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Elementos para uma epistemologia da comunicação

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ELEMENTOS PARA UMA
EPISTEMOLOGIA DA COMUNICAÇÃO �
L. C. Martino
Universidade de Brasília
Ao longo do século XX o estudo da Comunicação se consolidou como um ponto de convergência de interesses diversos e de originalidade de nosso tempo. Trata-se de uma temática que toca a todos e que passa a ser discutida a partir da segunda metade do século XVIII, sob o impacto da emergência dos primeiros veículos de massa e tendo como palco as grandes transformações culturais (religião, sociedade, política, economia, técnica...). 
Entre o status de ciência constituída ou apenas como um campo de interseção de saberes diversos, o estatuto da Comunicação Social tem variado ao longo das décadas e dividido opiniões. Uma de suas características mais marcantes – e daí, talvez, sua sobrevivência para além do debate decisivo sobre sua definição teórica – é o forte apelo que suscita nos diferentes setores da atividade social e nos mais variados grupos de interesse: todos se indagam sobre o papel e o efeito dos meios de comunicação sobre a sociedade e o indivíduo. Em contraste, então, com outros saberes constituídos, sua entrada na cena intelectual não se deveu à consistência de sua fundamentação teórica, mas sim a uma forte demanda social. No entanto, este interesse generalizado não pode servir de aval para questões continuamente adiadas ou mal colocadas. Mais do que nunca, com o próprio apagar-se das luzes que animaram o século que testemunhou o pleno desenvolvimento da comunicação moderna, e que viu o nascimento de uma ciência da Comunicação, redobram-se os esforços e as tentativas de lançar os fundamentos dessa ciência. 
 Nosso trabalho aqui consiste em trazer alguns elementos para se pensar os fundamentos dessa ciência. E desde já é bom explicitar que tomamos este termo no que ele tem de problemático. Ao colocar a Comunicação como uma ciência nós não emitimos nenhum juízo de valor, nenhuma vantagem ou justificativa, ao contrário, é este estatuto mesmo que se torna problema. 
O interesse de se levar a cabo um tal empreendimento certamente ultrapassa o simples quadro do fortalecimento e da coerência desta disciplina. Discutir seus fundamentos significa poder refletir e reorientar (em permanência) nosso visão e nossa atuação na sociedade da informação. A notória importância que os processos comunicacionais aí encontram fazem com que muitos pesquisadores praticamente abandonem seus postos para assumir a militância de intervenções pouco autorizadas. E no entanto, mais do que nunca, tanto o Estado, como a sociedade organizada, passando pelas próprias apreensões individuais, esperam respostas mais precisas do que vem a ser afinal o “efeito” dos meios de comunicação e como se posicionar em relação as práticas comunicacionais abertas pelos novos dispositivos tecnológicos. 
O que certamente não pode ser realizado sem o estabelecimento dos fundamentos da Comunicação, pois são eles que fornecem a medida das limitações e da possibilidade desse conhecimento. 
Introdução
O primeiro desafio que enfrenta quem se aventura pelo campo da comunicação é o problema de sua definição. Pródigo em significações, o termo comunicação é um bom exemplo de polissemia. A princípio, ele é empregado para designar as relações entre homens mediadas pela palavra, gestos ou por imagens, mas o termo também se aplica às relações entre animais ou ainda entre máquinas. Acrescente-se também a esta lista certas relações da matéria com a matéria (transmissão de energia, código genético...) e a relação dos homens com os deuses (ou com Deus) e com os mortos. 
Dessa forma, a comunicação se diz: 
do homem, mas também do animal e da máquina; 
da relação entre duas pessoas, mas também da multidão e do monólogo solitário; 
da voz, mas também do gesto e da imagem 
dos canais sensoriais, mas também dos extra-sensorias 
da troca de idéias e opiniões, mas também do “diálogo de surdos” 
da novidade, mas também da redundância 
do ato, do processo, mas também de seu resultado 
das partes envolvidas, mas também da mensagem e do meio 
enfim, a comunicação se diz, 
das coisas, do pensamento das coisas e das que não são coisas nem pensamento 
É evidente que uma tal extensão e diversidade não podem caracterizar o campo de estudo de uma única disciplina. A carga semântica do termo, tal como o encontramos em uso pelo senso comum e em outras áreas de conhecimento, comporta um número demasiado grande de acepções, o que praticamente inviabiliza qualquer estudo que se sirva diretamente do termo comunicação sem antes proceder uma análise crítica. 
Do ponto de vista epistemológico, é simplesmente aterrorizador constatar a existência de trabalhos sobre os fundamentos da comunicação que acreditam poder dispensar este tipo de análise. Fórmulas matemáticas avançadas e equações químicas complexas convivem inocentemente ao lado de análises de processos psicológicos ou sociais sem que a menor consideração sobre as relações entre estes campos, e a diversidade dos saberes aí implicados, sejam colocadas. 
Polissemia
Comecemos, pois, nos ocupando dessa polissemia e me limitarei aqui apenas a apresentar alguns resultados de um outro estudo �.
