Buscar

A violência começa quando a palavra perde valor

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 92 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 92 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 92 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

A violência
começa quando a
palavra
perde o valor
Uma experiência de supervisão com
profissionais da saúde na abordagem
de situações de violência doméstica
nav@nav.org.br
www.nav.org.br
SUPERINTENDÊNCIA DE SAÚDE COLETIVA
COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE ATENDIMENTO INTEGRAL À SAÚDE
GERENCIA DO PROGRAMA DE SAUDE DA CRIANÇA
GERÊNCIA DO PROGAMA DE SAÚDE DO ADOLESCENTE
NÚCLEO DE ATENÇÃO
À VIOLÊNCIA
APOIO:
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Prefeito César Maia
SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE
Secretário Ronaldo Cezar Coelho
Subsecretário Mauro C. A. Marzochi
SUPERINTENDÊNCIA DE SAÚDE COLETIVA
Maria Cristina Boaretto
COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE
Kátia Maria Ratto
GERÊNCIA DE PROGRAMAS DE SAÚDE DO ADOLESCENTE
Viviane Manso Castello Branco
Luciana Barreto Phebo
Dilma Cupti de Medeiros
Maria de Fátima Goulart Coutinho
Sônia Barbosa Melges
GERÊNCIA DE PROGRAMAS DE SAÚDE DA CRIANÇA
Martha Andrade Vilela e Silva
Maria Helena Freitas da Silva Guimarães
Leila Regina Ferreira Marques
Lúcia Maria Lafayette Rodrigues Pereira
Rosane Valéria Viana Fonseca Rito
COORDENAÇÃO E EDIÇÃO
NAV
Flavia Franco
Paula Mancini C. M. Ribeiro
Simone Gryner
PROJETO GRÁFICO
Ampersand Comunicação Gráfica
REVISÃO
Elisa Sankuevitz
Maria Zilma
1ª edição – dez. 2004
E X P E D I E N T E
A violência
começa quando a
palavra
perde o valor
Uma experiência de supervisão com
profissionais da saúde na abordagem
de situações de violência doméstica
Apresentação
Viviane Manso Castello Branco
Luciana Barreto Phebo | 7
Apresentação
Lidando com a violência doméstica
Uma experiência de trabalho com profissionais da Saúde
Paula Mancini C. M. Ribeiro | 11
Prevenção, assistência, assistencialismo:
os tempos da clínica
Raquel Corrêa de Oliveira | 17
Violência doméstica: os desafios para
o Setor Saúde
Rita Helena Gomes Lima | 29
Os desafios da saúde: prevenção,
assistência e assistencialismo no
atendimento à violência doméstica
Solange Rangel Ribeiro | 39
Sumário
“Quem é o pai da criança?”
Edson Saggese | 45
Algumas observações a partir do trabalho
de supervisão continuada
Simone Gryner | 55
Contextualizando a relação com a lei –
avanços e dificuldades a partir do E. C. A.
Fernanda Costa-Moura | 65
Debatendo os avanços e dificuldades
a partir do Estatuto da Criança
e do Adolescente
Alessandro Molon | 75
Relato de alguns profissionais sobre o
trabalho de Supervisão Continuada | 85
Mapa | Unidades de Saúde Municipais
que participaram do Projeto | 92
6 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 7
A SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE do Rio de Janeiro,
através das Gerências dos Programas da Criança e do Adolescen-
te, vem realizando diferentes iniciativas voltadas para o enfren-
tamento da violência doméstica. Em 1996 foi implantada a ficha
para notificação de maus-tratos/abuso sexual contra criança e
adolescente. Esse instrumento, que deve ser preenchido pelos
profissionais de saúde, tem como objetivo favorecer a integração
entre os serviços de saúde e os Conselhos Tutelares, visando aten-
der às obrigatoriedades legais preconizadas pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente, bem como ampliar a rede de proteção
Apresentação
Viviane Manso Castello Branco
Luciana Barreto Phebo
VIVIANE MANSO CASTELLO BRANCO | Pediatra, Mestre em Saúde Coletiva,
Gerente do Programa de Saúde do Adolescente da SMS-RJ.
LUCIANA BARRETO PHEBO | Pediatra, mestre em Saúde Pública, membro
da Gerência do Programa de Saúde do Adolescente da SMS-RJ.
8 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
às crianças, adolescentes e suas famílias. De 37 casos notificados
em 1996 passamos a 1.270 em 2003. A implantação desse meca-
nismo de registro dos casos e a tabulação dos dados possibilitou
a identificação de necessidades e possibilidades de atuação, ge-
rando uma série de transformações nas famílias atendidas, no
setor saúde e em seus parceiros.
De forma a ampliar a atuação junto às famílias, foi elabora-
da a cartilha “Protegendo nossas crianças e adolescentes”, que
vem sendo utilizada por diferentes instituições. A participação
da SMS no Conselho Municipal de Saúde de Direitos da Criança
e do Adolescente – CMDCA – também levou à elaboração da
Política Municipal de Intervenção frente a Violência contra
Criança e Adolescente.
O entendimento da violência como uma questão de saúde
pública é relativamente recente em nosso contexto. Conceitos,
indicadores, estratégias e parcerias estão sendo construídos con-
forme a temática da violência vai sendo incorporada no âmbito
da saúde. A qualificação dos profissionais torna-se, portanto, uma
necessidade constante. Dessa forma, a SMS vem oferecendo aos
profissionais de saúde e seus parceiros atividades de sensibili-
zação, capacitação e troca de experiências. Além de treinamen-
tos específicos, a temática da violência está incorporada nas dife-
rentes atividades promovidas pelos Programas da Criança e do
Adolescente. Foi também instituído o grupo de trabalho – GT –
sobre violência, que se reúne mensalmente desde 2000.
O cuidado com quem cuida tem sido outra preocupação. Os
profissionais de saúde precisam ser ouvidos, precisam de um es-
paço para falar de seus medos e esperanças. Parcerias feitas com
o Centro do Teatro do Oprimido e com o Núcleo Rio Aberto Rio
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 9
visam fortalecer o desenvolvimento pessoal dos profissionais. Para
lidar com violência não basta o conhecimento técnico, é preciso
saber lidar com as próprias emoções e com a dos outros.
Cientes da necessidade de qualificar o atendimento, foi es-
tabelecido um convênio com o Ministério da Saúde que possibi-
litou a realização de um projeto voltado para o atendimento de
crianças, adolescentes e famílias em situação de violência do-
méstica, desenvolvido através da parceria com o Núcleo de Aten-
ção à Violência – NAV. O projeto contemplou atividades de
capacitação, supervisão e produção de materiais visando qualifi-
car e fortalecer as ações já exercidas. Participaram equipes de
diferentes unidades de saúde, distribuídas nas 10 áreas de pla-
nejamento da Cidade do Rio de Janeiro que já exerciam uma aten-
ção diferenciada, seja devido ao compromisso das direções ou ao
engajamento dos profissionais.
A parceria com o NAV trouxe aprendizados e ganhos impor-
tantes. A supervisão ofereceu aos profissionais da rede da SMS,
que têm poucas oportunidades de intercâmbio no seu trabalho
cotidiano, um espaço de reflexão sobre os casos atendidos. Esse
espaço privilegiado de fala permitiu a expressão de sentimentos
e a troca de experiências, favorecendo a construção de novos sa-
beres e práticas. A presença de equipes multiprofissionais de
várias unidades possibilitou diferentes olhares e abordagens,
contribuindo para a integração entre os diversos serviços e am-
pliando as possibilidades de atuação.
A possibilidade de poder falar e ouvir opiniões sobre as si-
tuações vivenciadas ajudou os profissionais a organizarem seus
pensamentos e a lidarem com a ansiedade que muitas vezes difi-
culta a abordagem dos casos. Por outro lado, o incentivo da
10 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
coordenação do grupo e dos demais colegas fortaleceu sua auto-
estima e ajudou-os a perceberem que pequenas intervenções
muitas vezes trazem um impacto importante nas famílias.
Em resumo, o acompanhamento regular e sistemático das
situações vivenciadas pelos profissionais na rede, realizado pela
equipe sensível e competente do NAV, ajudou-os a enfrentar al-
gumas das barreiras que dificultam a abordagem das situações
de violência, como a sensaçãode isolamento, de frustração e de
impotência. A metodologia utilizada permitiu que os profissio-
nais também enfocassem mais os casos a partir da perspectiva
dos sujeitos envolvidos, valorizando sua fala e sua percepção.
Face ao nosso compromisso com o conjunto de unidades de
saúde da rede municipal, essa iniciativa contemplou também a
elaboração de cartazes, folders e deste livro, com o objetivo de
socializar os aprendizados desse projeto. Esperamos que estes
materiais contribuam para que cada vez mais profissionais se
motivem para assumir esse importante desafio de ajudar as fa-
mílias envolvidas em situações de violência doméstica.
„
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 11
Lidando com
a violência doméstica
ESTE LIVRO É RESULTADO DO TRABALHO de um ano do
Núcleo de Atenção à Violência em parceria com a Secretaria
Municipal de Saúde, pelo Projeto de Supervisão Continuada, rea-
lizado com profissionais da saúde em relação ao manejo de casos
de crianças e adolescentes em situações de violência doméstica.
