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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA A clínica psicanalítica na contemporaneidade Rio de Janeiro 17 de outubro 2008 2 UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA A CLÍNICA PSICANALÍTICA NA CONTEMPORANEIDADE TATIANA SILVERA PORTO CAMPOS Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como requisito ao título de Mestre. Área de concentração: Subjetividade nas práticas da Ciência da Saúde ORIENTADOR: Profa. Dra. Betty Bernardo Fuks. Rio de Janeiro 17 de outubro 2008 3 UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA SISTEMA DE BIBLIOTECAS Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8845 Fax.: (21) 2574-8891 FICHA CATALOGRÁFICA Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Setorial Tijucal/UVA B238p Porto Campos, Tatiana Silvera A clínica psicanalítica na contemporaneidade / Tatiana Silvera Porto Campos, 2008. 99p. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Subjetividade nas Práticas das Ciências da Saúde, Rio de Janeiro, 2008. Orientação: Betty Bernardo Fuks 1. Anorexia-bulimia. 2. Clínica psicanalítica. 3. Contemporaneidade. 4. Patologias atuais. Betty B. Fuks. II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Subjetividade nas Práticas das Ciências da Saúde l. III. Título. CDD – 364.15554 4 A minha avó Thaís. Aos meus amores Carlos, João Pedro, Miguel e Frederico. 5 AGRADECIMENTOS De início, gostaria de agradecer a Betty Bernardo Fuks que me acompanhou com entusiasmo e seriedade ao longo deste percurso. Por seu profissionalismo, rigor, atenção e respeito. E por ser um exemplo de inteligência e pensamento produtivo. A expressão deste agradecimento não é capaz de alcançar toda a gratidão por sua generosidade e carinho. Às minhas amigas e companheiras de mestrado pela convivência, troca de idéias, estímulo e confiança. Em especial, Gabriela Barbosa, Gabriela Abreu, Bárbara Caríssimi, Marisa Siggelkow Guimarães e Ana Augusta Lucchezi. A todos os professores do mestrado por sua inúmera e variada contribuição. À secretária, Elaine, pela dedicação, carinho e bom humor. À minha mãe pelo apoio, pelas conversas e pela leitura cuidadosa. Agradeço a meus pais por tudo, e principalmente por terem me transmitido o gosto pela arte, pelos estudos e leitura. Ao meu marido e companheiro pelo compartilhamento da vida, e por seu apoio e incentivo nesse trajeto acadêmico. A meus filhos por suas presenças radiantes. 6 RESUMO A partir da perspectiva inaugurada por Freud ao estabelecer a relação intrínseca entre o conceito de inconsciente e cultura, realizamos uma análise da praxis psicanalítica na contemporaneidade. O nosso principal objeto de pesquisa foram os quadros de sofrimento reconhecidos por sua crescente incidência na clínica hoje. Durante esta investigação, nossa atenção recaiu sobre as teorizações freudianas a respeito das neuroses atuais, por nos apercebermos de semelhanças significativas com essas patologias descritas como contemporâneas. Porém, as neuroses atuais desde Freud são consideradas como casos extremamente difíceis de tratar através da psicanálise por suas diferenças em relação às psiconeuroses de defesa. Recorremos ao ensino de Lacan, especialmente ao conceito de gozo e suas decorrências na clínica, com o intuito de embasar as análises e propostas clínicas evocadas nesta pesquisa. Uma vez instrumentalizados por esses estudos e teorizações, dedicamos dois capítulos à prática clínica na contemporaneidade. Com a finalidade de provocar reflexões sobre a possibilidade de tratamento psicanalítico para esses quadros clínicos, elegemos o par anorexia-bulimia, um dos exemplos paradigmáticos de sofrimento na contemporaneidade. Palavras-chave: psicanálise; contemporaneidade; neuroses atuais; anorexia-bulimia. ABSTRACT With basis on the Freudian perspective that established an intrinsic relationship between the concept of unconscious and culture, this study analyzes the psychoanalytic praxis in contemporaneity. Our main objects of research were certain clinical manifestations of distress that are widely recognized for their increasing incidence in clinical practice today. Throughout this investigation, our attention was drawn towards the Freudian theories on actual neurosis, once significant similarities were perceived between these and the pathologies currently described as contemporary. However, according to the Freudian theory, the actual neuroses are seen as conditions that are extremely difficult to treat through psychoanalysis due to their differences when compared to the neuroses of defense. The teachings of Lacan were resorted to, especially the concept of jouissance and its clinical consequences, with the intent of giving base to the analyses and clinical propositions evoked in this study.Using these studies and theories as tools, two chapters are dedicated to the discussion of clinical practice in contemporaneity. With the purpose of provoking reflections about the possibilities of psychoanalytic treatment for these clinical manifestations, the anorexia/bulimia pairing was elected as a paradigmatic example of distress in contemporaneity. Keywords: psychoanalysis, contemporaneity, actual neurosis, anorexia-bulimia 7 BANCA EXAMINADORA: Orientadora: Professora Betty Bernardo Fuks Doutora em Comunicação e Cultura – ECO-UFRJ Professora Marylink Kupferberg Doutora em Psicologia – PUC-RJ Professora Vera Maria Pollo Doutora em Psicologia – PUC-RJ Suplente: _________________________________________ Professora Maria Anita Carneiro Ribeiro Pós-doutorado em Psicologia – PUC-RJ Defendida em 17 de outubro de 2008. Aprovada com louvor, indicada para publicação e indicada para o Doutorado.8 SUMÁRIO Introdução, p. 10 Capítulo 1. O psicanalista, um crítico da cultura, p. 13 1.1. Modernidade e modernismo, p. 13 1.2. Uma controvérsia atual: modernidade ou pós-modernidade?, p. 15 1.3 A contemporaneidade, p. 19 Capítulo 2: A psicanálise na contemporaneidade, p. 24 2.1 Pela defesa da psicanálise, p. 24 2.2 A contemporaneidade como desafio à psicanálise, p. 29 2.3 Fenômenos psíquicos da atualidade, p. 31 Capítulo 3: Para destacar as neuroses atuais das psiconeuroses de defesa, p. 41 3.1 As neuroses atuais, p. 41 3.2 Neurose de angústia e neurastenia, p. 45 3.3 O gozo, p. 52 Capítulo 4: A clínica das neuroses reais, p. 60 4.1. Neurose real, angústia e real, p. 60 4.2. Transferência, fantasia e auto-erotismo na clínica das neuroses reais, p. 64 4.3. O Livro de Cabeceira, p. 70 Capítulo 5: Anorexia-bulimia: paradigma de neurose real na contemporaneidade, p. 75 5.1 Anorexia-bulimia como duas faces do mesmo pathos, p. 75 5.2. Anorexia-bulimia: pathos do vazio, p. 80 5.3. O Ideal do corpo magro e seu lugar na fantasia, p. 85 5.4. Anorexia e feminino, p. 89 5.5. Anorexia-bulimia e o fazer do analista, p. 92 Considerações Finais, p. 96 Referências, p. 100 ANEXO A, p. 103 9 O Real não é uma espécie de ponto central intocável, sobre o qual não se possa fazer nada além de simbolizá-lo em termos diferentes. Não. A idéia de Lacan é que se pode intervir no Real. A dimensão fundamental da psicanálise, para Lacan, pelo menos o Lacan da maturidade, já não é da simples ressimbolização, mas a de que algo de fato acontece. Ocorre uma verdadeira mudança na psicanálise quando sua forma fundamental de jouissance [gozo], que é justamente a sua dimensão real como sujeito, se modifica. Portanto, a aposta básica da psicanálise é que você pode fazer coisas com as palavras, coisas reais, que lhe permitem mudar os modos de gozo, e assim por diante. Zizek, Arriscar o impossível. 10 1. Introdução Questões decorrentes da prática na clínica psicanalítica me levaram a ingressar no mestrado, e ao desenvolvimento desta investigação. As indagações dizem respeito a casos de anorexia, bulimia, depressão, toxicomanias e síndrome do pânico, por mim atendidos. Pudemos constatar traços comuns dentre estes quadros que os distinguem dos demais. Os pacientes descreviam seus males através de um discurso distanciado, sem implicação, esvaziado de emoção, sem relevos, em um encadeamento monótono. A falta de historicidade1 em seus relatos chamou a atenção como indicativa de uma debilidade na função simbólica, além de exprimir uma maneira atípica de resistência à entrada em análise. Esta situação direcionou perguntas, que consideramos linhas de condução desta pesquisa: até que ponto este discurso esvaziado delata certo apagamento do desejo? Qual a leitura da psicanálise para esses casos que se apresentam de forma distinta das psiconeuroses? Podemos considerar que se trata de sintomas no sentido de uma formação do inconsciente, que é oferecido como enigma a ser decifrado? Ou deveríamos circunscrever essas manifestações no que se conhece como excesso de gozo pulsional? E ainda, qual é a relação entre esses quadros de sofrimento e a cultura contemporânea uma vez que se tornam cada vez mais frequentes na atualidade? A frequência crescente dessas manifestações na atualidade leva a que sejam entendidas como novas. Apesar de sua incidência, tais patologias não constituem novidade. Há registros dessas manifestações clínicas que datam do século XVIII. No que diz respeito à psicanálise, encontramos uma descrição muito próxima no modelo das “neuroses atuais”, proposto por Freud em 1896 e elaborado ao longo de sua obra. Esta aproximação será aprofundada no terceiro capítulo desta dissertação. Arriscaríamos antecipar, então, que o que está relacionado à cultura contemporânea é mais o aumento e menos o aparecimento dessas manifestações clínicas. Estes fenômenos clínicos não serão entendidos aqui como uma estrutura, portanto, podem estar presentes na neurose, psicose ou perversão. Nesta dissertação iremos nos ater à neurose, por sua prevalência em minha prática clínica e para respeitarmos as limitações impostas por este estudo. Interrogados pela dificuldade de entrada em análise, apresentada por 1 Segundo encontra-se em Houaiss: 1 qualidade ou condição do que é histórico; historicismo 2 PSIC conjunto dos fatores que constituem a história de uma pessoa e que condicionam seu comportamento em uma dada situação. 