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ÉTICA PARA O MEIO AMBIENTE Para Flávia Neto, em memória. André Brayner de Farias 1 Introdução O tema da ética ambiental e do direito dos animais ganhou relevância a partir das discussões sobre a crise ecológica ou crise dos recursos da natureza, surgidas já no século XIX, mas intensificadas principalmente ao longo da segunda metade do século XX. De uma maneira geral a ética ambiental enquadra o conjunto das abordagens éticas que enfatizam a responsabilidade humana diante do meio ambiente, primeiramente entendido como os elementos da natureza, mas cada vez mais ampliando-se para envolver o conjunto de tudo o que nos envolve. A ética ambiental pode ser entendida como uma estratégia em vista da sustentabilidade ecológica da vida no planeta, que significa buscar respostas para questões do tipo: de que modo regular nossas ações para que as mesmas não comprometam as gerações futuras? Certamente, tais questões só podem surgir a partir do diagnóstico geral da crise ecológica, que vai tender inevitavelmente a encontrar sua principal causa no padrão de nossa atual civilização industrial e tecnológica. A discussão da ética ambiental, em geral, tem deslocado o acento antropocêntrico que caracteriza a tradição ética do ocidente. De fato, a tendência majoritária do discurso da ética ambiental vai buscar um equilíbrio de consideração moral entre animais humanos e não humanos, mais ou menos acentuado na direção de um igualitarismo, a depender da corrente de pensamento em questão. Mais ou menos radicais em sua defesa dos animais não humanos, as éticas ambientais tenderão a criticar o antropocentrismo de nossa tradição ético-filosófica. A crítica da racionalidade tecnocientífica, origem da civilização industrial, está frequentemente presente no debate da ética ambiental, constituindo um importante núcleo de entendimento e justificativa da questão. A análise é, em geral, a seguinte: o pensamento científico moderno surge com o pressuposto da objetividade da natureza e 1 Oceanólogo e Doutor em Filosofia. UCS/PUCRS. com o desenvolvimento do método experimental, a natureza torna-se cada vez mais objeto de experiência científica, objeto do conhecimento científico e, em seguida, objeto da produção e da transformação industrial, o que leva a natureza a ter os seus processos intensivamente acelerados, ao ponto de chegar aos seus limites e de esgotar a sua capacidade produtiva – é a chamada crise dos recursos naturais. Ou seja, partimos da racionalidade científica, avançamos para a tecnologia, a aliança entre a ciência e a técnica, daí para a industrialização e o uso intensivo da natureza, e finalmente chegamos ao ponto culminante, a escassez dos recursos naturais. Sem a oferta de recursos naturais, a vida está ameaçada. É necessária, então, uma relação mais crítica com a racionalidade que fundamenta e alimenta todo o processo, toda a cadeia de eventos que nos leva ao esgotamento da natureza como ameaça à sustentabilidade da vida. Outra questão que está em jogo na ética ambiental é a concepção de natureza: o que entendemos pelo termo natureza quando queremos ‘salvar a natureza’? O que nos permite separar o espaço da natureza do espaço da não-natureza, que chamamos de cultura? O que sustenta a ideia que fazemos de nós mesmos como seres culturais? A ideia de natureza tem uma história, e a nossa concepção de natureza, tecnicista e salvacionista, é tributária dessa história. Quando a ética ambiental levanta a questão de nossa responsabilidade face à natureza, obviamente que precisamos tomar consciência do estado atual da história da ideia de natureza. No mínimo porque a relação problemática que a nossa civilização mantém com a natureza, que tem levado ao quadro crítico de esgotamento de recursos, deriva de uma determinada representação, científica e objetificadora, que reduz a natureza a reserva de matéria-prima. Quando tomamos consciência do desequilíbrio ecológico e advogamos a favor da preservação ambiental, contribuindo, dessa forma, para uma certa ‘sacralização da natureza’, nossa adesão à causa da natureza está de fato apontando para uma outra representação da natureza ou está apenas mostrando o outro lado da ideia objetificadora, que responde, como sabemos, pelo mesmo desequilíbrio ecológico que nos desperta o amor pela natureza? Tais questões estão em jogo no debate da ética ambiental. Uma ética ambiental que seja propositiva deve ser crítica do atual modelo de desenvolvimento econômico, baseado na produção intensiva de bens e serviços e no consumo descartalizante, não apenas pelo fato óbvio do acúmulo de lixo e do desperdício de energia e de recursos, mas principalmente pela racionalidade objetificadora que projeta o modelo econômico. O discurso da ética ambiental precisa despertar a consciência de que a questão da crise ecológica, o esgotamento da natureza coincide com a questão do esgotamento de um modelo de racionalidade econômica. E a tendência do modelo econômico é adaptar-se a demanda do equilíbrio ecológico, tornando-se uma economia verde 2 . Mas a economia verde continua jogando o mesmo jogo da produção intensiva e do consumismo que descarta e entulha. Nossa tendência é tornarmo-nos consumidores verdes, quando reduzimos o discurso da ecologia a uma discussão estritamente econômica, acreditando cegamente no poder autorregulador do mercado e na ação de uma suposta mão invisível. A ética ambiental deseja se comprometer com uma mudança mais estrutural - da matriz axiológica e da cultura, o que envolve também a economia. Mas não se trata de uma discussão econômica da qual se esperaria a proposição de um novo modelo de produção. O que se deve esperar, a partir do discurso da ética ambiental, uma vez que ele tem espaço, vez e voz, é que qualquer que seja o modelo econômico ele deve ser necessariamente sustentável 3 , ou seja, ele deve saber responder às demandas das gerações futuras, deve considerar a viabilidade da sociedade humana do ponto de vista de sua reprodutibilidade, de seu fluxo, de sua duração. O presente capítulo está dividido em três partes, sem contar a introdução e a conclusão: a primeira parte fará uma apresentação geral e uma discussão comparativa das principais correntes da ética ambiental. O elenco de perspectivas de ética para o meio ambiente é grande e foge às dimensões deste capítulo. Dadas as limitações optamos pela análise de três correntes bastante significativas do ponto de vista do debate filosófico: o sencientismo, o biocentrismo e o ecocentrismo – o objetivo da primeira parte é estudar o estado atual da discussão filosófica em ética ambiental; a segunda parte propõe uma problematização da ideia de natureza no contexto da crise ecológica, o objetivo dessa discussão é a superação crítica de certos dilemas que envolvem o pensamento ecológico de cunho ético e político em defesa da natureza. A terceira parte dedica-se a apontar novos caminhos de desenvolvimento de uma ética para o meio ambiente a partir das consequências críticas da problematização filosófica da natureza, chamaremos tal perspectiva de ética ambiental vitalista. 2 Ricardo Abramovay em Muito além da economia verde propõe que o novo modelo de vida econômica seja fundamentado numa nova aliança entre sociedade e natureza, economia e ética: “A importância da ética na vida econômica não é apenas uma nova e longínqua aspiração filosófica alternativa, e sim um traço decisivo da vida social e que a sociedade da informação em rede valoriza de forma inédita”. (ABRAMOVAY, 2012. p. 25). 3 Para uma abordagem doconceito de desenvolvimento sustetável, consultar NOBRE, Marcos; AMAZONAS, Maurício de Carvalho (Orgs.). Desenvolvimento sustentável – a institucionalização de um conceito, e também LEFF, Enrique. Discursos sustentáveis. Referências completas ao final. 