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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES MARÇO/2014 Organizada por: Angelo Iadocico, Superintendente Egle dos Santos Monteiro, Coordenadora Jurídica Gilberto Bernardino de Oliveira Filho, Gerente Técnico de Eventos JORNADAS DE ESTUDOS NDJ DIREITO ADMINISTRATIVO Boa-tarde a todos. O tema sobre o qual vou palestrar é um dos mais interessantes e também dos mais impor- tantes não só sob o aspecto teórico, técnico, mas, sobretudo, pelo aspecto, vamos dizer, po- lítico ou o aspecto prático envolvido. Embora a gente venha a desenvolver isso mais adiante, é inquestionável e notória a sanha que o Ministério Público vem revelando contra atos da Administra- ção Pública, contra alguns agentes da Adminis- tração Pública, e aí se incluem os pareceristas. Os agentes públicos incumbidos da atividade de parecerista estão sendo alvo de ações de im- probidade administrativa e de responsabilização. Isso só incrementa a importância e a necessidade de se discutir esse tema com ponderação e com respeito à Constituição Federal. Para que a gente possa avançar com rentabi- lidade no tema, vamos começar por fixar alguns conceitos que eu reputo importantes a respeito da matéria. Primeiro, quando falamos de parecerista não estamos fazendo referência a um parecerista do domínio privado, não estamos falando do prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, do prof. Sérgio Ferraz, dessa turma que emite parecer sobretudo para empresas privadas. Aqui, o foco das nossas intenções é o agente público incumbido da ativi- dade de parecerista. Essa atividade traduzida em um ato administrativo é o chamado “parecer”. E o que seria o parecer? Um ato administrativo uni- lateral, de natureza opinativa sobre determinado assunto. Essa seria uma breve definição. Esse ato * Palestra proferida na Jornadas de Estudos NDJ de Direito Administrati vo, realizada no dia 27.11.2013, nos Auditórios NDJ, em São Paulo – SP. Tema em DesTaque O advOgadO parecerista e a lei de imprObidade administrativa* Rafael Ramires Araujo Valim Advogado; Mestre e Doutorando em Direito Administrativo pela PUC – SP; Professor do Curso de Especialização em Direito Administrativo na PUC – SP; Professor do Mestrado em Direito Administrativo da Economia na Universidade Nacional de Cuyo – Mendoza/Argentina; Diretor da Revista Brasileira de Infraestrutura (RBINF); Diretor-Executivo do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (Ibeji); Secretário da Comissão Especial de Direito da Infraestrutura do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) NDJ – BDA – MAR/14254 administrativo, esse parecer, é categorizado no que a gente chama de administração consultiva. São várias classificações que existem sobre a atividade da Administração: temos a ativa, contro- ladora, temos outras tantas, mas aqui estaríamos no domínio da consultiva, que foi desenvolvida com maestria pelo prof. Oswaldo Aranha Ban- deira de Mello no livro clássico Princípios gerais de direito administrativo, referência obrigatória nessa matéria. Quando quiserem estudar essa parte de administração consultiva, recomendo a leitura. Dentro da categoria parecer, nós podemos vislumbrar dois tipos: um que eu vou chamar de parecer técnico, e o outro que eu chamarei, seguindo a lição do prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, de parecer administrativo. O primeiro, parecer técnico, é o da alçada de especialistas; então, já podemos antever que o parecer jurídico é categorizado entre os pareceres técnicos que são da alçada de especialistas sobre os mais variados assuntos. Os pareceres administrativos seriam aqueles sobre política administrativa; abor- dam questões de mérito, vamos dizer assim, da Administração Pública, e não questões técnicas. É um dado inconteste que a atividade con- sultiva dentro da Administração Pública cresceu muito nas últimas décadas acompanhada do fenômeno de agigantamento do Estado. Na medida em que o Estado começa a atuar em diversos domínios, isso faz com que a atividade consultiva tenha de crescer na mesma medida; por exemplo, o Estado começa a atuar na área da saúde; logo, precisa ter especialistas nessa área; em cada área que o Estado começar a atuar, começar a se ocupar, será preciso ter pessoas dedicadas a essas atividades técnicas. Entre os pareceres chamados “técnicos”, apresenta-se com maior importância o técnico-jurídico, e a razão é muito simples. Dada a importância e a relevância do princípio da legalidade, o parecer jurídico é praticamente – embora a gente vá ver as classificações desses pareceres – uma peça obrigatória em todo e qualquer procedimento; ne- nhum administrador arrisca a se movimentar sem ouvir o advogado sobre aquela questão que está sendo tratada no processo administrativo. Então, não é à toa a importância do parecer jurídico nessa matéria, e é claro que é sobre o parecer jurídico que nós vamos dedicar a nossa atenção. Há uma classificação que os autores empre- gam para os pareceres. Seriam três espécies, e isso é importante a gente analisar: os pareceres facultativos, os pareceres obrigatórios e os pare- ceres vinculantes. Antes que eu me esqueça de fazer referência a isso, convém dizer algumas palavras a respeito dessa função de parecerista da área jurídica. Primeiro: é uma atividade, como os senhores sabem, privativa de advogado; só o advogado pode exercer, isso é uma obviedade. Além disso, a atividade do consultor é de natureza diferente da atividade de procurador, do advogado de uma das partes. Isso é importante também que se diga, e isso tem efeitos depois em termos de responsabilidade. O advogado tem de se valer de todos os argumentos para defender aquela parte; o consultor não. A lógica da consultoria não é a mesma; o consultor tem compromisso com a ordem jurídica, não com parte alguma, e isso é importante para efeito de responsabilidade. Então, que se consigne essa lição: a atividade de consultoria é substancialmente diferente, distinta, da atividade do procurador de uma das partes em Juízo. Outro dado antes de entrar na classificação, que sei que é um assunto polêmico: a Constituição Federal, nos arts. 131 e 132, fala da