11 esses pacientes, objetivamos construir, baseados nos autores selecionados, uma abordagem teórica desses fenômenos clínicos que nos auxilie a viabilizar o tratamento. A sociedade de consumo e a lógica capitalista excluem as diferenças, via régia da subjetividade. Prometem felicidade àquele que seguir suas normas, através das quais, se vê forçado a gozar daquilo que não tem utilidade. Destituído de sua singularidade, o sujeito se encontra submerso no imperativo da igualdade, sem espaço para as diferenças, compelido ao tamponamento compulsivo da falta, promovido pelo discurso da complementaridade no lugar da falta. A sociedade de consumo veicula a proposta de corresponder à demanda de completude e saber absolutos, obstruindo assim a emergência do desejo. Freud demonstrou a existência de um elo constitutivo entre cultura e inconsciente. Lacan (1958), em seu retorno ao texto freudiano, introduziu o conceito de Outro, demarcou o campo Simbólico e afirmou que o inconsciente é o discurso do Outro. A partir desta abordagem, diz: Que antes renuncie a isso (exercer a psicanálise), portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Que o (analista) conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas (Lacan, 1953, p.322). Seguindo estes preceitos, elegemos o par anorexia-bulimia como um dos objetos de estudo nesta pesquisa, por percebê-lo como um dos sofrimentos paradigmáticos no contexto da cultura contemporânea. Mas também e, principalmente, com o objetivo de ressaltar a perspectiva da psicanálise como contribuição à ciência. Sob o diagnóstico de distúrbios alimentares – anorexia e bulimia – são consideradas pelo discurso científico patologias que só devem ser tratadas através de abordagem cognitivista-comportamental e medicamentosa. O tratamento psicanalítico para esses casos significa, então, abrir uma via de acolhimento ao sujeito do inconsciente ali onde a ciência só tem reforçado sua exclusão. Um dos propósitos desta dissertação é evidenciar que se faz necessária a sistematização de uma proposta de tratamento psicanalítico para essas patologias. No primeiro capitulo, ressaltaremos a relação intrínseca, estabelecida por Freud, entre o conceito de inconsciente e a cultura. Para tanto, percorreremos alguns textos de Freud, Lacan, e outros autores que vêm se debruçando sobre esses temas: Fuks (2000; 2003); Birman (2006); Bauman (2000); Mousnier (1957); Debord ([1967] 2006). No segundo capítulo, faremos uma análise da clínica psicanalítica na contemporaneidade, no que diz respeito aos referidos quadros de sofrimento. Para nos auxiliar 12 acerca das questões levantadas, evocaremos alguns autores do campo psicanalítico, que têm se dedicado ao estudo desta temática: Roudinesco (2000); Kehl (2005); Birman (1999;2006); Sauret (2005); Recalcati (2004a, 2004b). O terceiro capítulo será dedicado às teorizações de Freud, no que dizem respeito às neuroses atuais, por termos encontrado aí semelhanças significativas com o que observamos na clínica na contemporaneidade. Daremos atenção ao conceito de transferência, uma vez que se trata de um operador clínico exclusivo da psicanálise, e ao conceito de gozo desenvolvido por Lacan, embasamento fundamental para as questões apresentadas nesta pesquisa. Para isto, recorreremos às obras de Freud, Lacan; Carneiro Ribeiro (2001); Recalcati (2004a); Dunker (2002); Braunstein (2007); Vallas (2001); Fink (1998); Rabinovich (2004); Goldemberg (2002). O quarto capítulo tratará da prática clínica. Teceremos considerações acerca da maquete subjetiva do sujeito contemporâneo, com a finalidade de provocar reflexões sobre a possibilidade de tratamento psicanalítico dos referidos quadros. À guisa de ilustração, será utilizado o filme “O Livro de Cabeceira”, de Peter Greenway (1996). Para nos acompanhar nessa tarefa, invocaremos Freud, Lacan e ainda os seguintes autores: Fuks (2001); Rabinovich (2004); Dunker (2002). O quinto e último capítulo se voltará especificamente à clínica da anorexia-bulimia que elegemos como um dos exemplos paradigmáticos do sofrimento na contemporaneidade. Buscamos apresentar abordagem psicanalítica e proposta de tratamento clínico. Nesse capítulo recorreremos aos trabalhos de Freud; Lacan; Sauret (2005); Pollo (2003); Recalcati (2004a); Rabinovich (2004). Ao longo de toda a dissertação estará presente uma preocupação em demonstrar a perenidade da eficácia da psicanálise nos dias atuais. 13 Capítulo 1. Psicanalista, um crítico da cultura 1.1. Inconsciente e cultura Neste capítulo, de acordo com Freud e Lacan, propomos demonstrar a necessidade de que cada analista abrace a função de crítico da cultura que testemunha. Desde o século XIX, vinham ocorrendo debates filosóficos e políticos sobre a oposição cultura e civilização. Freud se colocou fora destes debates, uma vez que, para ele, estas duas dimensões da vida social eram articuladas entre si. Segundo Fuks (2003), para Freud, a cultura é a: [...] interioridade de uma situação individual – manifesta nos impulsos que vêm desde dentro do sujeito – e a exterioridade de um código universal, subjacente aos processos de subjetivação e aos outros regulamentos das ações do sujeito com o outro (Fuks, 2003, p.10). Do ponto de vista formal, Freud escreveu mais diretamente sobre cultura nos textos tardios de sua obra. Porém, desde o início, podemos destacar a presença do tema em seus escritos, como em Projeto para uma psicologia científica (1895), através do “Nebenmensch” (termo traduzido por complexo do semelhante ou assistência alheia, p.422). Defendeu a idéia de que o primeiro semelhante com o qual o ser humano se relaciona, que vem em seu socorro, atende seu primeiro grito, permitindo que sobreviva (em geral, a mãe), inaugura sua existência. O homem nasce desamparado e seu desamparo não é apenas biológico; o grito do bebê também apela por sentido para a angústia que sente. Assim, este primeiro semelhante não só atende como significa e nomeia as necessidades vitais, servindo de referência. Auxilia, permitindo ao pequeno ser julgar e reconhecer os mundos interno e externo, habilitando-o ao domínio da linguagem. Como nesse momento o bebê não possui discernimento algum, seu primeiro objeto é de satisfação ao mesmo tempo em que é hostil, fonte da experiência mítica de satisfação e prazer, que condena o homem à sua busca incessante, e também, uma presença estranha e ameaçadora (Fuks, 2003). Lacan (1949) sugeriu que o bebê antecipa, no plano imaginário, sua unidade corporal, identificando-se com a imagem do semelhante – estágio do espelho. Porém, para que este processo de constituição do eu se dê, é necessário o reconhecimento simbólico do Outro. O Outro - conceito lacaniano - designa o registro do Simbólico, a linguagem, a cultura. Com o 14 estágio do espelho, Lacan reitera o sentido fundamental que Freud imprimiu ao demarcar o surgimento do sujeito em sua dependência do semelhante e da linguagem – ou, do Outro. Freud, em sua obra, assinala outro paradoxo intrínseco a essa relação do sujeito com o Outro. A mãe – ao ocupar o lugar do Outro e representar a cultura – exerce a função de erotizar a criança, acordando-a para vida, despertando seus desejos, para em seguida, reprimi- la. É através das intervenções da educação, fundamental para a convivência humana, que se vai impondo limites às realizações das pulsões eróticas e agressivas. Nas palavras de Freud: A relação de uma criança com quem quer que seja responsável por seu cuidado proporciona-lhe uma fonte infindável de excitação sexual e de satisfação de suas zonas erógenas. Isto é especialmente verdadeiro, já que a pessoa que cuida dela, que afinal de contas, em geral é a sua mãe, olha-a ela mesma com sentimentos que se originam de sua própria vida sexual [...] claramente a trata como um substitutivo de um objeto sexual completo. Uma mãe ficaria horrorizada se lhe fosse dito que todos os seus sinais de afeição estavam despertando as pulsões sexuais do filho e preparando-as para sua intensidade ulterior. [...] O que chamamos afeição infalivelmente mostrará seus efeitos, um dia também, nas zonas genitais. Além disso, se a mãe entendesse mais da alta importância do papel desempenhado pelas pulsões na vida mental como um todo – em todas as suas realizações éticas e psíquicas – ela se pouparia quaisquer autocensuras mesmo após ser esclarecida. Ela está apenas cumprindo o seu dever de ensinar o filho a amar (Freud, 1905, p. 229). Em 1920, Freud escreve Além do princípio de prazer e reformula sua teoria das pulsões, introduzindo o conceito de pulsão de morte que opôs às pulsões de vida. A tese freudiana de que o aparelho psíquico tem dois princípios reguladores: a busca de prazer e a evitação de desprazer, já não era mais suficiente diante dos impasses que a clínica colocava. Segundo Lacan, foi a percepção de um gozo pulsional no cerne do sintoma, um prazer na dor, ou seja, no próprio desprazer, que chamou a atenção de Freud. O conceito de pulsão de morte foi elaborado a partir da compulsão a repetir, da reação terapêutica negativa (como forma radical de resistência ao tratamento), do sentimento inconsciente de culpa, dos ganhos primário e secundário, relativos ao sintoma. Assim, nasceu a segunda tópica freudiana. Nela formulou do supereu: instância proibitiva que representa a internalização da cultura e das leis - função de censura - e ao mesmo tempo, tem sua raiz no id – reservatório das pulsões. Paradoxal, o supereu é um duplo comando inconsciente, impossível de se cumprir: “Você deveria ser assim (como seu pai)!” e “Você não pode ser assim (como seu pai)!” (Freud, 1923, p.49). Ao mesmo tempo em que regula o desejo, viabiliza e mantém o laço social, sendo igualmente responsável pelo sentimento de culpa. Quanto mais se renuncia 15 ao desejo, maior é a culpa, mais cruel e exigente é o supereu. Esta instância acumula ainda a característica de dentro e fora, de estranho e familiar, uma vez que é interno, íntimo, originário e, simultaneamente, representante do Outro, da cultura, efeito do ato de civilizar. De um modo geral, podemos dizer que desamparo, estranheza e angústia são noções que acompanham a apreensão que a psicanálise dá aos mais diversos processos do sujeito e da cultura (Fuks, 2003). Ao contradizer a repartição entre psicologia individual e coletiva, sustentada pela psicologia clássica, Freud inaugura uma nova maneira de conceber o indivíduo e seu contexto. A partir de sua prática clínica,passou a considerar as relações que um indivíduo tem com o outro como um fenômeno social, reconhecendo este outro como peça fundamental na constituição da subjetividade, uma vez que acumula a função de transmitir a cultura e a linguagem que o determina simbolicamente. No que diz respeito às experiências no campo coletivo, Freud (1929) afirma que o indivíduo irá se posicionar de acordo com as leis que o marcam. Porém, Freud chama a atenção para o cuidado que se deve ter para não se recair no equívoco de fazer uso de interpretações psicanalíticas selvagens e nem contribuir para a divulgação de jargões e estereótipos da psicanálise. Para isso, é necessário manter o vínculo e a direção da experiência clínica, que sempre foi o suporte do saber psicanalítico e de sua transmissão. É de onde partimos e para onde endereçamos todo nosso trabalho e pesquisa. A partir desta perspectiva propomos pensar impasses que têm surgido na clínica contemporânea, em sua relação com a cultura. 1.2. Modernidade e modernismo 2 Para pensarmos a cultura contemporânea iniciaremos com a contextualização do surgimento da própria psicanálise recorrendo à História e à Filosofia. Do ponto de vista da História, a modernidade se inicia em torno dos séculos XV e XVII. Caracteriza-se por ser uma nova visão que se contrapõe ao ponto de vista medieval. Essa nova perspectiva de mundo é decorrente do desenvolvimento da economia mercantilista, do descobrimento do Novo Mundo e das grandes navegações. Decorrente também da reforma protestante e das novas teorias científicas no campo da física e da astronomia, entre as quais, 2 Foram utilizados para esta pesquisa os livros: FREDERICK. O moderno e o modernismo, 1988; FUKS. Freud e a judeidade: a vocação do exílio, 2000. MARCONDES; JUPIASSÚ. Dicionário básico de filosofia, 1996, e ainda anotações das aulas ministradas em 17 e 26 de ag /2007, no curso: Movimento Psicanalítico, (mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade), Universidade Veiga de Almeida, Campus Tijuca, Rio de Janeiro. 16 destacamos as de Galileu e Copérnico. Para as Artes, o Renascimento marca o surgimento da modernidade, contrapondo-se ao espírito medieval e à escolástica. Para a Filosofia, considera- se que a modernidade inicia com Descartes e Francis Bacon. Antes da era moderna, a noção de indivíduo não era consistente, o homem vivia em comunidade e nela tinha suas referências; sua participação, atividade, a inscrição no grupo a que pertencia era o que o definia. O destino humano estava submisso às leis divinas e da natureza. As instituições, a hierarquia, o sistema e a aceitação dos dogmas e verdades estabelecidas caracterizavam a ordem social medieval. Já o pensamento moderno valoriza o indivíduo, a consciência, a subjetividade, a experiência e a atividade crítica. Neste sentido, identifica-se modernidade à idéia de progresso e ruptura com o passado. É a era da razão científica em oposição ao mundo do divino e da natureza. Com essa mudança, o indivíduo sofre um deslocamento para o centro do universo e o discurso da ciência passa a ocupar a posição de produção e agenciamento da verdade, substituindo progressivamente os discursos filosófico e teológico; a tecnologia transforma-se no principal instrumento do exercício do saber sobre o humano. Uma vez que a razão científica proporcionou ao homem autonomia diante da natureza e do mundo divino, a ciência adquiriu o poder, praticamente exclusivo, de determinar a veracidade dos enunciados e dos juízos. Em torno de 1870, surge um movimento crítico à modernidade: o modernismo. Fundamentado por peculiaridades referidas a cada lugar em que se desenvolveu, caracterizava-se distintamente em cada região aonde surgia. Por exemplo, o modernismo brasileiro diferenciava-se do vienense, ou do surgido em Paris, Praga, Berlim, e era possível localizar as variadas diferenças em cada um deles. O que havia de constante no modernismo, como movimento, era a crítica ao reino da razão e do eu, engendrado pela modernidade, que questionava sua veracidade, além do desafio à autoridade e ao status quo. O modernismo, caracterizado pela preocupação em inovar, para a literatura, trouxe novas vozes, novos artifícios, novas formas narrativas, uma nova linguagem. Nas artes plásticas, as cores traziam novidade, também foram desenvolvidas novas maneiras de utilização da tela, do espaço, do vazio, dando origem a novos arranjos estéticos. Na música, novos sons, novas progressões, novas sequências harmônicas. Foi neste contexto que nasceu a psicanálise. Após descentrar o homem de si mesmo, a disciplina freudiana passou a se configurar, segundo seu próprio criador, na terceira ferida narcísica sofrida pela humanidade. Dessa forma, golpeia contundentemente a ilusão da identidade entre consciência e psiquismo. Mas, em Viena, onde se originou a psicanálise, o 17 modernismo teve uma característica própria, que surtiu efeitos na obra de Freud. Na cidade natal da psicanálise o ataque à autoridade, ao pai (do patriarcado) era particularmente penoso. Havia ali um reconhecimento da autoridade dos antigos, uma valorização das tradições, que instalou um sentimento de lamentação, de decadência, contra o qual se deveria reagir, uma sensação de desabamento, de um futuro vago. Sobre isto, Lacan (1938) assinalou que no decorrer de sua obra, principalmente no que diz respeito à conceituação do complexo de Édipo e suas decorrências, Freud já demonstrava uma preocupação com o “declínio social da imago paterna”: Qualquer que seja seu futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja a essa crise que se deve relacionar o aparecimento da própria psicanálise. Apenas o sublime acaso do gênio talvez não explique que tenha sido em Viena – então centro de um Estado que era o melting-pot das formas familiares mais diversas, das mais arcaicas às mais evoluídas, dos últimos agrupamentos agnáticos dos camponeses eslavos às formas mais reduzidas do lar pequeno-burguês e às formas mais decadentes do casal instável, passando pelos paternalismos feudais e mercantis – que um filho do patriarcado judeu tenha imaginado o complexo de Édipo. Seja como for, são as formas de neurose dominantes no final do último século que revelaram que elas estavam intimamente dependentes das condições da família (Lacan, 1938, p.60). A questão da permanência da modernidade ou não caracteriza uma controvérsia contemporânea. São múltiplas as definições e caracterizações da modernidade, enunciadas ultimamente, como problemática de ordem filosófica, histórica, política, social e estética. Apesar de existirem exceções, de uma maneira geral, os analistas sociais se dividem em dois posicionamentos principais: a corrente norte-americana defende que a modernidade acabou e considera estarmos vivendo na pós-modernidade, ou pelo menos, na construção do mundo pós-moderno; a corrente européia supõe que o que vivemos na contemporaneidade é consequência de uma radicalização do projeto da modernidade, e apesar das diferenças existentes, se compararmos os dias de hoje a seu início, ainda são mantidos os mesmos pressupostos. As diferenças existentes entre essas correntes estão associadas não somente às origens históricas da modernidade, mas também aos seus desdobramentos na