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Posfácio O intempestivo, ainda Os selvagens querem a multiplicação do múltiplo. P. Clastres Reaprendendo a ler Clastres1 Arqueologia da violência, publicado originalmente em 180 sob o título Pesquisas de antropologia política, compreende textos escritos, em sua maioria, pouco antes da morte do autor, em 1. Ele forma um par na- tural com a coletânea publicada em 14, A sociedade contra o Estado. Se esta última possui uma maior unidade interna, e contém mais artigos ba- seados em experiência etnográfica direta, a presente coletânea documenta a fase intensamente criativa em que se achava Pierre Clastres quando do acidente em que perdeu a vida, aos 43 anos, em uma estrada das Céven- nes, no Maciço central francês. Os trabalhos aqui reunidos compõem, assim, um livro de transição, que projeta uma obra inacabada; transição e obra que cabe agora a seus leitores – especialmente, é claro, aos etnó- logos americanistas – completar e prolongar o melhor que soubermos. Entre vários textos notáveis deste Arqueologia da violência, desta- cam-se, sem sombra de dúvida, os dois capítulos finais: o ensaio que dá 1. Este ensaio foi originalmente publicado como introdução à segunda edição em inglês de Archeology of Violence, dada à luz em 010 pela editora Semiotext(e), na Semiotext(e) Foreign Agent Series. Agradeço a Sylvère Lotringer não só o convite a escrevê-lo, como o entusiasmo generoso com que acolheu a proposta de tê-lo republicado em português. Entre outras diferenças, o texto ora apresentado se estende por algumas páginas a mais que a versão original. Meu objetivo continua a ser apenas o de chamar a atenção para a atualidade da obra de Clastres do ponto de vista de sua significação filosófica e política, isto é, para seu interesse geral, no melhor sentido da palavra. Por isso, as considerações feitas na longa seção final do ensaio, sobre a relação entre essa obra e os desenvolvimentos recentes da etnologia americanista, têm um valor meramente sinóptico. 88 Posfácio nome ao livro nesta edição e o artigo subsequente, o último que Clastres publicou em vida. Eles imprimem uma inflexão decisiva ao conceito que tornou seu autor célebre, a “sociedade-contra-o-Estado”. Retomando o problema clássico das relações entre a violência e a constituição do corpo político soberano, Clastres propõe nesses artigos uma relação funcional positiva entre a “guerra” (melhor dizendo, o estado metaestável de hos- tilidade virtual entre comunidades locais relativamente autônomas) e a intencionalidade coletiva que define ou constitui as chamadas sociedades primitivas – o espírito de suas leis, para falarmos como Montesquieu.2 * * * A morte de Pierre Clastres foi a segunda perda precoce sofrida pela geração de antropólogos franceses formada na passagem dos anos 50 para os 60, um período de grande fermentação intelectual, na França como em outras partes do mundo, quando se lançaram as bases daquela brusca virada na sensibilidade político-cultural do Ocidente que veio a marcar os anos 60-0 com uma qualidade única – talvez as palavras “es- perança” e “alegria” sejam, ou fossem, as mais adequadas para defini-la. A neutralização dessa ruptura foi um dos objetivos principais da violenta contrarrevolução da direita que tomou de assalto o planeta desde então, imprimindo sua fisionomia ao mesmo tempo arrogante e ansiosa, brutal e desencantada, à história mundial das décadas seguintes. E assim vem sendo até hoje, mesmo que as coisas pareçam estar começando a querer mudar (aqui, toda cautela é pouca). O primeiro da geração a partir foi Lucien Sebag, morto pelas pró- prias mãos em 165, para a imensa consternação de seus amigos (entre os quais Félix Guattari), seu professor Claude Lévi-Strauss e seu ana- lista Jacques Lacan. Os doze anos que separam a morte de Sebag e a de Clastres – nascidos no mesmo ano (134), ambos filósofos de formação, rompidos com o Partido Comunista após 156, convertidos à antropologia 2. L’Esprit des lois sauvages (Abensour [org.] 18) é o título de uma coleção de ensaios comemorativos do décimo aniversário da morte de Clastres. hp Highlight hp Highlight pela poderosa influência intelectual de Lévi-Strauss (que então se aproxi- mava do zênite) – talvez expliquem algo da diferença que suas respectivas obras mantêm com o estruturalismo. Sebag, originário da vibrante comu- nidade francófona de judeus tunisinos, era muito próximo do fundador da antropologia estrutural, que o tinha como seu melhor discípulo e provável sucessor. O estudo de Sebag (publicado postumamente em 11) sobre a mitologia cosmogônica dos Pueblo foi um dos materiais preparatórios para a vasta empresa de análise da mitologia ameríndia por Lévi-Strauss. O jovem etnólogo mantinha também um envolvimento intenso com a psicanálise. Um de seus raros trabalhos publicados em vida analisava os sonhos de Baipurangi, uma jovem do povo Aché-Guayaki, junto ao qual Sebag chegou a compartilhar com Clastres alguns períodos no campo,3 antes de se fixar entre os Ayoreo do Chaco, para uma pesquisa etnográ- fica que sua morte deixou por terminar. Além disso, Sebag foi um dos primeiros pensadores de sua geração a tentar aprofundar o significado filosófico e político do estruturalismo, com Marxisme et structuralisme (Sebag 164), um livro sofisticado teoricamente, que poderá voltar a sus- citar interesse à medida que a dinâmica intelectual do período começa a ser reavaliada em profundidade.4 Clastres tinha em comum com seu amigo a ambição de reler a filo- sofia social moderna à luz dos ensinamentos da antropologia de Lévi- Strauss; mas as semelhanças entre as respectivas inclinações paravam mais ou menos aí. A Sebag atraíam sobretudo o mito e o sonho, os dis- cursos da fabulação humana; já os temas preferenciais de seu colega eram o rito e o poder, os mecanismos de instituição do social, de abordagem à primeira vista mais difícil pela antropologia estrutural: Não sou estruturalista, mas não tenho nada contra o estruturalismo; é que me ocupo, como etnólogo, de campos que, em minha opinião, não são do domínio de uma análise estrutural. (Clastres [15 ] 003: 35 ) 3. Dessa convivência resultou um artigo conjunto sobre alguns costumes funerários dos Aché (Clastres & Sebag 163). 4. Para um balanço da obra de Lucien Sebag, ver D’Onofrio (org.) 005. hp Highlight hp Highlight 300300 Posfácio O autor de Arqueologia da violência se dedicou desde cedo a articular uma respeitosa mas implacável crítica interna ao estruturalismo, recusando-se a aderir à doxa positivista que começava a se acumular em volta da obra de Lévi-Strauss, e que a ia transformando, nas mãos de seus epígonos, em “uma espécie de Juízo Final da Razão, capaz de neutralizar todas as ambigui- dades da História e do Pensamento” (Prado Jr. 18; Prefácio supra, p. 8). Ao mesmo tempo, Clastres manifestou durante toda a sua carreira uma hostilidade ainda mais implacável – e esta não exatamente respeitosa (ver o cap. 10 deste livro) – ao que chamava de “etnomarxismo” francês, isto é, os antropólogos que se empenhavam em enquadrar na dogmática do ma- terialismo histórico as “formações sociais pré-capitalistas”, em particular as sociedades de linhagem da África do Oeste.5 Assim, se Sebag escreveu um livro real intitulado Marxisme et struc- turalisme, Clastres deixou-nos, com A sociedade contra o Estado e Arqueo- logia da violência, o material para um livro possível que caberia intitular Nem marxismo, nem estruturalismo. O autor via no marxismo e no estrutu- ralismo uma mesma falha fundamental, oriunda do privilégio concedido por ambos à racionalidade econômica: a desvalorização da intencionali- dade política, que seria como que o verdadeiro princípio vital das cole- tividades humanas. A fundamentação metafísica do socius na produção, 5.Os etnomarxistas franceses eram, em sua grande maioria, africanistas de formação (além de bastante antipáticos a Lévi-Strauss). Isso é tão pouco acidental quanto a relação entre o etnoanarquismo de Clastres e sua especialização nas sociedades das Terras Baixas da América do Sul. As diferentes áreas etnogeográficas do mundo – seus diversos estilos ci- vilizacionais – possuem como que “valências” sociocosmológicas que as tornam mais ou menos afins a determinadas abordagens teóricas, sem se tornarem por isso meras hipóstases dessas teorias. Quando muito, é antes o contrário o que se passa, uma teoria antropológica geral sendo, frequentemente, pouco mais que uma redescrição abstrata e (re)estilizada de determinadas “teorias nativas”, isto é, de cosmopráticas histórica e culturalmente situadas. Observe-se, de passagem, que o fato de a sucessora designada (na prática) por Lévi-Strauss para sua posição no Collège de France ter sido Françoise Héritier, uma africanista próxima dos “etnomarxistas” – em vez de, especulemos, o Lucien Sebag de um outro mundo possí- vel –, explica em parte a trajetória algo apagada do pensamento levistraussiano dentro da antropologia francesa nas últimas duas décadas do século passado. A declarada lealdade teórica de