A idéia de um projeto de supervisão continuada surgiu da cons-
tatação de uma diferença fundamental entre receber informações
sobre violência doméstica e ter um espaço para falar e discutir os
impasses vividos na prática.
A P R E S E N T A Ç Ã O
PAULA MANCINI C. M. RIBEIRO | Psicanalista, Presidente do NAV, doutoranda
em Psicologia Clínica na PUC-RJ.
Uma experiência de trabalho
com profissionais da Saúde
Paula Mancini C. M. Ribeiro
12 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
Esse trabalho teve início com uma capacitação de três dias
ocorrida em dezembro de 2003. Nesse primeiro momento foi
priorizada uma abordagem geral da problemática da violência do-
méstica, com a participação do NAV, do Programa da Saúde da
Criança e do Adolescente da SMS, e dos seguintes profissionais
ligados a diversas instituições: Suely Deslandes, Simone de Assis,
Viviane Castello Branco, Mônica Corrêa Meyer, Marcy Maria Ferreira
Gomes, Alessandro Molon, Dilma Medeiros, Anna Tereza de Moura,
Tânia Moura de Azevedo, Martha Vilela e Silva e Michel Robin.
Essa capacitação serviu como uma introdução aos encon-
tros mensais que o NAV realizou ao longo de 2004 com três
grupos de profissionais, de diversas unidades, divididos por área
do Município do Rio.
A idéia desses encontros de supervisão foi abrir um espaço
de troca e de circulação da palavra para cada profissional no que
se refere aos impasses clínicos e às articulações interna e externa
dos serviços. Esse espaço funcionou como um suporte para que
os profissionais, nas suas diversas funções, pudessem contar com
um lugar para falar de suas dificuldades e refletir sobre o trabalho
que realizam com crianças, adolescentes e suas famílias em
situações de violência doméstica.
Cabe salientar, sobre a direção do trabalho do NAV com si-
tuações de violência, que consideramos violento o que é excessi-
vo para cada um, o que invade e desestrutura uma subjetividade
em constituição, considerando que é este o momento em que se
encontra uma criança ou um adolescente. E quando a violência é
doméstica, ela é vivida, na maior parte das vezes, com alguém
que ocupa um lugar de referência para eles. Isso faz com que
estejam intensamente presentes sentimentos contraditórios de
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 13
confiança e medo, de respeito e desprezo, de amor e ódio. Trata-
se de uma situação extremamente delicada, que não acontece
raramente, e que não coloca em cena, como superficialmente
poderia parecer, pessoas em pólos opostos de “vítima” ou “agres-
sor”. Consideramos muito importante não fixar as pessoas nesses
lugares, pois dessa forma é possível abrir a chance de um lugar
para a palavra de cada um, com os descolamentos e deslocamentos
que essa condução pode propiciar. Nessa direção, os pais ou res-
ponsáveis pelas crianças e adolescentes – que na maioria dos casos
são os autores de agressão – se possível, devem ser incluídos no
trabalho, pois o que a clínica nos mostra é que dificilmente te-
mos como intervir em uma situação de violência doméstica se
não levamos em conta a importância do lugar que eles ocupam,
ou deixam de ocupar, para seus filhos.
É freqüente que diante da complexidade dessa situação o
profissional idealize uma forma de intervenção que poderia so-
lucionar todas as dificuldades presentes. No entanto, acolher,
criar um vínculo e escutar aqueles que chegam procurando aten-
dimento, a partir da função específica de cada profissional, é o
que possibilita mudanças importantes. Como toda intervenção
só pode ser construída a cada vez, é fundamental que o profis-
sional tenha um lugar em que possa falar do seu trabalho e dividir
as questões que surgem no dia-a-dia de sua prática.
Nesse sentido, o convite feito aos profissionais, a cada en-
contro de supervisão, era de que eles levassem, falassem, for-
mulassem suas dificuldades e, partindo daí, no que aparecia de
impasse para cada um, tentávamos pensar e construir, em con-
junto, possibilidades e alternativas de intervenção. A indicação
de que as questões partissem do particular de cada situação
14 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
advinha também do fato de as realidades das unidades serem
muito diferentes em termos de inserção na rede, de sensibilização
dos profissionais e de composição das equipes. Por isso, falar no
modo de detectar, lidar, manejar e encaminhar cada situação de
violência não poderia estar desvinculado das possibilidades de
cada serviço e de cada profissional.
Foi muito importante ver surgir um novo olhar dos profissio-
nais para o seu próprio trabalho e os efeitos disso em suas dife-
rentes práticas. Muitos profissionais disseram que, após o início
deste projeto, passaram a perceber a importância de estruturar e
unir uma equipe, bem como a de organizar um horário para dis-
cussão e reflexão sobre a clínica.
Depois de nove meses de trabalho, foi organizado um Semi-
nário, no qual estiveram presentes não apenas os profissionais
das unidades contempladas, como também outros profissionais
da rede da saúde, além de profissionais das redes de educação,
de assistência social e de justiça. O objetivo foi trabalhar as prin-
cipais questões que se fizeram presentes nestes meses de super-
visão. Os palestrantes então convidados tiveram o desafio de
aprofundar questões propostas pelo NAV, surgidas do trabalho
de discussão clínica e relativas à situação da violência doméstica
nos tempos atuais.
 Este livro traz essas intervenções no intuito de fazer circu-
lar pontos fundamentais deste trabalho tão delicado e difícil que
é o de escutar, orientar e tratar crianças e adolescentes em situa-
ções de violência doméstica.
Nos três primeiros artigos, de Raquel Oliveira, de Rita He-
lena Gomes Lima e de Solange Rangel Ribeiro, a interrogação
sobre a prevenção, a assistência e o assistencialismo introduz al-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 15
guns elementos para pensarmos sobre os desafios colocados não
apenas para os profissionais da saúde como também para os
profissionais da educação e do campo jurídico. Algumas questões
que se destacam são: O que seria prevenir? O que temos a fazer?
O que deixamos de fazer ou escutar quando lidamos com situações
de violência doméstica?
Em seguida, com os artigos de Edson Sagesse e de Simone
Gryner, temos elementos para refletir sobre o compromisso do
profissional, assim como sobre os limites do trabalho com a crian-
ça e o adolescente. Além dos limites, há especificidades nesse
trabalho, tanto para o profissional, quanto para um serviço como
um todo que, por sua vez, também se encontra inserido em uma
rede.Por fim, a partir da proposta do NAV de pensar o contexto
atual da relação com a lei, e mais especificamente os avanços e as
dificuldades a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente,
temos a intervenção de Fernanda Costa-Moura, que é em seguida
comentada por Alessandro Molon. É trazida uma reflexão sobre
o que a situação atual coloca para cada um de nós, principalmente
em termos de responsabilidade com a função e o lugar que nos
cabe ocupar.
Nesse caminho de refletir sobre esse lugar é importante
pensar que qualquer intervenção hoje está inserida em um
contexto de busca impaciente por soluções rápidas, o que vai na
direção oposta da construção de uma relação de confiança, tão
importante para que tenham efeitos as mais variadas práticas
clínicas. Para que as condições mínimas para um atendimento
estejam colocadas exigem-se dos profissionais muito esforço,
muita seriedade, além de uma escuta cuidadosa e não tão con-
16 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
taminada pelos preconceitos que essas situações de violência
despertam em todos nós.
Na contramão da pressa em resolver ou da urgência de re-
sultados – mas sem perder de vista o fato de que, a seu tempo,
cada atuação deve propiciar mudanças – convidamos todos a pen-
sar em nossas dificuldades atuais, nesse tempo marcado por uma
tentativa de objetividade que prescinde do que é subjetivo, ou
seja, prescinde da aposta em um lugar para a palavra do sujeito e
dos efeitos que daí possam advir.
Nessas circunstâncias, o desafio de construir os laços neces-
sários para o trabalho com as famílias é ainda maior. Mas o que
pudemos experimentar nesse ano de discussão e troca com os
profissionais da saúde, nas suas mais variadas funções, é a dife-
rença que faz quando o profissional considera que, para cada in-
tervenção, o primeiro passo é escutar o que lhe é endereçado.
„
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 17
RAQUEL CORRÊA DE OLIVEIRA | Psicanalista; Vice-presidente do NAV;
Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.
O TEMA DESSA MESA ME FEZ PENSAR sobre os tempos da
clínica. Sabemos pela nossa prática cotidiana que não é indife-
rente o momento e a forma como um profissional intervém em
determinada situação e essa questão se coloca também, e talvez
de modo especial, para as situações de violência doméstica. As
situações de violência doméstica, são aquelas que ocorrem entre
pessoas que têm algum grau de proximidade ou parentesco. Po-
dem ser episódios de violência isolados, ou atos de violência
recorrentes, sejam eles sexuais, físicos, psicológicos ou de negli-
Prevenção, assistência,
assistencialismo:
os tempos da clínica
Raquel Corrêa de Oliveira
18 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
gências. Me parece que um dos grandes desafios da saúde, no
que diz respeito a abordagem e o manejo da situação de violência
doméstica é a dimensão do tempo, ou melhor: os tempos da clí-
nica. Tanto uma intervenção precipitada, no sentido de antecipa-
ção no tempo, como uma intervenção retardada, no sentido de
um atraso, podem dificultar uma intervenção e até comprometer
a possibilidade de um tratamento acontecer.