A diversidade da comunicação faz com que o campo de estudo coincida, num primeiro momento, com o próprio estudo do Ser, o que nos leva a refletir sobre um campo de extensão máxima. Servindo-nos de uma taxionomia rudimentar – Seres Brutos, Seres Orgânicos e o Homem – podemos dizer que os fenômenos comunicativos concernem a todos estes macro domínios e que nossa primeira tarefa consiste em apontar os distintos sentidos do termo comunicação para em cada um deles. 
Pode-se dizer que é no âmbito do Reino dos Seres Brutos que a comunicação assume sua acepção mais geral, justamente aquela indicada em sua etimologia: comunicação é relação. Sentido que aliás atravessa todos os demais domínios, que não fazem outra coisa que complexificar esta fórmula original. 
Mas o que seria a comunicação nesta esfera dos Seres Brutos? Podemos avançar e precisar um pouco mais o sentido de comunicação para este domínio, indicando que o termo assume o sentido de “transmissão”. Por exemplo, as trocas de calor ou de forças podem ser usadas como sinônimo de comunicação: uma bola de bilhar comunica sua força a uma outra bola que reage conforme as “instruções” da primeira”. Todo sistema de troca de forças ou de energia podem ser descritos como processos comunicativos: emissor (1ª bola), receptor (2ª bola), mensagem (força/calor) e efeito (deslocamento/dilatação). Temos aí, por analogia, todos os elementos que tradicionalmente são utilizados na descrição do processo da comunicação humana. Por conseguinte, o mundo dos Seres Brutos poderia ser descrito como um grande diálogo a partir do agenciamento da matéria individualizada, ou da mecânica dos corpos físicos. Percebe-se que uma descrição a partir da óptica da Química não altera de forma significativa o sentido de comunicação aqui presente: trata-se de um tipo de “relação”, que podemos precisar como Ação/Reação. 
O domínio dos Seres Orgânicos, por sua vez, guarda os sentidos precedentes. Contudo, o ser vivo interpõe o organismo entre a ação e a reação, alterando assim a dinâmica do processo. Neste domínio, sob pena de perder de vista sua especificidade, as Reações não podem mais ser descritas como processos mecânicos, visto que o organismo, em sua idiossincrasia, seleciona as respostas. Isto é, retarda, adia, suprime e diversifica as respostas, de modo que, ao invés de uma relação binária ponto a ponto do esquema Ação/Reação, passa-se a uma gama de respostas possíveis. Por outro lado, a Ação de um ser vivo também deve ser analisada a partir de um processo seletivo muito mais complexo que o mecanicismo das relações inorgânicas. O organismo não reage a “qualquer coisa”, mas a aqueles estímulos que ele identifica enquanto tal. Por exemplo, a fêmea de uma certa espécie não constitui um estímulo sexual senão para o machocorrespondente e para nenhum outro. Um estímulo é uma entidade relativa, não existe no mundo, mas apenas para o indivíduo que interpreta. Em suma, a natureza mecânica dá lugar a processos que primam pela interpretação e pela seleção. A comunicação entre dois animais não é fundamentalmente diferente desta que ocorre entre o organismo e seu meio. 
O sentido de comunicação aqui presente guarda o sentido original de “relação”, como também aquele de Ação/Reação que expressava o sentido de comunicação para os seres inorgânicos, porém no caso dos Seres Vivos este sentido ainda pode e deve ser precisado como Estímulo-Organismo-Resposta (E–O–R), já que se trata de compreender o papel mediador que o organismo desempenha entre a Ação e a Reação, bem como a relatividade desses termos. Notar-se-á que a passagem de um macro domínio para outro não caracteriza uma ruptura, mas uma complexificação do sentido original do termo comunicação. 
Por fim, no que concerne ao domínio propriamente humano, a comunicação assume sua forma simbólica, que para além da descrição anterior implica na intervenção bastante complexa da cultura no processo seletivo. 
E quando passamos a falar de cultura, temos que estar atentos para o fato de estarmos trabalhando um conceito que já implica um processo de comunicação: a cultura implica a transmissão de um patrimônio através das gerações. Observação que também é válida no que diz respeito aos próprios elementos que se encontram em relação, pois a noção de homem é essencialmente da ordem do simbólico, em oposição a noção de “animal homem”, que remete para o organismo. Mas afirmar o homem como um ser simbólico é afirmar um ser que somente se deixa apreender nas relações que estabelece com seus semelhantes. Em outras palavras, o ser humano é um ser da comunicação: consigo (subjetividade) e com o mundo, ambos entendidos como o produto da comunicação com outrem, pois assim como a subjetividade não é um dado natural, as coisas não se apresentam ao ser humano de forma direta, mas são construídas graças à mediação do desejo, conhecimento e reconhecimento de outrem. 