Héritier a Lévi-Strauss nunca chegou a compensar sua invencível incompreensão do estruturalismo. hp Highlight hp Highlight 301 com o marxismo, e na troca, com o estruturalismo, incapacitaria ambos a pensar o que havia de característico, ou melhor, de singular na socialidade primitiva, e que se localizava forçosamente nesse plano da intencionali- dade política. Clastres resumiu tal singularidade na fórmula “sociedade- contra-o-Estado”, expressão que designa uma forma de vida baseada na despotencialização simbólica e prática da representação coletiva, na ini- bição estrutural da tendência perene à conversão da autoridade, riqueza e prestígio em coerção, desigualdade e exploração, e em uma gestão das alianças interlocais guiada pelo imperativo estratégico de autonomia po- lítica do grupo local, que se reflete igualmente no plano do ethos pessoal, o indivíduo e o grupo primitivos sendo ambos feitos da mesma matéria múltipla e intratável, do mesmo espírito revesso e “inconstante”.6 * * * O antimarxismo de Clastres era, pois, diverso de seu não estruturalismo. No materialismo histórico, ele não conseguia ver mais que um elogio etno cêntrico da produção como verdade da sociedade e do trabalho como essência da condição humana. Esse evolucionismo economicista se defrontaria, nas sociedades primitivas, com seu limite epistemológico abso luto, pois estas constituem “máquinas antiprodução” que contradi- zem todos os preceitos científico-metafísicos da economia política.7 Em lugar da economia política do controle – controle do trabalho produtivo dos jovens, pelos velhos; controle do trabalho reprodutivo das mulheres, pelos homens – que os etnomarxistas, na esteira de Engels, se compra- ziam em ver na raiz das sociedades rotuladas, com impecável lógica mí- tica, de “pré-capitalistas”, Clastres discernia, nas sociedades “primitivas” 6. Viveiros de Castro [13a] 00. 7. Uma leitura da genial dissertação de Oswald de Andrade ([150] 10), “A crise da filo- sofia messiânica”, em paralelo com uma leitura dos artigos de Clastres constitui exercício do mais alto interesse para se pensar (n)o presente. Por essa conexão (“errática” mas nada aleatória) Oswald-Clastres passa uma corrente conceitual de imensa energia – antropoló- gica, lúdica, revolucionária – capaz de tirar do sério, e dos eixos, muito do que precisa ur- gentemente sê-lo. hp Highlight hp Highlight hp Highlight 3030 Posfácio (adjetivo que remete a um outro mitema filosófico ocidental), um duplo contracontrole, ou metacontrole: o controle político da economia, por um lado – regime de suficiência subprodutiva, bloqueio da acumulação pela redistribuição forçada ou a dilapidação ritual –, e o controle social do político, por outro lado – separação entre chefia e poder, submissão do guerreiro ao imperativo suicida da glória. A sociedade primitiva como sistema imunológico: a mobilização guerreira a serviço da integridade sociológica, o controle da tentação do controle. Arqueologia da violência é um Contra Hobbes (Abensour 18b) – a guerra continua ali a se opor ao Estado, mas com essa diferença crucial que a socialidade está do lado da guerra, não do soberano, o qual aparece ao contrário como quase-na- tureza (Richir 18) –, mas é talvez mais ainda um Anti-Engels, um ma- nifesto contra o continuísmo necessitarista da História (Prado Jr., supra, p. 16).8 Clastres é o pensador da ruptura, do acidente, da contingência radical, do evento como “mau encontro”. Sob esse aspecto, ele se mostra profundamente levistraussiano. Com efeito, é possível tomar a obra de Clastres como representando antes uma radicalização que uma rejeição do estruturalismo. É nela que um conceito fundamental de Lévi-Strauss, o de “sociedade fria” – forma da vida coletiva que, diferentemente daquela praticada pelas sociedades ditas “históricas”, tem a propriedade (ativa e positiva) de não refletir nem interiorizar sua historicidade empírica como condição transcendental –, encontra uma expressão determinada no plano da antropologia política. A sociedade primitiva de Clastres é a sociedade fria de Lévi-Strauss; a primeira é contra o Estado pelas mesmas razões que fazem a segunda ser contra a História. E em ambos os casos aquilo que elas procuram conju- rar ameaça constantemente invadi-las, do exterior, como irromper de seu próprio interior; este foi um problema que Clastres e, a seu modo, Lévi- 8. E, já que lembramos de Oswald uma vez, lembremos outra: “A ruptura histórica com o mundo matriarcal produziu-se quando o homem deixou de devorar o homem para fazê-lo seu escravo. Friedrich Engels assinala o fecundo progresso dialético que isso constitui para a humanidade ’’ (Andrade [150] 10: 104). hp Highlight hp Highlight hp Highlight hp Highlight hp Highlight hp Highlight 303 Strauss jamais cessaram de se colocar.9 Além disso, se a guerra clastriana visa deslocar a troca estruturalista – este é o bordo de ataque do capítulo 11 do livro –, deve ser sublinhado que não pretende aboli-la. Ao contrá- rio, o autor reafirma a principialidade da troca enquanto vetor genérico de hominização (em sua encarnação prototípica como “proibição do in- cesto”), incapaz por isso mesmo, entretanto, de dar conta da singulari- dade dessa forma que Clastres chamou “sociedade primitiva”. Mas eis que essa forma era, para o autor, o objeto por excelência da antropologia ou da etnologia, palavra que às vezes preferia para descre- ver sua profissão. Para ele, a antropologia, ou etnologia, é “uma ciência do homem, mas não de qualquer homem” (Clastres 168: ). O que faria dela uma ciência humana diferente das outras: arte das distâncias, saber paradoxal, sua vocação é a de tentar um diálogo com aqueles povos cujo silenciamento foi uma condição de possibilidade (prática e teórica) da civilização que gerou a antropologia. Diálogo, portanto, com os “sel- vagens” ou “primitivos”, com aqueles coletivos que escaparam, como se por uma precária tangente, ao Grande Atrator da Razão e do Estado. A relação do projeto de Clastres com o de Lévi-Strauss se torna, a partir daí, um tanto mais delicada: se o homem que é objeto dessa ciência não é qualquer sorte de homem, é porque a distância requerida não é qualquer espécie de distância, uma distância que pudesse ser percorrida dentro de um universo politicamente isotrópico. A distância clastriana é, primeiro que tudo, uma distância cosmopolítica, e só então epistêmica. A antropologia encarna, para Clastres, um projeto de consideração do fenômeno humano como definido por uma alteridade intensivamá- xima, uma dispersão cujos limites são a priori indetermináveis. “[Q]uando o espelho não nos devolve nossa própria imagem, isso não prova que não haja nada a observar” ([14] 003: 35). Essa constatação seca10 encontra 9. Parece-me portanto em vão que Claude Lefort (18: 18-0) pretenda não haver relação entre os conceitos de Clastres e de Lévi-Strauss; a rejeição crítica que ambos enfrentaram, ex- pressa em termos praticamente idênticos, é uma prova por assim dizer a contrario dessa afinidade. 10. Feita em “Copérnico e os selvagens”, o cap. 1 de A sociedade contra o Estado. O espelho etnológico de Clastres seria então um daqueles raros a seguir o judicioso conselho de Cocteau: “Os espelhos deveriam refletir um pouco mais antes de devolver as imagens” (13: 60). hp Highlight hp Highlight hp Highlight hp Highlight 304304 Posfácio eco em uma formulação recente de Patrice Maniglier a propósito do que este filósofo chama de “a mais alta promessa” da antropologia, a saber, a de “nos devolver uma imagem de nós mesmos em que não nos reco- nheçamos” (005: 3-4).11 O propósito de tal consideração, o espírito dessa promessa, não pode ser então o de reduzir a alteridade que baliza o percurso interno do conceito de humano, mas sim o de multiplicar as suas imagens. Alteridade e multiplicidade definem ao mesmo tempo o modo como a antropologia constitui a relação com seu objeto e o modo como seu objeto se autoconstitui. “Sociedade primitiva” ou “contra o Estado” é o nome que Clastres deu a esse objeto, e ao seu próprio encon- tro com a multiplicidade. E se o Estado existiu desde sempre, como argu- mentaram Deleuze & Guattari (180: 445), então a sociedade primitiva também existirá para sempre: como exterior imanente do Estado, força de antiprodução sempre a ameaçar as forças produtivas, multiplicidade não interiorizável pelas grandes máquinas mundiais. “Sociedade primi- tiva”, em suma, é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é para isso que lutamos – continuará havendo. * * * “Há em Clastres uma maneira de afirmar que prefiro a todas as precauções ditadas pela prudência acadêmica.” Quem o diz é a grande helenista Ni- cole Loraux (18: 158-5), que nem por isso deixou de contrapor a cer- tas afirmações de nosso autor, que implicavam polemicamente a Grécia antiga, considerações críticas diversas, muitas delas bem fundadas, todas elas serenas. Acontece que tal serenidade é coisa assaz rara, quando se trata da recepção da obra de Clastres, cuja “maneira de afirmar” é for- temente polarizadora. Por um