Advocacia da União e dos Estados, não fala dos Municípios; segundo parece, haveria a mes- ma razão para aplicação aos Municípios. É dito que essa atividade consultiva deve ser confiada a procuradores, ou seja, a membros de carreira, ou seja, não poderia ser confiada a ocupantes de cargo de provimento em comissão. Esse é um dado também que me parece relevante. Recen- temente, o prof. Celso Antônio daí extraiu uma consequência para efeito de responsabilidade do parecerista; para muitos, essa atividade só poderia ser exercida por membros de carreira. Agora já estamos habilitados a tratar da clas- sificação. Primeiro, o parecer facultativo. Vamos tomar cuidado com as palavras nessa matéria, pois há uma confusão terminológica muito gran- de. Muitas vezes, as pessoas estão falando da mesma coisa, mas usando palavras diferentes, e isso causa um transtorno enorme. Vejam que eu não estou me referindo quando eu falo parecer facultativo ao conteúdo, ou seja, se a autoridade deve obedecê-lo ou não; é em relação à solici- tação. A autoridade pode muito bem praticar um determinado ato sem ouvir o parecerista, então DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – MAR/14 255 é facultativa a solicitação; a autoridade pode so- licitar o parecer, e isso não vai afetar a validade do ato praticado. Aqui também um esclarecimento terminológico. Quando eu falar autoridade, é a que se escorou no parecer para praticar um determinado ato. Ao lado do parecer facultativo, nós temos o obrigatório, que seria aquele cuja emissão é obrigatória, é indispensável em um determinado procedimento administrativo; agora, o conteúdo desseparecer não é obrigatório, ele não é vincu- lante, não obriga a autoridade que vai decidir, e aí está a diferença. Então, o facultativo se diferencia do obrigatório em relação à emissão desse pare- cer, não ao conteúdo. Muito bem. Finalmente – na classificação do prof. Celso, porque há outros autores que colocam uma quarta espécie que eu também vou fazer referência – teríamos os pareceres vinculantes. E em que consistiriam esses pare- ceres vinculantes? Além de serem obrigatórios, o conteúdo deles é vinculante, ou seja, a auto- ridade que quer praticar aquele ato não pode desobedecer aquele parecer. Dirão os senhores com absoluta razão: mas, espera lá, o senhor começou essa exposição dizendo que parecer é um ato administrativo de natureza opinativa, e aqui está me falando que é vinculante? Como assim? É opinativo ou é vinculante? Essa críti- ca não passou despercebida. Vários autores já endereçaram críticas a essa ideia de pareceres vinculantes que, segundo muitos, na verdade, não seriam pareceres, seriam outra coisa, se- riam autorizações, seriam aprovações, mas não pareceres propriamente ditos por causa do des- virtuamento da natureza opinativa do parecer. Fato é que no Direito brasileiro há os pareceres vinculantes – depois nós teremos a oportunidade de verificar que, na própria jurisprudência, essa é uma figura relevante, que é levada em considera- ção. De qualquer modo, o que se entende é que o parecer só é vinculante quando assim dispuser a lei; se nada dispuser a lei, não vincula. Essa é a ideia que a maioria dos autores compartilha a propósito desses pareceres vinculantes. Agora vou dar dois exemplos que não estão isentos de críticas. Tem gente que entende que esses exemplos que eu vou dar não constituem pareceres vinculantes, mas eu vou colocar para vocês pensarem. O primeiro deles, que é até co- locado pela profa. Maria Sylvia Zanella di Pietro, é o laudo de órgão médico nos casos de aposen- tadoria por invalidez; então, esse laudo médico não pode ser contestado pela autoridade que vai conceder a aposentadoria, pois ela necessaria- mente deve levá-lo em consideração para o ato de concessão da aposentadoria. Outro ato que é exemplificativo de pareceres vinculantes seria o do art. 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993, ao falar que as minutas devem passar pela apre- ciação do órgão de assessoria, e devem ser aprovadas por ele. Essa aprovação, segundo muitos, implicaria uma natureza vinculante, pois a autoridade daria sequência ao procedimento com base nesse parecer. Em termos teóricos, o que poderíamos colo- car sobre esse parecer vinculante? A rigor, seria um ato de aprovação de alguma matéria, ao qual se somaria outro ato da autoridade. Então, esses atos se irmanariam numa determinada decisão, é essa a ideia. Já os outros pareceres fazem parte da motivação do ato a ser praticado pela autoridade. Quando a autoridade aceitar aquele ato ele vai compor a motivação. No caso aqui do vinculante, a situação, teoricamente, é um pouco distinta, mas, vamos prosseguir. Como os senhores sabem, apenas para registro, esse art. 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993 não esgota as possibilidades de parecer dentro de um procedimento licitatório. Há parecer dentro do procedimento licitatório em todas as fases: na fase interna, na externa, na execução do contrato administrativo, mas cada qual com uma fisionomia. Esse daqui, diante dessa dicção legal, é no sentido de que a minuta deve ser aprovada pela assessoria. Isso conduz à conclusão de que seriam pareceres vinculantes. Só para ficar também como exemplo, a profa. Maria Sylvia Zanella di Pietro entende nesse sen- tido. Essa é a categorização clássica: facultativos, obrigatórios e vinculantes. Vários autores estão agregando mais uma, que seria a dos pareceres normativos. E o que seriam esses pareceres normativos? São muito comuns, por exemplo, na Advocacia-Geral da União. A rigor, esses pareceres normativos, como já diz o próprio nome, trazem a ideia de vincula- ção; eles vinculam, obrigam os demais órgãos e as demais autoridades. Não é bem o parecer que obriga, mas o despacho da autoridade máxima NDJ – BDA – MAR/14256 daquela determinada esfera. No caso da AGU, pode ser o Presidente da República, por exemplo, que emite um decreto que aprova aquele parecer. Então, a normatividade, a vinculação, a força vinculante do parecer não deriva dele próprio, mas do decreto que o aprova. Por que eu estou fazendo essa distinção? Para diferenciá-lo do pa- recer que a gente acabou de falar, do