As situações de violência doméstica cometidas contra crian-
ças e adolescentes causam muita comoção, mas causam também
muita aversão. No que diz respeito a nós, profissionais do campo
da saúde, devemos escutar esses relatos e essas demandas de
tratamento tomando cuidado para não nos identificarmos com o
que escutamos, a fim de que possamos intervir no momento mais
propício, a partir de um lugar diferenciado, que é o nosso.
Minha proposta é trabalhar essa idéia da intervenção do pro-
fissional de saúde nos diferentes tempos da clínica, oferecendo
exemplos a partir do trabalho do NAV.
Talvez possamos pensar que a clínica que fazemos junto aos
nossos pacientes, cada situação, cada caso e cada intervenção
podem ser isoladas em três momentos, nos quais “a instância do
tempo se apresenta sob um modo diferente em cada um deles”.
Propomos pensar esses tempos, como: o instante do olhar, o
tempo para compreender e o momento de concluir.1
O fato de pensarmos a clínica a partir de uma temporalidade
que é diferente para cada caso, um tempo que não é cronológico
1 A partir das formulações de Jacques Lacan, no texto: “Tempo lógico e a
asserção da certeza antecipada – um novo sofisma. Ed. Perspectiva: São
Paulo, 1992.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 19
e nem pode ser predeterminado, marca a particularidade de um
trabalho que considera a clínica como uma intervenção que se
faz a cada vez.
O primeiro tempo é aquele no qual nos dedicamos a reco-
lher os elementos importantes da situação que nos chega para
que uma avaliação cuidadosa possa se dar num segundo tempo.
A partir de dados iniciais que podem ser trazidos na fala do pró-
prio paciente, de seus responsáveis ou da instituição que enca-
minhou, o profissional que está recebendo o caso tem a respon-
sabilidade de atentar para o quê, do que está sendo dito, pode
favorecer a elaboração de um diagnóstico da situação. Sabemos
como é comum os serviços de saúde, incluindo aí os serviços de
saúde mental, responderem a determinadas demandas com uma
frase do tipo: “esse caso não é perfil para este serviço ou para
este setor”. Isso é muito comum, por exemplo, em situações de
violência doméstica envolvendo crianças e adolescentes, pois há
uma complexidade de questões em jogo: as relações familiares, o
próprio ato violento e a necessidade de uma clínica articulada
com os parceiros.
Um profissional não deve receber um caso considerando se
ele tem ou não “perfil” para o serviço, pois quem olha “perfil”
está olhando a situação de lado, um olhar atravessado, que com
certeza não é o melhor ângulo para a visada de um caso. Assim,
esse primeiro tempo da clínica, o instante do olhar, do olhar para
a situação de frente, e assumir a responsabilidade em acompa-
nhá-la até onde for possível, seria um tempo de suspensão. Sus-
pensão da urgência em dar uma solução rápida para um proble-
ma objetivo. Isso não quer dizer que uma intervenção tenha que
necessariamente levar muito tempo para acontecer. A interven-
20 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
ção pode se dar num único encontro, o importante é que se te-
nha percorrido os três tempos da clínica: o do olhar, o de com-
preender e o de concluir. O tempo da decisão sobre o que fazer,
ou como abordar cada situação não está dado a priori. Em algu-
mas ocasiões o profissional se verá diante da necessidade de to-
mar uma decisão naquele momentos. Por exemplo, um pediatra
poderá constatar que uma criança está sofrendo abuso sexual.
Frente a uma circunstância com essa gravidade, o profissional
não poderá se eximir da responsabilidade de comunicar o fato
aos responsáveis e ao Conselho Tutelar. Um ato como esse tem
efeitos e desdobramentos imprevisíveis na vida dos envolvidos e
por isso é fundamental que o profissional discuta e avalie como
proceder na sua equipe de trabalho e/ou numa supervisão. A
questão sobre de que lugar parte nossa intervenção e o que ela
visa produzir deve sempre acompanhar o ato do profissional de
saúde.
O momento para compreender se coloca quando, a partir dos
elementos recolhidos, uma certa compreensão dos dados pode
acontecer e a partir daí fazer uma avaliação sobre quais as cir-
cunstâncias, com quais recursos se pode contar naquela situação
determinada. Esse tempo para compreender não significa que
está concluído o trabalho de recolhimento dos elementos do caso.
Esse na verdade é o trabalho que se tem a fazer. Favorecer que
aquele que nos procura fale, e se depare com o que ele própriodiz é apostar que, se há algum saber em jogo nesse tempo preli-
minar a um tratamento, ele tem a ver com o que cada sujeito
pode dizer sobre as condições na qual está inserida sua demanda
por atendimento. Esse tempo de compreender que vem neces-
sariamente após o instante do olhar, é um tempo de avaliar o
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 21
material escutado, e antecede aquele que identificamos como o
último tempo da clínica, o momento de concluir.
O momento de concluir vem em seguida ao tempo de com-
preender e é aquele que a partir da evidência dos elementos re-
colhidos e avaliados, e também pelo fato de que “o tempo urge”,2
o profissional e/ou o serviço são chamados a responder por uma
decisão, a tomar posição frente a uma situação, a fazer um ato
que nesse caso diz respeito a uma intervenção na situação de
violência doméstica. Essa intervenção pode ser desde a decisão
de chamar pais e/ou responsáveis, a ocupar seu lugar diante de
uma criança ou de um adolescente, entrar em contato com a es-
cola, passando pela necessidade da notificação ao Conselho Tu-
telar, ou mesmo fazendo uma proposta de atendimento psicoló-
gico para os envolvidos. O importante é que o profissional de
saúde não recue diante das situações de violência doméstica, e
que possa tomar para si a responsabilidade no acompanhamento
de cada situação que lhe chega. Responsabilizar-se por acompa-
nhar uma situação não significa necessariamente, tomar um pa-
ciente em tratamento. Mas significa acompanhá-la até onde for
possível, ainda que seja um encaminhamento para um outro ser-
viço, ou para a instância jurídica.
 A tensão temporal que anuncia um limite necessário a uma
tomada de decisão, não pode se apresentar ao profissional que lida
com situações de violência doméstica, seja do campo da saúde, da
educação ou da justiça, como uma pressão que visa precipitar o
tempo de concluir. Esse talvez seja o nosso maior desafio: intervir
num tempo que está entre o limite necessário e a precipitação.
2 Idem, p. 79.
22 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
Retomando o tema proposto para a mesa, vamos agora pen-
sar como esses tempos da clínica aparecem na prevenção, no
assistencialismo e na assistência.
Prevenção
Quando falamos em prevenção, a primeira idéia que se tem é
que prevenir seria prever o que está por vir. Se, no que diz respei-
to as situações de violência doméstica, tomássemos “preven-
ção” nesse sentido restrito, teríamos pouco a fazer. Mas se
pudéssemos considerar “prevenção” como uma intervenção que
se dá num momento precoce, então teremos muito o que fazer.
Intervir precocemente em uma situação, não quer dizer atropelar
a escuta, nem ceder a urgência em resolver objetivamente um
problema. Uma ação preventiva visa reconhecer que há algo a
fazer num tempo anterior a um momento crítico, num momento
no qual os elementos e fatos de uma situação ainda são sensíveis
a uma intervenção não tão dramática. Um trabalho preventivo
quanto a questão da violência doméstica, no campo da saúde,
pode ser a capacitação dos profissionais para que possam atuar
de maneira menos ingênua e mais avisada sobre as condições
nas quais um ato de violência acontece, imprimindo um certo
olhar, uma certa visada na abordagem dos envolvidos, que venha
a favorecer um desfecho melhor do que geralmente temos
notícias. A prevenção também se faz a partir da sensibilização
da comunidade e do social para essa temática. Na medida em
que o tema da violência doméstica deixa de ser tabu, pode-se
falar, trocar experiências, expor angústias e impasses sobre como
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 23
lidar com essas situações em que crianças e adolescentes estão
em situação de risco psicológico e social. O compartilhar esse
problema, ou seja, partilhar com alguns outros as dificuldades
que essas situações apresentam, favorecem para que a comu-
nidade e os profissionais que lidam com a violência doméstica
possam estabelecer parcerias e criar outras possibilidades para
intervir de uma maneira mais precisa e resolutiva na assistência
à infância e adolescência.
Vou dar dois exemplos sobre trabalhos clínicos que podem
ser pensados como prevenção no campo da saúde. O primeiro
é uma experiência realizada num serviço de saúde mental que
oferece um espaço de fala para que mães psicóticas, ou seja,
que têm um tipo de existência e conseqüentemente uma forma
de existência muito peculiar, possam falar da experiência da
maternidade. Assim, mulheres que tiveram, elas próprias, di-
ficuldades em responder as exigências que se impuseram ao
longo de sua vida, podem nesse espaço falar seja de suas
experiências como filhas, seja sobre as dificuldades em exercer
a maternagem. A aposta é que se possa criar melhores condi-
ções para que seus filhos se constituam e possam se posicionar
na vida, de uma maneira mais favorável. Outro exemplo de
uma ação preventiva no campo da saúde foi uma experiência
realizada pelo NAV aqui no Município do Rio Janeiro. Tratava-
se de um grupo de discussão com adolescentes grávidas numa
comunidade em que a questão da maternidade em mulheres
jovens e o apelo à prostituição eram muito evidentes. A pro-
posta não era impedi-las de engravidar, já que essa é uma
decisão que envolve o desejo de cada uma delas. A idéia era
oferecer um espaço no qual, a partir do contato com outras
24 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
adolescentes passando por dificuldades da mesma ordem, elas
próprias pudessem se prevenir no que diz respeito as questões
que a maternidade apresenta.