lado, ela provoca uma irritação de cômica 11. O ponto de Maniglier – que se situa por assim dizer no momento seguinte da “reflexão” do espelho da nota anterior – é que essa promessa é cumprida pelo estruturalismo, algo de que Clastres não poderia, pelo menos no primeiro momento de sua carreira, discordar. hp Highlight hp Highlight 305 intensidade entre os zelotes da razão e da ordem, e nos temperamentos re- acionários em geral. Não é incomum que o anarquismo do autor seja alvo de juízos que pertenceriam antes à psicopatologia criminal que à história das ideias.12 Mesmo no campo da etnologia sul-americana, onde a influ- ência de Clastres foi formativa (não confundir com normativa) para toda uma geração, assiste-se hoje à retomada de um esforço de nulificação de seu trabalho, como parte de um processo de rotinização do carisma – vá lá o eufemismo – em pleno curso dentro de alguns nichos disciplinares,13 e no qual a “prudência” de que fala Loraux parece que vem servindo de pretexto para uma empresa de desvitalização metódica do pensamento. Não apenas do pensamento de Clastres, mas, o que é bem mais para se la- mentar, daquele dos povos que ele estudou. A “harmonia em toda parte” prevista pelo autor – a captura dos índios pelo regime da semelhança uni- versal: missionarização, escolarização, onguificação, patrimonialização… – ameaça agora o modo de vida indígena também no plano do conceito etnológico: etnificação, convivialização, historificação, proprietarização… Nos espíritos mais jovens – mais generosos e inquietos –, por outro lado, a obra de Clastres pode suscitar uma adesão algo “irrefletida” (falá- vamos há pouco de espelhos) e às vezes um pouco autocomplacente, gra- ças ao poder de sedução de sua linguagem, de uma concisão e insistência quase encantatórias, à enganosa simplicidade de sua argumentação, e à paixão autêntica que transpira de praticamente cada página sua. Clastres transmite ao leitor a sensação de que este é testemunho de uma experiên- cia privilegiada; ele o faz compartilhar consigo uma mesma admiração pela dignidade existencial daquelas “imagens de nós mesmos” em que não nos reconhecemos, e que assim mantêm sua inquietante alteridade, isto é, sua autonomia. Tudo isso – aquela sensação, essa admiração, e esta autonomia –, é, como se sabe, meio perigoso. Sobretudo no bom sentido. 12. Ver, por exemplo, o diagnóstico de Moyn (004): “[Ó]dio exagerado e monomaníaco ao Estado”; “ódio vociferante ao capitalismo”; “desconfiança fanática do Estado”; “obsessão paranoica”, e por aí afora. O autor fica a um milímetro de culpar Clastres pelos atentados do Unabomber. 13. Essa é uma história que fica para outra vez; dar nome aos bois, aqui, levaria um bom pedaço de nosso comentário. 306306 Posfácio Autor difícil, então, em sua aparente facilidade. São justamente os melhores leitores de Clastres que precisam (re)aprender a lê-lo, em meio a tantos esforços para que se o ignore ou esqueça. Precisam permanecer atentos às suas virtudes como aos seus defeitos: saber apreciar suas intui- ções antropológicas fulgurantes e sua sensibilidade como etnógrafo de campo (Crônica dos índios Guayaki [1] é uma obra-prima do gênero etnográfico); mas também saber resistir à sua peremptoriedade tantas vezes excessiva, não desviando pudicamente os olhos diante de suas in- cômodas hipérboles, suas hesitações, suas impaciências e imprecisões – sem por isso deixar de preferi-las de longe à remencionada prudência, sempre pomposa, ora e vez melíflua, própria de certa gravitas acadêmica. Resistir a Clastres, mas não parar de lê-lo; resistir com Clastres, enfim: confrontar seu pensamento no que nele permanece de vivo e perturbador. François Zourabichvili faz uma reflexão sobre Gilles Deleuze que me parece identicamente pertinente para o caso de Clastres e seus leitores: A filosofia de Deleuze não é, para mim, nem evidente nem satisfatória [satisfaisante]; a razão de meu interesse por ela é bem outra: ela não me deixa tranquilo… [U ]ma filosofia só é interessante por seus aspec- tos desorientadores, ao mesmo tempo estranhos e atraentes. Em caso contrário, ela se torna uma doutrina, um sinal de reconhecimento para uma comunidade de fiéis. Eis por que não se deve procurar esconder as aparentes contradições do filósofo que se admira. É preciso, ao contrá- rio, partir dessas contradições, e confrontá-las incessantemente; é preciso saber ver nelas não aporias definitivas, como faria um refutador, mas o signo seguro de uma perspectiva inabitual (cf. Zourabichvili 004, ms.) * * * Maurice Luciani, em um necrológio publicado na revista Libre, evocava a “indiferença ao espírito do tempo” como uma das características da per- sonalidade irônica e solitária de Clastres. A apreciação não deixa de ser curiosa, visto que o espírito dos tempos que correm tende a descartar seu hp Highlight 30 pensamento justamente por seu caráter anacrônico, “datado”, como se diz: romântico, primitivista, exotizante e outras mais daquelas taras que a crítica neoliberal e neoconservadora costuma creditar a 168.14 Mas, no- tem que Luciani escrevia em18, uma década depois do annus horribilis, quando já havia então se instalado o silêncio ou o opróbrio que iriam en- volver a obra de Clastres e de vários outros pensadores contemporâneos. Uma releitura de Arqueologia da violência a tantos anos de distância é, as- sim, uma experiência ao mesmo tempo desorientadora e iluminadora. Se ela vale a pena ser feita, é porque algo da época na qual esses textos foram escritos, ou melhor, contra a qual foram escritos – e foi nessa medida que ajudaram a defini-la –, algo dessa época permanece na nossa, algo dos problemas de então continua conosco. Ou talvez não: os problemas mu- daram radicalmente, dir-se-á. Pois tanto melhor: o que acontece quando reintroduzimos em outra época conceitos elaborados em circunstâncias muito específicas? Que efeitos eles produzem ao reaparecerem?15 O efeito de anacronismo suscitado pela leitura de Clastres é real. Tomem-se os três primeiros capítulos de Arqueologia da violência, por exemplo. Falar dos Yanomami como “o sonho de todo etnógrafo”; despe- jar um sarcasmo furioso contra os missionários evangélicos (e os turistas) sem reconhecer “autocriticamente” certa identidade com eles, como hoje é de praxe – mudaria a missão, ou mudou o antropólogo? –; manifestar sua fascinação por um modo de vida que o autor não hesita em chamar de primitivo e qualificar de feliz; deixar-se mesmerizar pela ilusão ime- diativa (e algo falóculo-cêntrica) que se exprime no elogio entusiasmado do depoimento de Elena Valero;16 incorrer no pessimismo sentimental 14. Some-se a essa crítica “neo-neo” de direita o retorno recente, ali mais para a esquerda do espectro intelectual, de um certo universalismo autoritário (Badiou, Zizek) que parece ter aprendido muito pouco e esquecido menos ainda. De uns tempos para cá, ele se pôs a louvar o cristianismo paulino, com as intenções que se pode imaginar. 15. François Châtelet, citado em Barbosa 004: 53. 16. “Em suma: pela primeira vez, sem dúvida – milagrosamente, pode-se dizer –, uma cul- tura primitiva se relata ela própria, o Neolítico expõe diretamente seus prestígios, uma sociedade indígena descreve-se a si mesma de dentro. Pela primeira vez, podemos entrar no ovo sem arrombá-lo, sem quebrar a casca: ocasião bastante rara e que merece ser cele- brada.” (supra, p. 56) hp Highlight 308308 Posfácio do “último círculo”, da “última liberdade”, da “sombra mortal” que se estende por sobre “a última sociedade primitiva livre, na América do Sul com certeza, e provavelmente também no mundo” – tudo isso tornou-se rigorosamente inominável nos salões contemporâneos. A análise breve mas devastadora que faz Clastres do projeto da antropologia,17 ao mesmo tempo que antecipa muito da reflexividade pós-colonial que iria levar a disciplina, nas décadas subsequentes, a uma aguda crise de consciência – o que é sempre a pior maneira de suscitar uma descontinuidade criativa dentro de um projeto político ou intelectual –, formula-se em termos que nos parecem hoje desconfortavelmente aristocráticos, no sentido de Nietzsche, com certeza o personagem essencial para uma genealogia da obra clastriana. Tal viés aristocrático do “pensamento 68” (faço desse apodo uma bandeira) tornou-se quase ininteligível, com a descida do espesso nevoeiro de má consciência e boas intenções que hoje envolve a apercepção cultural do cidadão neo-ocidental globalizado. E no entanto é fácil ver que a profecia que encerra o primeiro capítulo do livro, sobre a visita do autor aos Yanomami, estava substancialmente correta: Eles são os últimos sitiados. Uma sombra mortal se estende por toda parte… E depois? Talvez se sintam melhor, uma vez rompido o úl- timo círculo dessa última liberdade. Talvez se possa dormir sem ser despertado uma única vez… E algum dia, ao lado dos chabuno, ha- verá então perfuradoras de petróleo; no flanco das colinas, escavações de minas de diamante; policiais nas estradas, lojas à beira dos rios… Harmonia em toda parte. (supra, p. 5) Esse “algum dia” parece de fato próximo: a mineração já está lá, espa- lhando morte e desolação; as perfuradoras de petróleo não estão muito longe, nem as lojas abarrotadas de gadgets inservíveis; o policiamento das vias públicas talvez ainda demore um pouco (vai depender do ren- dimento do ecoturismo). A grande e inesperada diferença em relação à profecia de Clastres, porém, é que agora são os Yanomami eles mesmos 17. Ver os ensaios “Copérnico e os selvagens”, de 16, e “Entre silence et dialogue” de 168. hp Highlight 30 que chamaram a si a tarefa de articular uma crítica cosmopolítica da ci- vilização ocidental, recusando-se a contribuir para a “harmonia em toda parte” com o silêncio dos derrotados. A reflexão extensa, minuciosa- mente impiedosa do xamã-filósofo Davi Kopenawa, em uma colabora- ção intertradutiva com o antropólogo Bruce Albert construída ao longo de mais de trinta anos, materializou-se enfim em um livro, La Chute du ciel [A queda do céu], que promete mudar os termos da interlocução an- tropológica com a Amazônia indígena (Kopenawa & Albert 010). Es- tamos talvez, com essa obra excepcional a todos os títulos, começando realmente a passar “do silêncio ao diálogo”; mesmo que a conversa não possa ser senão escura e ominosa, pois vivemos em tempos sombrios. A luz, que há, está do lado dos Yanomami, com seus inumeráveis cris- tais brilhantes e suas legiões resplandecentes de espíritos infinitesimais a povoar as visões xamânicas (Viveiros de Castro 00).18 Anacronismo de Clastres, então? Intempestividade, antes (Lima & Goldman 003: ). Às vezes tem-se a sensação de que é preciso mesmo lê-lo como se ele fosse um pensador pré-socrático cuja obra, dispersa em enigmáticos fragmentos, tivesse acabado de ser descoberta. Como se ele fosse alguém que falasse não apenas sobre um outro mundo, mas a partir de um outro mundo, usando uma linguagem que seria uma ances- tral da nossa, e que, como não somos mais capazes de entendê-la a nosso contento, precisássemos “transcriar”, mudando a distribuição de seus aspectos implícitos e explícitos, literalizando o que ela tem de figurativo e reciprocamente, procedendo a uma reabstração de seu vocabulário em função das mutações de nossa retórica filosófica e política (como tam- bém de nosso conhecimento); reinventando, em suma, o conteúdo e o propósito desse discurso.19 18. O livro de Kopenawa e Albert é uma prova eloquente (há muitas outras) de que a an- tropologia tem algo de melhor a mostrar a respeito dos Yanomami do que a lista de abomi- nações de todo tamanho em que ela se viu implicada em sua atuação junto a esse povo, as quais vêm dando matéria para farto escândalo; nem todo ele, longe disso, motivado pelas mais puras das intenções. 19. A analogia com os pré-socráticos é um pouco mais que uma licença poética. Clastres aproximou e contrastou, em mais de uma ocasião, o pensamento dos xamãs guarani com a > hp Highlight hp Highlight hp Highlight 310310 Posfácio Da carência à endoconsistência A questão que se põe, assim, é a de saber até que ponto a noção de so- ciedade-contra-o-Estado permanece hoje, para usarmos uma conhecida fórmula, “boa para pensar” (cf. Sztutman 011: 31), em outras palavras, se ela ainda é capaz de suportar um verdadeiro uso analítico, mais que uma simples menção histórica. E boa para pensar, acrescentemos, não apenas a paisagem sociopolítica da América indígena – região sobre a qual o conhecimento empírico aumentou várias ordens de magnitude desde a época em que Clastres escrevia – ou, como defende aqui o autor, a “sociedade primitiva em geral” (supra, pp. 188, 66), mas boa também no sentido de que ela continuaria a ser uma peça-chave dentro da má- quina desejante da esquerda libertária. Alguma dúvida sobre essa atu- alidade parece razoável, agora que o Mercado avulta como muito maisameaçador que o Estado, e que o Capitalismo parece ter conseguido, no plano do etograma da espécie, o que a Microsoft quase conseguiu em seu ramo, a saber, tornar-se o único sistema operacional disponível. Com efeito, seu sucesso foi tamanho que, na frase atribuída a Fredric Jame- son, “hoje em dia parece ser mais fácil pensar o fim do mundo que o fim do capitalismo”.20 Parece, mesmo. Admirável época a nossa, em que o puritanismo pruriente, a hipocrisia autoflagelatória e a impotência militante conspiram filosofia de Heráclito e Parmênides, reformulando o problema tradicional da “passagem” do mito à filosofia – correlativo, para ele, ao problema do surgimento do Estado – a partir de uma comparação do destino da oposição do Um e do Múltiplo entre os Guarani e os Gregos (Loraux 18; Prado Jr., supra). Clastres não via, portanto, a passagem do mito à filosofia como marcando a transição do despotismo teocrático “oriental” à democracia racional “protoeuropeia”. Ele opera com um conceito de mito muito diverso daquele utili- zado pelos helenistas. 20. Apud Fisher 00: , um livro tão despretensioso quanto essencial. Tal facilidade com- parativa se mostra, por exemplo, nos esforços desesperados (entre os bem-intencionados) ou cínicos (entre os bem interessados) de crer ou fazer crer nessa contradição em termos que é um “capitalismo sustentável”, quando todos sabemos – ou pelo menos deveríamos desconfiar – que existe uma incompatibilidade axiomática entre a economia capitalista e qualquer noção de sustentabilidade (Fisher op. cit.: 1). > hp Highlight 311 para tornar impossível sequer “imaginar uma alternativa coerente” (Fi- sher 00: ) ao nosso inferno civilizacional – quanto mais pôr mãos à obra, buscando algum apoio, e alguma esperança, naqueles povos que nunca tiveram nada com isso, nada conosco, e que assim, havendo desde sempre sido uma alternativa a nós, podem nos estimular a criarmos al- ternativas para nós. Alternativas outras que as deles, decerto; mas outras, sobretudo, que nossa disfórica sensação de falta de alternativas. “Um pouco de possível, senão sufoco.” Mas está difícil olhar para outros povos, outras “soluções de vida” – outras problematizações da vida –, em busca de um possível. Con- sidere-se, por exemplo, entre os diversos signos atuais de asfixia, a síndrome do pânico diante de tudo que possa soar como “othering” (in- traduzível neologismo, em sua semântica autocontraditória): como se toda diferença desembocasse em inevitável opressão, toda alteridade preparasse uma intolerável discriminação. Parece que os outros agora realmente nos devolvem uma imagem na qual, enfim!, nos reconhece- mos. Se assim é de fato, então para que ficarmos a perder tempo com as cansativas preliminares (no sentido erótico) do exotismo nostálgico, não é mesmo? Passemos todos direto ao gozo, medíocre mas garantido, do narcisismo depressivo. O projeto de Clastres era o de transformar a antropologia “social” ou “cultural” em uma antropologia política, no duplo sentido de uma an- tropologia que tomasse o poder (não a “dominação”, a “exploração” ou o “conflito”) como imanente à vida social, e, mais importante, que fosse capaz de levar a sério a alteridade radical da experiência dos povos ditos primitivos, o que requeria, antes de mais nada, o reconhecimento de sua plena capacidade de autoinvenção e de autorreflexão. Para isso, era pre- ciso primeiro romper a relação teleológica – melhor dizendo, teológica – entre a dimensão política da vida coletiva e a forma-Estado, afirmada e justificada por virtualmente toda a filosofia ocidental. Deleuze escreveu, em uma passagem famosa: “A esquerda precisa que as pessoas pensem, e seu papel, esteja ela ou não no poder, é o de descobrir um tipo de pro- blema que a direita quer a todo custo esconder” (10a: 13). O problema que Clastres descobriu, o da coincidência fortuita entre poder e coerção, hp Highlight hp Highlight hp Highlight 3131 Posfácio é um daqueles que a direita precisa esconder. A antropologia só se tor- nará realmente política, afirma Clastres, a partir do momento em que for capaz de mostrar que o Estado e tudo aquilo a que ele deu origem (em particular, as classes sociais) são uma contingência histórica, um infor- túnio acidental antes que um destino essencial, e que às sociedades que não o têm não falta nada, senão a vontade de ser tida por ele, a estranha vontade negativa de ter uma falta que o necessite. É com o Estado e pelo Estado que a necessidade se substitui à suficiência. A esquerda precisa que as pessoas pensem… Ela precisa então fazer as pessoas pensar (ninguém pensa se não for provocado a fazê-lo); mas, para isso, é preciso fazê-las levar a sério o pensamento, a começar pelo pensamento dos outros – uma vez que todo verdadeiro pensamento já de si suscita os poderes da alteridade. O tema do “como levar enfim a sério” as escolhas filosóficas, isto é, vitais, expressas nas formações sociais pri- mitivas retorna insistentemente em Clastres. No capítulo 6 deste livro, afirmando que a etnologia das últimas décadas tinha feito muito para li- berar essas sociedades do olhar exotizante do Ocidente21 o autor escreve: Em outras palavras, já não se projeta sobre as sociedades primitivas o olhar curioso ou divertido do amador mais ou menos esclarecido, mais ou menos humanista; elas são levadas de certo modo a sério. A questão é saber até onde vai essa seriedade. (supra, p. 13 ) Até onde, com efeito? Essa é uma questão que a antropologia decidi- damente não resolveu, talvez porque ela seja a questão que a define; resolvê-la equivaleria, para Clastres, a dissolver uma diferença indis- pensável e irredutível; seria ir mais longe do que pode almejar a disci- plina.22 Por isso, talvez, o autor associasse sempre o projeto da disciplina 21. O fato de que sua própria obra seria, mais tarde, acusada de exotizante não deixa de ser uma prova de que Clastres tinha muito mais razão do que suspeitava, e ao mesmo tempo que ele subestimava seus inimigos presentes e futuros. 