vinculante; aí sim, a força é do próprio parecer. Eu gosto de ir fazendo referência aos autores porque vocês podem eventualmente se aprofundar no assunto. Um dos autores que abordam esse tema, entre outros, é o prof. José dos Santos Carvalho Filho na obra sobre processo administrativo; ele trata de maneira muito cuidadosa dos pareceres nor- mativos e dos outros pareceres. Muito bem. Vale a pena também referir esse tema na Lei de Processo Administrativo Federal. Na Lei nº 9.784/1999 está tratado o tema dos pareceres de uma maneira um pouco, eu não digo confusa, mas não muito adequada. A Lei nº 9.784/1999 é muito boa, uma inovação importan- tíssima na ordem jurídica nacional, mas nesse específico tópico parece que não andou tão bem. O art. 42 é a sede dos pareceres nessa lei; trata primeiro do prazo para emissão de pareceres, e depois fala da ausência desses pareceres. Então, qual o impacto trazido para o processo na falta de um dos pareceres? Para os pareceres de natureza vinculante, diz a lei que se não forem emitidos, o processo é paralisado. Já para os pareceres que não são vinculantes, o processo poderia ser decidido mesmo na ausência. O que isso traz de importante? Em verdade, há uma discussão também que a gente poderia colocar, e pontuar, a respeito da consequência da ausência de um parecer obrigatório. Ou seja, o parecer que pode ser ou não seguido pela Administração, mas que muitas vezes não é emitido. Então, a ordem jurídica diz: é preciso ter um parecer aqui nesse processo, mas ele não foi emitido. É a hipótese tratada no dispositivo da Lei de Processo Admi- nistrativo Federal. Pelo que se deduz da lei, não implicaria na invalidade de todo o processo; a própria lei diz que pode ser decidido sem o pare- cer, porém sem prejuízo da responsabilidade do agente. Então, o que podemos extrair da lei é que a ausência de um parecer obrigatório seria uma invalidade sujeita, vamos dizer, à convalidação; não implicaria necessariamente na invalidação do processo; ou, pelo menos, do restante do processo, o que for posterior àquele momento em que deveria ter sido emitido. Isso é impor- tante para efeito do exercício da competência invalidadora da Administração Pública. Então fica essa análise, ainda que brevíssima, da Lei nº 9.784/1999. Pareceres vinculantes são indis- pensáveis, paralisa-se o processo; quanto aos pareceres não vinculantes, os processos podem ser decididos mesmo sem eles. Outro tópico interessante é o controle sobre o parecer. Naturalmente, pode haver o controle do parecer dentro da própria Administração Pública. Agora, há uma discussão em relação ao controle jurisdicional do parecer. Porém, carece um pouco de sentido essa discussão. E por quê? Em primeiro lugar, o parecer, e aqui eu estou falando do parecer opinativo, não causa agravo à esfera jurídica de um sujeito de direito; não causa, em si, abalo às situa- ções jurídicas dos administrados. No entanto, a partir de um parecer é possível causar uma grave ameaça ao direito de uma pessoa física, de uma pessoa jurídica, se o parecerista sinaliza uma determinada orientação. O sujeito que vai sofrer aquele ato pode falar: “eu estou na iminência de sofrer uma violação à minha esfera jurídica”.E o que isso significa? É possível que aquele ato que será praticado – não o parecer – ameace direito, o que pode desafiar tutela jurisdicional; esse sujeito pode ir a Juízo e falar: “eu estou prestes a sofrer uma violação de direito e, portanto, requeiro um provimento jurisdicional em sede de tutela antecipada, em sede liminar”. Logo, o parecer em si não desafia o controle jurisdicional, não se submete ao controle, mas pode ensejar o controle jurisdicional pela via preventiva, pelo ato que será em seguida praticado. Parece importante essa distinção, ainda que técnica. Muito bem. Com esses elementos, nós já podemos entrar na esfera da responsabilidade. A gente já conseguiu pelo menos esboçar o que podemos entender por parecer, por essa ativi- dade consultiva, e agora estamos habilitados a ingressar, incursionar, no assunto que nos inte- ressa, que é a responsabilidade do parecerista, especialmente por improbidade administrativa. Eu vou mais uma vez fazer uma divisão para fins didáticos entre a responsabilidade da autoridade e a responsabilidade do parecerista. Como se relaciona o parecer com a respon- sabilidade da autoridade que vai se escorar nele? DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – MAR/14 257 Ela vai se fundar nesse parecer para praticar um determinado ato administrativo. Como se opera essa relação? Como eu disse logo no início, o prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, há poucas edições, nos trouxe o seguinte entendimento, o qual eu avalizo e me parece acertado. Se o parecerista ocupa um cargo de provimento em comissão ou uma função de confiança, o parecer desse agente não irá salvaguardar a autoridade. Não há independência necessária para que sal- vaguarde a autoridade que fundamentou a sua decisão naquele parecer; o vínculo que os une não se reveste da independência necessária para fundamentar ou, em português mais claro, amanhã livrar aquela autoridade da responsa- bilidade a qualquer título. E como veremos, a responsabilidade tem diversas esferas, essa é uma primeira ideia; se vocês abrirem o livro do professor, lá encontrarão. Por outro lado, se o parecer for emitido por um membro de carreira, respalda a conduta da autoridade. Claro, se a autoridade desatender o que estava prescrito no parecer, não há o que fazer, desatendeu e tem que assumir o risco. Veja, eu estou falando sobre pareceres opinativos, pois, obviamente, se for vinculante, não se põe essa discussão. Então, essa é uma primeira distinção: membro de carreira ou exercente de um cargo em comis- são; eu vislumbro que essa distinção vá ganhar força daqui para frente, mas é importante que os senhores já saibam essa ideia inicial a respeito da natureza dos vínculos do parecerista com a autoridade que pratica o ato. Agora, a responsabilidade do parecerista. O parecerista, como qualquer sujeito de direito, está submetido à responsabilidade. Dizia, já, há tempos, o prof. Geraldo Ataliba: nenhum agente público, nenhum