atualidade. Se a modernidade foi construída na Europa, logo, defender sua extensão aos dias de hoje significa reforçar e manter a influência européia, e seu lugar em escala mundial. Por outro lado, os norte-americanos preferem utilizar o conceito de pós-modernidade para descrever os novos tempos, justamente para afirmar que a influência e a hegemonia européias se tornaram 18 passado, junto com a modernidade. Os americanos enfatizama ruptura crucial no projeto da modernidade e a construção da pós-modernidade de maneira que sua hegemonia absoluta não se restrinja mais aos pontos de vista econômico e político, mas que fique claro que agora o american way of life é o estilo de vida da atualidade. Um dos analistas sociais mais representativos na discussão dessas questões é o sociólogo polonês Zygmunt Bauman3. Nasceu em 1925 e aos 14 anos, foi para Rússia com a finalidade de escapar do holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial. Retornou à Polônia, após o fim da guerra, quando, então, se filiou ao partido comunista e ingressou na Universidade de Varsóvia. Foi ali que construiu sua carreira como professor. Permaneceu lá até surgir uma nova onda de anti-semitismo que o forçou ao exílio novamente. Após três anos em Israel, assumiu o departamento de sociologia na Universidade de Leeds, na Inglaterra, aonde reside, até hoje. Bauman é um dos autores mais produtivos e renomados no campo da sociologia. Uma das características de seu estilo é a escolha por temas abrangentes e variados: holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são alguns exemplos. Direciona sua análise para a vida cotidiana de homens e mulheres comuns, sempre dando ênfase à dimensão ética e humanitária que, segundo ele, deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Bauman é uma das vozes a questionar, continuamente, a ação dos governos neoliberais, que em sua concepção, promovem e estimulam as forças do mercado, ao mesmo tempo em que renunciam ao dever de gerir justiça social. Os termos pós-moderno e pós-modernidade aparecem em títulos de quatro de seus livros. Por essa razão, Bauman foi considerado como um dos autores que defende a idéia de que uma mudança cultural e social, suficientemente grande, ocorreu e que devemos admitir já estarmos presenciando um novo período da história. Porém, em uma entrevista concedida à professora brasileira, Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke4, o próprio Bauman esclareceu que não gosta de ser enquadrado em nenhuma corrente, e por isso, cunhou os termos “modernidade sólida” e “modernidade líquida” (p.4) para evitar algumas confusões. Diz que seu interesse tem sido compreender o tipo de sociedade que vem surgindo, mas considera que esta ainda se mantém eminentemente moderna em suas ambições e em seu modus operandi. A distinção fundamental entre modernidade sólida e líquida é que esta última se encontra desprovida das antigas ilusões de que os objetivos a serem alcançados, estavam logo 3 BAUMAN apud PALLARES-BURKE, M. L. Garcia. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 out. 2003. 4 Professora aposentada da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora associada do Center of Latin American Studies, Universidade de Cambridge. 19 adiante. Diferentemente da sociedade moderna anterior - modernidade sólida - que desconstruía a realidade herdada com intenção de torná-la melhor e sólida novamente, a sociedade atual – modernidade líquida - carece da perspectiva de longa duração. Atualmente tudo está sendo constantemente desmontado e sem perspectiva alguma de permanência - tudo é temporário. É nesse sentido que Bauman (2000), em seu livro Modernidade líquida, sugere a metáfora da liquidez para caracterizar o estado da sociedade atual: “[...] como os líquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades ‘auto-evidentes’” (2003, p.4). Reconhece que Marx e Engels já apontavam para o caráter desenraizador, presente na vida moderna. Porém, enquanto antigamente isso era feito para ser enraizado outra vez, na atualidade tudo - empregos, relacionamentos, e mesmo o saber - tende a permanecer em fluxo, volátil, desregulado e flexível. Portanto, para Bauman, a era em que vivemos se caracteriza, não por quebrar as rotinas e subverter as tradições, e sim por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições. Seu interesse, então, é por ele definido como o de tentar compreender quais as consequências dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu cotidiano, pois considera que virtualmente todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive a cada momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido. 1.3. A contemporaneidade Com o objetivo de não ficarmos entre as oposições citadas, e para evitar confusões, decidimos adotar o termo contemporaneidade para nos referirmos aos dias de hoje. A partir dessa última análise, tendemos a concordar com a vertente que defende a persistência da modernidade, por reconhecer na atualidade, com todas as suas questões, a presença dos fundamentos instituídos pela era moderna. Mas, apesar desse reconhecimento, é essencial demarcar as diversas modificações que os sujeitos e a cultura sofreram desde o início da modernidade até hoje. Podemos nos referir às características do indivíduo burguês do capitalismo industrial como matriz daquilo a que assistimos surgir hoje, na contemporaneidade. Na primeira metade do século XVII, o burguês era descrito como um indivíduo forte, enérgico, inteligente, prático e pouco escrupuloso (Mousnier, 1957). Porém, a subjetividade constituída no início da modernidade era pautada nas noções de interioridade e 20 reflexão sobre si mesma, enquanto que, a partir do final dos anos sessenta, encontramos a descrição de um indivíduo extremamente exteriorizado, narcísico, que funciona, segundo a lógica capitalista da sociedade de consumo e que estende esta lógica a todas as suas relações, as quais passam a ter um tom frio, descartável e impessoal. Ao estabelecermos um paralelo entre os perfis dados à subjetividade, na aurora da modernidade e na contemporaneidade, observamos, hoje, uma retração da vida psíquica, uma vez que o espaço de reflexão interna diminuiu drasticamente. Guy Debord5, filósofo francês, foi, dentre outras coisas, um intelectual com uma prática política. Para atuar de acordo com toda sua crítica sobre a sociedade moderna burguesa, a que nomeou “sociedade do espetáculo” ([1967] 2006, p.45), criou o situacionismo, projeto político de crítica radical à vida cotidiana no capitalismo. Debord Fundou a Internacional Situacionista (IS) em 1958 e ele próprio a dissolveu em 1972. Em 1967, publicou a mais importante obra teórica dos situacionistas: A sociedade do espetáculo. O movimento situacionista opunha-se não somente à sociabilidade burguesa, mas também àqueles que se antepunham oficialmente a tal sociabilidade. Apesar de se referir ao trabalho de Marx e Hegel, Debord propunha o situacionismo como o negativo das negações formais da sociedade burguesa, pois considerava os projetos revolucionários de seu tempo como faces da mesma moeda das sociabilidades do projeto burguês, uma vez que apareciam historicamente como concorrentes, e quase sempre, como parceiros na mesma esfera institucional da sociedade burguesa. Para Debord (2006), a sociedade do espetáculo é o mundo regido pela economia do consumo, onde a mercadoria, como centro absoluto da vida social, engendra a passagem do ser para o ter: os objetos, substituindo valores éticos, onde ocorre uma ininterrupta fabricação de “pseudo-necessidades” (p.45). Ou seja, a inscrição de objetos como signos da felicidade, sempre prontos para o consumo voraz, dirige a imposição de uma dinâmica na qual o indivíduo acaba por ter suas escolhas condicionadas, a tal ponto que, até mesmo um outro ser humano poderá ser transformado em um gadget6, e servir como via de satisfação imediata. E, assim, tornar-se rapidamente descartável. O autor denominou esse processo de “fetichismo da mercadoria”(p.45). Debord descreve a contemporaneidade como o triunfo do individualismo em associação ao consumo e como demanda incessante de prazer, gerando modelos de 5 Para a pesquisa feita sobre Guy Debord e sua obra, além de seu livro A sociedade do espetáculo, foi consultado o artigo do Prof. Dr. João Alberto da Costa Pinto, professor Departamento de História da Universidade Fluminense de Goiás, UFG. 6 Objeto de consumo supérfluo, engenhoca. 