22. Vejam-se as melancólicas palavras finais do cap. : “Sendo as coisas o que elas são…” (supra, p. 64) – às quais o livro já mencionado de Kopenawa e Albert talvez constitua um bem-vindo começo de desmentido. hp Highlight 313 à figura do paradoxo. O paradoxo é um operador central na antropolo- gia de Clastres: há um paradoxo da etnologia (o conhecimento não como apropriação mas como despossessão); um paradoxo próprio a cada uma das duas grandes formas sociais (na sociedade primitiva, a chefia sem poder; na nossa, a servidão voluntária); e um paradoxo da guerra e do profetismo (dispositivos de indivisão que se tornam os germes de um poder separado). Seria mesmo possível conceber esse primeiro grande tipo psicossocial identificado pelo discurso clastriano, o chefe sem poder, como uma espécie de “elemento paradoxal” do político, termo supra- numerário e casa vazia ao mesmo tempo, significante flutuante que não significa nada em particular (seu discurso é oco, redundante), existindo apenas para se opor à ausência de significação (essa vacuidade institui o plenum da sociedade). Isso tornaria o chefe clastriano, naturalmente – paradoxalmente? –, uma figura emblemática do universo estruturalista (Lévi-Strauss 150; Deleuze 1). Seja como for, o fato é que, hoje, o paradoxo se generalizou; não são mais apenas os etnólogos que se veem diante do desafio da alteridade. A questão do “até onde?” se coloca para o Ocidente como um todo, e nela se joga o destino daquilo que chamamos orgulhosamente de nossa Civi- lização. Enfim, o problema de “como levar a sério os outros” se tornou, ele próprio, um problema que é imperativo levar a sério. Em La Sorcelle- rie capitaliste [A feitiçaria capitalista], um dos poucos livros publicados na França de hoje que prolongao espírito da indagação clastriana (pela mediação da voz de Deleuze e Guattari), os autores observam: Temos por exemplo o costume de deplorar os estragos feitos pela coloni- zação, e as confissões de culpa tornaram-se rotina. Mas falta-nos ainda o devido sentimento de horror [effroi] diante dessa ideia de que não apenas nos consideramos um dia a cabeça pensante da humanidade, como, e isso com as melhores intenções do mundo, continuamos a fazê- lo. […] O horror começa quando nos damos conta de que, malgrado nossa tolerância, nossos remorsos, nossa culpa, nós afinal não muda- mos tanto assim. (Pignarre & Stengers 005: 88 ) hp Highlight hp Highlight hp Highlight 314314 Posfácio E eles concluem a reflexão com uma pergunta que é uma versão do “até onde?” de Clastres: “Como abrir espaço para os outros?” (id. ibid.: 8). Abrir espaço para os outros certamente não significa tomá-los como modelos, fazendo-os passar de “nossas” vítimas (id. ibid.) a “nossos” re- dentores. O projeto de Clastres se inclui entre aqueles que concebem o trabalho da antropologia como sendo o de elucidar as condições de au- todeterminação ontológica do Outro,23 o que significa, entre outras coi- sas, reconhecer-lhe uma consistência sociopolítica própria, e, enquanto tal, não transferível para nosso mundo como se fosse a receita há muito perdida da felicidade eterna universal. O “primitivismo” clastriano não era uma plataforma política para o Ocidente. Em seu debate com Birn- baum (cap. ), ele contesta: Assim como o astrônomo não convida outrem a invejar a sorte dos astros, não milito em favor do mundo dos selvagens. Birnbaum confunde-me com os promotores de uma empresa da qual não sou acionista (R. Jaulin e seus acólitos). […] Analista de um certo tipo de sociedade, tento des- cobrir modos de funcionamento e não elaborar programa. (supra, p. 18) A comparação com o astrônomo evoca, é claro, o “olhar distanciado” de Lévi-Strauss, mas dando-lhe uma explícita interpretação política. Vendo- se a si próprio como astrônomo mais que como astronauta – ao contrário do que alguém poderia imaginar –, Clastres sobretudo não pretendia pos- suir os planos do veículo que faria a viagem até esses mundos distantes, esse “outro planeta sociológico” (Richir 18: 6) que são as sociedades primitivas. De fato, ele acreditava que um limite absoluto, equivalente à velocidade da luz para a física, impedia as sociedades modernas de cru- zar o imenso espaço intersocietário – a barreira populacional. Embora sempre recusando a imputação de determinismo demográfico ([14] 003: , ou aqui mesmo, pp. 1-3), Clastres sustentava que a pequena dimensão populacional e territorial das sociedades primitivas era uma condição básica para a não emergência de um poder separado, assim 23. Ver Viveiros de Castro 00, para um desenvolvimento desse ponto de vista. hp Highlight hp Highlight hp Highlight 315 como via uma relação intrínseca entre o Estado e o crescimento demo- gráfico: “Todos os Estados são natalistas” ([15] 003: 6). A perda de controle da sociedade primitiva sobre seu “fluxo demográfico” era uma das preocupações frequentemente expressas pelo autor. A multiplicidade primitiva é subtrativa antes que aditiva, é molecular antes que molar, é minoritária no sentido quantitativo e qualitativo: o múltiplo só se faz com poucos, e com pouco. O igualitarismo selvagem de Clastres é, mais uma vez, “aristocrático”, como é aristocrática toda verdadeira minoria.24 Sem dúvida que a análise da questão do poder nas sociedades pri- mitivas deve alimentar uma reflexão política sobre nossas próprias so- ciedades (Clastres [15] 003), mas de um modo que se poderia dizer principalmente comparativo e especulativo. Por que o Estado, sendo uma contingência antropológica, tornou-se uma fatalidade histórica para tan- tos povos, e sobretudo para a nossa tradição? Em que condições a linha flexível da segmentaridade primitiva, com seus códigos e territorialidades, dá lugar à linha rígida da sobrecodificação generalizada, à emergência de um aparelho de captura que separa a sociedade de si mesma, criando a necessidade de uma instância exterior ao corpo social que o totalize e unifique? E mais, como pensar a nova face do Estado no mundo das “so- ciedades de controle” (Deleuze 10b), em que a transcendência se ima- nentiza e moleculariza, o socius tende a se identificar totalmente com a ins- tância que o unifica, o indivíduo interioriza o Estado e é perpetuamente 24. Uma das hipóteses que Clastres aventou para o que entendia serem sinais de emergên- cia do Estado nas sociedades tupi-guarani foi justamente uma explosão demográfica. Re- ciprocamente, como lemos no cap. 1 deste livro, o autor via na atitude antinatalista das sociedades do Chaco a contrapartida feminina – era às mulheres que repugnava a ideia de ter filhos – da sede suicida de glória que impelia os guerreiros. Ambos os movimentos mani- festariam uma espécie de pulsão de morte coletiva, latente em todas as sociedades primitivas (mas apenas nelas?), fazendo com que, em certas circunstâncias históricas, elas voltassem a máquina de guerra antiestatal contra si mesmas. Resta que no caso tupi-guarani, pelo menos, Clastres pode ter confundido (não estou certo de que o tenha feito) o tamanho absoluto da população de uma categoria étnica, os “Tupi-Guarani”, com as dimensões demográficas e sociopolíticas efetivas das várias sociedades ou redes de comunidades que pertenciam – mas de um ponto de vista meramente linguístico-cultural – a essa categoria. O múltiplo só se faz com poucos, mas esses poucos podem ser (ou serão sempre?) alguns entre muitos. hp Highlight hp Highlight 316316 Posfácio monitorado e modulado por ele? Quais as novas formas de resistência que se impõem, isto é, que surgem inevitavelmente?25 * * * A resposta a essas questões depende do tipo de economia da diferença que está em jogo na comparação antropológica. Há duas maneiras muito distintas pelas quais a antropologia univer- saliza, isto é, estabelece uma troca de imagens através do espelho (“atra- vés” também no sentido do impróprio de “por meio de”). Por um lado, ela pode fazer funcionar a imagem dos “outros” de modo que esta revele algo sobre “nós”, certos aspectos de nossa própria humanidade que não somos capazes de reconhecer como nossos, por múltiplas razões. Este é o projeto antropológico que, iniciado na fase heroica de Boas, Malinowski e Mauss, consolidou-se na época em que Clastres escrevia, e que veio se prolongando até hoje, de Claude Lévi-Strauss a Marshall Sahlins, de