sujeito de direito, está alheio à responsabilidade pelos próprios atos – embora no Brasil alguns se achem acima da ordem jurídica. E como o parecerista é responsabilizado? Por imperícia, por despreparo na emissão daqueles pareceres; então, ele tem o despreparo profis- sional, é condenável e pode ensejar a responsa- bilidade. A imprudência, que é o zelo, a cautela que esse parecerista tem de ter no exercício da sua profissão, o desrespeito a estas, vamos dizer, normas de conduta, também enseja a responsa- bilidade. A negligência, que é o desrespeito aos deveres a que ele está obrigado no exercício da função; e, naturalmente, o dolo, a má-fé, a fraude na emissão daquele parecer, que o parecerista sabia que não atendia à ordem jurídica e, mesmo assim, muitas vezes, disfarçada ou deliberada- mente, emitiu. Nesse quadro, o que os senhores concluem? Claro, ele responde por dolo ou culpa; a imperícia, a imprudência e a negligência, na verdade, são modalidades de culpa. Agora, há um dado que é importantíssimo e indispensável no exame dessa matéria. Parece que hoje em dia o controle da Administração Pú- blica vem sendo maltratado por uma concepção desviada desse ponto que eu vou falar para os senhores, muitas vezes de forma confessada ou não. O parecerista, e isso cada um dos senhores que estão aqui sabem, a atividade do advogado, de quem lida com o Direito, é naturalmente sujeita a divergências. Isso é natural ao Direito porque é natural também à linguagem, e o Direito é lingua- gem, e cada qual quando se debruça sobre um texto legal pode extrair dali uma norma jurídica. Aqui eu coloco outro conceito: texto é diferente de norma. Quando vocês pegam um texto legis- lativo, aquilo é meramente texto, e cada um de vocês ao aplicar esse texto, ao ler, ao interpretar, vai extrair uma norma. Agora, o sujeito da Admi- nistração, o agente público, ele tem competência para extrair uma norma dali; então ele vai ler a Lei nº 8.666/1993 e vai extrair uma determinada interpretação daqueles dispositivos. Amanhã, o Ministério Público pode extrair outra interpreta- ção e, finalmente, caberá ao Judiciário examinar qual daquelas interpretações é a que ele reputa verdadeira. Não que ele seja o dono da verdade, mas é porque o sistema quis assim, alguém tem de dizer de forma definitiva o que vale. Agora, o que é importante nisso? O parecerista jamais pode ser responsabilizado simplesmente por uma divergência, ou seja, se houver uma controvérsia razoável sobre um determinado ponto. Existindo uma dúvida razoável sobre um determinado ponto, não se pode punir, não se pode respon- sabilizar o parecerista. Isso é absolutamente indispensável nessa matéria, esse juízo que a gente tem de fazer. Por quê? Hoje assistimos a algo exatamente ao contrário disso. Quando eu falo aqui que um texto legal pode dar ensejo a várias interpretações, o que estou dizendo? O administrador pode eleger essas opções colo- cadas pela lei, todas estarão corretas; então, esse domínio da discricionariedade parece, nos dias que correm, absolutamente negligenciado, NDJ – BDA – MAR/14258 maltratado, porque os órgãos de controle na competência que lhes é rogada dizem: “Olha, você está equivocado nesse ponto”. Entendem que a interpretação que extraíram daquele texto é a única válida, é a única que seria defensável, e nisso está o problema. Nesse problema incorre frequentemente o Ministério Público. Mas por que eu não falo só do Ministério Público? Na verda- de, não há Ministério Público arbitrário, não há Ministério Público violador das liberdades, dos direitos individuais, sem Judiciário que acolha suas pretensões. Então, na verdade, quando acusamos o Ministério Público, e eu acho que temos razão para acusá-lo de muitos abusos, também precisamos verificar o Juiz que acolhe as pretensões; se tivéssemos um Judiciário que repelisse as pretensões absurdas, não teríamos tantas arbitrariedades, tantos abusos. É preciso também realçar a autonomia entre o parecer e o ato da autoridade, são duas rea- lidades completamente diferentes. E o que eu quero dizer com isso? Dada essa natural possi- bilidade de divergência de interpretações, pode ser que eu – parecerista – emita uma decisão, uma opinião falando “isso aqui é legal; isso aqui é legítimo”. E amanhã, em Juízo, seja infirmado, pois o Judiciário pode dizer que é ilegal. Se o parecer não incorrer naquelas falhas que eu já coloquei para os senhores, não incorrer em dolo, tampouco em culpa, não pode ser considerado ilegal. Assim, embora o ato da autoridade tenha sido considerado ilegal pelo Judiciário, o parecer não segue a mesma sorte, porque estaríamos no campo aberto da interpretação jurídica. Então, são realidades diferentes que requerem exames diferentes em relação à legalidade, à legitimidade de cadaum desses atos administrativos. Como os senhores já sabem, o parecer também é um ato administrativo que precede o ato final da autoridade. Com essas considerações, nós podemos agora dar um passo a mais para o tema da improbidade administrativa. O que eu quero assinalar a propósito da improbidade? Primeiro, a improbidade administrativa – há até uma tese muito interessante que foi defendida na PUC pelo prof. José Roberto Pimenta Oliveira sobre isso – é mais uma esfera de responsabilidade entre outras tantas que existem e que incidem sobre a conduta dos agentes públicos. Então, temos a responsabilidade administrativa, a responsa- bilidade civil, a responsabilidade penal, enfim, outras responsabilidades, e temos aquela por improbidade administrativa. Há um diálogo entre essas esferas de responsabilidade que ainda precisa ser mais bem desenvolvido; há divergên- cias também sobre como uma dessas esferas de responsabilidade impacta sobre a outra. Há uma divergência grande sobre o impacto da esfera penal sobre a esfera de improbidade administra- tiva, da esfera de responsabilidade administrativa sobre as demais esferas de modo que esse é um tema, pelo menos no meu modo de ver, ainda aberto e sujeito a evolução. A improbidade administrativa não é um ob- jeto só de legislação infraconstitucional, consta explicitamente do Texto Constitucional. E o que nós extraímos do Texto Constitucional sobre