1. Paradigmas da ética ambiental: o estado atual da discussão Em geral as correntes da ética ambiental dividem-se conforme o alcance de seus critérios de consideração moral. O foco principal e comum é o valor moral da natureza, e aqui se inscreve a tendência que distancia as éticas ambientais das éticas tradicionais. A abordagem ambiental tende a criticar o antropocentrismo que, em linhas gerais, caracteriza o discurso da abordagem tradicional. O antropocentrismo das éticas tradicionais não admite nenhuma consideração moral além do ser humano, e mesmo quando se trata de responder aos problemas da crise ecológica, os argumentos continuam centrados nos interesses humanos: devemos salvar a natureza não exatamente porque ela mereça uma consideração moral, mas porque percebemos que dela dependemos: toda nossa condição econômica, portanto nossa sobrevivência, está baseada nos recursos dos ecossistemas. As éticas ambientais propõem linhas de argumentação que ampliam o nicho da consideração moral para além dos interesses humanos, e nesse sentido, rompem com o antropocentrismo tradicional. Abordaremos a seguir algumas das principais correntes, procurando entender o núcleo argumentativo de cada uma, bem como propondo pontos de problematização para que o debate permaneça aberto e não linear. Não partiremos aqui para buscar verdades, mas antes para propor divergências afirmativas e não exclusivistas de perspectivas, pois nenhuma corrente de pensamento deveria se pretender suficiente. 1.1 O sencientismo O argumento central do sencientismo 4 , também chamado de ética do bem estar animal, baseia-se na senciência. Entende-se por senciência a capacidade dos animais para sentirem dor e prazer, permitida pela presença de consciência e sensibilidade. Esta corrente enquadra-se na ética utilitarista 5 , que baseia a decisão moral nas consequências da ação e não em regras gerais a priori. Segundo a doutrina utilitarista a melhor ação é aquela 4 Para uma abordagem apurada do sencientismo ver: FELIPE, Sônia T. Antropocentrismo, sencientismo e biocentrismo: perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não humanos. Revista Páginas de Filosofia, v.1, n.1, jan-jun/2009. 5 Ver neste Manual de ética o capítulo O consequencialismo, de Cinara Nahra. capaz de gerar as melhores consequências para o maior número de envolvidos, e as melhores consequências são sempre aquelas que podem gerar maior felicidade, maior prazer e maior bem estar, ou, negativamente, aquelas ações capazes de diminuir o grau de infelicidade e sofrimento. O raciocínio da moral utilitarista rompe com o critério das éticas tradicionais baseado na racionalidade: a moralidade não se restringe à comunidade dos seres racionais, mas à comunidade dos seres sencientes, ou seja, são dignos de consideração moral todos os animais capazes de sentir dor e prazer. O utilitarismo propõe que ao invés de perguntarmos sobre se é capaz de pensar, perguntemos sobre se é capaz de sofrer. O sencientismo é a vertente utilitarista da ética ambiental e seu principal representante contemporâneo é o filósofo Peter Singer. 6 Na ética do bem-estar animal o ponto de partida é uma classificação dos animais conforme o critério da senciência. É a capacidade de experimentar dor e prazer a condição para a entrada do animal na comunidade dos seres dignos de consideração moral. A observação empírica demonstra a capacidade dos animais em expressar a dor e o prazer, e quanto mais evoluídos, quanto maior é a tendência de especialização do sistema nervoso, mais sencientes se tornam os animais. Esse é um aspecto problemático da abordagem senciocêntrica, pois a teoria pressupõe uma certa objetividade da capacidade de sentir dor e prazer, dificilmente verificada na experiência. A divisão tende a ser forçosa por falta de condições objetivas que fundamentem com precisão a capacidade biológica de sentir dor e prazer, e também deve admitir uma certa linearidade, problemática, do processo evolutivo da vida 7 . Obviamente que os vertebrados parecerão mais dignos moralmente, pois o seu comportamento de reação à dor é bastante semelhante ao nosso. Um certo antropocentrismo parece querer se insinuar na medida em que a ética da senciência toma como referência o comportamento semelhante ao nosso. Mas o que nos autoriza a negar a senciência ao invertebrado incapaz de gemer ou de gritar? Eis uma dificuldade do argumento utilitarista: como entender ou como escutar a 6 Autor, dentre outras obras, de Ética prática e Libertação animal. 7 No próximo item apresentaremos uma visão não linear de evolução da vida, que permitirá novos focos de análise. sensibilidade e consciência 8 dos animais em geral para além do código comportamental comum à maioria dos vertebrados? Como decidir sobre a senciência em geral se nossa compreensão a respeito da capacidade de sentir deriva de nossa própria senciência? Essas questões encontram uma resposta na perspectiva biocêntrica. A partir do momento em que podemos decidir quais são os que sofrem e quais são os que não sofrem, a partir do momento em que aceitamos que o sofrimento é uma categoria biológica, localizada no sistema nervoso, e concluir que uns sofrem e outros não, ampliamos o nicho da moralidade para abrigar os animais que sofrem. Os seres morais do sencientismo são aqueles que, segundo o nosso critério de senciência, expressam sensibilidade à dor e sofrimento. O argumento utilitarista estabelece a nossa obrigação moral na comunidade senciente: agir de modo que as consequências da ação não signifiquem sofrimento e, de preferência, que elas resultem no incremento do bem estar. 1.2 O biocentrismo A abordagem biocêntrica 9 da ética ambiental amplia a comunidade dos seres morais a todo organismo vivo. O argumento central estabelece que toda vida constitui um centro teleológico, todo organismo vivo tem uma finalidade. A ação moral deve, portanto, reconhecer o interesse inerente ao ser vivo de permanecer vivendo, ou seja, cumprindo a sua finalidade. O critério da senciência é alvo de crítica, pois a capacidade de sofrer não resolve o problema da moralidade ambiental: para o biocentrismo a capacidade de viver, por ser anterior e mais fundamental, é que deve pautar o decisionismo moral. Ainda que não sejamos capazes de compreender o valor inerente que toda forma de vida constitui, é possível que sejamos capazes de intuí-lo: o esforço mais próprio e genuíno da vida, o da manutenção de si mesma, é 8 Entenderemos consciência como dimensão coextensiva da vida, tal conceito será aprofundado proximamente. 9 Consultamos para este item: STÖHR, Andreas. Ética e ecologia: um levantamento sobre os fundamentos normativos da ética ambiental. Em: NOBRE, M; AMAZONAS, M. C. (orgs.). Desenvolvimento sustentável – a institucionalização de um conceito; FELIPE, Sônia T. Antropocentrismo, sencientismo e biocentrismo – perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não-humanos; TAYLOR, Paul W. The Ethics of Respect for Nature, disponível em: www.umweltethic.at, acesso em junho de 2013. Indicamos também o volume especial da revista ETIC@, Revista Internacionalde Filosofia da Moral, da UFSC, dedicado ao tema da ética ambiental. O volume apresenta uma excelente abordagem sobre o debate em ética ambiental, apresentando autores como Tom Regan, Paul Taylor e Kenneth Goodpaster, expoentes do pensamento ambiental estadunidense. aquilo que produz e indica o valor da vida. Está em questão o reconhecimento da autonomia prática das formas de vida, ou seja, a tomada em consideração do valor que constitui a capacidade inerente à vida de autoprover-se. A crítica ao antropocentrismo toma a forma radical do combate à discriminação especista, sustentada por um modelo linear de evolução 10 . Uma ética que tem como centro de decisão o conceito de vida simplesmente não vai admitir nenhuma vantagem moral a espécies mais evoluídas. O grau evolutivo deixa de valer como critério moral a favor do valor inerente da vida. A objeção mais óbvia ao modelo de ética biocêntrica diz respeito a própria sustentabilidade da vida, que impõe aos organismos a necessidade de se alimentarem de outros organismos, processo que a ecologia chama de cadeia alimentar. O biocentrismo parece sugerir um igualitarismo que problematiza o encadeamento alimentar que sustenta a vida, e que nos levaria a considerar a morte de um ser humano tão condenável quanto a morte de qualquer outro animal. A resposta biocêntrica é que a interferência na vida de outros seres impõe uma justificativa razoável. Em princípio, não há nenhum dado objetivo que torne uma forma de vida mais valiosa ou mais merecedora de consideração do que outra, apenas a necessidade de sobrevivência pode justificar a interferência na vida de outro organismo. Assim, de acordo com o biocentrismo, a morte de um ser humano resultante de uma ação extrema de autodefesa pode ser justificada da mesma forma como a morte de um animal para prover a necessidade de sobrevivência em circunstâncias igualmente extremas; por outro lado, não tenho razão moral para esmagar uma fileira de formigas simplesmente porque tenho nojo desses insetos. É preciso que as razões sejam fortes o suficiente, e elas não podem favorecer sempre o interesse humano, pois o centro do interesse é a vida sem distinção de espécie. 