Roy Wagner a Marilyn Strathern: a lenta transformação de uma imagem do Outro definida pela falta ou carência, por sua distância privativa em re- lação ao Eu, em uma figura da alteridade dotada de endoconsistência, de autonomia em relação à imagem de nós mesmos, e, nessa medida, dotada de valor crítico e heurístico para nós. O que Lévi-Strauss fez para a razão classificatória, com sua noção de pensamento selvagem, Sahlins para a racionalidade econômica, com sua “primeira sociedade de afluência” (ver o cap. 8 deste livro), Wagner para o par natureza-cultura, com sua me- tassemiótica da invenção e da convenção, Strathern para o par indivíduo- sociedade, com a elucidação das práticas melanésias de análise social e de conhecimento relacional, Clastres fez para o poder e a autoridade, com sua ideia da sociedade-contra-o-Estado enquanto positividade política plena – esses antropólogos construíram, por via da imagem do outro, uma outra imagem do mundo: uma imagem do mundo que incorpora a 25. E digo “inevitavelmente” porque trata-se, aqui também, de “descobrir modos de fun- cionamento e não [de] elaborar programas” – ou antes, talvez de descobrir aqueles para melhor elaborar estes. hp Highlight hp Highlight hp Highlight31 imagem que o outro faz do mundo, a imagem com a qual o outro faz um mundo; um mundo que nada deve, porque nada fica a dever, ao nosso. Uma nova imagem, então, do pensamento, da economia, da cultura, da socialidade, da política. E do mundo. Em qualquer desses casos, jamais se tratou de estabelecer uma dico- tomia substantiva, erguendo uma Grande Muralha antropológica, mas sim de indicar uma bifurcação que, mesmo decisiva, não é por isso menos fortuita: uma outra distribuição cosmossemiótica entre forma e fundo, a integração parcial de uma série de pequenas diferenças no modo de fa- zer a diferença. É preciso insistir ao máximo sobre a contingência des- sas metadiferenças, ou recriam-se, por um mau paradoxo, outros tantos Estados na esfera do pensamento, traçando-se um grande divisor, uma linha rígida ou “maior” no plano do conceito – atualizando aquilo que Deleuze & Guattari (180: 446-ss) chamam de “ciência de Estado”, a ciência teoremática que extrai constantes das variáveis, por oposição à “ciência menor”, a ciência nômade e problemática das variações contínuas, associada à máquina de guerra antes que ao Estado. E a antropologia, ou pelo menos a “etnologia”, a ciência paradoxal de Clastres, é uma ciência menor por vocação. Fazê-la em modo maior é trair sua vocação. À antro- pologia interessam as macrodualidades e as grandes oposições sociocos- mológicas do mesmo modo como elas interessam à mitologia indígena (como demonstrado por Lévi-Strauss): ambas começam justamente por elas, mas para mediá-las e diferenciá-las, multiplicá-las e fractalizá-las, internalizá-las e molecularizá-las até um limiar de discernibilidade – sem prejuízo de que elas se vejam, ao cabo do trabalho analítico (do mitema ou do conceito), reconstituídas como que pelo avesso em algum outro e inesperado plano. Que, por sua vez… Assim, essa diferença tão imensa como instável entre Eu e Outro não impede, ao contrário, incita à percepção dos elementos de alteridade no coração de nossa “própria” identidade. O pensamento selvagem não é o pensamento dos selvagens, mas a potência selvagem de todo pen- samento enquanto/onde este não é “domesticado em vista de um rendi- mento” (Lévi-Strauss 16: 8). O princípio de subprodução (a lógica da suficiência) e a propensão constitucional ao ócio criativo pulsam por hp Highlight hp Highlight 318318 Posfácio baixo de todo o moralismo necessitarista da economia e da pretensa in- saciabilidade pós-edênica do desejo humano (Sahlins 1, 16). Nossa sociedade também é capaz de gerar momentos – em nosso caso, sempre excepcionais e “revolucionários” – em que a vida é vivida como uma “sequência inventiva” (Wagner 181), assim como compartilha com todas as outras – mesmo que de modo paradoxal, semiclandestino – a condição de interpenetração relacional das pessoas que chamamos “parentesco” (Edwards & Strathern 000; Strathern 005, Sahlins 011). E por fim, no caso de Clastres, a constatação de nossa dependência constitutiva, no plano do pensamento mesmo, perante a forma-Estado não deve impe- dir a percepção de todas as intensidades contrárias, as fendas, frestas e linhas de fuga por onde nossa sociedade está constantemente resistindo à sua captura pela transcendência sobrecodificadora do Estado. É nesse sentido que a “sociedade-contra-o-Estado” permanece válida como con- ceito universal – não como tipo ideal ou como designador rígido de uma espécie sociológica, mas como analisador de toda e qualquer experiência de vida coletiva. A segunda forma de universalização parte, ao contrário, do postu- lado de que os primitivos são mais parecidos conosco do que nós com eles. E, como são parecidos conosco – mas apenas parecidos –, aspiram a ser exatamente como nós, ou seja, a viver felizes sob o signo da santíssima trindade do Homem Moderno: o Estado, o Mercado e a Razão, que são como o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia capitalista. Em outras palavras, eles também, nossos primitivos (estes são realmente nossos), exprimindo instintivamente a racionalidade infusa do Capital, são maxi- mizadores genéticos e individualistas possessivos; eles também otimizam a relação custo-benefício e fazem escolhas racionais (o que inclui serem “irresponsáveis” quando se trata da relação com o ambiente – extermi- naram a megafauna na América! incendiaram a Austrália!); eles são su- jeitos pragmáticos e sensatos como nós, que não confundem capitães de longo curso da Marinha Real britânica com divindades bárbaras,26 nem 26. Refiro-me ao conhecido debate de Obeyesekere com Sahlins sobre a morte do capitão Cook pelos havaianos. hp Highlight hp Highlight 31 experimentam sua consciência íntima, o recesso sacrossanto da própria subjetividade, sob o modo esdrúxulo da “dividualidade” relacional;27 eles também instituem desigualdades sociais à menor oportunidade para tanto, cobiçam o poder e a riqueza, oprimem e escravizam seus se- melhantes mais fracos, admiram e divinizam seus semelhantes mais for- tes, e, como aqueles críticos evocados por Courbet, de vez em quando também acordam gritando: “Quero julgar! Devo julgar!”. Em suma, nossos pobres primitivos estão – ou estavam, até que se lhes passou o trator por cima – no caminho certo. A prova de que eles são humanos (e de que estamos sendo cientificamente antietnocêntricos ao insistir so- bre isso, contra aquele anarcorromantismo fanático de Clastres, aquele relativismo cultural implausível de Sahlins, Wagner ou Strathern) é que compartilham conosco todos os nossos defeitos naturais, defeitos que se foram pouco a pouco transformando, é claro, em virtudes sociais, du- rante as décadas gloriosas que nos brindaram com Thatcher, Reagan, o Patriot Act, a Fortaleza Europa, o neoliberalismo e outras maravilhas inauditas – e, de quebra, com a psicologia evolucionária, sempre pronta a justificar tudo o que precede com alguma Just-so story. A sociedade primitiva agora é uma ilusão, uma “invenção” da sociedade moderna (Kuper 188). Esta última, ao que parece, não é uma ilusão e jamais foi inventada por quem quer que seja: sempre fomos modernos. Talvez porque só o Capitalismo seja real, inato e espontâneo, o vero Dado en- carnado. Walter Benjamin estava mais que certo ao defini-lo como uma estrutura diretamente religiosa. É contra essa segunda forma de universalização, reacionária, mío pe e, sobretudo, reprodutiva da figura do Estado como modelo do Universal, que a obra de Clastres se construiu, preventivamente por assim dizer. Pois ele sabia muito bem que o Estado não pode admitir as sociedades primitivas, aquelas, justamente, que não querem ser ad- mitidas. A imanência e a multiplicidade são sempre escandalosas aos olhos do Um. 27. Este é um clichê argumentativo muito usado pelos “cognitivistas” contra a análise me- lanésia da pessoa tal como reconstruída no trabalho clássico de Marilyn Strathern. hp Highlight hp Highlight hp Highlight 3030 Posfácio O diferente e o semblante A tese da sociedade contra o Estado é às vezes confundida com um elogio do libertarianismo no sentido americano (estadunidense) do termo, isto é, interpretada como se seu conteúdo lógico implicasse uma oposição à interferência do governo central na vida dos indivíduos, um elogio do “livre mercado”, uma defesa das milícias de cidadãos, a liberação do porte de arma para todos, o convite para algum Tea Party e por aí afora. Em suma: Pierre Clastres e Ayn Rand, farinha do mesmo saco. Naturalmente, tomar a despressuposição teórica do conceito de Es- tado por uma recusa da organização política enquanto tal por um elogio do individualismo à americana ou por um incentivo ao autocapitalismo (o nome certo parece que é “empreendedorismo”) é um engano grotesco. O capítulo deste livro é instrutivo a esse respeito, na medida em que dis- cute oerro inverso. Pierre Birnbaum, cujas críticas o autor rebate