Distintamente dos outros macro domínios, onde o termo comunicação exprime a relação entre elementos substantivados, não podemos representar os elementos que expressam a comunicação humana senão através de relações, ou mais exatamente, através de processos comunicativos. Tanto no domínio da matéria, como no domínio dos seres vivos, o termo comunicação designa a relação que se dá entre elementos que guardam uma certa substancialidade: trata-se de processos entre corpos materiais ou entre organismos: “coisas” as quais supõem-se terem um certo grau de realidade nelas mesmas. Já no caso humano nós não temos senão relações: a realidade contida nos elementos (indivíduos) é inseparável do produto da interação social. Nós representamos a comunicação neste domínio pelo esquema Cs X Cs (relação de consciências). Para este domínio, comunicar tem o sentido de tornar similar e simultânea as afecções presentes em duas ou mais consciências. Comunicar é simular a consciência de outrem, tornar comum (participar) um mesmo objeto mental (sensação, pensamento, desejo, afeto) �. 
Pois bem, vimos que a polissemia do termo comunicação pode ser expressa e analisada através de uma taxionomia. Esta revela um sentido particular para cada domínio, todos derivados de seu sentido geral de “pôr em relação”. Mas nosso interesse vai além de uma classificação, já que se trata aqui de delimitar o campo de estudos de uma área específica do conhecimento. Portanto, sem questionar a legitimidade do uso da palavra para os outros domínios, é evidente que apenas o sentido humano de comunicação pode servir aos propósitos que nos norteiam. 
Mesmo não havendo consenso em torno da questão do estatuto científico da Comunicação, se ela é ou não uma disciplina científica, esta restrição preliminar tem, pelo menos, o mérito de fazer com que nos entendamos sobre aquilo do qual estamos falando, usando o termo para falar de uma mesma coisa. 
Dessa forma, a definição de comunicação enquanto Ação/Reação pode servir a disciplinas como a Física, interessada na descrição de sistemas de relações cinéticas ou de forças mecânicas. A definição de comunicação enquanto E-O-R serve a ciências como a Psicologia behaviorista, a Etologia e todas aquelas interessadas na descrição do comportamento objetivo dos seres vivos. Entretanto, apesar de guardar o sentido que nos interessa, a definição de comunicação como relação de consciências (Cs X Cs ) se aplica ao campo da Filosofia e indistintamente ao das Ciências do Homem (Humanas e Sociais) como um todo. O que revela as limitações de uma tentativa de definição do campo e do objeto de estudo da disciplina Comunicação unicamente através de uma análise formal. 
 Cabe, então, empreendermos um segundo passo, procurando agora neste domínio específico das humanidades, encontrar o lugar da comunicação em relação aos outros saberes constituídos.
Interdisciplinaridade
Da questão inicial de uma polissemia, nosso problema se desloca então para a análise da possibilidade da Comunicação constituir um saber específico, ou se ao contrário, se trataria apenas de um campo atravessado por saberes diversos. 
Sob esta última forma, ela é vista como um “campo interdisciplinar”, o que impõe certas precisões. Na realidade, a questão da interdisciplinaridade parece dominada por dois usos diferentes, com conseqüências diretas para a determinação do estatuto da Comunicação: 
De um lado, emprega-se “interdisciplinaridade” como 1) o concurso de várias disciplinas científicas que se debruçam sobre uma “matéria” comum e empírica (objeto empírico); e de outra parte, o termo se refere à 2) constituição de uma disciplina com objeto de estudo singular a partir das contribuições de várias disciplinas.
Muitos pesquisadores adotam o primeiro sentido e empregam o termo “Ciências da comunicação”, no plural, e consideraram a Comunicação não como uma disciplina, mas como uma síntese de saberes diversos. Diante do estado em que se encontra a fundamentação da cientificidade da Comunicação, eles preferem adotar uma postura de prudência, certamente legítima e louvável sob muitos aspectos, mas talvez excessiva. 
Designar a Comunicação como “Ciências da comunicação” é apenas designar o conjunto dos saberes que tomam a comunicação como objeto (o que aliás pode ser uma tarefa árdua, visto a importância e a natureza constitutiva da comunicação em relação ao fenômeno humano em sua generalidade), mas não significa tomar a Comunicação como um saber. E afirmar que a Comunicação é um campo atravessado por saberes diversos é, no fundo, afirmar muito pouco. Tomemos, por exemplo, um objeto como “subjetividade”, ele pode constituir o objeto de uma ciência em particular (Psicologia), mas também pode ser abordado a partir de várias outras disciplinas (Sociologia, História, etc.). Isto apenas enuncia o truísmo que determinado fenômeno humano pode ser tratado sob prismas diferentes. E não poderia ser de outro modo, visto que nenhum fenômeno se encontra reservado a esta ou aquela disciplina. Definitivamente, não há “reserva de mercado” nos assuntos do intelecto, a identidade e a diversidade das disciplinas repousam no potencial de gerar uma interpretação irredutível a qualquer outra. Assim, se há uma “visão” econômica da globalização, bem certo nada impede também o desenvolvimento de uma abordagem tecnológica, sociológica... e assim por diante. Todo objeto empírico é passível de ser abordado por inúmeros pontos de vista, cada um tocando uma certa parcela da realidade (posição kantiana), ou, como quer a posição constructivista, construindo esta realidade enquanto realidade simbólica, que aliás, como sabemos, é a única que o homem tem acesso. Independentemente da posição que adotarmos, é importante salientar que o objeto empírico é uma construção tanto quanto o objeto teórico. Construção cultural que nos remete a um primeiro saber (senso comum) que serve de condição ou de base para o sabercientífico �, mas que a rigor não é de natureza diferente, mas de certo modo se opõe a este. 