im- probidade administrativa? Aqui eu vou me valer de uma lição que se tornou clássica do prof. José Afonso da Silva, que diz com inteiro acerto que a improbidade é uma imoralidade qualificada, é um grau superior de imoralidade que se caracteriza pela desonestidade, pela má-fé. E por que eu já faço essas considerações de início? Improbidade não significa ilegalidade, nem toda ilegalidade se caracteriza como improbidade; aliás, a maioria das ilegalidades não implica ato de improbidade administrativa, e isso é uma coisa também que, nos dias que correm, parece difícil de entrar na cabeça de algumas pessoas que aplicam essas normas. E daí também é interessante extrair outra conclusão que me parece indispensável. Quando eu digo que a Constituição Federal traz em seu bojo um determinado conceito de improbidade, como uma imoralidade qualificada, quando ela fala nesses termos, eu afasto de imediato a ideia de que possa existir uma improbidade por culpa. Ninguém é desonesto por imperícia, ninguém é desonesto por imprudência; quando eu digo “de- sonestidade”, quando eu digo “má-fé” é dolo, é a intenção deliberada de violar a ordem jurídica, ou seja, eu estou consciente de que vou violar e fraudar aquelas normas; então, me parece que é possível extrair da Constituição Federal esse sentido de que improbidade não comporta a modalidade culposa. Essa discussão, seguramente, os senhores já conhecem e a solução dela, no meu modestís- simo entendimento, é deduzida de uma análise do DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – MAR/14 259 Texto Constitucional. Não é possível extrair do ter- mo “improbidade administrativa” uma modalidade culposa; isso é esgarçar aquele sentido que é possível num termo empregado pela Constituição Federal. Esse me parece um ponto importante a respeito desse tema. Como os senhores sabem, na Lei nº 8.429/1992 constam três categorias de atos de improbidade administrativa. Quais seriam essas categorias? Aqueles atos que importam enriquecimento ilícito, previstos no art. 9º; os atos que causam prejuízo ao Erário, art. 10; e aqueles atos que importam violação aos princípios da Administração Pública, art. 11. Então, nesses três artigos há um rol de condutas que podem ser enquadradas como atos de improbidade ad- ministrativa. É importante também salientar que talvez não exista uma lei que sofreu, e que me parece, justificadamente, tantas críticas como a Lei de Improbidade Administrativa. É criticável, pois, de fio a pavio, do primeiro ao último artigo, ela merece reparos; é uma lei complicadíssima que vem causando um impacto significativo na vida das pessoas. Entre essas categorias de ato de improbi- dade, é preocupante o art. 10. Por quê? Porque em desacordo com o que eu estou dizendo aos senhores, dispõe: “Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação [...]”. Ou seja, nesse art. 10 está consagrada a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, e aí que os pareceristas correm um sério perigo; e aí, também, vocês me permitam a leitura de um desses incisos do art. 10. Entre os incisos do art. 10 – rol exemplificativo, lembrem-se do “no- tadamente” no caput –, leiam o inc. VIII: “Frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente”; entre outros, aqui que a gente pode colocar. Vejam, para a conduta de um pa- recerista ser enquadrada nesse dispositivo é um pulo; qualquer problema que der na licitação, se tiver um parecer jurídico, pode ser enquadrado nesse dispositivo. E não porque o parecerista agiu com dolo; pode ser que a conduta dele tenha sido uma conduta culposa. Como disse a vocês, a imperícia, a imprudência e a negligência ensejam a responsabilidade do parecerista, e aqui não é nenhuma incoerência. Agora, enseja a culpa do parecerista, enseja a responsabilidade em um determinado domínio de responsabilidade, não para efeito de improbidade administrativa. Para um parecer que foi emitido, por exemplo, com imperícia ou com imprudência, o sujeito pode sofrer um processo disciplinar; pode também ser responsabilizado civilmente porque agiu com culpa. Agora, ele não poderia jamais – isso no meu entender, embora eu saiba que nos Tribu- nais Superiores as coisas não caminham dessa forma – ser responsabilizado por ato de impro- bidade administrativa. O parecerista só pode ser responsabilizado por ato de improbidade admi- nistrativa quando praticar uma conduta dolosa, com má-fé, e deliberadamente violar a ordem jurídica. Então, uma coisa é a responsabilização em termos abrangentes que pode ser tanto por dolo como por culpa; agora, em matéria de im- probidade, só dolosa. Por que eu estou fazendo tanta referência ao art. 10, e não ao art. 9º e ao art. 11? Porque sobre esses dois dispositivos já há uma interpretação, já há jurisprudência sobre a exigência da comprovação do dolo. Ainda, a propósito desse tema, é sempre bom reforçar o que diz o art. 11 da Lei de Im- probidade Administrativa: “Constitui ato de im- probidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de hones- tidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente [...]”. Como pode – e aqui me desculpem o desabafo – uma lei de na- tureza sancionatória ter um dispositivo com essa amplitude? Cabe tudo aqui! Qualquer violação a um princípio da Administração Pública pode ser enquadrada como um ato de improbidade admi- nistrativa. Nem o Judiciário se poupa de críticas a esse dispositivo. Agora, os pareceristas também estão sob o risco do art. 11, que é completamen- te disparatado. Uma lei sancionatória com essa amplitude é um absurdo, pois solapa as bases do Estado de Direito que prevê que qualquer norma sancionatória tem que ter tipicidade, precisa des- crever as condutas com a máxima precisão, sob pena de não ser aplicada. E esse mandamento de tipicidade passa longe dessa regra. Portanto, apenas para sintetizar, o parece- rista vai estar sujeito a responsabilização por ato de improbidade administrativa quando agir dolosamente, essa é a minha ideia; embora, segundo a jurisprudência dominante, também possa responder por culpa. NDJ – BDA – MAR/14260 Outra coisa: a primeira fase de análisedes- sas ações é verificar se a interpretação conferida pelo parecerista é