21 subjetivação, que enfatizam a “exterioridade” e “autocentramento” (p.108). Outro ponto importante nas questões levantadas por ele é a modificação do tempo e suas consequências para o indivíduo contemporâneo: [...] o espetáculo, como a totalização da mercadoria na vida social, impõe a esta não só o absoluto da reificação, mas também a negação de um tempo histórico, que veja na sua irreversibilidade intrínseca a caracterização do sentido da experiência social. O espetáculo paralisa o sentido social da história e da memória, o espetáculo é a tradução da falsa consciência do tempo (Debord, 2006, p.108). Ele divide a transformação do tempo em três etapas: o tempo cíclico, característico da produção agrária; o tempo irreversível da produção industrial e o tempo reificado da sociedade de consumo. A burguesia afirmou-se historicamente no tempo do trabalho. Liberou a sociedade do tempo cíclico, o tempo das sociedades marcadas pelo modo agrário de produção e determinadas pelos ciclos temporais da natureza. O tempo do trabalho, o tempo da produção, ao romper com o tempo cíclico afirma a “vitória do tempo profundamente histórico” (p.107), como o nomeou Debord em oposição ao tempo cíclico. Seria a vitória da sociedade em autotransformação permanente e absoluta; mas ele também ressalta que “esse tempo é o tempo das coisas” (p.98) e o tempo das coisas elimina crescentemente o sentido do tempo vivido. Isto é, no ciclo das sociedades agrárias, o tempo, mesmo naturalizado, afirmava aos indivíduos a possibilidade real de um tempo histórico vivido. Com a produção industrial, o tempo torna-se irreversível, uma vez que esse tempo socialmente vivido é eliminado. Na passagem histórica das sociedades de tempo cíclico para as sociedades de tempo irreversível, formou-se a consciência histórica. Mas esta consciência tende à eliminação com a disseminação do tempo das mercadorias na vida social. A historicidade das sociabilidades passou a ser mediada pela historicidade das coisas- mercadorias. Dessa maneira, o tempo só se diferencia pela quantidade das coisas: o tempo como valor de troca. Este é o “tempo-espacializado” (p.97), não humano, o tempo reificado. O tempo das coisas reconstituiu o caráter cíclico no cotidiano, a mercadoria naturalizou os homens. O novo “tempo-cíclico”, no cotidiano, realiza-se no tempo mercadoria dos “atos- mercadoria” (p.98), como o consumo: o dia de trabalho, o dia de descanso, as férias (que inclusive passaram a ser vendidas). O tempo no cotidiano do capitalismo crescentemente perdeu o seu valor de uso, tornando-se efetivamente valor de troca e, nesse momento, o tempo irreversível dos acontecimentos é comandado pelo espetáculo; os homens, no cotidiano, podem apenas contemplá- 22 lo, mas nunca vivê-lo, efetivamente. No cotidiano do viver capitalista, não existem mais acontecimentos, deixa de existir a irreversibilidade do tempo para o existir do falso-acontecimento do espetáculo. No cotidiano da reificação, não há história, mas o tempo cíclico das pseudo-necessidades, impostas pelo espetáculo: o carro novo, o computador de última geração etc. O tempo é matéria-prima de novas mercadorias. No tempo cíclico das pseudo-necessidades, a história deixa de existir. “O tempo pseudocíclico é o disfarce consumível do tempo-mercadoria da produção” (p.104). Com a globalização da economia capitalista, houve a unificação mundial do tempo, irreversível. Cria-se assim a história universal, ela torna-se uma realidade, uma vez que o mundo inteiro está reunido sob o desenvolvimento desse tempo: “o tempo da produção econômica, recortado em fragmentos abstratos iguais, se manifesta por todo o planeta como o mesmo dia.” (p.101), e esse momento de tempo unificado é o do mercado mundial, é o tempo unificado do espetáculo. Em 1967, Debord não só apresentava um diagnóstico de uma lucidez extraordinária, e que ainda é tão atual, como também, derivou as consequências desse diagnóstico; ao apresentar a lógica imperialista no mundo, anunciou a fragilidade das lutas promovidas pela esquerda mundial. Na crítica a quase todos os programas da agenda revolucionária, que lhe era contemporânea, Debord definia a revolução como o ato que haveria de reivindicar o viver do tempo histórico, e isso só seria possível na revolução da vida cotidiana. Quando Debord dissolveu a Internacional Situacionista em 1972, o fez para cumprir a regra que modelava o movimento. Naquela ocasião, compreendeu que o próprio movimento começava a requerer a liderança máxima, que nunca se quis como liderança, então para manter-se fiel aos seus propósitos ele mesmo a dissolveu. Mesmo depois da dissolução o situacionismo continuou sendo influente. Hoje, é inquestionavelmente uma referência clássica do marxismo contemporâneo e uma expressão da crítica que se faz ao universo espetacularizado da sociedade contemporânea. Com o desenvolvimento do capitalismo tardio podemos observar a intensificação dos efeitos da crise gerada pelo projeto da modernidade. A falta de referenciais sólidos, o fim das utopias, essa nova apreensão do tempo, somados a toda a demanda imposta pela sociedade de consumo, estimulou uma busca desesperada por soluções aliviadoras e imediatas, aliás, essa tem sido considerada uma das principais causas da psicanálise estar sendo questionada quanto a sua eficácia. 23 Seguindo, então, a proposta freudiana de pensarmos o sujeito e a cultura como entrelaçados, no próximo capítulo, partiremos para a análise mais aprofundada do que é a clínica psicanalítica na contemporaneidade e que questões ela nos impõe. 24 Capítulo 2. A psicanálise na contemporaneidade 2.1. Pela defesa da psicanálise Para nos auxiliar com as questões que a clínica na contemporaneidade tem nos colocado, recorremos a autores do campo da psicanálise, que têm se dedicado ao estudo do tema. Dentre eles alguns consideram as patologias referidas, efeitos de uma nova forma de subjetivação, outros as pensam como uma (re)significação, ou atualização das mesmas formas de subjetivação já conhecidas e tratadas pela psicanálise. Porém, de uma maneira ou de outra, todos as relacionam aos fenômenos econômicos, culturais, sociais e políticos da contemporaneidade. A sociedade democrática moderna, em seu desenvolvimento atual, em nome da globalização e do sucesso econômico, quer abolir de seu horizonte os conflitos sociais, o infortúnio, a morte e a violência. Como já vimos no primeiro capítulo desta dissertação, em contrapartida aos primórdios da modernidade, quando os eixos constitutivos da formação subjetiva se baseavam na interioridade e na reflexão sobre si mesmo, hoje se baseiam no autocentramento e na exterioridade. O imperativo é o consumo, o sujeito é convocado, pela sociedade, como consumidor, seja de produtos, drogas, remédios, terapias, religião ou qualquer coisa que lhes reforce o narcisismo e os afaste do desejo, pois assim, o consumo torna-se sem fim. Em seu livro - Por que a psicanálise? Roudinesco (2000) defende a pertinência da psicanálise na atualidade, opondo-se às propostas da farmacologia e outras terapêuticas,que argumentam não haver mais nem tempo nem espaço para a prática psicanalítica na contemporaneidade. Esta autora diz que a morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade de cada um. Acredita que essas questões permanecerão sempre presentes apesar das diversas tentativas do projeto da modernidade para excluí-las. Diz ainda que a psicanálise tem sido fundamental para que a civilização avance sobre a barbárie, uma vez que resgata a idéia de que o homem é livre por sua fala, e que não se restringe nem é determinado por sua biologia. Dessa maneira, vislumbra um lugar para a psicanálise, no futuro: dar continuidade ao trabalho psicanalítico e “lutar contra as pretensões obscurantistas que almejam reduzir o pensamento a um neurônio ou confundir o desejo com uma secreção química” (p.9). A autora observa que o sofrimento psíquico, na atualidade, tende a manifestar-se como depressão, significante empregado para representar a mistura de apatia e tristeza que acomete, 25 cada vez mais, um número maior de indivíduos que não conseguem nem se dar o tempo de se interrogar sobre as origens de seu sofrimento. Deduz que a “era da subjetividade” está sendo substituída pela “era da individualidade” (p.14), que quanto mais a sociedade enuncia a igualdade e unificação, mais acentua as diferenças no sentido da exclusão. No âmago dessa proposta, cada um reivindica sua singularidade, mas sem querer identificar-se com as referências da universalidade já dadas como ultrapassadas. Dessa maneira, os indivíduos do mundo contemporâneo criam para si mesmos “a ilusão de uma liberdade sem limites, de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem história, o homem de hoje transformou- se no contrário de um sujeito” (p.14). Dentro de uma lógica de normatização, ou seja, de adequação dos indivíduos a padronizações impostas pela sociedade, o homem contemporâneo recorre à medicina e a propostas de terapias, que julga serem mais apropriadas ao reconhecimento de sua identidade. Esta é a causa, segundo a autora, para o crescimento tanto de práticas místicas e religiosas, quanto do cientificismo que valoriza o “homem-máquina” (p.15) em detrimento do homem desejante. Acrescenta ainda, que não se trata de mudança de estrutura e sim de uma mudança de paradigma, ou seja, “o contexto do pensamento, o conjunto das representações ou o modelo específico, que são próprios de uma época” (p.17). Entende que toda revolução científica é traduzida numa mudança desse porte, porém, afirma que nos campos da medicina, psiquiatria e psicanálise, um modelo novo não exclui o precedente, o inclui, atribuindo-lhe significação nova. Neste sentido, considera que a histeria não deixou de existir e hoje “é cada vez mais, vivida e tratada como uma depressão” (p.17). Afirma ainda que tal mudança de paradigma não é sem intenções, essa substituição vem junto a uma valorização dos processos psicológicos que têm como objetivo a normalização, em detrimento das formas de exploração do inconsciente. Desse modo, a depressão não é considerada neurose, psicose ou melancolia, e sim, uma entidade nova que remete a um estado de fadiga, déficit ou enfraquecimento da personalidade: Em outras palavras, a concepção freudiana de um sujeito do inconsciente, consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte e pela proibição, foi substituída pela concepção mais psicológica de um indivíduo depressivo, que foge de seu inconsciente e está preocupado em retirar de si a essência de todo conflito (Roudinesco, 2000, p.19). 