O que realmente importa é que as ditas “Ciências da comunicação” não excluem a possibilidade de uma disciplina específica denominada Comunicação, e como já dissemos, no fundo esta fórmula não quer dizer quase nada, pois designar o conjunto dos saberes que se interessam pela comunicação é praticamente indicar o conjunto de todas as ciências do Homem, a Filosofia e algo mais, como aliás seria de se esperar em relação a uma matéria tão essencial ao fenômeno humano. 
Além disso, esta primeira acepção de interdisciplinaridade nos remete a disciplinas particulares frente a um objeto único, comum, e por isso mesmo interdisciplinar. Nesta acepção, afirmar a comunicação como um objeto interdisciplinar equivale a tomá-la enquanto processo empírico, da ordem dos “fatos”, e não como uma construção teórica, como requer o tratamento pela análise científica ou filosófica. A rigor significa apenas que vários saberes irão desenvolver objetos de estudo diferenciados sobre um “mesmo” fenômeno sem que nenhuma contribuição entre eles esteja implicada. A síntese, se é o caso de se falar de síntese, é realizada a posteriori, como cruzamento de resultados e conclusões. Portanto, este primeiro sentido de interdisciplinaridade diz respeito apenas à possibilidade de abordagens diferentes, mas não coloca o problema que nos interessa: saber se a comunicação pode corresponder a um saber particular sem se reduzir aos conhecimentos gerados a partir de outros saberes, ou seja, verificar se ela pode ser o objeto de uma disciplina particular. 
Já o segundo sentido, ao contrário, coloca o problema ao nível teórico, e reclama uma colaboração entre disciplinas. Ele se aplica à dependência mútua entre certos saberes específicos. A Geologia, por exemplo, se apoia nos saberes da Química e da Física, sem que por isso se veja impedida de sua autonomia (a Física em relação à Matemática, esta em relação Lingüística...). Trata-se da diferença entre um saber instrumental e um saber que é tomado como finalidade da pesquisa (saber meta), de sorte que o emprego das contribuições de um determinado saber na geração de um outro não significa necessariamente a redução imediata do segundo ao primeiro. Por conseguinte, o apoio que a disciplina Comunicação encontra em outros saberes (Psicologia, Sociologia...) não representa, por si só, argumento contra a autonomia dessa disciplina, ou a favor de um estatuto de “interdisciplina”, mas apenas indica a necessidade de uma formulação, precisa, do que viria a ser este saber meta no caso de uma disciplina Comunicação. 
A Comunicação frente a outras disciplinas
Questão que nos remete a um problema clássico dos estudos epistemológicos, o estabelecimento de um quadro da repartição dos saberes científicos. Freqüentemente vemos proposições alegando uma natureza interdisciplinar da Comunicação. No entanto, examine-se esta afirmação à luz destas questões: Qual disciplina das ciências humanas e sociais não é, ou não pode ser aplicado o título de interdisciplinar? Ou ainda: a qual delas não seria conveniente uma disposição interdisciplinar? Estas questões mostram como é pouco convincente a idéia de reivindicar para a disciplina Comunicação uma natureza diferente das outras que compõem o quadro das ciências do Homem. A interdisciplinaridade é uma realidade nas ciências do século XX, e se não for o caso de avançar o epíteto “interdisciplinar” como justificativa para a falta de organização dessa disciplina, talvez pouco conteúdo positivo reste a ser-lhe imputado. 
Por outro lado, na medida mesmo em que ele não desconhece nem nega a repartição dos saberes (em oposição ao termo transdisciplinaridade), o termo interdisciplinaridade pode ser útil para designar uma certa estratégia para recolocar o quadro da repartição dos saberes no contexto da dinâmica dos conhecimentos. A intenção é preencher as eventuais lacunas identificadas entre os grandes espaços disciplinares já consolidados. Ele também pode representar o esforço para efetuar a síntese entre as contribuições de duas disciplinas científicas, fundando assim um objeto intersticial, que poderá ou não gerar uma sub-disciplina (antropologia social, sociologia histórica, psicologia histórica, psicologia social, psicolingüistica, sociolingüística...). 