plausível, é comportada pelo texto legal; a partir daí, deve haver outros elemen- tos que provem a má-fé, que não pode ser pre- sumida. Aqui, tenho de entrar em um outro tema em relação à improbidade. A má-fé, ou melhor, o dolo, a culpa, a responsabilidade dos agentes, não é presumida. Não retiraram a presunção de inocência da Carta de 1988. A gente precisa avisar o pessoal por aí, a começar pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Eu estou falando isso porque há pouco tempo ouvi um disparate: que o princípio da presunção de inocência não tem a mesma feição na esfera da improbidade como na esfera penal; que na esfera penal sim, teria uma potência máxima, na improbidade nem tanto assim! Isso tem dado margem a condenações absurdas. Então, embora isso seja um tema que tangencia essas nossas discussões, é sempre im- portante reiterar que, em matéria de improbidade, valem aquelas garantias que a gente verifica, por exemplo, no âmbito penal, até porque as penali- dades por ato de improbidade administrativa, em muitos casos, são mais gravosas do que as penas previstas na legislação penal. Sobretudo agora que – eu não quero entrar em minúcias da Lei de Improbidade, mas é indispensável a gente fazer al- gumas anotações – afora a questão da reputação das pessoas que sofrem essas ações, entende-se que a indisponibilidade de bens é praticamente presumida! É só entrar com a ação, não precisa provar nada, pedir a indisponibilidade de bens, que é deferida! Isso gera aquelas situações lamentá- veis do agente público indo tomar um cafezinho na esquina, tentando passar o cartão e tendo que pendurar a conta, porque são bloqueados e torna- dos indisponíveis todos os bens da pessoa. Não há sequer o cuidado de verificar, por exemplo, quais as contas em que o sujeito recebe o salário. No meu modo de entender, é por meio dessa lei que estão se prodigalizando as maiores ofensas aos direitos individuais no Brasil; as garantias do su- jeito estão sendo violadas diuturnamente por essa lei com um completo abuso do Ministério Público; e é claro, como eu já disse aos senhores, com a acolhida do Judiciário, que sem essa acolhida não se faria nada. Mais uma anotação em relação à improbida- de que está diretamente ligada aos pareceristas. A imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao Erário. Só para refrescar a cabeça de vocês, eu não sei se vocês se lembram do que diz a Constituição Federal em relação às ações de ressarcimento e a questão da imprescritibilidade. Vamos ao art. 37, § 5º: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. O que a maioria es- magadora da doutrina, e também o Judiciário, entende em relação a esse dispositivo? Que as ações de ressarcimento seriam imprescritíveis. Por quê? Quando eu falo que “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados”, e depois “ressalvada a ação de ressarcimento”, estou dizendo que se está ressalvado é que não há prescrição para a ação de ressarcimento. Pessoal, há uma regra básica de intepretação em Direito que diz que as exceções são interpreta- das restritivamente. Isso é uma regra básica que se aprende no primeiro ano de Direito. Agora, é lamentável que até a nossa mais alta Corte tenha se esquecido disso. Eu posso ser um completo analfabeto, mas eu não extraio desse dispositivo uma declaração explícita de imprescritibilidade. Há, no mínimo, uma dúvida ensejada pelo Texto que não diz que as ações de ressarcimento são in- suscetíveis à prescrição. A imprescritibilidade deve ser explícita. Fora essa questão, há alguns pontos que merecem uma análise melhor. Primeiro, falar em imprescritibilidade na esfera penal é uma coisa, falar em imprescritibilidade na esfera civil é outra. Quando eu falo em imprescritibilidade na esfera penal, o que acontece? A pena morre com o sujeito, eu não posso prender o filho do sujeito. Só se a gente voltasse nos tempos de Beccaria! E a imprescritibilidade no plano civil? Vamos supor que os senhores assinem um parecer. O processo fica lá décadas e depois de anos entende-se que aquele processo lesou o Erário, e o parecerista também. É assim, pois o Ministério Público vê todo mundo que assinou o processo. Como vocês estavam lá como pareceristas, estão no rolo. Assim, depois de 40 anos que aquilo foi assinado, você já à beira da morte, entram com ação judicial! O que acontece? É imprescritível! Os seus descendentes, seus herdeiros, vão ter que responder por aquela suposta violação à or- dem jurídica que causou dano ao Erário. Então, é completamente disparatado esse entendimento de que é imprescritível a ação de ressarcimento. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – MAR/14 261 O prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, há poucas edições, alterou o entendimento dele para defender a prescritibilidade da ação de ressarcimento em função desses argumentos que eu estou expondo aos senhores, além de outros. Um deles: direito à prova. Você vai dar um parecer e vai guardar todos os processos, todas as razões que levaram ao entendimento? Não. O direito à prova fica seriamente comprometido; é o direito de se defender naqueles casos. Também o princípio da segurança jurídica fica seriamente comprometido, pois, a qualquer momento, você pode ser incomodado com aquela situação; o princípio da segurança jurídica postula, dentro de um estágio de Direito, que as coisas têm um fim: boas ou más precisam ter um fim. O prof. Romeu Felipe Bacellar Filho tem alguns artigos em que defende a prescritibilidade, é professor titular, ca- tedrático, do Paraná. Recentemente, o prof. Silvio Luiz Ferreira da Rocha lançou o Manual de direito administrativo e defendeu uma posição, que é a do Min. Cesar Peluso, uma interpretação interes- sante, intermediária. O que eles dizem? Como o dispositivo diz que a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos, na verdade, eles falam que só é imprescritível a ação de ressarcimento quan- do ligada a crime; então, improbidade estaria fora. Outros autores defendem a imprescritibilidade. Há outro ponto que é interessante: os atos de improbidade em si, as sanções da Lei de Impro- bidade, prescrevem em 5 anos. Claro, com todas aquelas discussões, a