26 Além da depressão, a toxicomania também invade a sociedade contemporânea, não sem razão. Para Roudinesco, o toxicômano é outro exemplo paradigmático do indivíduo contemporâneo, símbolo do “anti-sujeito” (p.20), já que, uma vez condenado ao esgotamento pela falta de uma perspectiva revolucionária, recorre à droga ou à religiosidade ou ainda ao culto de um corpo perfeito como via para atingir o ideal de uma felicidade impossível. Em Sobre ética e psicanálise Kehl (2005), assim como Roudinesco (2000), considera a depressão, no final do século XX, como sintoma predominante do sofrimento psíquico. Kehl atribui este fato ao investimento da sociedade contemporânea em tentar eliminar todo o mal- estar, assim como toda a angústia de viver, através de terapias exclusivamente medicamentosas, comportamentais, ou de técnicas de auto-ajuda ou ainda, através de novas formas de espiritualidade - uma espiritualidade que visa resultados práticos e materialistas - que partem do pressuposto de que o sujeito pode se livrar dos incômodos produzidos pelo inconsciente e se tornar um indivíduo pragmático, feliz, adaptado às expectativas transmitidas pela cultura do individualismo e do narcisismo: O homem contemporâneo quer ser despojado não apenas da angústia de viver, mas também da responsabilidade de arcar com ela; quer delegar à competência médica e às intervenções químicas a questão fundamental dos destinos das pulsões; quer, enfim, eliminar a inquietação que o habita em vez de indagar seu sentido. Mas não percebe que é por isso mesmo que a vida lhe parece cada vez mais vazia, mais insignificante (Kehl, 2005, p.8). O sintoma da depressão denuncia que o sentido da vida não lhe é intrínseco, uma vez que tem como aspecto principal a perda de significado da existência. O homem está sempre tentando atribuir sentido à vida, à morte, ao sexo, ao desconhecido, mas esta produção de sentido não é individual – “seu alcance simbólico reside justamente no fato de ser coletiva, e seus efeitos, inscritos na cultura” (p.9). Essa autora conduz sua análise pelo viés das modificações causadas pelo projeto da modernidade e os efeitos do capitalismo tardio sobre ele. Afirma que enquanto os antigos tinham um “fundamento ético” (p.9), pelo qual se pautar, na modernidade o sentido da vida não podia mais ser ditado por uma verdade transcendental precedente à existência individual. Porém, a tarefa de dar sentido à vida é da cultura, uma tarefa simbólica, que se constitui através das narrativas e discursos sobre o que é, ou deve ser. Constata assim que, nas últimas décadas, houve um empobrecimento dos discursos dominantes, atribuído à prevalência das razões de mercado em detrimento das filosóficas, 27 anteriormente, mais valorizadas. Compreende que enquanto razões filosóficas e religiosas, e grandes utopias políticas, apontam sempre na direção de uma transformação do sujeito ou do mundo que ele habita, ou ainda, para alguma forma de gozo que não fique reduzida ao prazer corporal (como exemplo, a contemplação para os antigos, o êxtase para os místicos e o sublime para os românticos), as razões de mercado se consomem em si mesmas. Ou seja, sua satisfação não remete a nada além da fruição presente do objeto: As razões de mercado só nos oferecem a repetição de sua própria trivialidade, revestida das aparências de um ‘saber viver’ que só funciona se conseguimos reduzir a vida à sua dimensão mais achatada: o circuito da satisfação de necessidades (Kehl, 2005, p.10-11). Dentro da lógica de mercado, os objetos são objetos fetiche, uma vez que, ao invés de apontar para a falta, e consequentemente animar o desejo, são objetos oferecidos para saciar necessidades também criadas pelo mercado. Deste modo: [...] os discursos que organizam as razões de mercado consistem em cadeias metafóricas muito pobres, muito curtas, que vão do objeto ao sujeito (e não ao contrário) e se encerram quando promovem a ilusão de um encontro entre os dois (Kehl, 2005, p.11). Para a autora, todo esse quadro configura uma “crise ética” (p.12), dividida em duas vertentes: a dificuldade do reconhecimento da lei, e a desmoralização do código.A primeira diz respeito aos impasses criados pelo imperativo do gozo - mandamento contemporâneo - em reconhecer a lei da castração, ou a dívida simbólica: que é o preço que pagamos pela condição humana, ou seja, por sermos marcados pela linguagem e pela vida em sociedade, a relação intrínseca entre indivíduo e cultura, explanada no primeiro capítulo desta dissertação. Afirma, ainda, que as sociedades modernas, por terem feito de seus ideais liberdade, autonomia individual e valorização narcísica do indivíduo, criou novos modos de alienação, orientados para o gozo e consumo imediatos, agravados, nas últimas décadas do século XX, com o declínio da era industrial e ascensão da indústria virtual e da informática, e junto à enorme produção de bens supérfluos, serviços e lazer. Kehl, assim como os outros autores estudados, também ressalta como consequência disto uma falta de historicidade do sujeito; em suas palavras: Cada geração se constitui pelo rompimento com o que ainda teria restado de ‘tradição’ para as gerações anteriores. Cada indivíduo se crê pai de si mesmo, sem dívida nem compromisso com os antepassados, incapaz de 28 reconhecer o peso do laço com os semelhantes, vivos e mortos, na sustentação de sua posição subjetiva (Kehl, 2005, p.13-14). Desta maneira, a sustentação da lei pela cultura sofre grande enfraquecimento, e ao mesmo tempo, a dívida simbólica permanece. Ou seja, o gozo pleno é impossível e a origem da lei não se inscreve na história individual, a linguagem precede o sujeito, as estruturas de parentesco, ainda que formalizadas de maneiras bastante diversas das de outras épocas, determinam o pertencimento simbólico a um lugar: “[...] os desejos e fantasias de nossos pais emprestam significados à nossa existência muito antes do nosso nascimento. Esses são os fundamentos do inconsciente como discurso do Outro [...]” (p 15). Por isso, o efeito do imperativo do gozo da sociedade contemporânea é o de dificultar o reconhecimento da lei por faltar uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade do gozo. A outra vertente da crise da ética trabalhada por Kehl (2005) diz respeito à falência do código que regeu por dois séculos a vida burguesa, e submeteu outras classes sociais aos seus valores e ideais. Ressalta que desde a época de Freud, já se observava a decadência desses valores, mas nada comparado à indiferença com que as regras do convívio social são tratadas atualmente. A causa dessa desmoralização do código burguês se deu pela própria contradição entre ele e o individualismo, que sustenta imaginariamente os sujeitos na sociedade de consumo. Como no exemplo citado pela autora, do conhecido refrão: “é proibido proibir” (p.18), pichado nos muros de Paris, há mais de trinta anos, e que hoje pode ser lido como a bandeira da juventude consumista, encampada pela publicidade que os convoca a ir além de todos os limites. Ao contrário da lei, o código tem uma origem e depende de sua divulgação para se tornar consensual, dispensando então razões e explicações. O que demonstra sua vigência máxima é quando o código dispensa a explicação sobre seu motivo, sua causa. Quando se questiona o seu porquê, isto indica que sua sustentação simbólica já se esfacelou. Em resumo, Kehl (2005) deduz que os impasses apresentados pelos indivíduos na contemporaneidade têm como ponto central o que denominou: crise ética. Tal crise é fruto dos rumos que o projeto da modernidade tomou e das contraposições inerentes a ele mesmo. No que diz respeito às patologias cada vez mais frequentes na contemporaneidade, Kehl está de acordo com Roudinesco (2000), as concebendo como uma nova versão da neurose. Porém, adverte sobre a necessidade de uma construção ética para a contemporaneidade. Quanto a esta construção, destaca a psicanálise como contribuição 29 fundamental, uma vez que a psicanálise propõe um valor que toma como essencial para a humanidade - a alteridade: Para além do que a clínica psicanalítica pode propor como uma ética na condução da cura dos analisandos, o corpo teórico da psicanálise tem condições de sustentar, [...] que a aceitação do outro em sua semelhança na diferença é condição essencial para se construir alguma proposta ética para os tempos atuais (Kehl, 2005, p.192). 