Assistencialismo
O assistencialismo, ao contrário do trabalho preventivo parece
antecipar o tempo da intervenção. Não ao tempo cronológico,
mas na precipitação da compreensão de determinada situação.
Quando achamos que estamos compreendendo muito bem uma
situação, quando achamos que estamos entendendo a fala de um
paciente sem nenhum mal-entendido, estamos correndo um gran-
de risco de, como profissionais da saúde, cair no assistencialismo.
Não estamos com isso dizendo que a assistência social não tem
lugar. Temos notícias de como as instituições filantrópicas, as
igrejas, as associações de moradores prestam grandes serviços
dessa ordem. Mas o lugar de onde um profissional intervém é
outro. O risco de cair no assistencialismo não tem nada a ver
com uma categoria profissional específica, como por exemplo a
do serviço social. Um psicólogo ou um nutricionista, todos estão
suscetíveis a se precipitar numa ação assistencialista que tem a
ver com um excesso de ofertas. Oferta de remédios, de vitaminas
e de espaços terapêuticos – quando nos damos conta até os trata-
mentos parecem estar sendo oferecidos como mais um produto
disponível no mercado de consumo. Essa antecipação na assis-
tência em saúde, essa precipitação em tentar ajudar com as me-
lhores intenções, poupa o sujeito de tentar identificar o que lhe
falta, de formular sua necessidade e propor uma forma de
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 25
encaminhá-la. Muitas vezes o nosso “furor terapêutico” reduz o
tempo de compreender e antecipa o momento de concluir, sem
reconhecer o tempo próprio que um sujeito precisa para lidar
com a situação difícil que lhe acomete e a partir daí demandar
ajuda. Aqui vale aquele ditado popular “mais vale ensinar aquele
que tem fome a pescar do que oferecer-lhe o peixe daquele dia”.
Apostar que o sujeito pode reconhecer sua dificuldade e construir
instrumentos para lidar com ela é dar tempo ao sujeito para se
exercer enquanto tal. O que não desobriga os profissionais de, a
partir de sua área de atuação, criarem as condições para que esse
sujeito possaaparecer. Acompanhamos recentemente uma si-
tuação no NAV que dá testemunho da facilidade com que pode-
mos nos deixar seduzir por essa posição assistencialista. A mãe
de um paciente que vinha sendo acompanhada em psicoterapia
faz várias solicitações para a psicóloga que atende seu filho. O
projeto no qual ele estava inserido no NAV incluía além do aten-
dimento psicoterápico, atividades de inserção social. Seu filho
havia sido matriculado na natação. Num primeiro tempo ela pedia
que o NAV também providenciasse a sunga para a natação do
filho, já que a que ele tinha estava velha. Num outro momento
pede para o NAV pagar um frete com material de construção
para terminar de construir sua casa. O que é interessante é que
numa das entrevistas com a psicóloga responsável pelo caso, ela
conta como teve que se organizar de um dia para o outro para
ocupar uma casa no morro, que lhe foi cedida pelo tráfico local.
Sob o risco de perder a casa se não tivesse “tomado posse” no dia
seguinte, conseguiu reunir vários vizinhos e fez sua mudança no
tempo que lhe havia sido determinado. Poderíamos dizer que essa
mãe é capaz de “se virar”, de encontrar saída para suas dificuldades.
26 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
Talvez o que ela precise seja de um profissional que aponte e aposte
junto com ela nessa direção.
Assistência
Assistir significa acompanhar, observar de perto o desenrolar de
um acontecimento, testemunhar. Aquele que presta assistência
é alguém que acompanha de perto o desenrolar de um aconte-
cimento. O profissional que está numa boa posição no que diz
respeito a assistência de pessoas envolvidas em situações de
violência doméstica, seja ele um professor, um médico, um con-
selheiro tutelar, é aquele que pode oferecer sua escuta e intervir
de maneira prudente, porém firme, a partir da especificidade do
seu campo profissional. Assim, a intervenção de um médico não
é a mesma que a de um professor, nem, tampouco, que a de um
Conselheiro Tutelar. Cada profissional tem seu campo de atuação
e nesses campos profissionais diferentes, o tempo da intervenção
também não é o mesmo. A intervenção de um assistente social
pode levar menos tempo para ser posta em funcionamento, em
relação, por exemplo, ao tempo de uma intervenção do campo
jurídico, mas nem por isso ela é menos importante, nem pode
ser menos cautelosa.
A boa assistência é aquela que passa pelos três tempos clíni-
cos, que viemos discutindo ao longo deste texto: o instante do
olhar, o momento de compreender e o tempo de concluir. Um
trabalho de assistência sério e cuidadoso é aquele que não se
precipita, nem se atrasa. São muito raros os momento em que
podemos fazer uma boa assistência, uma intervenção no tempo
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 27
justo que determinada situação precisa. Essa não é uma tarefa
simples e nem deve ser idealizada. Essa tensão temporal é um
mal-estar que, nós profissionais da saúde, temos que sustentar
para não atropelar os acontecimentos e nem sermos atropelados
por eles.
„
28 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 29
AS CONTRIBUIÇÕES QUE ESPERO TRAZER para nossa refle-
xão resultam, em primeiro lugar, de minha experiência como en-
fermeira do Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência e do
Ambulatório da Família do Instituto de Puericultura e Pediatria
Martagão Gesteira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no
qual sou parte de uma equipe multidisciplinar desde 1995, em
segundo lugar, da experiência com o atendimento de crianças víti-
Violência doméstica:
os desafios para
o Setor Saúde
Rita Helena Gomes Lima
RITA HELENA GOMES LIMA | Enfermeira do IPPMG/UFRJ e do Hospital
Municipal Nossa Senhora do Loreto.
30 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
mas de violência no Hospital Municipal Nossa Senhora do Loreto,
da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, desde o ano
de 2000.
A violência é um fenômeno social complexo e lidar com ela
é um grande desafio que mobiliza esforços em diferentes áreas
do conhecimento – como a da justiça, a da segurança pública, a
da educação e, certamente, a da saúde.
A violência que atinge nossas crianças e adolescentes, prati-
cadas por seus próprios pais ou responsáveis, no Brasil e no mun-
do, tem representado uma importante parcela dos atendimentos
que, cotidianamente, chegam ao setor saúde e este não pode dei-
xar de desempenhar o seu papel.
Embora algumas dificuldades se imponham à nossa atuação
é preciso aceitar o desafio de que as possibilidades são maiores
do que os limites. Podemos assinalar avanços como a promulga-
ção do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, quando a
sociedade passa a contar com novo instrumento para a análise e
compreensão dos atos de violência praticados contra crianças e
adolescentes, além de outros recursos criados com a finalidade
de atender às demandas de atenção integral à saúde de crianças e
adolescentes.
A Organização Mundial de Saúde define violência como o
uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si
próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade,
que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte,
dano psicológico, deficiência no desenvolvimento ou privação. Para Aze-
vedo e Guerra, a violência doméstica contra a criança e o adoles-
cente ocorre quando esta ação ou omissão é praticada por pais,
parentes ou responsáveis e também é capaz de causar todos es-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 31
ses danos à criança ou adolescente. Pode-se observar que, tanto
a definição da OMS quanto o conceito adotado por Azevedo e
Guerra refletem a relevância do papel do profissional de saúde
que não deverá limitar-se à reparação de seqüelas físicas visíveis,
que possam resultar ou não em morte, mas ter uma compreen-
são ampliada desse fenômeno que é responsável por tantos sofri-
mentos, de modo a fazer uma intervenção que considere suas
diferentes dimensões.
Até 1960, a questão da violência era vista pelo profissional
da saúde principalmente como um problema a ser resolvido pela
área médica, considerava-se que as seqüelas resultantes da vio-
lência que chegavam às unidades estivessem vinculadas às
características tanto do responsável pela agressão, no caso pais
ou responsáveis, quanto às características próprias da criança,
sem valorizar, na verdade, outros fatores precipitantes ou desen-
cadeadores dessa violência, como os fatores socioeconômicos e
culturais.
Com esta visão voltada para o modelo médico e não para o
modelo ecológico, os aspectos mais centrados no visível, na ques-
tão física, na negligência, no abuso sexual – aqueles que deixas-
sem marcas mais evidentes – destacavam-se em detrimento às
questões mais sutis, de difícil identificação, como o abuso psi-
cológico, a grande maioria dos casos de abuso sexual e até mes-
mo aqueles abusos físicos trazidos como acidentes. As relações
de poder/autoridade que se estabelecem nesses cenários fami-
liares deixam encoberta a violência simbólica – muitas vezes mais
danosa que a própria violência manifesta – quando não só o
cuidador considera legítimos seus métodos disciplinares: de como
cuidar, de como proteger, de como educar, assim como a própria
32 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
criança e/ou o adolescente legitimam estas práticas, por considerá-
las corretas e aceitáveis, afirmando, em alguns momentos, terem
sido merecedores “daquele castigo, daquela bronca”.
