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Subjetividade Política e Direitos Humanos

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Subjetividade política e Direitos Humanos 
 
2002 
Subjetividade Política e Direitos Humanos[1] 
Agradeço ao Conselho Federal de Psicologia, na pessoa de Odair Furtado e Marcus Vinícius.
É uma honra para mim abrir este seminário.
Diante da brilhante fala da Elisa Nascimento, fiquei até pensando: será que ainda se pode falar mais alguma coisa? Será que já não foi 
suficiente?
Quero dizer a vocês que talvez a minha fala seja menos psicológica do que se esperava nesta abertura de seminário. Para poder articular 
esses três conceitos tão difíceis - política, exclusão e direitos humanos - procurei ler com mais atenção o que todos conhecem quase que 
de passagem, que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral da Nações Unidas, em 1948, 
justamente alguns anos depois de uma guerra tremenda, a Segunda Guerra Mundial, que nos deixou diante da terrível evidência do que é 
capaz um ser humano, no limite do que consideramos humano. Chamamos de desumanização porque gostaríamos que alguns atos não 
fossem humanos mas, no entanto, eles o são. 
Tenho a impressão de que essa enumeração de direitos, que se encerra com a proposta de um dever, busca, antes de mais nada, traçar 
um certo patamar, um certo conceito que é expressão de um desejo e de uma possibilidade, que não procura coincidir necessariamente 
com uma noção científica do que seja a natureza humana. A natureza humana é capaz de fazer, inclusive, o que fez na Segunda Guerra 
Mundial. A natureza humana, se é que existe uma natureza única, que talvez esteja um pouco fora do nosso alcance conhecer, é capaz de 
atos de discriminação racial, de crueldade, de indiferença em relação ao sofrimento do outro, de falta de solidariedade, de desrespeito, etc. 
Nesse sentido, a Declaração dos Direitos do Homem não é expressão da natureza humana mas, muito ao contrário, um esforço contra as 
tendências naturais dos homens. Seu valor consiste em estabelecer um patamar desejável e um conceito de homem que expressa, talvez, 
o melhor que a modernidade pôde produzir. 
Fui atrás da Declaração de Direitos porque, como todos vocês sabem, no Brasil existe uma espécie de protesto por parte de pessoas mais 
conservadoras e de mentes muito fechadas, que questionam o que são os direitos humanos. Dizem que é uma proteção para os bandidos. 
É como se a idéia da luta pelos direitos humanos fosse a de lutar para privilegiar os piores elementos da sociedade: os marginais, os 
bandidos, os drogados que estão nas prisões. Há uma espécie de reação negativa que tem forte ressonância popular. Acho que nós, 
psicólogos, temos que entender isso. Há um consenso popular quanto a essa reação negativa, que diz: “Nós é que temos que ter direitos; 
nós, os cidadãos de bem, os trabalhadores, os que produzimos, e não os criminosos. Que negócio é esse de direitos humanos para 
bandidos?” 
Vocês já devem ter ouvido coisas desse tipo muitas vezes, inclusive em debates pela televisão. Não é algo que se ouve apenas em papo 
de botequim. Você ouve isso em debates no rádio e na televisão também.
Então, vou fazer uma rápida passagem por alguns itens da Declaração Universal de Direitos Humanos, que nos permita entender que 
conceito de homem se expressa nela, que conceito de homem se proclama como desejável na modernidade e em que isso pode se 
articular com as temáticas políticas - isso não é muito obscuro para nós - com o problema da exclusão e com o alcance do pensamento 
psicológico e psicanalítico.
O primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e em 
direitos e são dotados de razão e consciência, devendo, portanto, agir, uns em relação aos outros, com espírito de fraternidade.
É muito importante esse artigo, pois há um ideal de homem esboçado aí. É o ideal desejável, aquilo que desejamos que o ser humano 
seja. O ser humano não é necessariamente isso, ele pode ser o contrário disso. Não é a idéia de natureza humana, mas um ideal. A 
sociedade tem que se esforçar, coletivamente, para que os homens, individualmente, na sua diversidade, correspondam a esse conceito. 
