em que termos diverge da teoria freudiana de repressão,afirmando que essas coisas desagradáveissimplesmentedesaparecem,ou não aparecemporque nunca chegarama ser conscientes- o mesmo se dando com a projeção: "As pessoascostumamdizer que se faz projeções. Isso não tem o menor sentido. Não se faz, mas se encontraas projeções!Elas já estão lá, porque aqui o inconscientenão é consciente,mas lá, em meu irmão, ele é. Lá eu vejo a trave de meu olho como um cisco no dele. E assim essesdesaparecimentos.ou assim- chamadas repressões, são exatament(!como projeções. ( ... ) 26 CW 6, §9. 27 lbidem,§10. 50 Essa foi minha primeira diferença com Freud. ( ... ) Pois, como vêem, o inconscienteé real, é uma entidade, funciona por si e é autônomo.,,28 o equivalente moderno da imagem de cisco e trave aparece na obra final de Jung: alguémvê um certo brilho num objeto e não percebe que ele próprio é a fonte de luz que faz reluzir o olho de gato da projeção,29 2.5. O gancho Passaremosagora a examinar um aspecto final do mecanismo de projeção, isto é, o fato de haver uma semelhançaentre o objeto receptor e o conteúdo inconsciente projetado. Esse aspecto já foi mencionadoem nossa discussãoa respeito de imago e agora iremos um pouco além. "Projicere", em latim, significa lançar algo adiante; se aquilo que é lançado ou jogado para a frente permaneceonde caiu é porque algo o reteve. Uma imagem concretista seria a de atirar um anel numa árvore: se não se prender num dos galhos e cair no chão a projeção não se consolida. A polaridade entre um impulso para a frente e um recipientepassivo é uma condição indis- pensável à vida psicológica, não podendo portanto ser encarada apenas como problema patológico. Essa qualidade de um objeto que possibilita a aderênciade uma projeção chama-se "gancho" no jargão psicológico. Em seu livro A Psicologia da Transferência J ung aborda esse ponto dizendo o seguinte: "A experiência demonstra que o portador da projeçãó não é um objeto qualquer, mas sempre aquele que se revela adequa- do à natureza do conteúdo projetado - isto é, que oferece a este um 'gancho' onde pendurar-se."30 A existênciaou não de tal gancho no objeto costumacriar ener- vantesdificuldades para quem procura conscientizar-sede suas pró- prias projeçõesou para alguém que se proponha a analisar relacio- 2& C. G. Jung Speaking,"The Houston Films", pág. 304. 29 CW 14, §129. 30 CW 16, §409. 51 namentos- como será o caso na segunda parte deste estudo. A questãoque essaatitude
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