Talvez seja demasiado prematuro colocar a questão se a Comunicação é uma disciplina ou sub-disciplina, em um momento em que sua caracterização enquanto ciência não constitui um consenso. Cabe lembrar, no entanto, que saberes como a Lógica ou a Filosofia não perdem nada ao se colocarem fora do quadro de uma repartição dos saberes científicos, e ainda disciplinas como a Psicanálise ou a História vêem seu destino permanentemente oscilar entre as opiniões dos especialistas. Para todos os efeitos, e o leitor já deve ter antecipado, assumimos aqui o partido da Comunicação enquanto ciência, por entender que esta seria a melhor forma para desenvolver a problemática que nos propomos. Afinal o termo epistemologia se aplica com mais propriedade ao estudo de disciplinas científicas. Além da coerência, acredito que também seja a postura mais vantajosa, pois se sob o crivo da crítica ela não puder ser sustentada, ainda assim não seria inteiramente vão gerar elementos para situar a Comunicação em relação ao espaço científico, tal como fazem outros saberes já citados. 
Em todo caso – e fazendo o ponto da questão –, tanto os problemas suscitados pela discussão da polissemia, como aqueles relativos à natureza interdisciplinar da comunicação, passando pela questão de sua cientificidade, todos convergem para o problema da definição de um objeto de estudo relativo a um saber específico. Nosso problema reside então na possibilidade de poder apontar um objeto de estudo que não possa ser reduzido ao das disciplinas já existentes. 
A Comunicação como Disciplina Autônoma 
Em que medida a Comunicação constitui uma disciplina autônoma? Ou, em que consiste o objeto de estudo dessa disciplina? 
Dar resposta a estas questões equivale a mostrar como uma disciplina pode legitimamente reivindicar o estudo de processos comunicacionais de tal forma que não coincida com o objeto de nenhuma outra, e que por sua vez não fique ao nível da generalidade do objeto das ciências do Homem ou da Filosofia. 
Três vias abertas pela epistemologia contemporânea permitem considerar estas questões sob luzes diferentes. O problema da definição da disciplina Comunicação e de seu objeto podem ser então abordado: 1) através de uma resposta de tendência empírica, tomando como base a análise das instituições relacionadas à Comunicação; 2) através de uma definição lógico-formal de seu objeto de estudo; 3) ou ainda no tempo, isto é, através de uma análise diacrônica, procurando situar a gênese do campo dessa disciplina. 
Nós aqui apenas nos limitaremos a uma sumária apresentação dos dois primeiros paradigmas de análise, para nos dedicarmos a este último. Não que possamos dispensar as análises de tendência empírica ou as definições lógico-formais – no nosso entender, deixemos bem claro, elas devem (na medida do possível) formar um sistema. O problema é menos de criar oposições e exclusões recíprocas entre os diferentes modos de abordar a problemática que de encontrar um elemento de inteligibilidade, que no nosso entender, somente a análise da gênese do campo pode fornecer. 
Definição Empírica
Sob este nome, designamos as tentativas de definição da disciplina Comunicação que não partem de uma especulação sobre o sentido ideal do que viria a ser a Comunicação enquanto disciplina e seu objeto, mas que, ao contrário, procuram situá-la como o correlato de certas instituições de saber ligadas à pesquisa e ao ensino. Nossa pergunta fica então automaticamente respondida: a Comunicação é o produto da atividade dessas instituições e daqueles que aí trabalham. O que não deixa de ser uma resposta bastante coerente. As dificuldades, porém, ficam por conta dadiversidade das respostas concretas trazidas pelos levantamentos da realidade dessas instituições. Por exemplo, há escolas de Comunicação que tendem a se aproximar, e mesmo incorporar, temas tão heterogêneos como o Turismo ou as Artes. O que torna difícil a confrontação dos dados colhidos em diferentes instituições. Além disso, a própria diversidade das habilitações profissionais (no caso brasileiro: jornalismo, publicidade e propaganda, relações públicas, rádio e teledifusão, cinematografia, produção editorial) indica uma constelação de práticas sociais, ela mesma testemunha de importantes variações no sentido do termo comunicação, que embora estejam supostamente interligados de maneira mais ou menos coerente, dificilmente se deixam sintetizar em um conceito unívoco e que em todo caso resta pouco formalizada. 
Chamemos à atenção para o fato de que este tipo de definição não tem caráter normativo, não procura forjar um conceito de Comunicação que talhe a realidade segundo sua medida. O conceito aqui simplesmente indica a diversidade de uma realidade complexa, cujos sentidos são recolhidos junto ao entendimento que as instituições de conhecimento, socialmente reconhecidas, têm da Comunicação. Então, o significado da definição que nós chamamos aqui de empírica equivale ao reconhecimento que a comunidade acadêmico-científica tem de seu objeto, reconhecimento que se expressa ao nível das instituições. 
Este paradigma de análise pode enveredar, ou não, por uma pesquisa histórica da sucessão das instituições; ele pode propor, ou não, uma visão sintética ao esboçar um quadro para classificar seus resultados, todavia, o que há de mais significativo neste tipo de abordagem é o lastro que ela busca na realidade efetiva. Assim, toda a intenção de buscar uma inteligibilidade através do processo de transformação histórica dos entendimentos e instituições, bem como a redução da realidade a categorias de análise como tentativa de se buscar uma inteligibilidade “por detrás” da multiplicidade do visível, são inibidas em nome de um compromisso com aquilo que a pesquisa encontra como o “estado atual do campo” (identificado com a realidade das instituições). 