10 No próximo item tratamos do conceito de especismo em sua relação com o modelo linear de evolução biológica. O modelo biocêntrico de Paul Taylor 11 propõe quatro regras básicas que devem ser seguidas se quisermos levar a sério o respeito pela natureza: a não-maleficência, a não-interferência, a fidelidade e a justiça restitutiva. Por não-maleficência entende-se a regra que nos obriga a não praticar ações que possam fazer mal ao paciente moral. Entende-se por paciente moral o partícipe da comunidade moral incapaz de compreender as ações que pratica ou sofre ou todo ser que age sem o comando de uma autoconsciência deliberativa. Obviamente que pacientes morais não cometem maldade, simplesmente porque não são capazes de compreender suas próprias ações, portanto, não podem ser responsabilizados. Agente moral é todo ser humano capaz de deliberar e compreender as consequências de suas próprias ações. A regra da não-maleficência obriga o agente moral a não praticar ações que privem qualquer espécie viva de sua própria vida ou que prejudiquem sua comunidade. Por não-interferência entende-se a regra que nos impede de interferir na liberdade de outros seres vivos. O organismo é livre quando goza de todas as condições naturais para o seu autoprovimento, como alimentação, abrigo e possibilidade de escolher o seu território e constituir a sua comunidade. Toda ação que interfira em qualquer desses processos da vida livre deve ser evitada. São compreendidas como interferentes também as ações de manejo e controle da vida selvagem, como são, em geral, as práticas conservacionistas, e não importa se tais medidas são bem intencionadas, pois elas partem de um pressuposto autoritário que impõe à natureza um ordenamento artificial e centrado no interesse humano. Assim, qualquer forma de captura, controle e confinamento da vida, para o bem ou para o mal, não pode ser justificada do ponto de vista biocêntrico, pois significa o prejuízo da liberdade dos indivíduos, condição básica para o exercício de sua autonomia prática. Por fidelidade entende-se a regra que obriga o agente moral a não trair a confiança que recebe em seu convívio com os outros animais. A confiança é a condição mais básica da relação pacífica entre indivíduos, ela é inocente, pois implica na entrega das armas quando ocorre o encontro. Um animal é 11 Filósofo estadunidense, uma das principais referências da ética biocêntrica, autor da obra Respect for nature: studies in moral, political and legal philosophy. capaz de conviver pacificamente com o outro quando sua relação é capaz de produzir confiança mútua e, consequentemente, mútua recusa de autodefesa. Significa a capacidade de acolher eticamente a existência do outro. 12 A ausência de articulação intelectual por parte dos animais não humanos abre o código da confiança para horizontes ampliados, que fogem do nosso alcance de compreensão. Os animais se entregam a nós a partir de seus horizontes e nós, em geral, nos aproveitamos da nossa inteligência para ludibriar a confiança que os animais nos dão tão genuína e gratuitamente. O mesmo acolhimento responsável que somos capazes de dar a um bebê humano recém nascido devemos aprender a dar aos animais, que como os bebês não articulam intelectualmente, são pacientes morais. Segundo o biocentrismo, não só aos animais, a todo ser vivo animal e vegetal. A regra da fidelidade diz simplesmente que não temos o direito de trair a confiança dos animais nas relações que compomos com eles. Por justiça restitutiva entende-se a obrigação de restituir aos animais e plantas os danos que lhes provocamos. Preferencialmente que ela seja a última alternativa, pois, por exemplo, se respeitamos a regra da não- interferência, a justa restituição não precisa ser mobilizada. Obviamente que se quisermos imaginar uma sociedade decidida a viver conforme o modelo ético biocêntrico, dificilmente conseguiremos imaginar a justiça restitutiva não ser a regra mais frequentemente aplicada, tardaríamos muito em aprender a viver conforme a regra da não-interferência, e, portanto, teríamos que restituir com muita frequência. Digamos que o ideal de justiça biocêntrica seja uma sociedade capaz de viver sem provocar interferência, para que não corra o risco de causar mal, para que não corra o risco de trair a confiança e, finalmente, para que não necessite restituir. (Um inevitável questionamento. Nossa sociedade teria que primeiro restituir bastante, por bons períodos de duro aprendizado, até que conseguiríamos viver em sociedade não interferente. Sejamos aqui bem francos: é muito difícil imaginar uma tal composição ecológica entre as comunidades bióticas 12 Ricardo Timm de Souza discute a questão ambiental a partir da categoria da alteridade, situado, sobretudo, na teoria ética de Emmanuel Levinas. Para o autor, uma ética ambiental deveria acolher a natureza como alteridade ética, e não ficar iludida com uma visão holística e ingênua de natureza. Esta proposta está de acordo com a ideia de confiança, muito sensível e significativa para a chamada ética da alteridade levinasiana. humanas e não humanas. Primeiramente é muito artificial e ilusória a divisão que esta teoria pressupõe que exista entre natureza e sociedade humana ou cultura.É muito difícil que uma tal sociedade, bastante hipotética, diga-se, de um realismo e de um pragmatismo remotos, não tenha que estabelecer áreas de proteção ambiental para isolar a natureza das violentas e não merecedoras de confiança sociedades humanas. Como se as sociedades tivessem brotado do nada, de uma não natureza, como se não fôssemos o trabalho livre da própria natureza, o princípio natural da indeterminação que ganha corpo no psiquismo humano. O biocentrismo é uma reverência incondicional ao valor da vida, sem distinção de espécie, e nesse aspecto, é o exemplo mais elevado de ética ambiental autêntica, mas padece ainda de uma visão romântica de natureza, quando idealiza um mundo onde humanos não interferem na vida que julgam natural. Como não admitir que não temos saída a não ser convivendo com a natureza e todos os seres vivos? Talvez o biocentrismo possa privilegiar a regra da fidelidade, pois certamente não tem melhor lição a ser aprendida por nós humanos do que a da confiança. Creio que seja muito menos artificial e mais fácil de imaginar uma cultura capaz de acolher a natureza e todos os seus seres como se acolhe alguém em sua própria casa. Seria esta uma sociedade autenticamente biocêntrica). 