partir de qual momento começa a correr o prazo, e tudo isso. Agora, va- mos supor, e isso é comum, que em uma ação de improbidade administrativa fiquem indisponíveis todos os bens do agente público que praticou aqueles atos – isso hoje é praticamente auto- mático – e já ali no despacho para receber a petição inicial, o Juiz diga que realmente os atos de improbidade prescreveram. Não é possível punir o agente, mas a ação de ressarcimento vai continuar. Daí você fala: mas em uma ação de ressarcimento há indisponibilidade de bens nos moldes da ação de improbidade? Eu desconhe- ço que em uma ação de ressarcimento contra qualquer sujeito, em uma canetada, já se tornem indisponíveis todos os bens do sujeito passivo. E infelizmente isso também é uma coisa que hoje vem acontecendo. Muitas vezes se reconhece a prescrição dos atos de improbidade, mas prossegue-se com a ação. Eu não posso deixar de falar que os órgãos de controle não estão acima da ordem jurídica. Todo e qualquer órgão de controle, o Tribunal de Contas, o Ministério Público – me parece também que é um órgão de controle da Administração Pública, não quando propõe ações, porque na verdade esse controle é atribuído ao jurisdicional, mas na atividade extrajudicial – se submetem à ordem jurídica e também à responsabilidade, de modo que todas essas medidas, muitas vezes praticadas com abuso porparte dos membros desses órgãos, devem ser devidamente repreen- didas. É claro que vocês devem estar pensando: mas quem vai acioná-los? Eu sei dos problemas que existem nessa matéria, mas cumpre a nós reforçar a necessidade de que essas pessoas sejam responsáveis. Em matéria de improbidade, a própria lei já traz essa ideia de que quando ações forem manejadas com abuso ou quando sabidamente for inocente o sujeito passivo, isso constituirá crime, afora a responsabilidade pela ofensa à imagem. Porém, isso precisa sair do pa- pel, senão continuaremos com essa indústria de ação de improbidade! Isso é bom para os advo- gados, mas não é bom para quem está sofrendo essas ações. Se é que agora até os advogados estão sofrendo essas ações! Há poucas sema- nas saiu um acórdão – não é nessa matéria de parecerista, mas em relação à contratação de escritórios de advocacia pelo Poder Público –, dizendo que é possível a contratação direta de advogados. Não só os pareceristas que estão dentro da Administração Pública, mas também quem está na advocacia privada está sofrendo frequentemente ações de improbidade. A gente até brinca que tem o “Clube dos Administrativis- tas”, com ações de improbidade nas costas, por- que parece que todo grande administrativista está sofrendo uma ação de improbidade por causa dessa prática abusiva do Ministério Público com a acolhida do Judiciário. Então, a responsabilidade do Ministério Público é urgente. Também há a responsabilidade funcional. É claro que aqui eu estou fazendo um juízo genérico, e estou fazen- do seguramente injustiça a alguns membros do Ministério Público, mas nos tempos que correm, me parece justa essa crítica geral. Só para avançar um pouco, e eu parar de ficar ranzinza, eu gostaria de passar aos senhores a posição do Supremo Tribunal Federal nessa matéria de pareceristas. Vou ler um trecho da NDJ – BDA – MAR/14262 ementa do MS nº 24.631, do Distrito Federal, que teve como relator o Min. Joaquim Barbosa. Acho que esse é o acórdão mais citado e mais refe- rido a respeito dessa matéria. Prestem atenção na classificação que eles fazem: “Constitucional. Administrativo. Controle externo. Auditoria pelo TCU. Responsabilidade de procurador de autar- quia por emissão de parecer técnico-jurídico de natureza opinativa. Segurança deferida”. Vejam que os Tribunais de Contas também estão apli- cando multa contra os advogados. E aí diz lá: “I. Repercussões da natureza jurídico-administrativa do parecer jurídico: (i) quando a consulta é fa- cultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo; (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer”. Eu não sei se vocês estão acompanhando, mas isso aqui destoa do que a doutrina fala. Continuando: “(iii) quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídico deixa de ser meramente opinativa e o ad- ministrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir”. Vamos à análise do acórdão. Há um primeiro dado: qual a terminologia empregada? A mesma que eu disse, e esse é o problema que eu come- cei falando para vocês: tomem cuidado com a terminologia nesse assunto. Qual o rótulo que ele deu aqui para os pareceres? Facultativo, obriga- tório e vinculante. É o mesmo sentido que eu dei para vocês aqui? Não. Não é o mesmo sentido. O que ele diz? No facultativo, a autoridade não se vincula ao parecer proferido; ou seja, ele está falando de conteúdo do parecer, o seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão. Ou seja, ele não falou da discricionariedade em relação à emissão. Lembra que eu falei que é facultativo em relação à emissão; eu posso ir lá e solicitar um parecer, mas posso praticar aquele ato sem parecer. Não é isso que está dito aqui. Outro trecho: “quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria”; ou seja, aqui ele está dizendo obrigatório no sentido de vinculante. Agora, qual é a diferença? Se ele qui- ser praticar esse ato mesmo assim, ele precisa pedir outro. Você está entendendo? Então, o obri- gatório dele é o vinculante com a possibilidade de pedir outro. O tópico 3, o que é? É também um parecer vinculante, só que ele deixa de ser meramente opinativo. Mas o 2 também não era opinativo, não é? E o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão, ou então não decidir. Veja que a diferença do obrigatório para o vinculante dele é: em um você pode pedir outro. No vinculante dele você decide daquele jei- to ou você esquece o processo! Então, o rótulo é o mesmo, é isso que eu quero chamar a atenção dos senhores, mas o sentido é completamente diferente do que é defendido pela doutrina. Feita essa consideração, vamos à conclusão que tira o nosso il. Ministro: “II. No caso de que cuidam os autos, o parecer emitido pelo impetrante não tinha caráter vinculante. Sua aprovação pelo superior hierárquico não desvirtua