Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Chauí, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12ª Edição. São Paulo: Cortez, 2007. Capítulo 3 - Crítica e Ideologia Procurarei desenvolver minha exposição em três momentos, delimitando, inicialmente, a noção de ideologia; em seguida, a noção de crítica enquanto contra discurso; finalmente, examinando algumas categorias que considerarei ideológicas, tais como: objetividade, crise, organização. Se acompanharmos as exposições de Marx em A ideologia alemã, diremos que basta os homens tomarem consciência imediata do aparecer social para que surja a ideologia, desde que a divisão social do trabalho tenha operado a separação entre trabalhadores manuais e intelectuais, ou entre trabalhadores e pensadores. No entanto, no sentido forte do termo, a ideologia só pode efetivar-se plenamente nas sociedades históricas, isto é, naquelas sociedades para as quais a questão de sua origem ou de sua instituição é não só um problema teórico, mas, sobretudo uma exigência prática renovada. Em sentido amplo, toda sociedade, por ser sociedade, é histórica: possui data própria, instituições próprias e precondições específicas, nasce, vive e perece, transforma-se internamente. O que estamos designando, aqui, como sociedade propriamente histórica é aquela sociedade para a qual o fato mesmo de possuir uma data, de pressupor condições determinadas e de repô-las, de transformar-se e de poder perecer não é um dado, mas uma questão aberta. Toda sociedade é histórica porque temporal. A sociedade propriamente histórica, porém, tematiza sua temporalidade pondo-a como objeto de reflexão porque incessantemente busca reposta por suas práticas - não está no tempo, mas é tempo. Isto significa que a sociedade propriamente histórica não cessa de criar internamente sua diferença consigo mesma, pois o tempo não é senão criação da diferença temporal interna pela qual uma sociedade possui seu passado e visualiza seu futuro como seus outros. Produtora de sua alteridade, a sociedade propriamente histórica é aquela que não pode, senão sob a forma da violência e da máscara, repousar numa identidade fixa, onde se reconheceria a si mesma justamente por isso nessa sociedade o fenômeno da ideologia ganha sentido concreto. Diferentemente dessa sociedade, há formações sociais que oferecem para si mesmas uma explicação -mítica ou teológica -sobre sua origem e permanência, de tal modo que o momento de sua instituição ou de sua fundação possa ser representado por seus membros na dependência de um saber e de um poder exteriores, anteriores e transcendentes à sociedade. A exterioridade do saber-poder fundador lhe garante intemporalidade e esta se transmite à 2 sociedade que pode, então, representar-se a si própria como pura identidade consigo mesma e como intemporal. Basta recordarmos. E aquilo que Marx designa como "despotismo asiático" para que compreendamos esse fenômeno de petrificação temporal. Ora: uma vez estabelecida a origem, a forma e o sentido de tal sociedade, suas hierarquias internas, formas de autoridade e de poder, instituições econômicas e culturais, o todo social se imobiliza para si mesmo e se converte, por meio das representações, numa essência ou num conjunto de essências eternas. Temporal em si, mas intemporal para si, essa sociedade é histórica apenas para nós. Essa petrificação do tempo é o que a sociedade propriamente histórica não pode conseguir, senão por meio da ideologia. Para essa sociedade, sua existência temporal e, portanto, sua emergência como sociedade é percebida como ambígua, mas a ambiguidade não é um "defeito" explicativo e sim constitutivo do ser mesmo do social. Com efeito, a origem é percebi da como dependendo da ação dos próprios homens enquanto sujeitos sociais e, no entanto, estes percebem, simultaneamente, que sua ação criadora não é pré-social, mas já é algo social. Em outras palavras, o problema posto pela sociedade histórica é o da impossibilidade de determinar o ponto anterior à sua existência, pois nasce da ação dos homens ao mesmo tempo em que é condição dessa ação. A imanência do ato fundador e da sociedade fundada se revela como imanência da sociedade fundadora e do ato fundado. A sociedade histórica é aquela que precisa compreender o processo pelo qual a ação dos sujeitos sociais e políticos lhe dá origem e, ao mesmo tempo, precisa admitir que ela é a própria condição para a atuação desses sujeitos. A historicidade é, pois, uma questão complexa do ponto de vista teórico na medida em que a prática instituidora do social é ação de sujeitos que são instituídos como tais por esse mesmo social. As dificuldades para compreender esse duplo movimento de instauração, conduz a várias consequências teóricas, tais como a elaboração dos conceitos de direito natural e de estado de natureza como formas de sociabilidade precárias e supera das pelo advento do contrato social como decisão consciente dos indivíduos para passar de seres "naturais" a seres "políticos", reunidos sob o direito