Evidentemente, a idéia de igualdade só se expressa em termos de direitos; não é a igualdade no sentido de uma massificação, de um 
nivelamento de todas as tendências e escolhas presentes na sociedade. É um conceito que privilegia, de acordo com a influência da 
filosofia das Luzes, até hoje é forte no Ocidente, a razão e a consciência. É verdade que não leva em conta a existência do inconsciente, 
mas é muito difícil fazer uma política que leve em conta a existência do inconsciente. A razão e a consciência, afinal de contas, em última 
instância, definem nossas escolhas éticas. É importante privilegiar a nossa capacidade de razão e consciência porque isso nos 
responsabiliza em relação a todos os seres humanos.
Muito importante também é a idéia do espírito de fraternidade que não é necessariamente a fraternidade cristã - somos irmãos porque 
assim o quer um Pai que está acima de nós todos. É a fraternidade no sentido de que a nossa humanidade depende da nossa vida em 
coletividade. Nós dependemos uns dos outros. O outro, além de ser o nosso rival ou alguém que pode nos importunar, é o nosso parceiro 
e é o nosso espelho. Portanto a degradação do outro degrada a minha dimensão humana. Então, a idéia do espírito fraterno que deve 
nortear a relação entre os homens é uma idéia não necessariamente de uma consideração do outro como estranho - também isso é 
importante -, mas do outro como uma dimensão da qual depende a minha própria humanidade. Isso já questiona muito, hoje em dia, os 
pressupostos da cultura individualista, por exemplo, na qual estamos absolutamente mergulhados até sem perceber, em que cada um 
acha que não deve nada a ninguém e que vai se construir sozinho, fazer o seu ego subir num pedestal e brilhar. 
Foi bonito quando a Elisa lembrou que o Prof. Abdias diria que a homenagem não seria só a ele; seria a ele como representante de um 
movimento que é coletivo. Aí se revela a dimensão ética do trabalho dele. Não é o trabalho de uma ego trip, por mais bem intencionado 
que pudesse ser, mas é um trabalho coletivo. 
Também lembro do primeiro discurso do nosso Presidente eleito, Lula, na Avenida Paulista, falando a todos os brasileiros e falando 
diretamente a uma massa de eleitores que estava comemorando com ele. Ao invés de dizer: “Eu vou fazer...isso e aquilo”, ele começou 
fazendo um longo reconhecimento e nomeando todos os seus companheiros de percurso e de militância, inclusive os mortos. Tenho a 
impressão de que um discurso como esse, ressimboliza a inclusão no Brasil. Ele não citou apenas os seus companheiros de militância, 
pessoas históricas e pessoas importantes que fizeram o PT e, como ele, vieram do movimento sindical. Ele citou todos os setores 
organizados da sociedade civil. “Vocês, estudantes; vocês, metalúrgicos; vocês, trabalhadores; vocês, funcionários...” Ele foi incluindo, ele 
fez um discurso de inclusão, não do tipo “vou cuidar de vocês, deixem comigo, eu amo vocês”. Não era isso. Era no sentido de “vocês 
estão comigo, dependi de vocês para estar aqui.” Essa é uma outra ética e um outro modo de pensar o fraterno.
Em seguida é muito importante o segundo artigo da Declaração. Não se preocupem porque não vou ler os trinta artigos. Estou 
selecionando alguns que, acredito, são importantes para sustentar uma idéia.