Lidar com a violência que afeta a condição de saúde e de
vida da criança e do adolescente, requer do profissionaluma ava-
liação mais cuidadosa quanto à intencionalidade daquele ato pra-
ticado pelos pais ou pelos responsáveis, quanto ao dano resul-
tante desse ato, quanto à percepção que o responsável tem do
resultado dessa violência, e se de fato, ele vê sua atitude como
violenta. E quanto à proteção dessa criança, o profissional deve
se perguntar: “Está assegurada?”, “Qual é minha postura enquan-
to profissional de responsabilização ou de culpabilização dessa
família? Qual o lugar que ela ocupa na minha proposta de aten-
dimento?” Sem dúvida, podemos considerar tais questões como
desafios a serem vencidos mas, nem de longe, devem configurar-
se como impedimento da nossa ação.
A família deverá ser o foco da nossa atenção já que esta
criança ou este adolescente, na grande maioria dos casos, conti-
nuará no seu próprio ambiente. É preciso ter clareza das novas
estruturas familiares, tentar compreender como as relações es-
tão se cristalizando nestes novos cenários. Não podemos ideali-
zar um modelo único de família, estruturada de acordo com con-
ceitos tradicionais como, por exemplo, a família nuclear tradi-
cional – pai, mãe e filho ou filhos. Nossa realidade tem eviden-
ciado famílias extensas, onde o espaço é compartilhado por avós,
tios, sobrinhos, filhos de pais diferentes, de outros relaciona-
mentos conjugais além de famílias monoparentais, que em algu-
mas situações necessitam de recursos de alguma rede de apoio,
seja formal ou informal.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 33
O profissional de saúde precisa ter em mente que embora o
ambiente familiar seja considerado um espaço privilegiado de
convivência, não podemos esquecer também que é o local em
que podemos identificar muitos conflitos, o que pode ser com-
provado com muitos estudos sobre a freqüência de casos de
violência doméstica contra a criança e o adolescente.
A atitude do profissional ao atender essa família deverá ser
de acolhimento inicial, de não culpabilização, mas terá de ser
sim de responsabilização, não podemos desconhecer que a famí-
lia tem um papel na sociedade e ela precisa exercê-lo. O próprio
artigo 19 do Estatuto diz que toda criança ou adolescente tem direito
a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em
família substituta, assegurando a convivência familiar e comunitária.
Outro importante desafio a ser vencido, ao meu ver, é a ques-
tão da interdisciplinaridade, da multidisciplinaridade e da inter-
setorialidade. A existência de uma equipe multidisciplinar não é
suficiente para a busca de soluções para o problema da violência
doméstica contra a criança. Não basta que cada um dê conta das
questões específicas relacionadas ao seu campo de conhecimen-
to, é necessário ousar mais, é necessário o exercício da interdisci-
plinaridade. De acordo com Gursdorf a exigência interdisciplinar
impõe a cada especialista que transcenda sua própria especialidade,
tomando consciência de seus próprios limites para colher as contribuições
das outras disciplinas.
Portanto, lidar com situações de violência doméstica contra
a criança e o adolescente requer uma atitude interdisciplinar, dada
a complexidade do fenômeno, os diferentes contextos de família,
onde ele ocorre e o fato desta família estar inserida em diferentes
realidades sociais. Requer também articulação intersetorial, que
34 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
não só configura-se como um desafio mas também como possi-
bilidade de intervenção. As parcerias são complicadas? São difí-
ceis? Exigem habilidades dos interlocutores? Com certeza. Mas
sem elas, torna-se praticamente inviável trabalhar a violência
doméstica contra a criança e o adolescente. É preciso reforçar
essas parcerias, estreitar os laços, compartilhar saberes, em vez
de criticar os recursos de troca existentes.
Outra situação que vejo como um desafio a ser enfrentado,
trata-se da deficiência no processo de formação do profissional
de saúde para saber lidar não só com a violência doméstica con-
tra a criança, mas também com qualquer problemática que ex-
trapole sua prática específica. Uma pesquisa recente feita em uma
unidade de internação pediátrica do Rio de Janeiro revelou que a
maioria dos profissionais enfermeiros, por exemplo, não teve na
sua graduação qualquer conteúdo que se referisse a como lidar
com a violência doméstica contra a criança, embora esta esteja
presente no cotidiano das internações hospitalares. E não só eles,
pois muitas foram as falas desses profissionais sinalizando para
as dificuldades de outros profissionais para lidar com o proble-
ma, como por exemplo: “eu conversei com o médico sobre aquela
criança que a tia revelou ter sido vítima de abuso sexual, mas ele
disse que não, que isso é um problema para o serviço social, a
criança já vai ter alta mesmo!”. Precisamos propor a inclusão
desses e de outros conteúdos nos currículos das escolas de enfer-
magem, de serviço social, de medicina e de outras áreas de modo
que o egresso tenha condições de exercer com responsabilidade
sua profissão. Para os que já estão no mercado de trabalho e não
se sentem preparados para atuar diante de situações dessa na-
tureza recomenda-se que se mobilizem no sentido de discutir
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 35
com os próprios colegas de serviço os casos que identificarem,
que cobrem da instituição sua responsabilidade com a questão,
que participem de treinamentos, capacitações nesta área, que
procurem serviços que tenham experiência com este tipo de
atendimento, buscando instrumentalizar-se para a intervenção.
O serviço de psicologia do IPPMG/UFRJ, por exemplo, rea-
liza grupos tanto com crianças quanto com os pais ou responsá-
veis destas crianças e, segundo a avaliação dos profissionais, a
realização de grupos com crianças vítimas de violência pode con-
tribuir muito com a diminuição desse sofrimento pela possibili-
dade de formar vínculos de sentimento; pela possibilidade que a
criança tem de perceber que os maus-tratos também ocorrem
em outras famílias, ou seja, de se identificar com outras situa-
ções que estão acontecendo; pela possibilidade de aprender a
lidar com as diferenças, com os preconceitos e, conseqüentemen-
te, pela possibilidade de contribuir com sua recuperação.
Outra possibilidade de atuação é a realização de grupos com
os pais que maltratam, mas, que na verdade, querem ser bons
pais, usam a punição como prática disciplinar. Nestes casos há
necessidade de orientação, de um suporte profissional no senti-
do de criar um canal de comunicação que facilite a conscientização
sobre a violência e sobre a necessidade de proteção dessa criança
ou desse adolescente.
Certamente, cada instituição, cada serviço precisará ajustar-
se à sua realidade, mas sempre haverá alguma possibilidade de
atenção às questões de violência que chegam às unidades e, para
isso, a família precisa ser incentivada ao cuidado, precisa sentir-
se valorizada, sentir-se cuidada, para preparar-se um pouco mais
para o cuidado de seus filhos. Para isso, o profissional de saúde
36 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
precisa também estar instrumentalizado para a ação e este apren-
dizado é contínuo e construído também com o trabalho inter-
disciplinar.
 Um outro desafio ao acompanhamento dos casos de vio-
lência é a precariedade de redes de apoio, tanto as famílias têm
dificuldades para contar com sua rede de parentesco, muitas vezes
dificultando seu próprio comparecimento às consultas, quanto
os profissionais encontram dificuldades para o encaminhamento
dos casos para outros serviços especializados ou para a rede de
apoio social, o que reforça ainda mais a necessidadede construção
e/ou de estabelecimento de parcerias para o bom andamento dos
serviços.
A idealização do atendimento por parte dos pais ou do res-
ponsável pelo acompanhamento da criança ou do adolescente
também pode configurar-se como um desafio a ser vencido. Às
vezes eles têm a compreensão de que o profissional de saúde vai
dar conta de tudo, vai dar resposta para tudo. Nessas ocasiões, é
fundamental que o profissional se posicione, esclareça-o quanto
ao seu papel frente àquele atendimento, às possibilidades de
encaminhamentos etc. Muitas vezes a família apresenta-se an-
siosa com a lentidão das respostas do Conselho Tutelar, da área
jurídica e até mesmo com a demora na melhora da criança e,
quando isto acontece, precisamos avaliar nossa possibilidade de
apoio.
Também é um desafio para o profissional enfrentar suas pró-
prias expectativas em relação ao atendimento; a idealização de
como atender prontamente a todas as demandas da família e da
criança, poderá levar a frustrações tendo em vista as dificuldades
que são próprias da condução dos casos.
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 37
 A compreensão de que as possibilidades de atuação podem
ser maiores do que os limites impostos deverá nortear nosso
trabalho. Ao escrever o preâmbulo do Relatório Mundial sobre
Violência e Saúde, da Organização Mundial de Saúde, Nelson
Mandela afirma que a violência pode ser evitada, as culturas vio-
lentas podem ser modificadas e que nós devemos às nossas crian-
ças, que são os cidadãos mais vulneráveis em qualquer socieda-
de, uma vida livre de violência e medo. Com certeza há muito a
ser feito pela criança e pelo adolescente antes que se tornem
propriamente vítimas da violência. Medidas de prevenção primária
e secundária devem constituir o ponto de partida das ações, se
queremos uma infância e uma adolescência nos moldes idealiza-
dos por Mandela e, provavelmente, por todos nós.
„
38 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 39
Os desafios da saúde:
prevenção, assistência e
assistencialismo no
atendimento
à violência doméstica
Solange Rangel Ribeiro
SOLANGE RANGEL RIBEIRO | Assistente Social do Programa de Saúde da
Família, grupo de apoio técnico.