civil. Ou ainda, a explicações do surgimento da vida social não por um pacto de vontades, mas por um golpe violento ou por uma fraude praticada por alguns poderosos sobre os pobres, aos quais é proposta uma unidade que irá, na verdade, submetê-los à espoliação e à opressão (lembremos, aqui, do Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens, de Rousseau). Ou, então, na vertente hegeliana, o advento da sociedade civil será explicado pela negação-superação e conservação da família, entendi da como unidade natural e subjetiva, determinada pelos laços de sangue e pela vingança do delito. A passagem da família à sociedade civil será feita pelo surgimento do Direito Objetivo. Ou, enfim, em Marx, o advento da vida social é marcado pela divisão social do trabalho, que determina as relações dos homens com a Natureza e deles entre si, as divisões de autoridade e a forma do poder. Em todos esses casos, o que se nota é o esforço de uma elaboração na qual a teoria possa coincidir, por meio dos conceitos, com o instante prático de criação social. 3 Em outros termos, a teoria procura determinar o momento preciso no qual a sociedade teria nascido por obra dos homens. Na verdade, é esse o problema da História, ou seja, o problema filosófico e político para determinar um ponto fixo no real a partir do qual seja possível enunciar o começo da sociedade. Por que um problema? Porque o momento em que a sociedade começa é o momento no qual também começam seus próprios sujeitos, para poder, dessa maneira, colocá- la no real, de sorte que, para fazê-lo, ela precisa ser a fonte da ação de seus autores. Isto significa simplesmente (o que é enorme) que o advento da sociedade histórica não pode ser determinado como um fato empírico nem como um fato ideal, isto é, como um dado positivo ou como uma ideia positiva, mas precisa ser pensado como um trabalho, no sentido forte do termo. O real não são coisas nem ideias, não são dados empíricos nem ideais, mas o trabalho pelo qual uma sociedade se institui, se mascara, se oculta, constrói seu imaginário e simboliza sua origem, sem cessar de repensar essa instituição, seu imaginário e seus símbolos. No entanto, a questão é ainda mais densa. A sociedade histórica precisa dar conta da origem de algo muito peculiar e que outras sociedades podem resolver através dos mitos da origem, seja numa versão propriamente mítica, seja numa versão teológica. Além de precisar enfrentar o enigma de sua auto instituição, a sociedade histórica precisa enfrentar o problema do advento do poder político como um polo separado do social e que, no entanto, nasceu da própria ação social. É forçada, portanto, a compreendercomo o poder nasce em seu interior e como dela se destaca, indo alojar-se numa figura visível que parece pairar fora e acima dela: o Estado. Assim, na gênese do poder político, a sociedade histórica enfrenta o mesmo problema que encontrara para a sua gênese social. Agora, como antes, a reflexão precisa dar conta do momento no qual, desprovida de garantias externas e transcendentes (Deus ou a Natureza, o Bem ou a Razão), surge a Lei, que é fundadora do político, mas também fundada por ele. Ora, essa sociedade, que está sendo criada pelo político, é a condição para que o próprio poder político seja criado. Reencontramos, assim, o mesmo problema anterior: o fundante e o fundado estão numa relação de reciprocidade tal que se toma impossível determinar o ponto empírico e o ponto ideal a partir dos quais se pudesse enunciar de modo positivo o começo da vida política. Nos dois casos-origem social da sociedade e origem política do poder -o que se encontra subjacente e dificultando o desejo de uma teorização positiva é a realidade da práxis social, cuja peculiaridade consiste, justamente, desde os gregos, em ser um tipo de ação no qual sujeito, meios e fins são termos indissociáveis. Se a ação moral pode colocar fora de si um fim ideal (como o céu estrelado kantiano) e se a ação técnica pode separar claramente meios e fins (separação que define a própria técnica), a práxis é aquela ação que identifica agente, sujeito, condições e objetivos. A dificuldade posta pela história reside, pois, na natureza peculiar da própria práxis histórica que a constitui. 4 Creio ser possível, agora, compreender por que a emergência da ideologia em sentido forte é algo intrínseco às sociedades históricas. A partir do momento em que os sujeitos sociais e políticos deixam de contar com o anteparo de um saber e de um poder anteriores e exteriores à sua práxis, capazes de legitimar a existência de certas formas de dominação, as representações desses mesmos sujeitos, detidas no aparecer social e determinadas pela separação entre trabalho e pensamento, irão constituir o pano de fundo sobre o qual pensarão a si mesmos, pensarão as instituições, as relações de poder, a vida cultural, a sociedade e a política no seu todo. É elaborado, assim, um discurso que, partindo do discurso social (o discurso do social) e do discurso político (o discurso da política), se