sua natureza opinativa, nem o torna parte de ato administrativo posterior do qual possa eventualmente decorrer dano ao Erário, mas apenas incorpora sua fun- damentação ao ato”. Então, ele está dizendo que, como o parecer, segundo a classificação que ele mesmo adotou, devia ser o facultativo, não gera a responsabilização. Aqui, me parece, que há outro equívoco, eu já vou falar para vocês. Depois, e aí encerro essa leitura da ementa. “III. Controle externo: É lícito concluir que é abusiva a respon- sabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao Erário”. E aqui é um critério interessante e perigoso: “Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo- -disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa”. O que ele está querendo dizer, pes- soal? Pelo menos é essa a interpretação que eu faço aqui: ele faz uma distinção se o parecer é vinculante ou não; se não é vinculante, não con- correu para a prática do ato; se for vinculante, aí ele tem que ser responsabilizado. Agora, mesmo no facultativo aqui, quando não é vinculante, ele fala em “demonstração de culpa e erro grosseiro”. Claro, ele não estava falando de improbidade administrativa, só que se estivesse falando, eu aposto que ele condenaria também. Qual é o meu juízo em relação a esse acórdão? Em relação à DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES – NDJ – BDA – MAR/14 263 classificação já expliquei, parece que destoa do que é defendido pela doutrina. Agora, em relação à responsabilização em si, no meu entendimento, ela não está ligada ao caráter vinculante ou não do parecer. Pode ser que um parecer facultativo, um parecer obrigatório – veja, agora eu estou usando o sentido que eu expus aos senhores – concorram para a prática de um ato de improbidade admi- nistrativa tanto quanto um parecer vinculante. Na verdade, o parecer vinculante, como eu já disse aos senhores, em si, já é uma decisão; e aí, claro, as coisas ficam mais fáceis, o próprio parecerista já decidiu, depois vai ter que ter um ato só para referendar aquilo, mas ele já decidiu sobre aquela determinada matéria. Agora, nos outros pareceres, nessas outras condutas, também pode concorrer para a prática desse ato; no caso aqui, como eu disse aos senhores sobre improbidade, se houver dolo. Então,não me parece que, constatando que o parecer é facultativo, não pode haver respon- sabilização; ou que, nesse caso, pode não existir dolo. Posso agir e posso concorrer para a prática daquele ato. Então, essa distinção entre vinculante e o que ele chama de facultativo talvez mereça uma reflexão maior. Para finalizar, uma brevíssima síntese a respeito do tema da improbidade em relação ao parecerista. Primeiro, a atividade do parecerista está sujeita às contingências e à própria nature- za do Direito; essa natureza é variada e sujeita a inúmeras interpretações. Esse é o primeiro obstáculo à responsabilização do parecerista. Em relação à improbidade administrativa, é pre- ciso que haja a desonestidade do parecerista; não havendo essa desonestidade, que deve ser devidamente comprovada, não há como responsabilizá-lo por improbidade administrativa; ele pode ser responsabilizado em outras esferas, mas não pelo cometimento de ato de improbida- de administrativa. O que isso significa? Significa que é preciso individualizar as condutas; não é possível a gente continuar adotando essa postura de que toda e qualquer pessoa que toca naquele processo vai ser responsabilizada igualmente e sem saber qual é a efetiva participação em uma determinada realização da Administração Públi- ca; isso interfere diretamente com o tema que nós estamos cuidando. O parecerista está sendo vítima dessas incompreensões dos órgãos de controle, está sendo responsabilizado em casos que não deveria ser. E o que isso proporciona? Imobilismo: a Administração Pública está cada vez mais sofrendo de imobilismo. Há algumas décadas a gente vem combatendo a discriciona- riedade administrativa, que, segundo dizia um autor alemão, era o Cavalo de Tróia, uma figura maléfica que solaparia as bases desse Estado de Direito. Hoje, no Brasil, talvez tenhamos que postular o respeito à discricionariedade admi- nistrativa; mesmo o prof. Celso Antônio, grande defensor do controle da discricionariedade admi- nistrativa, nunca a eliminou como outros autores que entendem que, perante o Poder Judiciário não existe discricionariedade, pois sempre o Judiciário pode ingressar na discricionariedade sem qualquer peia, sem qualquer limite. Hoje, os órgãos de controle desconsideram essa esfera de liberdade do administrador e, por consequência, também do parecerista, e isso gera esse estado de insegurança, de caça às bruxas. Há pouco tempo, e por isso que estou com essas coisas tão frescas na minha cabeça, eu fui convidado pelo amigo, prof. Márcio Camma- rosano, para falar sobre o controle dos órgãos de controle. Estamos vivendo no Brasil um momento muito maniqueísta de discussões públicas, e pro- vavelmente se alguém da mídia estivesse aqui, falaria que eu sou a favor da corrupção; afinal, se ele está falando assim do Ministério Público é a favor da corrupção! É tudo ou nada, ninguém pode criticar o MP senão é taxado de defensor da corrupção; como também, se você fala bem do MP, você vira o arauto da probidade administrati- va. As coisas não têm que ser dessa forma. Ago- ra, é imperiosa a discussão e o fortalecimento dos mecanismos de controle dos órgãos de controle, senão, nós advogados, continuaremos sendo reféns dessa política de responsabilização, que, ao final das contas, em última análise, é contrária ao que prescreve a Constituição Federal. Eu não fiz um discurso de política para vo- cês. Eu primeiro fiz um discurso técnico-jurídico e agora estou fazendo as minhas considerações de ordem extrajurídica, que são importantes talvez para a gente meditar um pouco melhor sobre esse tema, e também para que a gente dê a devida importância, embora eu imagine que os senhores saibam, talvez até por sentirem na pele, as agruras desses entendimentos equivocados. Isso era o que eu tinha para contribuir. Agra- deço demais a atenção. Muito obrigado.
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