ali, faz uma leitura durkheimiana da sociedade contra o Estado, identificando-a, antes que a um elogio do indivíduo, a uma “sociedade de coerção total”. Clastres glosa assim seu oponente: Em outras palavras, se a sociedade primitiva ignora a divisão social, é ao preço de uma alienação bem mais terrível, a que submete a comu- nidade ao sistema esmagador das normas às quais não é permitido a ninguém alterar. O “controle social” se exerce de maneira absoluta: não é mais a sociedade contra o Estado, é a sociedade contra o indivíduo. (supra, p. 18) A resposta de Clastres consiste mais ou menos em dizer que o “controle social”, ou antes, o poder político, não se exerce sobre “o indivíduo”, mas sobre um indivíduo, o chefe, que é individualizado justamente para que o corpo social continue indiviso, “em relação consigo mesmo”. Em seguida, o autor esboça a tese (também mencionada no cap. 5) de que a sociedade primitiva inibe o Estado mediante a extrusão metafísica de sua própria causa e origem, ao remeter ambas à esfera do mundo mítico primordial, àquilo que está totalmente fora do controle humano e, nessa hp Highlight 31 medida, não pode ser apropriado por uma fração da sociedade de modo a convencionalizar desigualdades. Ao colocar seu fundamento fora de “si mesma”, a sociedade se torna natureza, isto é, torna-se o que Wagner (186) chamaria de um “símbolo que representa a si mesmo”, impedindo a projeção de uma Convenção totalizadora, uma figura do Um que a en- carnasse e sobrecodificasse. A transcendência heteronômica da origem serve então como garantia da imanência e autonomia do poder social. O mito contra o Estado, em suma. Clastres credita essa miniteoria política da religião primitiva a Mar- cel Gauchet, que anos mais tarde iria desenvolvê-la em um sentido que o primeiro autor talvez não pudesse prever. Mas aqui há um significativo ponto de hesitação de Clastres. Desde o começo, na verdade, Gauchet associava tal exteriorização da origem justamente à origem do Estado – que surgiria com a captura, por uma figura humana, desse lugar da trans- cendência impessoal –, e não à sua inibição. Clastres estava ciente disso; ele acreditava que seu jovem colega havia descoberto a falha congênita no plano de composição do socius primitivo que o tornava uma presa potencial para o monstro Estado. Como se sabe, Gauchet acabou por derivar daí (para encurtarmos uma longa história) uma reflexão sobre as virtudes do Estado constitucional liberal, regime no qual a sociedade se aproximaria de uma situação ideal de autonomia ou imanência, por via de uma interiorização das fontes simbólicas da socialidade que seria, essa interiorização, engenhosa o suficiente para não destruir a exterioridade instituinte do socius enquanto tal. O Estado contra o Estado, digamos, em uma autêntica Aufhebung do anarquismo clastriano, que se veria enfim transformado em um programa político defensável.28 A resposta de Clastres a Birnbaum, parece-me, poderia ter ido mais longe. A sociedade-contra-o-Estado é efetivamente contra-o-indivíduo, porque o indivíduo, enquanto sujeito, é um produto e um correlato do 28. Em Moyn 005 acha-se uma descrição da trajetória de Gauchet, a quem o comentador parece perdoar (ou louvar) tudo, menos seu pecado original, a saber, sua adesão “juvenil” à visão maligna de Clastres. Ver também, em sentido contrário, uma cortante passagem onde Lefort (18: 0-03) desautoriza, mas sem mencionar nomes, o raciocínio de Gauchet so- bre a condensação da alteridade exterior primitiva na figura do Estado. hp Highlight hp Highlight 33 Posfácio Estado. O Estado precisa do indivíduo e o indivíduo requer o Estado; a autosseparação criadora do Estado cria-separa igualmente os sujeitos ou indivíduos (singulares ou plurais), ao mesmo tempo que o Estado se oferece a si mesmo como Modelo para estes: l’État c’est le Moi. É assim importante que estabeleçamos um contraste inequívoco entre a sociedade clastriana e seu homônimo durkheimiano, uma fonte de mal-entendidos nem sempre esclarecida por Clastres, que tendeu ocasionalmente a hi- postasiar a sociedade primitiva – no mínimo, deu tal impressão –, conce- bendo-a como um Sujeito coletivo, um Super-Indivíduo realmente, e não apenas formalmente, exterior e anterior ao Estado (Deleuze & Guattari 180: 443-ss), e assim, ontologicamente homogêneo a ele. Neste caso, estaríamos de fato navegando em águas durkheimianas.29 A Sociedade de Durkheim é a forma-Estado em sua tradução sociológica: pense-se na coercividade constitutiva do fato social, na transcendência inaugural do Todo em relação às Partes, em sua função de Entendimento universal, em seu poder de unificação inteligível e moral do diverso sensível e sensual. Por isso a relevância estratégica que tem para Durkheim a “oposição” entre indivíduo e sociedade: um é uma versão do outro, os membros da sociedade enquanto corpo espiritual coletivo são como minúsculos sub- Estados individuais subsumidos pelo Estado enquanto Super-Indivíduo.30 29. Lefort (18: 18) também imputa a Clastres uma “tentação” durkheimiana, ao co- mentar a análise do rito de iniciação apresentada no ensaio “Da tortura nas sociedades pri- mitivas” (cap. 10 de A sociedade contra o Estado). O ponto de Lefort é que Clastres faz do religioso um instrumento da “lei social”, expressão de uma vontade coletiva que é interio- rizada ritualmente. 30. Em uma “legítima” sociedade-contra-o-Estado, ao contrário, cada indivíduo aparece, “como tal”, isto é, tal como aparece para um não parente, para o antropólogo, digamos – en- quanto, portanto, não tomado como (um) parente, em toda a sua reticularidade relacional (o que, naturalmente, mudaria bastante as coisas) –, cada indivíduo aparece, dizíamos, como um micro-“Estado” insubsumível, insubmisso, uma entidade plenamente soberana, que não se deixa substituir por nenhuma outra entidade. Qualquer antropólogo que já passou por uma sociedade desse tipo poderá atestar que “negociar” o que quer que seja com as pessoas ali é um trabalho diplomático maravilhosamente exasperante. Pois cada um é o representan- te de si mesmo, embaixador de sua própria mônada; nada que foi “acertado” com alguém pode ser considerado como válido, indutiva ou dedutivamente, para o que se negociará com outrem. No final das contas, não é então que em uma sociedade-contra-o-Estado cada > hp Highlight hp Highlight 33 A sociedade primitiva de Clastres, ao contrário, é contra o Estado, e por- tanto contra a “sociedade” concebida à sua imagem. Ela tem a forma de uma multiplicidade assubjetiva, seus componentes ou associados não são individualidades ou subjetividades, mas singularidades – ela desconhece a máquina abstrata produtora de sujeitos, rostos ou semblantes (bela pa- lavra) que exprimem uma interioridade subjetiva: [D]eterminados agenciamentos de poder exigem a produção de um rosto, outros não. Se consideramos as sociedades primitivas, poucas coisas passam pelo rosto: sua semiótica é não significante, não subje- tiva, essencialmente coletiva, polívoca e corporal, apresentando formas e substâncias de expressão bastante diversas. A polivocidade passa pe- los corpos, seus volumes, suas cavidades internas, suas conexões e coor- denadas exteriores variáveis (territorialidades). […] Os “primitivos” podem ter as cabeças mais humanas, as mais belas e mais espirituais; eles não têm rosto e não precisam dele. A razão disso é simples. O rosto não é um universal, nem mesmo o do homem branco; é o próprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto é o Cristo. (Deleuze & Guattari [180] 16, v. 3: 4-43) Uma interpretação do anarquismo de Clastres em termos individualis- tas ou liberais, subjetivistas e “rostificantes”, seria, portanto,um erro simétrico àquele que imaginaria sua sociedade primitiva como uma or- dem totalitária ou mesmo simplesmente “totalizante”. Na fórmula fe- liz de Bento Prado Jr. (supra), o pensamento de Clastres era, mais que simplesmente anarquista, “anarcôntico” – uma palavra-valise que inclui não apenas uma referência ao arconte ateniense, mas o “falso” sufixo /-ôntico/, como que para marcar o significado metafísico ou ontológico do anarquismo de Clastres, sua oposição ao que este via como o princípio indivíduo já seja um Estado em si mesmo, mas sim que cada um “já” é, dividualmente, fractalmente, molecularmente, uma sociedade-contra-o-Estado à part entière. A sociedade- contra-o-Estado se apresenta como um ente distributivo, ainda que possa ocasionalmente (ou deva ritualmente) se representar como um ente coletivo. (Esta nota remete às muitas conversas havidas com José Antonio Kelly, etnógrafo dos Yanomami.) > hp Highlight 3434 Posfácio fundador da filosofia e do Estado ocidental, a saber, a ideia de que o Ser é Um e o Um é o Bem. Por isso, é da maior importância observar que o regime da exterio- rização da origem intrínseco à sociedade-contra-o-Estado não significa, como Gauchet e outros sustentaram, nem uma exteriorização “instituinte” do Um, nem uma unificação “projetiva” do Exterior.31 Pois é preciso in- cluir decisivamente a máquina de guerra entre os mecanismos principais de conjuração do Estado mobilizados pelas sociedades primitivas, e, com isso, tirar todas as consequências do fato de que a exterioridade primitiva é inseparável da figura do Inimigo como determinação transcendental do pensamento.32 A exteriorização está a serviço de uma dispersão. Os selvagens querem a multiplicação do múltiplo. * * * Há hoje um sentimento amplamente difundido na Esquerda de que o neo liberalismo efetivamente enfraqueceu o poder do Estado nas socie- dades ocidentais modernas, e que é chegada a hora de abandonarmos a postura antiestatista e antitotalitarista associada à crítica do stalinismo e ao autonomismo utópico dos anos 60 e 0. Enfim, é tempo de constatar- mos, com não pequeno constrangimento, que talvez tenhamos sido cúm- plices do Mercado em sua luta para diminuir e subjugar o Estado, última barreira protetora dos direitos do povo contra a sanha do Capital. Essa é uma discussão complexa, que não tenho espaço nem realmente com- petência para aprofundar. Mas não posso deixar de dizer que não acre- dito nem um pouquinho nisso. A ideia de que o capitalismo globalizado acarretou uma diminuição do poder do Estado parece-me inverossímil. 