transforma num discurso impessoal sobre a sociedade e sobre a política. Essa passagem do discurso de para o discurso sobre constitui o primeiro momento na elaboração da ideologia. Surge, agora, um corpo de representações e de normas através do qual os sujeitos sociais e políticos se representarão a si mesmos e à vida coletiva. Esse corpo de representações e de normas é o campo da ideologia no qual os sujeitos sociais e, políticos explicam a origem da sociedade e do poder político; explicam as formas de suas relações sociais, econômicas e políticas; explicam as formas "corretas" ou "verdadeiras" de conhecimento e de ação; justificam, através de ideias gerais (o Homem, a Pátria, o Progresso, a Fanu1ia, a Ciência, o Estado), as formas reais da desigualdade, dos conflitos, da exploração e da dominação como sendo, ao mesmo tempo, "naturais" (isto é, universais e inevitáveis) e "justas" (ponto de vista dos dominantes) ou "injustas" (ponto de vista dos dominados). Nesse primeiro nível de conceituação podemos dizer que a ideologia faz com que as ideias (as representações sobre o homem, a nação, o saber, o poder, o progresso etc.) expliquem as relações sociais e políticas, tomando impossível perceber que tais ideias só são explicáveis pela própria forma da sociedade e da política. Na ideologia, o modo imediato do aparecer (o fenômeno) social é considerado como o próprio ser (a realidade do social). O aparecer social é constituído pelas imagens que a sociedade e a política possuem para seus membros, imagens consideradas como a realidade concreta do social e do político. O campo da ideologia é o campo do imaginário, não no sentido de irrealidade ou de fantasia, mas no sentido de conjunto coerente e sistemático de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar uma realidade concreta. Em suma: o aparecer social é tomado como o ser do social. Esse aparecer não é uma "aparência" no sentido de que seria falso, mas é uma aparência no sentido de que é a maneira pela qual o processo oculto, que produz e conserva a sociedade, se manifesta para os homens. O passo seguinte é dado pela ideologia no momento em que ultrapassa a região em que é pura e simplesmente a representação imediata da vida e da prática sociais para tomar-se um discurso sobre o social e um discurso sobre a política. É o momento no qual pretende fazer coincidir as representações elaboradas sobre o social e o político com aquilo que o social e o político seriam em sua realidade. Nesse passo, realiza seu passe de mágica: a elaboração do imaginário (o corpo das representações sociais e políticas) 5 será vinculada à justificação do poder separado, isto é, à legitimação do Estado moderno. Somente se levarmos em conta o advento e a natureza do Estado moderno, poderemos compreender a função implícita ou explícita da ideologia ou, para usar os termos clássicos, a tentativa para fazer com que o ponto de vista particular da classe que exerce a dominação apareça para todos os sujeitos sociais e políticos como universal e não como interesse particular de uma classe determinada. Para entendermos a ideologia, que fala sobre as coisas, sobre a sociedade e sobre a política, pretendendo dizer o que são em si e pretendendo coincidir com elas, precisamos vinculá-la ao advento da figura moderna do Estado, enquanto um poder que se representa a si mesmo como instância separada do social e, na qualidade de separado, proporciona à sociedade aquilo que lhe falta primordialmente. O que falta primordialmente à sociedade? Falta-lhe unidade, identidade e homogeneidade. O social histórico é o social constituído pela divisão em classes e fundado pela luta de classes. Essa divisão, que faz, portanto, com que a sociedade seja, em todas as suas esferas, atravessada por conflitos e por antagonismos que exprimem a existência de contradições constitutivas do próprio social, é o que a figura do Estado tem como função ocultar. Aparecendo como um poder uno, indiviso, localizado e visível, o Estado moderno pode ocultar a realidade do social, na medida em que o poder estatal oferece a representação de uma sociedade, de direito, homogênea, indivisa, idêntica a si mesma, ainda que, de fato, esteja dividida. A operação ideológica fundamental consiste em provocar uma inversão entre o "de direito" e o "de fato". Isto é, no real, de direito e de fato, a sociedade está internamente dividida e o próprio Estado é uma das expressões dessa divisão. No entanto, a operação ideológica consiste em afirmar que "de direito" a sociedade é indivisa, sendo prova da indivisão a existência de um s6 e mesmo poder estatal que dirige toda a sociedade e lhe dá homogeneidade. Por outro lado, a ideologia afirma que "de fato" (e infelizmente) há divisões e conflitos sociais, mas a causa desse "fato injusto" deve ser encontrada em "homens injustos" (o mau patrão, o mau trabalhador, o mau governante, as más alianças internacionais etc.). Assim, a divisão constitutiva da sociedade de classes reduz-se a um dado empírico e moral.
Compartilhar