O segundo artigo diz que todo homem tem capacidade para gozar dos direitos e das liberdades que estão estabelecidos na Declaração, 
sem distinção de raça, religião, sexo etc. Ou seja, é a capacidade de gozar dos direitos, é a capacidade de, a partir dessa base mínima, 
que são esses direitos, fazer alguma coisa, usufruir disso, saber o que fazer a partir isso. Então, esse direito não é um privilégio, não é algo 
que alguns mereçam mais que outros. Todos têm capacidade de usufruir deseus direitos. É interessante a idéia da capacidade, pois tira o 
sujeito, que é um sujeito de direito, de uma posição de objeto. Não é que ele deve gozar; ele é capaz disso. Então, ele vai fazer algo a 
partir do fato de que esses direitos lhe são garantidos. Essa é a questão da capacidade. Evidentemente, depois disso estão o direito à 
vida, à liberdade, à segurança pessoal, à proibição de todas as formas de escravidão e de tortura.
O sexto artigo diz que todos os homens têm direito a ser, em todos os lugares, reconhecidos como pessoa perante a lei. É tão interessante 
isso. Lembrem-se, na nossa colonização, a quantidade de barbaridades que foram cometidas - o extermínio dos índios, por exemplo - com 
base no argumento de que não eram pessoas como nós, não tinham alma e seriam seres animalescos; do mesmo modo o pretenso direito 
de escravizar os africanos porque eles seriam pessoas de qualidade inferior, ou nem seriam pessoas. Que avanço significativo poder dizer 
que não há nenhum ser humano que esteja excluído do conceito de pessoa. Essa é uma igualdade também muito importante, fundamental.
Do sétimo ao décimo terceiro artigo, temos os direitos relativos ao exercício da justiça, das condições das prisões, os direitos que mais 
vulgarmente chamamos de direitos humanos – direitos que são violados com mais freqüência pelos Estados autoritários. Quer dizer, são 
aqueles que dependem de uma política de Estado: direito à nacionalidade, ao asilo político, à segurança, ao trabalho remunerado, às 
liberdade democráticas, à liberdade de participar do governo, à liberdade de pensamento, de religião, de opinião, de expressão, de reunião 
e associação e de participar do governo e de ser representado por ele. Aí defende-se a democracia como um direito humano. É 
interessante. É uma forma de governo, entre outras, mas está proclamada como um direito humano.
Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e à sua família, saúde, bem-estar, alimentação, vestuário - parece 
que estamos falando de alguma coisa muito básica aqui -, maternidade, direito à infância, seguro-desemprego etc. O que está pressuposto 
aqui? Esse conceito de homem que queremos fazer valer nas nossas sociedades e que só faremos valer com a nossa ação, porque outros 
homens podem emergir, dependendo de outras articulações políticas. Sabemos que algumas condições podem fazer emergir, inclusive, 
homens bárbaros que chamaríamos de desumanos, mas temos que concordar que são tão humanos quanto nós. Esse conceito de homem 
que desejamos formar e fazer valer na nossa sociedade diz que o ser humano é dotado de um potencial ilimitado, ou seja, cujo limite não 
conhecemos. Ilimitado não quer dizer que podemos criar asas, sair voando ou virar deuses. É ilimitado no sentido de que ainda não temos 
noção do limite desse potencial para se desenvolver, para criar, para crescer, para se expandir, mas o desenvolvimento desse potencial 
não pode ficar a cargo do sujeito sozinho, individualmente, da sua vontade, da sua luta. Depende, então, de condições mínimas de 
sobrevivência digna, e cabe ao Estado assegurar essas condições.
Sem essas condições para se desenvolver, o homem está degradado, ainda que não esteja sendo diretamente maltratado ou humilhado, 
preso ou torturado. Se ele não tem as condições mínimas para se desenvolver, ele está degradado porque está rebaixado naquilo que lhe 
garantiria a afirmação desse potencial. Um homem, no estado de necessidade, está degradado quanto ao seu potencial humano. Essa é 
uma idéia da Hannah Arendt, filósofa de que gosto muito, que diz que o estado de necessidade rebaixa a condição humana, desumaniza, 
porque priva da liberdade. Um homem no estado de necessidade está absolutamente condicionado a ter que prover os meios da sua 
subsistência. Isso é tudo o que ele consegue fazer. Enquanto ele não conseguir prover os meios da sua subsistência, a sua liberdade não 
é exercida. Ele não exerce a sua liberdade de cidadão, não exerce a sua liberdade criativa e não exerce a sua liberdade política, porque só 
tem uma tarefa que o escraviza, ainda que ninguém o esteja escravizando diretamente: a necessidade de comer, de se abrigar e de prover 
a sobrevivência dos seus.