2. Definição Formal ou Ideal 
Por contraste com a anterior, sob este nome, designamos as iniciativas de definição da disciplina Comunicação que centram seus esforços sobre uma discussão lógico-formal de seu objeto, sem por isso pretender afirmar que este tipo de abordagem possa prescindir da investigação sobre a realidade do campo da Comunicação. Da mesma forma que a definição de inspiração empírica não pode deixar de introduzir uma inteligibilidade qualquer (classificação em categorias, por exemplo), a definição ideal não se debruça sobre o vazio. O que as definem não é uma oposição grosseira entre a realidade dos fatos e a introdução de uma inteligibilidade arbitrária, mas a prioridade que cada uma está pronto a conceder a um desses pólos, que, em última análise, são os marcos onde se desdobra a tensão que caracteriza todo trabalho científico. 
E é importante salientar que não é preciso ver aqui necessariamente uma contradição com a definição empírica. A busca de uma definição lógico-formal para o objeto da Comunicação pode complementar de duas maneiras distintas as definições empíricas. Primeiramente, servindo de interlocutor crítico. Nem a descrição mais fiel da realidade pode se abster de introduzir uma organização “teórica”, explícita ou implícita e que, no limite, coincide com a representação cultural e portanto simbólica do observador. Neste sentido, o que é indicado como a “realidade” não expressa senão o campo de estudo da comunicação tal como ele se apresenta a um observador naquele momento. Isto atinge diretamente as premissas em que se apoia o trabalho da definição empírica, porque mostra os limites da definição empírica: o resultado das observações gerados a partir desse paradigma não podem nos fornecer senão uma imagem do estado atual do campo, portanto um “corte” e um instantâneo sobre o que é na verdade uma realidade mutável. O entendimento que os comunicólogos têm de seu objeto de estudo, mesmo colhido “in loco” e respeitando fielmente a diversidade das opiniões, na medida mesmo em que é formulado e expresso, mascara as tensões e as incertezas, que estão na base do lento e por vezes invisível processo de formação e transformação a que se encontram sujeitos esses entendimentos. 
Por outro lado, a especulação, que é característica desse tipo de definição, permite explorar de maneira mais profunda o debate sobre o objeto de estudo da Comunicação, na medida em que gera modelos que servem de horizonte ou linha de fuga para o processo de transformação já indicado. A pesquisa empírica, por sua vez, além de fornecer dados que alimentam a reflexão, regula este trabalho reflexivo, ao impedir eventuais abusos que podem ocorrer com a atividade especulativa. 
Dessa forma vemos que estes dois tipos de paradigmas de definição acabam formando um certo sistema, ainda que normalmente, na prática, não é raro encontrá-los em envolvidos em polêmicas que os colocam como contraditórios. 
Contudo nenhum deles pode nos ajudar na questão que nos ocupa. A especificidade da disciplina Comunicação, como vimos acima ao examinarmos polissemia do termo e a questão da interdisciplinaridade, não pode ser alcançada através de uma análise lógico-formal. Nem tampouco ao nível empírico, como imanente a suas instituições de ensino/pesquisa, cuja heterogeneidade das formas concretas que efetivamente se abrem ao observador, acaba por multiplicar a realidade e com ela as definições. 
O único modo de regular a atividade especulativa é remetê-la para a realidade dos fatos; fatos que, por sua vez, só têm sentido através da elaboração teórica. Resolver os problemas colocados pela primeira é reencontrar os da segunda posição, e vice-versa. 
3. Genealogia ou Arqueologia do Campo
Uma outra maneira de abordar o problema da definição da disciplina Comunicação e de seu objeto é pensar a gênese do campo, ou seja, o advento da “comunicação moderna”. E não me refiro, por esta expressão entre aspas, ao corriqueiro deslumbramento com as novas tecnologias de informação e comunicação, mas a uma novidade histórica, concomitante ao advento das sociedades complexas. 
Para este paradigma, a questão fundamental reside na des-naturalização dos processos comunicacionais, isto é, na compreensão que a significação de um fenômeno social não pode ser alcançada senão através da delimitação de sua singularidade histórica. O que equivale a tirar todas as conseqüências da afirmação de que a comunicação não é, e nem deve ser tratada como, um processo trans-histórico, 
Nos parece de extrema importância salientar este ponto, já que a pesquisa em Comunicação muitas vezes segue alheia à importância da historicidade para as ciências do Homem, principalmente no tocante às conseqüências epistemológicas, como se os processos comunicacionais pudessem permanecer indiferentes à ação do tempo e à variedade cultural. Ora, se é patente que a sociedade se transforma ao longo do tempo; se a cultura é caracterizada como processo de transmissão e transformação permanente de um patrimônio étnico; se noções tão imediatas e fundamentais como aquelas de tempo, espaço, causalidade... estão sujeitas às vicissitudes de sociedades históricas, como nos coloca a sociologia do conhecimento; se mesmo as funções psicológicas se encontram sujeitas as transformações históricas �, porque a comunicação haveria de permanecer intocável, indiferente a tudo e estrangeira ao trabalho do tempo, pairando acima do devenir humano? 