1.3 O ecocentrismo O ecocentrismo é o conjunto das correntes de ética ambiental que estendem o critério de consideração moral para além das entidades vivas. Passam a merecer valor moral as paisagens, os rios, a atmosfera, as florestas, as montanhas. Ganham voz as noções de ecossistema e biotic community (comunidade biótica). O conceito clássico de ecologia, cunhado pelo darwinista alemão Ernst Haeckel (1834-1919), que acentua o caráter da interação, entre indivíduos e destes com seu meio, é apropriado para enfatizar o valor supremo da comunidade. Se no biocentrismo, a vida é o centro de gravidade da moral, no ecocentrismo, o valor moral é desindividuado: o indivíduo não vale tanto quanto a sua comunidade, ou antes, vale na medida de sua relação com a comunidade. O foco se volta para o coletivo, não o indivíduo, mas a população; e não só a comunidade biótica, mas a paisagem física, os rios, as montanhas. É preciso haver um equilíbrio na composição das populações. Se uma população se sobressai a outras algo está errado, um prejuízo para a biodiversidade que mantém a beleza e a integridade dos ecossistemas. A saúde dos indivíduos está subordinada à saúde da população; a saúde da população está subordinada à saúde da comunidade de populações; a saúde da comunidade está subordinada à saúde do ecossistema, que por sua vez está subordinada à saúde da biosfera, o planeta Terra. O individual se dilui no todo, por isso o ecocentrismo é um tipo de ética ambiental holística, o valor está no todo e as partes valem enquanto estão integradas, ou seja, dependendo da forma como estão integradas nesse todo. O paradigma do ecocentrismo 13 é a ética da Terra de Aldo Leopold (1887 – 1948), certamente uma das mais importantes corrente de ideias que influenciou o movimento ecológico, notadamente estadunidense, no século XX. Em seu pequeno artigo intitulado Ética da Terra (The Land Ethics), presente no livro A Sand County Almanac (1949), encontramos a fórmula básica do ecocentrismo: “Uma coisa está certa quando tende a preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica; está errada quando tem a tendência inversa” (LEOPOLD, 1949.). O desequilíbrio entre populações traz como consequência o prejuízo da comunidade biótica, que se torna feia, instável e desintegrada. É necessário evitar que isso aconteça promovendo o controle das populações. Dado que o ecocentrismo também não discrimina por espécie, é uma ética não especista, toda e qualquer população é alvo de controle e está sujeita a medidas radicais para sua contensão. O que significa concretamente que, da mesma forma como controlamos com veneno uma determinada praga de insetos transmissores de doenças, teríamos que promover o extermínio de populações humanas para devolver a estabilidade, a beleza e a integridade do ecossistema. Mas teríamos antes que decidir os critérios para distinguir os elimináveis. 13 Algumas referências sobre ecocentrismo consultadas para a produção deste item: STÖHR, Andreas. Ética e ecologia: um levantamento sobre os fundamentos normativos da ética ambiental. Em: NOBRE, M.; AMAZONAS, M.C. (Orgs.). Desenvolvimento sustentável – a institucionalização de um conceito; GALVÃO, Pedro. O dilema da ética da Terra (Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa), que analisa sobretudo as implicações ecofascistas do modelo ecocêntrico de Aldo Leopold, retirado de: http://pedrogalvao.weebly.com/artigos.html, acesso em junho de 2013; FERREIRO, Maria de Fátima Palmeiro. Paisagens invisíveis: a ética da Terra segundo Aldo Leopold, retirado de: www.apdr.pt/siterper/numeros/RPER20/20.8.pdf, acesso em junho de 2013; DIÉGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada, sobretudo o capítulo I, onde se analisa a ética da Terra na história do pensamento e do movimento conservacionista nos Estados Unidos. Sabemos que o Nazismo se fez com base em argumentos muito semelhantes a este, que reverenciavam a grandeza da raça ariana e justificavam o genocídio. De fato, a ênfase no valor da comunidade em detrimento do indivíduo e o caráter não especista da ética da Terra abrem espaço para a acusação de que o ecocentrismo seria uma ética ambiental fascista, um ecofascismo. Embora seja muito improvável que um genocídio se pratique atualmente em nome do equilíbrio ecológico, ao menos temos razões para esperar que um Estado que o fizesse deliberadamente seria condenado moral e politicamente pelos organismos internacionais responsáveis; embora não pareça justo acusar de fascistas os adeptos do argumento ecocêntrico, temos razões de sobra para temer as consequências práticas e políticas de levarmos a sério o projeto social e ecológico de um modelo como o da ética da Terra. Sobretudo por que parece bastante ingênuo e pouco consistente o argumento que nega o valor moral da individualidade, transferindo-o para o coletivo, e se tem algo com o qual a filosofia não pode conviver é a ingenuidade e a falta de consistência. Não podemos ser ingênuos, em nenhum aspecto. No que diz respeito a ideia fundamental que mobiliza o discurso da ética ambiental, sintetizada no nosso dever de respeitar a natureza, duas observações são importantes: primeiramente, pecamos por ingenuidade acreditando que estaremos salvando a natureza através da implantação de unidades de conservação; depois, pecamos por má-fé se continuarmos a praticar os abusos que tem levado ao quadro geral da crise socioambiental, criando ilusões que justificam a continuidade inevitável e irrecusável do crescimento econômico, que por mais verde que possa ser, nunca vai deixar de pressionar negativamente o planeta. Há uma necessidade urgente que se coloca para a ética ambiental, que certamente passa pela revisão de nossa ideia de natureza e da relação que temos que ter com ela. 2. Sobre a ideia de natureza desde uma perspectiva não linear da evolução Certamente um grande mérito de Darwin foi mostrar que o homem é tão animal como qualquer outro animal da natureza. O pensamento evolucionista é, nesse sentido, um golpe contra o antropocentrismo. Ao mesmo tempo o animal mais inteligente da natureza está na ponta da lança da evolução, e o darwinismo não consegue escapar do modelo linear de interpretação da vida, herdeiro de Aristóteles. Por conta de uma tendência linear ou unilateral o evolucionismo de Darwin ao mesmo tempo em que deslocao ser humano do centro, posiciona-o na condição de mais evoluído. Se o evolucionismo não se presta para uma apropriação moral, dado que Darwin está analisando fenômenos da natureza, onde vigora um determinismo independente da construção deliberada e consciente de valores, no entanto ele está no fundo do argumento antropocêntrico que sustenta a supremacia ou a exclusividade da condição moral do ser humano. Os defensores de uma ética para os animais acusam a tradição moral majoritária do ocidente de ser especista. O especismo é a posição que discrimina o valor moral dos animais conforme o grau evolutivo de sua espécie. O argumento do especista é semelhante ao do racista e do sexista: a diferença de espécie, de cor da pele e de sexo implicariam em diferença de valor moral. E da mesma forma como discriminar moralmente um indivíduo pela cor de sua pele ou pelo seu sexo é absurdo e arbitrário, discriminar pelo grau evolutivo da espécie também carece de fundamento. Obviamente que o especismo é anterior ao evolucionismo, provavelmente se confunde com a própria história do Homo sapiens, mas a teoria evolutiva fortalece a convicção de nossa superioridade moral, ao mesmo tempo em que abre perspectivas para o descentramento humano. Um evolucionista não precisa ser necessariamente um especista, basta que ele consiga admitir para o fenômeno da vida um desenvolvimento não linear. O filósofo francês Henri Bergson (1859 – 1941) propõe em sua obra Evolução criadora (1907) um modelo de evolução que rompe com o esquema da linearidade. Bergson entende que a vida evolui não em uma única direção, mas tomando vias divergentes. O movimento da vida obedece a um princípio de diferenciação, que consiste na variação dos caminhos pelos quais a vida encontra saídas para expandir o seu fluxo. O princípio de diferenciação não obedece a uma finalidade dada a priori nem se reduz à teoria da adaptação darwiniana, que tende a uma explicação