Vejam, então, no Brasil, quantos estão excluídos dessa condição humana. Quantos estão premidos pela necessidade, mesmo que nem 
todos estejam absolutamente marginalizados. Alguns estão no mercado de trabalho, o que é mais grave ainda. Estão no mercado de 
trabalho, com um salário tal e com uma jornada tal que a única coisa que podem fazer da vida é trabalhar para sobreviver. Então, isso é 
estar vivendo em um estado de necessidade, isso é estar excluído da condição humana, tal como ela é proclamada pela Declaração 
Universal dos Direitos Humanos.
Hannah Arendt é muito firme nessa questão da condição humana quando afirma duas idéias que são, aí, sim, universais para todos os 
homens. Uma é a nossa condição de mortalidade. No caso do homem, a condição da nossa mortalidade não pode ser negada mas pode 
ser compensada pela nossa condição imortal na linguagem, na obra, na criação, nos trabalhos coletivos, enfim, há uma possibilidade de 
imortalidade, não do corpo do ser humano, mas daquilo que ele vai deixar em sua passagem pela terra. A mortalidade e a imortalidade nos 
caracterizam; mas a possibilidade da imortalidade está naquilo que criamos.
Outro traço fundamental da condição humana, diz Hannah Arendt, é que só existimos na pluralidade. Ser homem é viver entre outros 
homens. É estar entre homens não apenas num estado inerte, num estado de convivência não criativa; é estar com os outros no espaço 
público, criar alguma intervenção política no espaço público e existir como cidadãos cuja vida vai fazer alguma diferença, mesmo na 
condição insignificante do sujeito na sociedade de massa, em que somos um em milhões. A possibilidade de intervir no espaço público tem 
que ser garantida, e aí está a questão da democracia. Essa possibilidade de intervir no espaço público é a condição mais importante da 
nossa liberdade.
Notem que essa também é uma idéia de liberdade muito diferente da idéia do individualismo e do liberalismo, em que pensamos que a 
liberdade é a possibilidade de cada um fazer o que quer com a sua vida privada, com o seu corpo, com a sua sexualidade, com os seus 
gostos, prazeres e desprazeres e escolhas de vida. Essa é a menor parcela da nossa liberdade, é a mais insignificante. Não estou dizendo 
que ela tenha que ser recusada. Absolutamente, ela é muito importante. Entretanto, a liberdade que interessa e que faz com que o ser 
humano seja potencialmente o melhor que ele pode ser como homem, é a liberdade política. É a liberdade de intervenção no espaço 
público que vai fazer diferença para outros homens também, não só para ele mesmo, não só para aquilo que ele pode usufruir 
individualmente na vida. Vai fazer diferença para outros homens. A liberdade, então, seria a liberdade de participação política que implica a 
possibilidade de interferir na esfera pública e produzir, com discurso e com ação, modificações nesse espaço coletivo do qual a nossa 
própria humanidade depende.
Se há algo que se pode dizer que seja próprio da natureza humana - ainda continuo a reproduzir as idéias da Hannah Arendt -, como uma 
possibilidade que todos os homens trazem e por isso podem ser considerados como da natureza humana, é a capacidade de criar, ou 
seja, de começar algo novo, de dar início ao que antes não existia. Todo homem pode fazer isso, nem que seja com a sua palavra, com 
uma palavra diferenciada.