2.2. A contemporaneidade como desafio à psicanálise O interesse dos sujeitos por psicoterapias breves e tratamentos biológicos, o ressurgimento de uma necessidade de crenças salvadoras no campo da religião, a procura do alívio imediato, oferecido pelos psicofármacos, e pelo êxtase das drogas, são pontos também destacados por Birman (1999). Diz ainda, que tudo isso é acompanhado de um desinteresse, também crescente, pelo tratamento psicanalítico. Porém, este autor se distingue dos demais por estar dentre os que consideram a mudança de paradigma uma transformação radical capaz de produzir novas subjetividades. Para ele, no quadro contemporâneo configura-se uma crise da psicanálise, na qual o que está em questão é a articulação entre os fundamentos da cultura atual e os fundamentos da psicanálise. Para este autor, a doutrina freudiana não é capaz de interpretar totalmente a situação histórica e antropológica. Mas acredita ser possível construir uma via que proporcione um resgate da psicanálise, posicionando-a face às problemáticas colocadas pela atualidade para os indivíduos, e através de reformulações de conceituação. Em outro livro seu: Arquivos do mal-estar e da resistência, Birman (2006) dá prosseguimento à sua análise. O autor destaca a categoria de desamparo na obra de Freud como estrutural e estruturante na construção da subjetividade. Considera que há uma intensificação do desamparo na atualidade que ele associa à humilhação imposta à figura do pai inerente ao projeto da modernidade. O autor atribui a esse contexto as condições do surgimento da própria psicanálise, que visa não só apontar os efeitos desta desordenação simbólica, como também uma reorientação do sujeito em direção ao pai. Como vimos, Lacan já havia demarcado o declínio da função paterna ao contextualizar o surgimento da psicanálise, fato que parece ter sido ignorado pelo autor. Birman (2006) presume que essa humilhação do pai colocou os sujeitos contemporâneos em uma condição extrema de desamparo e, por isso, pode-se constatar o surgimento de novas subjetividades - que seriam um efeito dessa condição de maior 30 desamparo. Sua hipótese é a de que a psicanálise foi surpreendida por essas transformações e ainda não sabe lidar com o que existe de inédito. O autor defende que, no lugar das “antigas modalidades de sofrimento” (Birman, 2006, p.174), centradas no conflito psíquico, o mal-estar na atualidade se evidencia em três registros: do corpo, da ação e do sentimento. Essas novas formas de subjetivação são consequências de um excesso, que habita o fundamento do mal-estar contemporâneo. Num esforço para evitar a angústia resultante deste excesso, o sujeito contemporâneo cria saídas patológicas que servem como descarga pulsional. Aponta ainda outra característica, que entende como significativa e presente na atualidade – “a ausência do registro do pensamento” (p.189). Não concordamos com estas proposições. Parece-nos que com isso Birman apresenta leitura mais drástica dessa fragilidade da função simbólica, considerada como característica presente na atualidade, por diversos autores abordados nesta pesquisa. Utiliza a ausência do pensamento como argumentação para defender o surgimento de novas subjetividades, o que tem como decorrência a necessidade de reformular a psicanálise. Para Birman (2006), tanto o desamparo quanto o excesso são efeitos da derrocada do poder do patriarcado. Sendo assim, considera necessário superar o valoratribuído ao falo como signo da tradição patriarcal para que se possa iniciar um novo começo “pós-patriarcal” (p.300). Como se já não bastasse, o autor insiste: faz uma crítica aos primeiros textos de Freud, e a Lacan, afirmando que ambos teriam assumido uma posição “falocêntrica” (p.302). Diz que Lacan radicalizou esta posição com o destaque dado ao Nome-do-Pai e que para ele, a teorização lacaniana representa, e ao mesmo tempo, reforça, a “[...] superioridade hierárquica da figura do homem em relação à da mulher. Em decorrência disso, Lacan pôde enunciar incisivamente que a mulher não existe e, de forma correlata, que não existiria relação sexual.” (p.303). Afirma ainda que somente no final de sua obra, Freud se redimiu ao deslocar a feminilidade para a origem. Segundo nosso entendimento, o autor comete graves equívocos em sua leitura dessas obras. O que nos parece que Freud, através da psicanálise, inaugurou, foi justamente um campo de saber onde, na medida em que novas conceituações ou posicionamentos surgiam, os precedentes não eram extintos ou abandonados, e sim, reintroduzidos. Por exemplo, quando Freud conceituou a pulsão de morte e reformulou a teoria das pulsões, seus textos anteriores não perderam valor, nos revelam a presença muda, a música silenciosa de Tânatos desde a origem da psicanálise. 31 A feminilidade originária põe em evidência que a psicanálise não toma uma posição falocêntrica nem patriarcal: homens e mulheres são construídos pela lógica fálica e o outro sexo é a feminilidade originária. Lacan ressaltou isto na obra freudiana, através do desenvolvimento do conceito de gozo. A inexistência d’A Mulher, assim como a impossibilidade da relação sexual dizem respeito, justamente, ao campo para além do falo demarcado e conceituado por Lacan em seu ensino. Parece-nos faltar ainda, para o autor, a distinção marcada por Kehl (2005) entre o pai do patriarcado e o pai simbólico da lei, já que é a direção a este pai simbólico que a psicanálise propõe. 2.3 Fenômenos psíquicos da atualidade Em Psychanalyse et politique, Sauret (2005) elege uma forma de abordar psicanálise e política: promover a análise das relações entre sintoma e campo social, do mesmo modo que encontramos nos textos freudianos sobre psicanálise e cultura e na teoria lacaniana acerca do laço social. Em seu entendimento, a psicanálise permite revisitar qualquer uma das questões que se coloque na sociedade, pois possui recursos de doutrina, de onde o campo social pode tirar proveito. O autor inicia sua análise, a partir do estabelecido por Freud: a função paterna marca a passagem do estado de animalidade para o de humanidade, garantindo a lei que interdita o incesto. Esta lei permite ao sujeito assegurar-se dos fundamentos de sua relação com a linguagem e com o gozo, sem os quais não existiria sociedade. O acesso à humanidade não é algo que está por ser feito e, portanto, aquele que se inscreve no laço social deve pagar sua cota de gozo à sociedade. Por conseguinte, o efeito da renúncia ao sexual, ao gozo, é a neurose, sequela da dessexualização que fundamenta a origem do sujeito. A partir desses pressupostos, a psicanálise se estabeleceu como prática de tratamento e teoria da neurose. Mas, não é todo gozo que passa à castração, portanto, sublinha Sauret, a entrada no laço social produz um resto, um além do princípio de prazer. É este resto de gozo, ineliminável, que o sintoma fixa. Dessa maneira, o neurótico encontra-se situado entre a relação sintomática com o sexual e com o social, e ao mesmo tempo, o caráter singular do gozo de seu sintoma fere esse mesmo laço social, fazendo objeção a ele. Toda essa elaboração, feita por Freud, foi renovada por Lacan. Ao destacar o Complexo de Édipo como estrutural, através da operação da metáfora paterna, introduz o significante do Nome-do-Pai como aquele que promove um ideal de renúncia ao gozo e opera no sentido da inclusão do sujeito em uma realidade dessexualizada. Qualquer que seja o ideal 32 proposto, ele se apresenta como um significante mestre, destacado como o significante que polariza um saber do exterior, que ordena aquilo que se apresenta em um discurso, presidindo sua lógica interna e ditando seu lugar aos sujeitos que o tomam. Por advir do exterior, o S1 é arbitrário. Ele toma como exemplo os significantes macho e fêmea, que inseridos num discurso teriam como S1, a biologia. O Nome-do-Pai, como significante mestre, ordena o sacrifício do gozo, cultivando as neuroses, uma vez que já trazem incluídos em seus sintomas, a necessidade e o meio de reiterar o laço social. O autor ressalta que o tratamento psicanalítico conduz o sujeito ao ponto de descoberta do que é irredutível aos outros, seus semelhantes, confirma, ou cria, uma via singular para instalar-se, renovando-se no laço social. Do que depreende que essa dimensão do social é indissociável do fim da análise. Sauret (2005) levanta uma questão sobre a perenidade da psicanálise, será que cem anos depois de sua invenção ainda é possível sustentar, com Freud, o caráter revolucionário da psicanálise? O autor responde que para pensar a contemporaneidade à luz da psicanálise, é preciso incluir elementos do ensino lacaniano, que não são homogêneos nem ao laço social, que funciona sob a ordenação simbólica, nem à neurose. Entende que existe uma homogeneidade de estrutura entre o laço social contemporâneo e a psicose. Ambos se referem a um gozo “deslocado” (p.13), à foraclusão da castração, e a uma tentativa imaginária de regulação. Porém, enfatiza que isso não significa que os sujeitos contemporâneos sejam psicóticos, e acrescenta que há, na sociedade atual, uma série de sujeitos não psicóticos que encontraram nessa rejeição do sexual um meio de se “desembaraçar das barras do sexual” (p.13). Coloca ainda que Freud percebeu que os neuróticos não adotavam uma solução religiosa que os dispensasse da neurose ou de criar para si mesmos uma resolução individual. Desse modo, chamou atenção para o protesto sintomático do neurótico contra a possibilidade de ser reduzido a um elemento do saber religioso. Nesse sentido, Freud afirmou que a neurose constituía um progresso sobre a religião. Mas, quanto às configurações presentes na sociedade atual, o autor diz que a situação parece ser muito diferente. O pensamento único, a ideologia dominante, é compatível com uma “desaparição das neuroses” (p.17). As patologias preponderantes, na atualidade, são feitas de localização, de acumulação, de proteção dos gozos particulares de cada um. Então, “[...] a sociedade, doravante, longe de exigir mais sacrifício, reivindica a presença como outros signos de riqueza: psicossomatização generalizada, toxicomania, e adições diversas, de um lado, e depressão, anorexia e bulimia, de outro” (p.17). 