mecânica da interação entre organismo e meio. O princípio da diferenciação e a ideia das linhas divergentes propostos por Bergson tem a dupla vantagem de fortalecer argumentos não especistas e de problematizar a ideia de natureza pelas consequências do desenvolvimento da inteligência. Essas vantagens interessam, como veremos, para o projeto de uma ética do meio ambiente. Segundo Bergson, três são as direções fundamentais que a vida toma no processo evolutivo, são elas: o torpor vegetativo, o instinto e a inteligência. A vida ou, mais especificamente, o impulso vital é uma espécie de consciência que invade a matéria forçando-a a assumir as variadas formas dos seres vivos. Cada organismo é um resultado mais ou menos exitoso desse processo que é o movimento de expansão do impulso vital. A consciência está presente em toda forma de vida, embora na grande maioria permaneça adormecida, e tudo indica que ela está mais associada à função locomotora da vida animal. Quanto mais se complexifica a função locomotora, mais a consciência se expande. Os vegetais tendem à fixação, produzindo e armazenando continuamente energia através do processo fotossintético. Os animais tendem ao movimento e desenvolvem dispositivos para assimilar a energia produzida pelas plantas e por outros organismos. A atividade animal vai se desenvolver em duas grandes vias, o instinto, que prevalece na vida invertebrada, e a inteligência, que evolui na direção dos vertebrados. O mais importante a se notar nesse modelo de Bergson é o caráter divergente do movimento de expansão da vida: a inteligência não é a superação evolutiva do instinto, nem o instinto uma espécie inferior de inteligência, senão que instinto e inteligência configuram dois métodos distintos e eficientes de solução para os problemas da vida animal. São tendências da vida, e entre elas vigora uma diferença de natureza e não apenas de grau: o esquema tradicional, linear, não reconhece a importância da diferença de natureza porque se acostumou a ver na evolução da vida apenas uma graduação que se desdobra dos vegetais até a vida inteligente. O processo de diferenciação é uma seleção de tendências que diferem por natureza: a via dos invertebrados é adequada para o desenvolvimento instintivo, que chega a seu ápice nos insetos himenópteros, formigas e abelhas; a via dos vertebrados é adequada para o desenvolvimento da inteligência, que chega a seu ápice no ser humano. Mas a diferenciação não exclui a outra tendência, ainda que selecione e privilegie o desenvolvimento de uma delas. Obviamente que não deixamos de ser instintivos porque nos tornamos inteligentes, aliás o instinto permanece sendo a grande força de sustentação da vida. Mas importa saber em que o instinto difere da inteligência. O que há em cada tendência que só se observa nela? A consciência encontra na rota dos vertebrados, os animais que desenvolvem o sistema cérebro-espinhal, um caminho mais livre para se expandir, que proporcionará formas de vida cada vez mais capazes de selecionar e fazer escolhas. Tudo indica que a consciência deseja encontrar a máxima liberdade possível ou proporcionar a forma de vida mais apta a selecionar e deliberar. Essa observação da consciência sinaliza a diferença mais visível e reconhecida entre instinto e inteligência: o gesto instintivo é mais automático, como se só pudesse ter aquela direção enquanto que o gesto inteligente é mais seletivo porque consegue dispor de uma variação de alternativas; o instinto é um movimento espontâneo, de consciência entorpecida, a inteligência é um movimento calculado, de consciência desperta. O animal basicamente instintivo obedece ao ritmo da natureza; o animal inteligente tende a imprimir o seu próprio ritmo ao da natureza, tentando imitar, mas criando novidade. O instinto não surpreende a natureza, a inteligência sim. A natureza contém o instinto, a inteligência expressa a vontade de conter a natureza. 14 O protótipo da vida instintiva é o formigueiro e a colmeia. Nessas sociedades vigora uma ordem perfeita na medida em que toda ação é internamente regulada e como que orientada para dentro: o indivíduo vive em função de sua comunidade e, dessa forma, a individualidade não tem sentido. Não existe liberdade porque a ação é programada e determinada naturalmente. Não há distinção significativa entre um formigueiro e outro da mesma espécie de formiga, a não ser alguma variação devida a circunstâncias ambientais. O protótipo da inteligência é, obviamente, a vida humana. Em nossas sociedades a ordem está bem distante da perfeição e ela só é aproximadamente conquistada através de dispositivos regulatórios que devem ser internalizados: o indivíduo 14 Bergson tem várias formas de distinguir as duas tendências da vida animal, numa delas diz que o instinto é a capacidade de fabricar e utilizar instrumentos organizados e a inteligência é a capacidade de fabricar e utilizar instrumentos inorganizados (Ver BERGSON, 2001. p. 131). O instrumento do animal instintivo é o corpo do organismo, pinças, antenas, garras; o instrumento do animal inteligente são coisas tomadas da natureza e transformadas pela intenção do indivíduo. O instintivo fabrica um instrumento de função limitada e, em geral, exclusiva a um ponto determinado da natureza e o tipo de ação que tal instrumento proporciona cumpre perfeitamente o seu objetivo; o inteligente fabrica um instrumento de ação ilimitada, aplicável em diversas circunstâncias, porém o instrumento nunca cumpre com perfeição o seu objetivo, o que leva o organismo a querer aperfeiçoar o aparelho inventado. O instinto é repetitivo, a inteligência é inventiva, capaz de variação.não vive espontaneamente em função do grupo, ele precisa aprender a conviver e tal processo é variável em cada sociedade e entre sociedades. A complexidade da vida inteligente se deve ao alcance da liberdade, proporcional ao nível de abertura da consciência. Como a possibilidade de escolha é larga, o critério tende a favorecer o próprio indivíduo: a liberdade acena para a individualidade. O grande desafio da sociedade humana é a conjugação das liberdades. Duas forças antagônicas estão implicadas na vida social dos humanos: a força da coesão social e a força da liberdade; a pressão externa para manter o vínculo com o grupo e a pressão interna, individual, para manter o vínculo apenas consigo mesmo. O equilíbrio entre essas duas forças quase nunca é satisfatório, pois os indivíduos devem se contentar com limites estreitos para o exercício de suas liberdades. Tal interpretação vitalista da inteligência e da vida social dos seres inteligentes permite superar certos impasses de nossa relação com a natureza. No fundo de toda ética ambiental palpita uma determinada concepção de natureza. O exame da crise ecológica, em geral, leva ao entendimento de que a atividade humana é quase que necessariamente predatória e que a natureza para ser salva precisa ser isolada e protegida da sociedade humana. Porém, tal análise só parece possível se desconsiderar o fato de que a vida inteligente é filha legítima da natureza. Temos que admitir como natural o princípio inteligente de negação do determinismo natural. Obviamente que tal consideração não sinaliza nenhuma possibilidade de justificativa moral do prejuízo que a humanidade inteligente tem causado ao chamado mundo natural. Trata-se, antes, de atualizar a nossa concepção de natureza, ainda demasiadamente herdeira de uma modernidade que primeiramente objetifica e instrumentaliza para, posteriormente e após haver se ressentido, idealizar e romantizar. O pensamento ecológico contemporâneo ainda padece de um certo romantismo ressentido da modernidade. Uma ética ambiental não pode carregar tal ressentimento, não pode ter pena da natureza, porque esta natureza merecedora de piedade pode deixar de existir se recuperarmos uma relação mais autêntica com a nossa natureza (interior e exterior). Para tanto devemos formar outro imaginário da