É interessante, só para fazer uma conexão com o terreno da Psicologia, essa idéia da Hannah Arendt de que é própria de todo humano a 
possibilidade de dar início a algo, de representar com a sua própria vida um começo e de criar algo que não existia, porque vem enriquecer 
o conceito freudiano de sublimação. Não vou aqui fazer uma discussão teórica sobreo que Freud escreveu a respeito das pulsões. Acho 
que a maioria das pessoas aqui é da área de Psicologia. Só quero lembrar que, para Freud, a pulsão é o equivalente humano do instinto 
no animal, mas é exatamente o que nos diferencia dos animais. Assim como o instinto, ela busca se satisfazer no circuito do corpo, seja na 
sua potência vital, seja na sua potência mortífera e destrutiva; mas ao contrário do instinto, a pulsão tem capacidade de superar essa 
dimensão corpórea e se satisfazer num objeto simbólico, num objeto criado, num objeto cujo gozo não é o gozo corporal mas é o gozo 
estético, linguageiro, digamos assim; gozo de algo que está fora do corpo. Esse conceito combina muito com o de Hannah Arendt, de que 
é próprio do humano criar. Também é interessante dizer que tanto para Freud quanto para Lacan a sublimação não é uma capacidade 
humana que está garantida em quaisquer condições. Ao contrário, algo dessa parte corporal da pulsão tem que ser atendido para que o 
homem seja capaz de sublimar. Não é possível sublimar na absoluta necessidade, na absoluta penúria, na absoluta insatisfação.
Outras condições para que essa potência criadora do homem se realize podem ser encontradas nos últimos artigos da Declaração de 
Direitos Humanos. 
É muito importante o art. 26 que diz que todo homem tem direito à instrução. Isso para nós é uma obviedade, mas não é uma obviedade 
praticada no nosso país: o Direito à instrução e à instrução gratuita e elementar. Essa instrução deve permitir a esses homens o acesso ao 
conhecimento, seja ele científico ou não, ao pensamento, à arte, à poesia e à literatura e deve orientá-lo para fortalecer o respeito pelos 
direitos e liberdades de todos os homens. Então, não é qualquer instrução, não é uma questão de erudição nem de conhecimentos 
técnicos. É uma instrução que ensina a viver entre homens, a valorizar, respeitar e perceber a preciosidade que é estar com outros seres 
humanos.
Todo homem tem direito de participar livremente da cultura da sua comunidade, fruir e criar.
O art. 29 diz que todo o homem tem deveres para com a comunidade na qual o livre desenvolvimento da sua personalidade é possível. 
Aqui entra um pouco o que diz respeito ao nosso pensamento como psicólogos. Até então, estamos falando de um sujeito que é objeto de 
proteção por parte desses direitos. Ele tem direito a isso ou a aquilo e é preciso que o Estado e que a coletividade humana se organizem 
de forma a garantir isso. No final da Declaração, o art. 29 diz que ele tem deveres. Ele tem deveres para com a comunidade. Ele não é um 
homem livre de dívida. Ele não nasce apenas para usufruir de seus direitos, porque tem deveres para com essa comunidade na qual o livre 
desenvolvimento da sua personalidade é possível. Vejam que aqui se cria uma dinâmica de dois pólos inseparáveis: direitos e deveres 
articulados no mesmo sujeito.
Esse artigo é fundamental porque tem que fazer valer todos os outros. Sem esse artigo os outros não vão valer. Sem que a comunidade 
humana, representada pelo Estado, seja reconhecida como responsabilidade de cada sujeito que participa dela, ela não vai fazer valer os 
Direitos do Homem. Então, essa idéia um pouco passiva de esperar que tudo venha das instituições, que tudo venha do Estado, exclui-nos 
da condição humana tal como está expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Para que possamos usufruir plenamente dos 
direitos humanos, temos que ser também sujeitos de dever para com os artigos dessa declaração.