NA QUALIDADE DE ASSISTENTE SOCIAL pretendo expor as
idéias construídas individual e coletivamente no trato com fa-
mílias que vivenciam histórias de violência intrafamiliar. No
decorrer desta exposição farei um esforço para não ater-me à in-
tervenção do Assistente Social na ótica da política social, so-
bretudo, no que remete aos mínimos direitos sociais, como o
padrão de inclusão social, preconizados pela Lei Orgânica da
Assistência.
40 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
A tarefa solicitada pela comissão organizadora deste evento
é de trazer as implicações da assistência e do assistencialismo no
processo de intervenção em agravos de violência intrafamiliar.
Portanto, pretendo abordar como nós profissionais da área da
saúde lidamos com a diversidade e a complexidade deste evento,
por envolver a família e a rede de recursos disponíveis, conside-
rando as diferentes formatações da família brasileira.
É pertinente situar qual é o universo social, cultural, econô-
mico e de vínculos afetivos que integram a vida destas famílias
com que nos deparamos nos atendimentos de diferentes natu-
rezas, sejam eles de maus-tratos, de abuso sexual, de abuso
psicológico etc.
Como já é sabido a violência doméstica é transversal às
condições de vida e à inserção no mercado produtivo e de con-
sumo, não sendo a priori resultante da cultura da pobreza e de
ausência de recursos econômicos. Entretanto, as famílias usuárias
das políticas públicas assistenciais integram o segmento majori-
tário dos desprovidos de plena capacidade de sustentabilidade
social e sobrevivem basicamente de suplementos sociais ou de
renda de trabalho informal extremamente circulante e sazonal.
Dados recentes (ano 2002-IBGE) indicam a existência de 54
milhões de pobres no Brasil, dos quais 40% vivem em condições
de pobreza absoluta. A população infantil e adolescente (menores
de 15 anos) representa 30% do total de brasileiros, sendo que
50% destes sobrevivem com renda per capita familiar de meio
salário mínimo, demonstrando uma disparidade perversa na dis-
tribuição de renda.
A citação destes dados contribui para a análise das possíveis
interferências das condições de pobreza nas relações de convivência
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 41
familiar com comportamentos violentos. Esta possível interfe-
rência, associada às demais características do trato com a violên-
cia, tais como: a ameaça, o sigilo, o medo e a privacidade familiar,
constitui um desafio para os diferentes sujeitos e atores implicados,
seja a família, a comunidade, o profissional, a rede de recursos etc.
Como abordar ou provocar mudanças nas práticas familiares
marcadas pela violência numa realidade em que os sujeitos envol-
vidos têm sua cidadania limitada, sua subjetividade despercebida
e forte baixa estima? Apesar das múltiplas linguagens e formata-
ções técnicas estes ingredientes compõem nossas reflexões, com
relação à necessidade de “policiarmos” nossas intervenções para
que não se reduzam à mera transferência institucional dos casos
ou a medidas assistenciais de tutela e/ou compensatórias.
Devido à natureza e complexidade das situações, nós profis-
sionais temos a tendência a buscar alternativas rápidas e sinto-
máticas para maior resolutividade da situação, esteja ela revelada
ou em processo de revelação e ruptura do sigilo familiar, até
porque tais situações mobilizam toda a equipe, que corre o risco
de encaminhar o caso carregado por juízo de valor pessoal.
Entendo que trabalhar com indivíduos, famílias, vítimas,
agressores e demais envolvidos em eventos violentos não significa
ter um protocolo rígido de procedimentos, mas investir em longo
prazo, utilizando-se da rede disponível, dos vínculos socioafetivos,
comunitários e de vizinhança (rede informal). É interessante ressal-
tar que, por vezes, os maiores entraves encontram-se na rede de
recursos institucionais devido à burocratização, à ausência de ser-
viços e à falta de integração, que geram uma superposição de atendi-
mentos à mesma família, não otimizando os já escassos recursos.
Estes fatos favorecem uma postergação do atendimento e uma
42 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
conseqüente cronificação das experiências violentas na dinâmica
familiar.
Atender situações de violência intrafamiliar nas instituições
de saúde, de educação e de justiça está na ordem do dia. No
momento estou trabalhando no Programa de Saúde da Família e
uma de minhas atividades é o treinamento de Agentes Comuni-
tários de Saúde que vão atuar nos módulos das comunidades em
que vivem. Eles não possuem, na maioria das vezes, qualquer
experiência no atendimento e discussão sobre violência domés-
tica, porém quando trabalhamos a concepção de saúde e doença,
há imediatamente uma associação com a violência famíliar. Existe
uma percepção nítida de como a violência está impregnada e já
faz parte do ritual das relações familiares. Estes eventos estão
incorporados às vivências comunitárias que às vezes causam
impacto de forte envolvimento ou de indiferença, dependendo
da situação apresentada manifestando seus valores e costumes.
 Gostaria de ressaltar que atender a essas famílias, seja no espa-
ço físico da instituição ou na comunidade, implica co-responsabilizá-
las em todas as decisões e ações, ajudando a identificar seu potencial
e seus limites para o enfrentamento e a superação, utilizando-sede recursos individuais, sociais e dos serviços comunitários.
Até aqui discutimos as implicações nos atendimentos e suas
transversalidades, sejam de ordem familiar, institucional, profis-
sional, que podem provocar mudanças ou fortalecimento da
manutenção do estado violento. Gostaria de mostrar de que famí-
lias estamos falando – que buscam a rede de assistência – como
elas se configuram e quais as suas expectativas.
Alguns estudos teóricos quanto ao perfil social-econômico
e cultural das famílias apontam alguns “comportamentos e ex-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 43
pectativas” similares, as quais circulam em nossas unidades.
Existem as famílias periféricas cuja maioria vive no espaço urbano.
Lutam o tempo todo por sua inclusão social e às vezes apresentam
histórias de violência multigeracionais. Justificam os atos vio-
lentos cometidos com seus filhos como forma de protegê-los e
associam que castigando severamente podem livrá-los da violência
urbana, de uma gravidez precoce e talvez promover um grau de
escolaridade melhor do que o seu e a conseqüente ascensão social.
Tal expectativa é recorrente dentro das comunidades neste tipo
de família, que transfere a frustração do seu projeto de vida para
o sucesso de seus filhos.
Um outro perfil de família que transita pelas diferentes insti-
tuições são as que vivem na rua e que apresentam uma diversidade
de experiências violentas, sendo um grande desafio trabalhar com
elas devido a suas características de mutabilidade. Essas famílias
apresentam forte índice de cronicidade e vivências em abrigo,
sendo que por vezes sua única linguagem com seus filhos, compa-
nheiros e companheiras é a agressão. Como estabelecer um vín-
culo com base na construção da identidade, da subjetividade, do
apego, da escuta familiar onde tais possibilidades foram ou estão
mutiladas? Esse é um dos impasses, mas também um grande
desafio. Apenas uma cesta básica, um abrigamento, uma conten-
ção judicial não provocarão alterações nos quadros de violência.
Avalio que a forma como estabelecemos o acolhimento é
um passo inicial na tentativa de ensaiar novas possibilidades de
relação na vida familiar. O acolhimento pode acontecer de várias
formas, em que o profissional possa ter acesso mais prolongado
ou até mesmo emergencial. O exercício da escuta, da atenção, da
significação de cada história familiar, das possibilidades internas
44 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
e sociais é o básico para trabalhar situações de violência domés-
tica com as famílias e com a própria equipe, que precisa ouvir e
trocar suas experiências.
 Entendo que nenhum instrumental é secundário ou exclu-
dente quando abordamos famílias em situação de violência do-
méstica, e se o trabalho não for pensado em rede ele tende a se
fragilizar. A concepção de rede aqui se baseia numa intersetoria-
lidade dinâmica, como ilustração desta idéia, posso dizer que
obtivemos um impacto positivo em relação aos atendimentos
conjuntos com o Conselho Tutelar, escolas, creches, Juizado etc.
Outra manifestação do trabalho compartilhado é o envolvimento
da rede informal e comunitária quando bem discutido com a
família e existindo disponibilidade destes agentes.
A rede sugere a formação de vínculos, relações e ações entre
indivíduos e organizações. Estão presentes na vida cotidiana, nas
relações de parentesco, de vizinhança, de comunidades, na vida
pública e entre as próprias redes. São necessidades humanas so-
ciais que buscam a interação e a formação de vínculos, ou seja, o
real trabalho em rede não deve servir como um parâmetro de
definição de competências e atribuição de cada serviço e sim como
elo que busque trabalhar as diferentes expectativas, demandas,
direitos e responsabilidades das equipes e da família.
Para concluir essas reflexões friso a importância de nos co-
locarmos abertos a este trabalho que a todo tempo nos exige
cuidado especial quanto às diferenças de idéias, percepções,
temporalização da equipe, família, instituições e a necessidade
de aliançar tais diferenças.