Os inventários das formas históricas de comunicação, tal como aparecem normalmente nos manuais, não constituem um contra-exemplo. Ao contrário, eles ilustram muito bem como a historicidade dos processos comunicacionais é negligenciada ao ser tratada simplesmente como uma coleção de “meios” para a expressão de uma mesma e única necessidade – inerente ao homem, bem certo –, mas que atravessariao tempo sempre igual a si mesma. Como se os meios e as mensagens mudassem, mas a comunicação permanecesse a mesma. 
Ora, é preciso reconsiderar este ponto de vista espontâneo, muito pouco refletido até aqui pelos trabalhos sobre os fundamentos da Comunicação, e levar a sério o fato de que a variação dos “meios” não é a expressão de um progresso material de uma mesma e constante necessidade humana. Ainda que a mutação mediática ao longo da história seja, em parte, fruto de uma evolução técnica, de outra parte ela é correlata às demandas sociais que criam tanto as possibilidades da invenção como de institucionalização de um dispositivo tecnológico a partir de seu emprego e utilidade social. É nesta intersecção com a sociedade que se dão as objetivações tecnológicas, necessariamente históricas (então datadas e relativas a um certo estado do conhecimento comum), a partir das quais os agentes sociais percebem os processos comunicacionais. Em outras palavras, não são apenas os meios que estão num processo histórico de mudança, a comunicação ela mesma adquire um novo sentido nessas transformações.
É curioso notar – para citar apenas dois dos mais evidentes sinais da transformação histórica no sentido dos processos comunicacionais – como negligenciamos a dimensão histórica de fatos tão importantes como a mercantilização da informação e a intervenção da técnica nos processos comunicacionais. 
O primeiro, implica a cisão entre um produtor e um consumidor de informação. Distinção clássica do marxismo econômico que transportada para o domínio da cultura indica uma especialização sem precedente do tecido social, resultando nas instituições de produção e circulação de informação (jornais, emissoras de rádio-televisão, agências de notícias, gravadoras de música, editoras de livros, estúdios de cinema...). 
A contrapartida operacional dessa revolução cultural (hoje escondida sob a expressão um tanto já gasta de cultura de massa) fica por conta do enorme potencial de reprodutibilidade liberado pela tecnologia moderna e, particularmente para nós, do aparecimento dos novos meios de comunicação, como condição de possibilidade para o pleno desenvolvimento desse tipo de cultura. A intervenção da técnica nos processos comunicacionais, isto que nós designamos hoje como comunicação social, além de implicar um novo equacionamento da questão da transmissão de informação, inaugura uma forma inédita das relações entre comunicação e organização social: não se trata mais do soberano ou do Estado para com seus súditos (ordem administrativa), nem tampouco dos homens em relação à divindade (ordem religiosa), questões que dominaram o sentido da comunicação nas sociedades primitivas e clássicas, mas do problema sui generis da inserção do indivíduo na cultura de massa e na sociedade complexa. 
Enfim, por detrás da mercantilização e da intervenção tecnológica dos processos comunicacionais é toda uma arquitetura da comunicação social – impensável para sociedades do tipo pré-industrial – que passa a existir. 
Entre outras tantas modificações importantes que a comunicação sofre no contexto das sociedades complexas, se a comunicação passa a ser explorada comercialmente, se ela sofre a intervenção de dispositivos tecnológicos, se ela passa a fundamentar a organização social como pivô da inserção do indivíduo na cultura e de sua integração à sociedade, por que razão não a distinguimos de maneira realmente significativa dos processos comunicacionais de outros tipos de sociedade? 
E em que medida ainda temos o direito de usar um mesmo nome (comunicação, processos comunicacionais) para coisas tão distintas? Temos nomes diferentes para os casos em que algo passa a ser vendido, ou para certas práticas que passam a ser objeto de comércio: amor/prostituição, militante/mercenário, amador/profissional. E no entanto naturalizamos os processos comunicacionais modernos como uma substância inalterável e independente das relações a que se encontram submetidos. Talvez fosse preciso ver aí uma dessas peças que a análise pseudo-histórica nos prega, e interpretar este uso ambíguo da noção de comunicação mais como um problema de homonímia do que realmente uma mesma entidade (a comunicação) sempre igual e idêntica a si mesma através do tempo.