Os direitos e liberdades não podem nunca ser exercidos contra os objetivos dessa declaração. Então, não se trata de dizer que cada 
homem é soberano para passar por cima dos outros e para ter privilégios em relação aos outros. Os direitos e liberdades vão até onde a lei 
estabelece, para assegurar, inclusive, esse caráter coletivo que vai validar os direitos humanos.
O homem como objeto de proteção do Estado, tendo garantidos os seus direitos, também é sujeito responsável por fazer valer a liberdade 
coletiva e a vida comum a partir dos seus deveres. Essas duas condições são indissociáveis. Só que o homem, como criador, não 
depende estritamente de direitos garantidos para tentar ser sujeito da ação política. Ele pode lutar politicamente por direitos.
Entro, agora, no terceiro tema do título dessa conferência. Quando o Estado e a sociedade em que o sujeito deveria estar incluído lhe 
recusam os direitos mínimos e a sua condição de cidadania, isso não significa que ele não vá tentar, de alguma forma, ser um sujeito de 
direitos, ainda que esteja excluído da condição de objeto protegido por toda a sociedade.
Encontrei um exemplo muito interessante que vai nos fazer pensar a respeito disso. Caíram nas minhas mãos os novos estatutos do PCC, 
Primeiro Comando da Capital, que, como vocês sabem, é uma organização criminosa que foi criada dentro dos presídios de São Paulo, 
assim como o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, e que de dentro do presídio consegue comandar rebeliões em outros presídios, 
consegue, de certa forma, instaurar uma espécie de poder paralelo na vida dos presidiários e também na vida de criminosos que estão fora 
da prisão. Ora, isso nos horroriza. Queremos que esse tipo de abuso de direito de quem está preso, justamente porque não cumpriu com 
os seus deveres, possa ser coibido e que eles não tenham direito de continuar comandando o crime organizado de dentro da cadeia. 
Quando li os estatutos do PCC, entendi alguma coisa sobre a origem dessa facção do crime organizado que me fez pensar que a absoluta 
falta de direitos humanos não necessariamente submete as pessoas à condição de resignação e de passividade total, mas pode fazer com 
que elas se organizem paralelamente à sociedade da qual estão excluídas, buscando fazer valer os seus direitos, aí, sim, não como 
direitos coletivos, já que estão excluídas da coletividade, mas direitos contra os direitos do restante da coletividade.
Os estatutos do PCC começam com significantes que, nesse caso, podem ser tomados como significantes vazios, embora façam muito 
sentido para o conjunto da sociedade. Eles começam falando em lealdade, respeito, solidariedade, luta pela liberdade, pela justiça e pela 
paz. Para nós, isso é muito estranho. Pela paz? Muitos são criminosos, assassinos, matam gente, chacinam, torturam. É como se esses 
significantes, validados pela maioria da sociedade, retornassem, mesmo como palavras vazias, para sustentar um discurso que é 
produzido nas margens. Eles precisam falar em nome desses valores para falar em nome de alguma coisa. Não se pode falar em nome do 
crime.
São muitos itens. Tomo um item interessante para pensarmos: “Os integrantes do Primeiro Comando da Capital, e principalmente a 
direção do Primeiro Comando da Capital, têm que dar bons exemplos, sendo depois seguidos pela massa.” Por isso, então, eles não 
admitem que haja, dentro do PCC, assalto, estupro e extorsão, como também não admitem cobiça, inveja, calúnia, egoísmo, interesses 
pessoais e, sim, a luta, a lealdade, a humildade, a solidariedade e o interesse pelo bem comum. Olhem que interessante! Parece cinismo, 
mas não sei se é. Vejo essa declaração de valores como uma tentativa de fazer valer, numa outra confraria que está excluída dos direitos, 
alguma coisa muito parecida com a condição que queremos para afirmar o conceito de humanidade que desejamos. De uma maneira ou 
de outra, pelo menos na letra desses estatutos, esses homens estão tentando afirmar a mesma condição humana que nós, de uma outra 
ponta do laço social.