natureza, porque o que temos não nos serve, seja porque violentamos, seja porque sacralizamos. Precisamos formar outro imaginário da natureza para nos livrar do hábito quase automático de consumir a natureza na produção de utilitários e também do mito da natureza intocada, de que nos fala Antônio Carlos Diégues. O hábito e o mito se retroalimentam e se autoiludem. O resultado de tal ilusão é que tendemos a conceber éticas ambientais pregadoras de um retorno mítico à vida selvagem, por um lado, e por outro a escapar para versões sofisticadas e onerosas de desenvolvimento sustentável, ambas alternativas pouco viáveis e pouco efetivas. O desenvolvimento sustentável não consegue frear a voracidade consumista do mundo globalizado, aliás tem se sustentado da mesma voracidade e da mesma saciedade insuficiente e também tem produzido boas relações com as propostas de retorno mítico, (veja-se o mercado ecológico e sua oferta de opções de viagens para os paraísos ecológicos protegidos ao redor do planeta). A natureza é algo que contem em si o princípio de sua mutação. Os seres vivos são as unidades indivisíveis – indissociáveis desse todo orgânico e profundamente dinâmico – que representam a luta perpétua do impulso vital para fazer durar a matéria viva do planeta. A natureza é o conjunto das infindáveis estratégias de sobrevivência do impulso vital, é o movimento único da vida que se estende em diversas direções em busca da saída mais sofisticada para os problemas que vão surgindo na medida em que a vida inventa e reinventa suas formas. A força íntima e fundamental da vida é o instinto, por conta dele a natureza mantem a sua perenidade e o seu vigor. Mas o instinto é repetitivo porque sua consciência é dormente. É pela via da inteligência que a natureza encontra as formas mais adequadas para a sua própria reinvenção, para sua diversificação. O ser humano é o salto mais ousado e mais arriscado do impulso vital, porque é através dele que a consciência desperta plenamente, a ponto de escapar do determinismo e forjar as suas próprias condições. A liberdade é o maior risco da vida e o seu maior achado, seu mais precioso tesouro. A natureza, ao criar condições para a vida inteligente e livre abre para si um campo variado de possibilidades. A cultura não é a negação da natureza, mas a sua diferenciação, o reencontro de seu próprio princípio de criação. 3. Ética para o meio ambiente – uma proposta vitalista A expansão inteligente e humana da consciência é abertura da natureza para futuro indeterminado. O princípio da temporalidade histórica foi introduzido na natureza, mas por ela própria. A mesma ciência ecológica que reage politicamente à apropriação da natureza pela cultura, abrindo espaço para as propostas de retorno mítico, admite pelo paradigma da interação dos elementos a continuidade entre a história natural e a história humana. A consciência humana expandida em liberdade é o ponto de abertura da natureza para fora de seu determinismo. O destino antiecológico da humanidade não é inevitável, é apenas uma entre tantas outras possibilidades igualmente corrigíveis ou aperfeiçoáveis pelo mesmo princípio de abertura e de diferenciação que a consciência expandida da inteligência pressupõe. Escapar ao determinismo implica em assumir a responsabilidade de seu próprio destino liberado. Cabe à ética ambiental problematizar a fatalidade de tal destino e isto implica em repropor a relação entre liberdade e responsabilidade. 15 O desafio do paradigma ecológico é converter a cultura em campo de problematização ética, começando pela tomada de consciência de nossa responsabilidade de existir culturalmente. Qual o sentido da cultura? Por que produzimos artefatos? O que fazemos quando transformamos as coisas naturais em utilitários? A resposta óbvia e imediata é que essa é a forma como damos conta de sobreviver e reproduzir. Produzimos objetos porque não estamos determinados pelas coisas que nos rodeiam e porque já temos necessidades que exigem a invenção de objetos, que por sua vez despertarão novas necessidades que levarão a novas invenções. Produzimos cultura porque somos livres e para que possamos sê-lo ainda mais. É provável que seja este o sentido da cultura: a liberdade. 16 Mas Também produzimos objetos para nos habituar a eles, e não estamos falando apenas em coisas materiais, pois, obviamente, também faz parte da cultura a criação de ideias e crenças. Uma cultura não teria sentido se não quisesse se manter, ser transmitida, gerar valores que transformamos em bens herdáveis. Toda cultura tende a virar tradição, que desejará se perpetuar produzindo inclusive crenças e ideologias a favor de sua conservação. Com o 15 O princípio responsabilidade de Hans Jonas é um exemplo de esforço nessa direção, focalizado na crítica da civilização tecnológica. Remeto o leitor ao capítulo Ética, ciência e técnica, de Itamar Soares Veiga e José Carlos Köche, deste Manual de ética. 16 Uma indicação para essa linha de interpretação encontramos em Vilém Flusser: “No fundo, o que é bom é apenas a liberdade. As coisas são boas apenas na medida em que contribuem para me libertar. E isto é exatamente também a medida da cultura. Tecnologia não é cultura. E tecnocracia (governo da tecnologia não controlado)é anticultura. Em suma: cultura é tecnologia mais liberdade.” FLUSSER, V. Natural:mente – vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume, 2011. p. 55. tempo, aquilo que significou conquista de liberdade pode vir a significar exatamente o contrário, pois nada impede ninguém de querer viver de maneira avessa a sua própria cultura. Nada impede ninguém de desejar trair, em nome de sua própria liberdade, a sua tradição cultural. A cultura vive da consagração do hábito e a moral do hábito tende a gerar um novo determinismo e, consequentemente, a minar o espaço da liberdade. Mas, se aceitamos que o sentido de nossa existência cultural é a liberdade, somos eticamente convocados a superar o determinismo dos nossos próprios hábitos. A crise ecológica é certamente um reflexo de nossa crise cultural. Não é difícil compreender que o esgotamento dos recursos naturais revela a saturação de nossos hábitos e a necessidade urgente de mudança em nossos padrões de comportamento. A análise de tal fenômeno é difícil, pois tende a se estender em diversas direções, não respeitando fronteiras, por isso não é exagero tratar a questão ambiental como mudança de paradigma. A ecologia solicita uma nova visão da natureza: orgânica, não mecanicista, não utilitária; um novo entendimento de nossa relação com a natureza: responsável, solidário, não objetificante; uma nova cultura, que não se contente em mudar hábitos a partir de um jogo onde as cartas já estão marcadas, que não seja simplesmente a conversão para uma economia verde onde nos contentaríamos em ser consumidores ecologicamente conscientes, mas uma cultura nascida da superação da esgotada dicotomia entre natureza e cultura. Uma cultura, enfim, que leve adiante o impulso criador da vida, o que demanda uma visão integrada da natureza e uma relação responsável e solidária com o ser vivo. O caminho que tomamos até aqui, que situa a expansão da consciência humana no quadro geral da evolução da vida, nos permite conceber a ética em coextensão à vida. Isto não implica numa visão naturalista da ética, pois se desenvolvemos biologicamente um psiquismo capaz de ação refletida e livre significa que nossas ações são indetermináveis, não são controláveis pela natureza, somos capazes de surpreender a nós mesmos e à natureza, somos capazes de objetificar a árvore em madeira e o rio em hidrelétrica. Conceber a ética em coextensão à vida é afirmar o movimento da vida na nossa condição ética, como se o drama ético da vida representasse o seu próprio movimento criador, poético, no sentido da poiésis, 17 como se a expansão do impulso vital continuasse forçando a vida, introduzindo através do ser humano a temporalidade na natureza, a abertura