33 Além dessas manifestações clínicas, o autor aponta alguns outros destinos contemporâneos como um retorno ao religioso pela via das ideologias sectárias, racistas e integralistas, correspondente à tentativa de erigir um pai na desmesura do gozo, um Pai da Horda. Esforço para não deixar nenhum espaço de incerteza no lugar da lei, que é acompanhado por um aumento, sem precedentes, de atos e afazeres que colocam em causa, os políticos: Não está aí a marca da desaparição de uma das consequências do parricídio freudiano: a culpabilidade? Em seu lugar cinismo, indiferença, busca desenfreada de gozo, solipsismo. E a necessidade de retornar à velha ideologia racista para traçar os novos limites da comunidade: abandono do laço social pela horda primitiva! (Sauret, 2005, p.15)7. Isso não significa, diz o autor, que violência, racismo e exclusão não tenham existido antes. Contudo, hoje se inscrevem em outra lógica, a serviço desse novo laço social – o capitalismo-que lhe confere novo vigor. Porém, ao mesmo tempo, para Sauret, a existência de poetas, escritores, certos filósofos, e da própria psicanálise, prova que o discurso capitalista não é o único. Sauret (2005) defende a idéia de que a psicanálise se faz necessária, nesse contexto, pelo diagnóstico que apenas ela porta. O inconsciente, o caráter intelectual da sexualidade, o falo e a castração, o lugar do pai, a função do sintoma, a pulsão, o tratamento da neurose pelos meios da transferência e da interpretação, são conceitos e noções que o autor destaca como determinantes e que não existiriam sem Freud: “Após a invenção da psicanálise o mundo mudou” (p.65). E com ela, pode continuar mudando. Assim como Sauret (2005), Recalcati (2004b) nos oferece uma leitura da situação contemporânea à luz do ensino de Lacan. Entretanto, enquanto o primeiro dá ênfase ao campo social, para o segundo a clínica é preeminente. Em seu artigo intitulado: “A questão preliminar na época do Outro que não existe”, Recalcati (2004b) se debruça sobre questões em torno do atendimento psicanalítico, expondo teorizações sobre os denominados “novos sintomas” (p.1). Segundo o autor, hoje, há uma promoção do “sujeito-gadget” (p.1). Ou seja, o sujeito é chamado ao lugar de consumidor dentro da lei atual do mercado, que não o 7 “N’est-ce pás la marque de la disparition d’une des conséquences Du parricide freudien: la culpabilité?À la place, cynisme, indifférence, quête effrénée de jouissance, solipsisme. Et la nécessité de revenir à la vieille idéologie raciste du bouc émissaire pour tracer les nouvelle limites de la communauté: abandon du lien social pour la horde primitive!” (tradução livre da autora). 34 particulariza. Ela valoriza apenas a necessidade de produção de novos objetos, oferecidos como solução imediata para a falta-a-ser que habita o sujeito. Essa configuração associada ao discurso da ciência – promoção do saber especialista como solução pragmática do problema da verdade – realiza uma expulsão-anulação do sujeito do inconsciente. Para Recalcati (2004b), os “novos sintomas” são um efeito desta expulsão “[...] sendo produtos específicos do discurso capitalista em seu enredamento espectral com o discurso da ciência” (p.1). As toxicomanias, depressão, anorexia e bulimia, são incluídas, por esse autor, na nomenclatura de “novos sintomas”. Lacan (1966) sistematiza suas reflexões sobre o enlace entre a ciência positivista e a psicanálise, ao demonstrar que o sujeito da psicanálise é o mesmo sujeito da ciência. Na era clássica, o cartesianismo fundou o método científico da modernidade. Com a criação de sua conhecida reflexão “Cogito, ergo sum” (Penso, logo sou, 1619) Descartes permitiu emergir uma linguagem conceitual na qual objetos antes inapreensíveis passaram a ter existência. Assim, criou a possibilidade de fazer existir o sujeito como objeto do pensamento, distinto da imagem deste sujeito e distinto do real. Nesse sentido, Lacan afirmou que a psicanálise nasce da ciência por lidar com o sujeito como objeto do pensamento. Porém, enquanto a ciência quer se dedicar, exclusivamente, ao que é possível pensar, dizer e conceituar, a psicanálise, além de trazer à luz o que o saber científico tenta ocultar, se dedica, também, ao sujeito como vazio de significantes, ao impossível de pensar, de dizer, ao real do sujeito, que é justamente o que a ciência exclui. Podemos, então, referir a psicanálise à metodologia cartesiana por inserir-se nos mesmos fundamentos da ciência moderna. E tomar a disciplina fundada por Freud, assim como ele sempre o fez, como método de investigação, mas um método que tem como único intuito resgatar aquilo que a ciência, propriamente dita, exclui de seu âmbito: o sujeito. É neste ponto, justamente, que a psicanálise funciona como contribuição à ciência, na direção de fazer aparecer o sujeito aonde ele parecia estar excluído. Diante disso, Recalcati (2004b) sublinha que há uma “questão preliminar” (p.1) a ser pensada para que a psicanálise possa fazer resistência a esta expulsão-anulação do sujeito do inconsciente. Não que o autor destitua a existência do sujeito do inconsciente ou que suponha que não se possa mais considerar o inconsciente freudiano ao tratarmos do sujeito contemporâneo. Mas, sim, que o sujeito não é um dado de fato, há condições que propiciam ou não sua existência. Seu ponto de vista é o de que a cultura promovida pela sociedade de consumo, na medida em que tenta extinguir de seu horizonte os conflitos, caminha em uma 35 direção contrária ao sujeito dividido: Se realmente, na época de Freud, o inconsciente era o inaudito, o escandaloso, a peste, hoje parece confinado aos territórios arcaicos da superstição. Em outras palavras, a resistência social ao sujeito do inconsciente não assume mais a forma – descrita no tempo de Freud – da refutação escandalizada, mas a de um ceticismo desencantado. Enquanto, de fato, a histeria freudiana celebrava a verdade do sujeito do inconsciente, os novos sintomas negam cinicamente sua existência. Um programa de psicanálise aplicada ao social se impõe: como introduzir novos significantes para continuar a fazer existir o sujeito do inconsciente? (Recalcati, 2004b, p.2). Partindo desta questão, o autor propõe primeiramente um programa de aplicação da psicanálise no campo social como intervenção além da dimensão terapêutica. Especialmente em uma época em que constatamos o predomínio das psicoterapias de orientação cognitivo- comportamental, que impõem um conceito de efeito terapêutico, totalmente adaptativo, reduzido à restauração das funções normais do sujeito. E, para a clínica, propõe um tratamento preliminar direcionado aos sujeitos que apresentam essas sintomatologias específicas. Para dar prosseguimento à sua proposta Recalcati evoca a teorização lacaniana acerca da questão preliminar. Inicialmente, Lacan se refere a esta questão no que diz respeito à clínica das psicoses, e depois a situa em relação à dialética do tratamento como tal. Nas psicoses, não há de fato recalque e como consequência, não há “realização simbólica do sujeito do inconsciente” (Recalcati, 2004b, p.2). O que ocorre é um retorno, diretamente no real, do que não pode ser simbolizado. Ao comparar a clínica das psicoses com a das neuroses, o autor ressalta que, no caso das neuroses, o real do gozo recebe um tratamento realizado pela operação da metáfora paterna, que tem como efeito a castração do gozo (do Outro) e que abre simbolicamente o lugar do sujeito. Já a clínica das psicoses se funda justamente sobre o fracasso desse tratamento preliminar do gozo ministrado pela operação simbólica, que gera a exigência de uma clínica que faça suplência a ele. Em outras palavras, é pela falência da função simbólica no nível da estrutura do sujeito, que Lacan reconhece a necessidade teórica e clínica de um tratamento preliminar no âmbito das psicoses. Nesse ponto, em conformidade com a análise também adotada por Sauret (2005), Recalcati (2004b) relaciona essa primeira direção da questão preliminar com as questões da clínica contemporânea: 36 É muito importante lembrar esta origem da questão preliminar em Lacan porque a clínica contemporânea confronta-se precisamente com a fraqueza estrutural e generalizada da metáfora paterna, com os efeitos – vários – do retorno do gozo no real que tornam irredutíveis os novos sintomas ao regime significante da equivalência sintoma = metáfora (Recalcati, 2004b, p.2). A respeito das entrevistas preliminares para além da clínica das psicoses, Recalcati ressalta a insistência de Lacan sobre a importância do exercício dessa prática. Esta insistência baseia-se no fato de o sujeito do inconsciente não
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