Quando digo que eles estão excluídos dos direitos humanos, não é porque eles estejam presos - é evidente que os criminosos têm que ser 
punidos numa sociedade que quer fazer valer os seus direitos - mas em função das condições em que eles estão presos.
Vamos aos dois últimos itens que vão nos fazer entender - para mim foram muito chocantes - como essa ausência de direitos motivouuma 
reorganização criminosa que tenta manter para essa coletividade uma condição humana parecida com a que está afirmada na Declaração 
Universal dos Direitos Humanos.
O art. 14 do estatuto do PCC diz o seguinte: “É bom todos os integrantes do partido refletirem no ocorrido no Carandiru em 1992. 
Perdemos vidas irreparáveis, não podemos deixar o governo agir dessa forma. Iremos planejar todos os atos para desestabilizar o 
governo. Se for preciso matar e morrer contra atos do governo, nós o faremos.”
O art. 15 diz o seguinte: “A criação do Primeiro Comando da Capital se deu em virtude das torturas ocorridas na Casa de Custódia de 
Taubaté em 1992. Foi em virtude do grande sofrimento ocorrido naquele lugar que surgiu a idéia de fundar o PCC, mesmo motivo que 
levou à criação do Comando Vermelho no Rio de Janeiro. Então, temos como objetivo fazer com que os governos de São Paulo e do Rio 
de Janeiro desativem a Casa de Custódia de Taubaté, de Bangu I etc...”
Comecei falando do preconceito e da idéia de que bandido não tem direito humano; bandido é bandido e tem que estar excluído dos 
direitos. No entanto, toda sociedade sofre pelo fato de excluir esses que são criminosos, bandidos, pois a Declaração Universal dos 
Direitos Humanos os contempla também como membros do Estado de Direito. Têm direito à justiça, a condições dignas, mesmo nos 
presídios, a não serem torturados. Se os criminosos que já estão privados de liberdade como forma de punição por seus crimes, forem 
excluídos de seus direitos básicos, vão tentar fazer valer seus direitos por meio da violência. Essas organizações clandestinas não são 
inexpressivas; além do PCC e do CV, há toda uma organização comandada pelo tráfico, em São Paulo e no Rio de Janeiro, que tenta 
afirmar, na forma de privilégios comprados ou impostos pela força, exatamente aqueles direitos dos quais foram excluídos.
Vejam que, na modernidade, ou todos serão incluídos ou todos serão excluídos; no caso da exclusão, toda a nossa condição humana vai 
estar rebaixada, porque seremos vítimas da violência. A incidência de um ato criminoso em nossas vidas, sinceramente, é um detalhe; 
afinal de contas, um ou outro de nós vai ser vítima direta da violência. Mas somos todos participantes de uma sociedade que nos ofende, 
nos atemoriza e nos envergonha.
Outro dia alguém me disse: “Não vou me sentir culpada porque há miseráveis, bandidos, traficantes.” Não é uma questão de culpa, é uma 
questão de vergonha. A nossa sociedade privilegia muito a culpa, baseada na nossa tradição cristã, e, ao contrário de algumas sociedades 
indígenas e de algumas sociedades não-cristãs, não se importa muito com a questão da vergonha. Aquilo que acontece com o meu 
semelhante em uma cidade da qual eu participo pode não ser culpa minha, mas me envergonha. Tenho a impressão, então, de que a 
Psicologia deveria começar a trabalhar um pouco com essa idéia da vergonha, a vergonha que tem a ver com a nossa participação no 
espaço público, com a nossa imagem pública e com os nossos ideais, para que possamos construir uma sociedade de inclusão. Enquanto 
houver um excluído, essa inclusão não deve nos satisfazer.
Muito obrigada.
[1] Palestra de abertura do IV Seminário Nacional de Psicologia e Direitos Humanos, realizado pelo CFP, Brasília-DF, de 12 a 14 de 
dezembro de 2002.

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