para o futuro, aquilo que não se pode prever. Exatamente porque somos livres, ou seja, capazes de causar surpresa, inventamos a moral, ou seja, aquilo que vai nos determinar a agir corretamente, o que quer dizer sem causar surpresa. Os valores morais são como artefatos que inventamos, e eles prescrevem, se tornam velhos e inoperantes, substituíveis como qualquer outro artefato. Por isso o mais importante é fazer da vida moral uma vida ética. Quero dizer que devemos afirmar a nossa capacidade de criação de mundo, que pressupõe a consciência aguda e atenta do nosso condicionamento moral. Voltamos assim ao problema do hábito, essa força de repetição da vida: fazer da vida moral uma vida ética é enfrentar a força do hábito, desviar da repetição, se convocar para a criação de si mesmo e do mundo. Ao encontro dessa perspectiva, uma ética para o meio ambiente se compromete com uma concepção aberta de ecologia 18 , de natureza e de cultura. O pensamento ecológico deve ser variado da predominância científica e ser vitalizado por uma filosofia intuitiva, ao estilo bergsoniano, capaz de elaborar um novo imaginário da natureza. Uma ecologia contaminada por tal filosofia devolve à natureza a sua organicidade, altamente prejudicada por uma visão majoritariamente científica e tecnológica. 19 Uma ecologia filosófica, sem deixar 17 Conceito da filosofia antiga que expressa a potência ou capacidade humana da criação, típica dos poetas, mas não restrita a estes. 18 O conceito de ecologia menor proposto por Ana Godoy é muito apropriado para uma ética ambiental afirmativa da vida enquanto psiquismo criador. A autora contrapõe à ecologia maior, esta que encontramos nos compêndios científicos e que domina as políticas voltadas para a natureza, quase que invariavelmente de caráter conservacionista e territorialista, a ecologia menor, que libera a vida das fórmulas abstratas da ciência porque parte do entendimento de que a vida é estado de criação que compõe a sua própria ecologia (menor) reinventando-se constantemente. 19 A ética ambiental aqui proposta não é do tipo que teme a tecnologia, é diferente, portanto, da proposta de Hans Jonas, baseada na chamada heurística do temor. A responsabilidade não precisa estar associada ao medo do que a tecnologia pode causar. Jonas tem razão a respeito do fato de que produzimos tecnologia tão complexa que as consequências desastrosas são cada vez mais prováveis, e que, portanto, a civilização tecnológica deve estar calcada no princípio da responsabilidade. Isto é absolutamente incontornável. Mas a responsabilidade não precisa ser uma relação movida pelo temor do que pode acontecer. Uma ética ambiental de estilo vitalista, como a que estamos propondo, concebe a responsabilidade como o ato livre da vida inteligente, afirmativo e não reativo, portanto não temeroso. O temor enfraquece a consciência, embora provenha dela, pois a zona de possíveis que a consciência ilumina produz hesitação e pode levar a paralisar a ação. Obviamente que o medo tem uma função vital fundamental, mas a vida não evolui sem boa dose de risco. A responsabilidade deve ser afirmativa e livre e não reativa ou condicionada pelo temor do que pode acontecer, ela não pode ser de ser científica, pode ultrapassar o impasse da dicotomia entre natureza e cultura, elevar tanto a noção de cultura para além do mero impulso fabricador e utilitário, favorável à vida mas não suficiente enquanto modelo de psiquismo, quanto elevar a noção de natureza para além do esquematismo geométrico cartesiano, base metafísica da objetificação técnica, e para além da sacralização romântica e ressentida que norteia o pensamento e o movimento ecológico que em nada ameaçam o modelo econômico e exploratório da vida no mundo contemporâneo, no máximo lhe investe de sentimento culposo que deverá gerar medidas compensatórias de conservação da natureza pretensamente intocada. Uma ética para o meio ambiente afirma uma noção de cultura não antagônica mas solidária à noção de natureza, porque parte de uma perspectiva orgânica e não mecanicista de natureza, ou seja, uma natureza que gera e abriga o conceito de cultura. Está em questão a recuperação de um dinamismo afirmativo e criador da vida, que corresponderia a um modelo vitalista de ética ambiental. O pensamento ecológico majoritário é predominantemente conservacionista e preservacionista, calcado, portanto, na ideia de que a natureza deve ser conservada ou preservada e, para tanto isolada da população humana. Uma ética para o meio ambiente de cunho vitalista não pode se alimentar do mito da natureza intocada e não pode se contentar com o reducionismo de uma ecologia científica e matemática, que retém da natureza apenas aquilo que pode ser previsto para que possa ser dominado, não fazendo diferença se para o bem ou para o mal. Não se trata de pregar o retorno mítico a um estado inexistente eartificial de natureza, mas de reafirmar o estado criador da natureza assumindo a cultura como movimento ético. O problema da sustentabilidade da vida na Terra é mais radical do que supõem as fórmulas abstratas da ciência ecológica. Um outro olhar se impõe, não protecionista, não temeroso, não reativo; um outro modo de relação precisa surgir, sensível, solidário e responsável pela vida e pelo sinônima da hesitação, que é uma fraqueza da consciência. Não pode haver liberdade autêntica sem responsabilidade. Mas também, não temer a tecnologia não significa ser cegamente confiante em nosso destino tecnológico, que se não é feliz não é por conta da tecnologia em si mesma, mas da relação de dependência que temos inventado com ela e que tem escravizado as pessoas seja pelo acesso seja pela exclusão. O princípio da responsabilidade é o mesmo da liberdade, ele não tem saída, a não ser acolher o que pode acontecer, assumindo o risco. Temer a tecnologia não é o mesmo que rejeitar a relação de dependência que tem minado o campo da civilização tecnológica para as boas condições de sustentabilidade da vida. ser vivo. Criar valores que potencializem um novo olhar sobre a natureza e a cultura e uma nova relação de solidariedade com a vida é o desafio que se impõe a uma ética ambiental de inspiração vitalista. Conclusão O ponto decisivo do debate sobre ética ambiental é certamente a crítica do antropocentrismo. As correntes mais representativas dessa ordem de discurso concordam que o ser humano não pode continuar ocupando com exclusividade o território da comunidade moral do ecossistema terrestre, mesmo que as respostas dadas a tal questão variem. Seja qual for o caminho, um novo olhar sobre nossa relação com a natureza e com a cultura – capaz de elaborar mudanças de atitude, novos padrões de hábito, novo entendimento da vida, de nossa liberdade e de nossa responsabilidade – é irrecusável. O desafio do paradigma ecológico é grandioso e não irá se contentar com soluções paliativas ou reformistas do modelo vigente. Ele exige o mergulho nas disposições mais profundas que sustentam nossa posição no mundo e nossa história. Nesse sentido, e tomando a etimologia da palavra eco-logia – o estudo da casa, deveríamos proceder num estudo dinâmico da casa, aberto, que leve a casa a revelar suas interações, o modo como ela resolve a interferência de suas externalidades, suas estratégias homeostáticas. É preciso fazer uma ecologia com portas e janelas abertas, entender a nossa casa como processo temporal, capaz de afirmar e acolher as externalidades que inevitavelmente produz. A natureza é um acontecimento dinâmico, constantemente se autoproduzindo e buscando novos padrões de equilíbrio, ela não pode ficar confinada na unidade de conservação enquanto fazemos das cidades espaços cada vez mais voltados para o confinamento e a automatização da vida. Ao isolar a natureza na unidade de conservação, confinamos a nossa vida nos aglomerados urbanos. A ciência ecológica proveniente de tal concepção arcaica de natureza é abstrata porque acredita que pode estudar