„
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 45
ESSA PERGUNTA, QUASE ANEDÓTICA, nos remete à questão
da responsabilidade sobre as crianças e os adolescentes, para além
de uma responsabilidade puramente profissional. Quem é o pai
da criança e do adolescente que vivem hoje em dia nas nossas
cidades, nessa época que foi denominada pós-moderna, que traz
uma série de mudanças aceleradas nas relações humanas e que
tem trazido dificuldades bastante sérias com relação a como se
conduzir com as crianças e adolescentes? Quais são as responsa-
bilidades das famílias, dos serviços de saúde, da justiça, das es-
colas? Eu vejo com um certo pesar, a troca de acusações entre
aqueles que teriam que se colocar no lugar de responsáveis. Com
“Quem é o pai
da criança?”
Edson Saggese
EDSON SAGGESE | Psiquiatra, psicanalista, professor do Instituto de
Psiquiatria (IPUB) da UFRJ e ex-coordenador do Centro de Atenção e
Reabilitação da Infância e Mocidade (CARIM/IPUB/UFRJ).
46 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
freqüência aparecem na mídia casos em que garotos de 15, 16,
17 anos que quebraram estabelecimentos, bateram em alguém,
gerando uma troca de acusações sobre as responsabilidades. As-
sim também quando um adolescente é flagrado fumando maco-
nha na escola, sempre há uma troca de acusações: de quem é a
responsabilidade? Em geral, pode se ver na imprensa, entrevis-
tas com autoridades dizendo “a família que não toma conta, que
não se interessa por esse adolescente, por essa omissão é que se
deu isso, aconteceu aquilo”. “A escola que é muito permissiva,
não é exatamente o que devia ser e por isso aconteceu esse pro-
blema com esse adolescente”, ou então “os serviços de saúde
que são mal organizados, o governo não dá meios aos serviços de
saúde, se esse serviço de saúde tivesse uma organização melhor
o adolescente não teria passado por esse problema, seria mais
bem cuidado”. E fica-se, em geral, numa troca de acusações e eu
não tenho a intenção de fazer uma absolvição geral: esses proble-
mas acontecem, a família está certa, a escola certíssima, o gover-
no não tem falhas, o serviço de saúde muito menos... Não é bem
assim. Mas nós temos que considerar que existe algo muito mais
geral, que está além da responsabilidade das famílias, além da
responsabilidade de cada serviço que é, justamente, uma série
de transformações sociais que tem dificultado, em muito, o ado-
lescente encontrar o seu lugar e nós encontrarmos um lugar que
sirva para dar indicações para esse adolescente quanto a sua vida.
Nós temos visto, progressivamente, o esvaziamento de um lugar
simbólico que nós podemos chamar o lugar do Pai, que não preci-
sa ser, logicamente, uma figura masculina encarnada: é um lugar
simbólico para onde as pessoas possam se mirar e que sirva de
indicação para um percurso de um jovem que chega no momen-
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 47
to de encontrar o seu lugar na sociedade. Isso está esvaziado e
não pode ser responsabilidade da família, nem da escola, nem do
profissional de saúde indicar esse lugar. Não podemos tomar isso
como uma falha exclusiva em algumas dessas instituições. É algo
que corresponde a uma grande transformação social, a uma grande
mudança, a uma grande instabilidade que não permite que nin-
guém possa tomar a responsabilidade de indicar um lugar, um
caminho para esses jovens. O que nós vemos, o que nós pode-
mos assistir é uma série de transformações, e eu não vou falar
delas no intuito de julgá-las, no intuito de criticá-las, no intuito
de ter um discurso moralista, que nós devemos corrigirisso ou
aquilo, mas apenas de dar indicações da dimensão do problema
mostrando que nós estamos vivendo uma fase de imensas trans-
formações, sem que ninguém, isoladamente, possa dar conta das
conseqüências.
 A questão do consumo: hoje em dia, a cidadania virou a
capacidade de consumir, ou seja, é cidadão pleno aquele que tem
capacidade de consumir. A participação política, a sua posição
ética, isso tudo está esvaziado em favor da capacidade de consu-
mir. Só é um cidadão potente, só é um cidadão respeitado quem
tem capacidade de consumir, consumir em diversos níveis. A
questão de uma sexualização precoce aparece quando falamos de
problemas como a pedofilia na Internet, o abuso sexual, proble-
mas graves que, com certeza, vocês encontram no dia-a-dia no
serviço de saúde, na justiça ou na escola. Mas a sexualização pre-
coce ultrapassa a questão de alguns perversos que abusam dos
menores. A sexualização precoce serve ao consumo, as crianças
são precocemente exibidas como objeto de consumo, são apre-
sentadas como seres incluídos no mercado do sexo e assim apa-
48 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
recem na televisão, na mídia em geral, para vender produtos. No
Brasil sobretudo, mas em outros países também, isso é muito
presente, os programas infantis, as moças que conduzem os pro-
gramas infantis são símbolos sexuais, se vestem de maneira bas-
tante ousada e vendem essa sexualidade através das crianças.
Nós temos uma grande perda da dimensão do futuro, nós
estamos voltados nessa questão do consumo para um gozo ime-
diato, o adolescente não vê muitas razões para adiar esse gozo
imediato em função de uma formação de algo que vai ser obtido
no futuro. O que vai ser obtido no futuro? Nós temos uma ques-
tão estrutural do desemprego, temos uma questão estrutural da
mutabilidade das carreiras, dificilmente alguém faz uma carreira
no sentido de que a partir de uma formação está garantido o seu
futuro ou o seu emprego. As empresas apresentavam possibi-
lidades de uma carreira, de algo que o sujeito, se tivesse um bom
desempenho dentro de uma empresa, estava garantido o seu
futuro, e uma boa formação escolar dava acesso a esses empregos.
Isso tudo não é um problema só brasileiro, é um problema mun-
dial, é um problema estrutural. Os empregos são voláteis, de
acordo com o mercado, de acordo com o interesse dessas empre-
sas, os empregos migram daqui para Hong-Kong, de Hong-Kong
para a Índia, da Índia para a Dinamarca etc. Empregos, tipo de
função, de desempenho, desaparecem da noite para o dia e isso é
algo que dificulta aos jovens alguma contenção de um gozo ime-
diato e dificulta a quem vai lidar com esses jovens lhes fornecer
indicações: bom, estamos adiando alguma coisa agora em função
do proveito de algo no futuro. É muito difícil que alguém possa
fazer isso sem cair na hipocrisia e os jovens reagem à hipocrisia.
Então, esse estímulo e essa propensão ao gozo imediato, que
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 49
está ligado ao consumo, que está ligado a volatilidade da sociedade
contemporânea, faz com que seja muito difícil podermos lidar e
trazer à baila a questão da responsabilidade dos jovens e para
com os jovens.
Ligado a essa questão temos a fragilidade dos laços sociais,
a fragilidade dos laços afetivos intrafamiliares e extrafamiliares,
por exemplo, uma das garantias que a família tinha, uma das
garantias da posição da família na sociedade, um lugar privilegiado
da criação de filhos, era a história de uma transmissão trans-
geracional, ou seja, a experiência, o lugar ocupado pelos pais. A
experiência desses pais servia, era um indicador para o futuro
dos filhos. Não serve mais. O mundo que os pais viveram é muito
diferente do mundo que nós vivemos, a transmissão, a experiência
funciona, muitas vezes, muito mais como uma amarração, como
entrave, do que como pacificação para a vida futura desses filhos.
Eu tive uma experiência como adolescente que não corresponde
a experiência dos adolescentes de hoje, isso é uma das questões
que fragiliza a oportunidade de uma autoridade, de um
desempenho da família com relação aos adolescentes. Os vínculos
familiares são, sobretudo, vínculos também de consumo, a família
é um grupo de pessoas que consome junto, isso tem sido mais
forte do que diversos outros laços.
A fragilidade dos laços sociais também ultrapassa a questão
da família, a intensificação da ligação é vista muito mais como
aprisionamento, como um impedimento que visa novas expe-
riências e os adolescentes estão muito sensíveis a isso. Não é à
toa que se propaga – não é uma crítica moralista, é uma consta-
tação de mudança de padrões sociais – todos os tipos de relação
via Internet. Qualquer tipo de relação, amizade, namoro, sexo
50 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
virtual. Por quê? Porque a Internet é justamente um espaço que
condensa, ao mesmo tempo, proximidade e distância, deixando
ao alcance do dedo deletar aquela ligação, nunca mais retomar
um contato e passar para outro imediatamente, e para outro, e
para outro. Os contatos pessoais são muito mais difíceis. Esse
contato/Internet se casa muito bem com a nossa sociedade con-
temporânea rápida e volátil.
Dentro desse contexto – e aí eu falo um pouco da minha
experiência profissional – nós ainda temos os adolescentes estra-
nhos. Os adolescentes estranhos são os adolescentes que têm al-
gum tipo de problema mais grave, um sofrimento psíquico mais
intenso e comprometimento dos seus laços sociais a partir de
algo que os manuais médicos chamam de “transtorno mental”.
E esses são estranhos no sentido em que nós temos dificuldade de
encaixá-los nos nossos mapas mentais, nossos mapas cognitivos,
permitindo que a linguagem deles possa ressoar com a nossa
linguagem, entender o que eles falam. Ou não se encaixam nos
nossos mapas estéticos, pois esses estranhos, às vezes, não man-
têm os hábitos de higiene que nós esperávamos, se vestem de
forma estranha. Ou não os encaixamos no nosso mapa moral:
eles não têm limites, mesmo o limite já precário dos adolescen-
tes, eles não têm esses limites, são capazes de atos que nós não
esperávamos que eles fossem capazes, de auto-agressão, de
hetero-agressão, de não respeitar certas regras que esperávamos
encontrar no colégio ou no centro de saúde. Então, esses adoles-
centes estranhos, na verdade, não há como só o profissional de
saúde mental cuidar deles, eles têm que ser cuidados por toda a
sociedade. Por que não podem ser cuidados só pelo profissional?