A propósito, em fragrante contraste com o caso da comunicação, é curioso notar como estamos prontos a admitir as conseqüências da historicidade em outros setores da vida intelectual. Por exemplo, sabemos que não se pode passar de uma forma absolutista de governo para uma forma democrática sem que esteja em jogo uma nova sensibilidade ou uma nova percepção do que é “a” política. Como acontece com toda modificação do comportamento social, é de se esperar que mudanças significativas nas práticas políticas devem necessariamente levar a mudanças igualmente significativas na própria idéia que os atores sociais têm da política, como também no próprio conceito de política. Mas no domínio da Comunicação continuamos acreditando que os processos comunicacionais são os mesmos desde a pré-história. Acreditamos que a comunicação é um tipo de “continente” inalterável, e que “somente” os meios e os conteúdos (as mensagens, a informação, “o que se diz”) mudam, quando na realidade seria preciso admitir que a própria comunicação está sujeita a transformações significativas ao longo do tempo. 
Consequentemente, uma posição teórica mais afinada com o movimento geral das conquistas das ciências do Homem, e mais afinada com o próprio objeto geral delas, isto é, não com o homem natural, mas com o ser simbólico, que é necessariamente uma construção cultural e histórica, deve considerar as transformações na morfologia e no emprego dos meios de comunicação não somente como expressão de uma evolução tecnológica (o que permanece uma verdade), mas deve também ter em conta a própria transformação de sentido dos processos comunicacionais, a ponto de poder cernir um objeto de estudo particular: o que se torna objeto de estudo da disciplina Comunicação são as práticas comunicacionais liberadas pela sociedade complexa e até então desconhecidas de outros tipos de sociedades históricas. 
Desta forma, os processos comunicacionais assumem, a partir de certas condições sócio-históricas que denominamos modernidade, um valor e um sentido histórico, o qual podemos considerar como único ou original, se comparado a aqueles que podem ser encontrados em outros tipos de organização social (sociedades tradicionais, comunidade primitiva). 
No plano epistemológico, o estabelecimento de tipos sócio-históricos da atividade comunicacional libera sentidos diferenciados da atividade comunicacional humana, de modo que as idiossincrasias sócio-históricas da comunicação moderna possibilitam uma restrição do campo de estudo, permitindo delimitar o objeto de uma disciplina científica singular, já que ele passa a não coincidir mais com o objeto de outros saberes e disciplinas das ciências do Homem, tais como a Psicologia (geral, cognitiva, do desenvolvimento, psicolingüistica...), a Sociologia (geral, do conhecimento, sociolingüística ), a Lingüística, a Retórica, a Oratória, a Psicanálise, a Semiologia, etc., que também se interessam por fenômenos comunicacionais. Se a extensão do campo excede os esforços de uma única disciplina, dar conta desse campo significa então que ele será atravessado por vários saberes, tal é o diagnóstico daqueles que marcam suas reservas quanto à possibilidade de uma ciência da comunicação, na medida em que isto implicaria uma mega-disciplina. Contudo, a coisa muda de figura se ao invés de reivindicar todo e qualquer processo comunicacional, uma determinada disciplina se ocupasse “apenas” do que há de original e decisivo nos processos comunicacionais à luz das transformações trazidas pela modernidade (e de certa forma, um tanto irrefletida, é o que já fazem a franca maioria dos estudos em Comunicação, que raramente discorrem sobre processos comunicacionais que não os do século XX). 
Em suma, para este paradigma de análise, asnovas práticas comunicacionais tornam-se o centro que explica tanto o objeto, quanto a disciplina. Porque não se trata mais de dar conta de um campo descomunal, cuja extensão não poderia ser coberta senão pela Filosofia ou pelo conjunto das ciências do Homem. São exatamente estes processos comunicacionais, bem datados, contextualizados em um certo tipo de organização social e com especificidades próprias, que têm no emprego dos meios de comunicação sua expressão mais constante e evidente, que passam a ser o objeto de estudo de uma ciência particular: a Comunicação. 
Bibliografia
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Veyne, Paul. “Foucault Revoluciona a História”, in Como se Escreve a História. Universidade de Brasília, 1982.
� Texto apresentado no V ALAIC Congresso Latino-americano de Ciências da Comunicação, Universidade Diego Portales, Santiago, abril de 2000. Publicado in A. Fausto Neto, S. Porto, J.A. Prado (orgs.), Campo da Comunicação: caracterização, problematização e prespectivas. Editora da UFPB. João Pessoa, 2001.
� Martino, Luiz C. De Qual Comunicação Estamos Falando?, in A. Holhfeldt; L.C. Martino; V. França (orgs.) – Teorias da Comunicação. Vozes. Petrópolis, 2001.
� Cf. Martino, Luiz C. Télévision et Conscience. Tese de Doutorado. UFR de Sciences Sociales, Université René Descartes, Sorbonne Paris-V. Paris, junho de 1997. 
� No limite entre o senso comum e um esforço de racionalizar e sistematizar um certo saber, G. Ganguilhem vai falar em ideologia científica, para expressar um estado de conhecimento « anterior » ao de uma certa disciplina científica. 
� Como coloca Ignace Meyerson em sua inestimável obra sobre a psicologia histórica, Les Fonctions Psychologiques et les Oeuvres. Albin Michel, 1995.

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