a casa sem abrir suas portas e janelas. O resultado de tal estudo abstrato é uma visão artificial e mercadológica da natureza. Se o estudo da casa for aberto e dinâmico, a cultura terá a chance de se reencontrar novamente, de tomar o controle de si mesma, de fazer as pazes com a natureza porque terá percebido que ela mesma é processo de produção da natureza. A situação existencial em tal cultura e natureza de portas e janelas abertas é a da liberdade. A complexidade de tal estudo dinâmico de ecologia problematiza as soluções e exige diálogo de perspectivas, pluralidade e não linearidade. A divergência é salutar e o nível filosófico do debate, que foi privilegiado aqui, exige que mantenhamos o horizonte da crítica. Mas ele não pode ser excludente, pois todas as perspectivas produzem intuições capazes de iluminar caminhos novos e interessantes. Dificilmente um modelo pode se afirmar de modo universal. O estudo dinâmico da natureza e da cultura exige que a ecologia abra as portas e janelas da casa. Uma ética para o meio ambiente necessita fazer o mesmo. BIBLIOGRAFIA ABRAMOVAY, Ricardo. Muito além da economia verde. São Paulo: Editora Abril, 2012 BERGSON, Henri. A evolução criadora. Lisboa: Edições 70, 2001. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo: Ed. UNESP, 2002. DIÉGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Editora HUCITEC, 1996. FELIPE, Sônia T. Antropocentrismo, sencientismo e biocentrismo: perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não-humanos. Em: Revista Páginas de Filosofia, v.1, n.1, jan-jul/2009. FLUSSER, Vilém. Natural:mente – vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume, 2011. GODOY, Ana. A menor das ecologias. São Paulo: EDUSP, 2008. GUATTARI, Félix. As três ecologias. 6. ed. Campinas: Papirus, 1997. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade – ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006. LATOUR, Bruno. Políticas da natureza – como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004. LEFF, Enrique. Discursos sustentáveis. São Paulo: Ed. Cortez, 2010. NOBRE, Marcos; AMAZONAS, Maurício de Carvalho (orgs.). Desenvolvimento sustentável – a institucionalização de um conceito. Brasília: Ed. IBAMA, 2002. SERRES, Michel. O contrato natural. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. SINGER, Peter. Ética prática. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002 SOUZA, Ricardo Timm de. Alteridade e Ecologia. Em: Totalidade e desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. Leitura 1: SERRES, Michel. O contrato natural. (p. 64-65) Existe um ou diversos equilíbrios naturais, descritos pelas mecânicas, as termodinâmicas, a fisiologia dos organismos, a ecologia ou a teoria do sistemas. As culturas inventaram de igual modo um ou diversos equilíbrios de tipo humano ou social, decididos, organizados, defendidos pelas religiões, os direitos ou as políticas. Precisamos de pensar, construir e colocar em prática um novo equilíbrio global entre esses dois conjuntos. Porque os sistemas sociais compensados em si mesmos e fechados sobre si próprios, influenciam com o seu novo peso as suas relações, objetos-mundos e atividades, os sistemas naturais por si mesmos compensados, tal como outrora os segundos faziam correr riscos aos primeiros, na época em que a necessidade se sobrepunha em força aos meios da razão. Cega e muda, a fatalidade natural negligenciava então o estabelecimento de um contrato expresso com os nossos antepassados por ela esmagados: eis-nos agora vingados desse arcaico abuso por um abuso moderno recíproco. Resta-nos pensar num novo equilíbrio, delicado, entre esses dois conjuntos de equilíbrios. O verbo pensar, próximo de compensar, não conhece, que eu saiba, outra origem para além desta justamente pesada. É a isso que hoje chamamos pensamento. Eis o direito mais geral para os sistemas mais globais. Leitura 2: FLUSSER, Vilém. Natural:mente – vários acessos ao significado de natureza. (p. 51-52) A observação da chuva pela janela é acompanhada de sensação de aconchego. Lá fora, os elementos da natureza estão em jogo e sua circularidade sem propósito gira como sempre. Quem está preso em seu círculo fica exposto a forças incontroladas. Parte impotente de seu girar violento. Cá dentro, estão em jogo processos diferentes. Quem está dolado de dentro dirige os eventos. Eis a razão da sensação do abrigo: é a sensação de quem está na história e cultura, e contempla a turbulência sem significado da natureza. As gotas que batem contra a vidraça, projetadas pela fúria do vento, mas incapazes de penetrar a sala, representam a vitória da cultura contra a natureza. Quando observo a chuva pela janela, não apenas me encontro fora dela, mas em situação oposta a ela. Tal situação caracteriza cultura: possibilidade de contemplação distanciada da natureza. No entanto (e infelizmente), não é isto que temos em mente ao falarmos em conquistas da cultura: estarmos sentados em lugar seco e quente, contemplando a chuva fria, fumando cachimbo e ouvindo Mozart. Infelizmente, temos em mente coisas como “controle da chuva”. Pretendemos mudar a estrutura dos eventos da natureza. Romper sua circularidade, fazê-los correr linearmente em busca de um propósito por nós escolhido. Chuva não mais como fase da circulação eterna da água, mas como fase de uma deliberada irrigação do meu campo. Se a chuva tivesse sido vencida, não mais cairia como cai agora (“chuva de setembro, de todo setembro desde sempre”), mas cairia como “esta chuva programada para as quatro horas da tarde de hoje”. Seria chuva histórica, porque sujeita a programas, portanto, parte da cultura, não da natureza. Vista da janela, tal chuva não se distinguiria daquela que está caindo agora, e, no entanto, estaria caindo do lado de cá, não de lá, da janela da cultura. Leitura 3: SOUZA, Ricardo Timm de. Alteridade e Ecologia (p. 159-160) A Natureza somente pode ser concebida, fora das conveniências da ideologia da acumulação infinita, como absolutamente Outra – ou seja, somente pode ser concebida eticamente. Todas as outras formulações, que se inclinam à suavização desta Alteridade, são apenas estratégias de protelação da questão básica – a existência mesma, apesar da Totalidade, de uma realidade não dependente desta Totalidade. Leitura 4: GODOY, Ana. A menor das ecologias. (p.152) O Outro da casa é o Outro do mundo, a terra a ser descoberta, mundos possíveis que não se esgotam no atual, mas que o confrontam. As ecologias que a vida produz dizem respeito a outros modos de sentir e pensar, de se relacionar, outros modos de existência para além da conservação – que já não é só a da espécie para reprodução, mas de um pensamento que atribui à vida esta finalidade –, que abalam a casa ao habitá-la como estrangeiro, investindo- a da força de um arquipélago para fazer coexistirem as diferenças “sem lei e sem rei”. Vontade que arrisca, potência de invenção que experimenta todas as forças habitantes do corpo-casa, abrindo-se para outras e tantas formas de coexistência irredutíveis à virulência das unificações, e que apontam outros modos de encarar a relação com o outro. Leitura 5: GUATTARI, Félix. As três ecologias. (p. 14-15) Se não se trata mais – (...) – de fazer funcionar uma ideologia de maneira unívoca, é concebível em compensação que a nova referência ecosófica indique linhas de recomposição das práxis humanas nos mais variados domínios. Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte etc – trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero. Perspectiva que não exclui totalmente a definição de objetivos unificadores tais como a luta contra a fome no mundo, o fim do desflorestamento ou da proliferação cega das indústrias nucleares. Só que não mais tratar-se-ia de palavras de ordem estereotipadas, reducionistas, expropriadoras de outras problemáticas mais singulares resultando na promoção de líderes carismáticos.
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