Porque, justamente, a questão dessa estranheza é algo que pode
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 51
ser tratado de diferentes maneiras, mas que pressupõe uma ques-
tão básica que é que eles tenham um lugar, e esse lugar só pode
ser garantido pelo conjunto social. Não basta a presença do psi-
quiatra, do psicólogo, do assistente social, de alguém dedicado a
esses adolescentes, ou a essas crianças, para se ter um lugar so-
cial, esse lugar tem que ser aberto e ele é aberto constantemente
com a colaboração de todos e com a idéia de uma luta constante
contra a exclusão, ou seja, não é possível transformar aqueles
que têm um certo déficit, uma certa precariedade, uma certa di-
ferença que seja, não é possível igualar, não é possível transfor-
mar todos os fracos nos fortes, é preciso que a gente reserve um
lugar social para aqueles mais fracos, que têm as suas limitações.
Isso não é tarefa exclusiva de um profissional, só do profissional
da saúde mental, é uma tarefa de todos nós e essa é uma questão
que eu enfrento no meu dia-a-dia: como não renunciar a minha
responsabilidade de cuidar desses adolescentes ou dessas crian-ças mais frágeis, desse ponto de vista, sabendo que todas as mi-
nhas ações são incompletas ou só parcialmente eficazes?
Se nós não pudermos encontrar um lugar, não um lugar de
exclusão, não o hospício, que esse nós queremos fechado, pois é
um lugar de exclusão mesmo, no sentido que não é um lugar
terapêutico, é um lugar apenas para se esconder esses estranhos,
isolá-los. Se nós pudermos encontrar um lugar para esses es-
tranhos, tem que ser um lugar de tolerância. Então, dentro desse
mundo de transformação, dentro desse mundo de frágeis laços,
nós atendemos esses sujeitos adolescentes que são mais frágeis
ainda para estabelecer laços sociais. Não quer dizer que não seja
possível de estabelecer laços com eles. Uma experiência que eu
tive e que não é uma experiência absolutamente ímpar, e sim
52 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
algo que acontece no dia-a-dia: eu recebi, como psiquiatria, uma
mãe com um adolescente psicótico, bastante perturbado, ele está
magro, abatido, ele está triste apesar de que não faz um discurso
consistente sobre isso, ele só fala algumas palavras. Faz um dis-
curso com frases sem nexos perceptíveis, ou seja, frases sem su-
jeito, verbo e objeto. As coisas são expressas meio que em forma
de salada de palavras, mas dá para perceber as mudanças nele. E a
mãe procura uma explicação, uma causa orgânica, traz uma série
de exames e aquilo não me convence muito. É uma família que
tem razoáveis condições econômicas, uma família de classe mé-
dia baixa, mas não faltam alimentos, nem cuidados médicos. Uma
bateria de exames que eu não pedi, foi pedida por outros médi-
cos que a mãe procurou e nada se constatou nesses exames. Eu
começo a perguntar sobre o que poderia estar acontecendo, o
que leva esse garoto a estar tão abatido. O pai do garoto não vive
com a mãe e acabo percebendo que aconteceram coisas que esse
garoto é capaz de captar. Brigas entre os pais, um certo abandono
por parte desse pai, não o abandono no sentido de uma assistên-
cia financeira, mas abandono em termos de presença, a partir de
desentendimentos entre o pai e essa mãe. Faço a hipótese de que
esse garoto, por não ser capaz de articular um discurso coerente
sobre os conflitos, ele reclama pelo corpo. Os conflitos aparecem
em seu corpo, os vômitos que ele passa a ter, a perda de apetite,
o abatimento, parece refletir essas questões. Mas é preciso ter
olhos para ver, ter ouvidos para escutar essas pessoas, mesmo
com toda sua estranheza, elas podem e merecem ter a possibili-
dade de ocupar um lugar. Naquele momento conseguimos abrir
uma pequena clareira de entendimento, de percepção e isso foi
passado para mãe, foi falado com ele, não importando se ele não
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 53
pode dar uma resposta coerente sobre aquilo que foi falado para
ele. O reconhecimento da sua posição de sujeito e o reconheci-
mento que, afinal, as coisas não tinham que passar só num plano
do corpo material, que existe uma vida subjetiva ali que merece
ser considerada. Isso é também abrir um lugar, um lugar não é só
um lugar concreto, é um reconhecimento de que ali está um su-
jeito e por mais que seja estranha a sua maneira de comunicar,
ele pode, de alguma forma, responder, entender, perceber aquilo
que ocorre a sua volta. Trata-se de uma maneira de falar, de en-
contrar um lugar de abrir um lugar para esse adolescente. Duas
semanas depois, pude constatar que seus sintomas corporais ti-
nham desaparecido.
Eu farei agora uma referência, por contraste a esse tipo de
exemplo que apresentei, vou fazer referência a “soluções” – e eu
coloco soluções aí entre aspas – que estão muitíssimo em voga
hoje em dia para se lidar com diversos tipos de problemas da
criança e do adolescente. Os problemas podem ser vários – ina-
daptação escolar, conflitos na família, comportamento fora da
expectativa que os pais tinham sobre aquela criança, o fracasso
escolar, um ato anti-social. O que se vê, como uma ação que vai
se tornando cada dia mais freqüente, é o uso de uma medicação,
a proliferação extrema das soluções psicofarmacológicas. Para
todas essas questões que eu toquei as soluções que se apresen-
tam são soluções fáceis, são soluções rápidas, são soluções ligei-
ras. São rápidas e fáceis só na aparência, porque elas não são
produtivas. Recebemos cada vez mais diagnósticos feitos nos colé-
gios que o garoto tem um transtorno, um déficit de atenção e
hiperatividade. Diagnósticos feitos pelo professor, feitos pela
própria família que viu na televisão, no Fantástico, casos que corres-
54 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
ponderiam exatamente aos problemas do filho. A cada duas pes-
soas que recebemos uma está deprimida e já pede tal ou qual
medicação, já tem mais ou menos as suas escolhas de medica-
ção, Prozac para uma, Ritalina para outra... Essas são soluções
fáceis para problemas muito complexos e isso tem recaído bas-
tante sobre crianças e adolescentes. Eu fico muito impressiona-
do com o número de crianças e adolescentes que estão sendo
medicados – é claro que isso não é uma condenação à medicação
em si, eu sou médico psiquiatra, uso, prescrevo medicações, elas
têm uma enorme utilidade em alguns casos e são extremamente
ineficientes em outros. Fico cada vez mais impressionado não só
com a quantidade, mas com a dificuldade que você tem de barrar
esse uso indiscriminado de medicação. A família já sabe o que
quer, pois já viu na televisão ou nos cadernos de saúde dos jor-
nais, o professor já sabe o que quer para o aluno em termos de
tratamento. Na Justiça também há, às vezes, esse tipo de deman-
da, diagnósticos prontos, remédios pré-receitados e ai do profis-
sional que não seguir essas demandas: “está desatualizado”, ou
então tem pouco interesse – “é da rede pública mesmo”, “não
medicou, não passou nem um remedinho para aliviar o sofri-
mento”. Eu vou finalizar aqui, na expectativa de que as minhas
palavras ajudem a refletir a discussão sobre esses temas.
„
A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR | 55
COMO SABEMOS, HÁ AQUI DIFERENTES profissionais do
campo da saúde – psicólogos, médicos, assistentes sociais, en-
fermeiros, auxiliares de enfermagens, dentistas, entre outros. Sei
também que estão aqui presentes profissionais ligados aos campos
da Educação e do Jurídico. Com tantas diferenças, o que pode-
ríamos todos nós ter em comum? O que eu poderia dizer que
une e implica essas práticas tão distintas? Tentarei responder a
isso falando de algo que é sem dúvida muito caro, e se coloca
para todos: a responsabilidade, os limites e a ética do profissional
diante do seu ofício.
Algumas observações
a partir do trabalho
de supervisão
continuada
Simone Gryner
SIMONE GRYNER | Coordenadora executiva do NAV e psicanalista.
56 | A VIOLÊNCIA COMEÇA QUANDO A PALAVRA PERDE O VALOR
Este Seminário faz parte do trabalho de Supervisão continuada
que surgiu a partir das capacitações que o NAV realizava sobre o
tema da violência doméstica, organizadas pela SMS. Nesse tra-
balho, percebíamos a enorme defasagem entre dar as informações
sobre a temática e as possibilidades reais do profissional de
adaptar essas informações à sua rotina de trabalho, tendo em
vista suas dificuldades pessoais e aquelas encontradas na unidade
em que atua.
O ponto de partida do trabalho de supervisão foi a seguinte
convocação:
“Tragam uma situação de impasse, uma situação em que
você se sentiu convocado a trabalhar, mas em que, de alguma
forma, você questionou o seu papel e sua intervenção no caso,
em que você não sabia exatamente o que estava fazendo, e em
que você teve dúvidas.” E qual foi a resposta dada?
Os profissionais

Continue navegando