31. Este é um ponto que não escapou a Lefort. Comentando a ideia de Clastres-lido-por- Gauchet segundo a qual a instituição do social é concebida, nas sociedades primitivas, como se engendrando em um lugar outro, o autor observa, com absoluta precisão: “[N]ão deve- mos perder de vista que, se a noção de alteridade é onipresente, ela permanece entretanto não localizável, sem remeter a uma instância definida, jamais se fazendo signo da presença de um ‘grande outro’. Para falar como Clastres, o outro não é o Um” (Lefort 18: 01). 32. Ver Viveiros de Castro 00, cap. 1. hp Highlight 35 À parte o fato de que foi e continua a ser preciso um gigantesco aparelho regulador e interventor, administrado pelo Estado, para produzir a “des- regulação” da economia, bem como para sustentar política e militarmente um mercado livre que não é nem uma coisa nem outra, não é preciso ser um fanático anarcoautonomista para perceber que jamais o Estado esteve tão presente, tão perto da vida cotidiana. A Grã-Bretanha, por exemplo, com suas câmeras de vigilância penduradas por toda parte, seus agentes secretos infiltrados nos movimentos civis, sua polícia neo-orwelliana, transformou-se em um espaço de autoespionagem universal e perpétua; nos Estados Unidos, a Guerra contra o Terror justificou uma invasão dos espaços privados e uma violação das liberdades públicas como jamais se viu na história das democracias modernas, gerando, de resto – ou fortale- cendo –, um microfascismo “cidadão” que tornou a paranoia o modo de produção dominante da subjetividade nativa. E no mundo inteiro, vemos o aparelho jurídico-policial dos Estados nacionais prestando seu apoio solícito aos esforços das corporações transnacionais para cercar defini- tivamente os commons da noosfera e esmagar com a máxima violência qualquer resistência à bioeconomia política do Capital.33 Enfim, não é preciso recorrer a Agamben e à sua tese sobre o es- tado de exceção (o Estado como “in-fundado” no estado de exceção), ou reencaminhar o leitor ao utilíssimo manual de antifeitiçaria de Pignarre e Stengers, para manter que se deve levar perfeitamente a sério uma ob- servação feita por Clastres em 14, e apresentada por um historiador como evidência cristalina da “fixação” do antropólogo gascão34 no fan- tasma do totalitarismo: 33. Veja-se o caso exemplar de Marie Mason e o “Green Scare” (< migre.me/3PxMN >), entre outros. O ativista ecológico se vê promovido a terrorista, e o “pirata” que baixa músi- cas na internet é aproximado da figura terrível do “inimigo de todos” (Heller-Roazen 00), a tal ponto que hoje a situação se inverteu, e todos nos tornamos os inimigos do Um; todos nós fomos transformados em terroristas virtuais diante do Estado. 34. Prado Jr. (supra) lembra que Clastres, nascido na Gasconha (“como D’Artagnan”), só foi aprender o francês, arquétipo moderno de toda língua maior ou de Estado, na escola. Esse detalhe biográfico ilumina particularmente a leitura do cap. 4 deste livro, “Do etnocí- dio”, ajudando a perceber algo do substrato existencial do discurso clastriano. 3636 Posfácio Nada, senão uma fixação no totalitarismo, pode explicar essa recomenda- ção feita por Clastres em uma entrevista: “E não devemos nos deixar le- var pelas aparências […] Em todas as sociedades ocidentais, a máquina do Estado está se tornando cada vez mais estatista, o que quer dizer, cada vez mais autoritária […] com o amplo apoio da maioria”. Ele acrescen- tava: “A máquina do Estado está se encaminhando para uma espécie de fascismo, não o fascismo de um partido, mas um fascismo interior”. To- dos procuram a autoridade para mandar, mesmo aqueles que prometem usar o Estado em nome da liberdade. (Moyn 004: )35 Se lembrarmos do que se passava em 004, quando Moyn escrevia estas linhas, nos Estados Unidos e em tantos outros lugares santos da democra- cia no Ocidente, até que o juízo de Clastres não soa tão paranoico assim. E ele não difere muito, no frigir dos ovos, do que já previa o sagacíssimo Tocqueville (Moyn 005: 1). Por fim, se os leitores preferirem a opinião de outro especialista inconteste na cultura política francesa, e que não pode ser considerado um anarquista hidrófobo, recordemos então Tony Judt (010; cito a versão on-line): O Estado, longe de desaparecer, pode estar às vésperas de alcançar seu triunfo total: as prerrogativas da cidadania, a proteção fornecida pelos documentos que consignam os direitos de residência, todas essas coisas vão ser utilizadas como trunfos políticos. Demagogos intolerantes, surgidos de dentro de nossas democracias estabelecidas, irão, muito em breve, começar a exigir “testes” – de conhecimentos, de linguagem, de atitude – para decidir se todos esses imigrantes desesperados, acabados de desembarcar, merecem ou não a “identidade” britânica, ou holandesa, ou francesa. Já se está fazendo isso. Neste admirável novo século, vamos sentir saudade dos tolerantes, dos marginais – do povo da borda [the edge people ]. Bem, talvez Pierre Clastres não fosse especialmente tolerante. Mas ele pertencia sem dúvida ao povo da borda, em mais de um sentido. Pois o 35. A citação de Clastres provém da entrevista a L’Anti-Mythes, in Clastres [15] 003: 0. 3 caso é quetodos nós precisamos em algum momento, na verdade, a cada momento, escolher entre “tornar-se índio” – habitar a margem e viver nas bordas (não é preciso passar a dormir debaixo da ponte; estamos fa- lando de outra coisa) – ou permanecer no centro fortificado, confortavel- mente identificado ao colonizador. Uma questão de, como direi?, “gosto”. Entre a filosofia e a etnologia A crítica de Clastres à antropologia levistraussiana, fundada na convicção de que haveria dimensões importantes da vida humana que escapavam tanto à metodologia do estruturalismo como à sua ontologia do social, foi um dos primeiros sinais da virada pós-estruturalista do pensamento francês nas cercanias de 168, que trouxe a filosofia política (e a política da filosofia) para o centro da cena. Clastres e Sebag, de fato, eram os dois candidatos naturais ao papel de mediadores entre o projeto cientí- fico de Lévi-Strauss e o horizonte filosófico mais amplo em que esse pro- jeto, nolens volens, estava situado.36 A morte de ambos interrompeu essa comunicação incipiente, induzindo uma fase de dormência filosófica da antropologia francesa de que esta só recentemente começou a despertar, e isso graças mais à iniciativa de uma nova geração de filósofos (onde cabe destacar a estratégica intervenção inicial de Jean Petitot, e, nos úl- timos anos, a reflexão de Patrice Maniglier) que aos herdeiros discipli- nares de Lévi-Strauss.37 36. Lévi-Strauss sempre marcou, com ênfase não destituída de altivez, a distância entre suas preocupações e as da filosofia “do seu tempo”. Como se ele não percebesse (ou fingisse não perceber) que sua própria obra ia contribuindo de maneira decisiva para modificar a filosofia do seu tempo, e que além disso, para além das diferenças de estilo, de objeto, ou de ascendência teórica, era evidente a emergência de um campo problemático transdisciplinar, comum aos diversos “estruturalismos”, inclusive aqueles em que Lévi-Strauss não se reco- nhecia (Deleuze 1; Maniglier 011). 37. Dentre estes últimos, a parcela mais dinâmica dedicou-se, de início, a cultivar um cognitivismo de inspiração chomskyana; mais tarde, parece ter aderido ao catecismo da psicologia evolucionária. A maioria dos herdeiros, porém, refugiou-se em uma prática et- nográfica tendendo ao burocrático, marcada por um grande rigor descritivo e uma modesta > 3838 Posfácio Recoloca-se, portanto, a questão da utilidade da obra de Clastres no cenário político e filosófico contemporâneo. Neste momento, em que pensar se tornou tarefa da mais profunda urgência e da mais extrema gra- vidade – quem ainda não se deu conta de que “nossa civilização”, com toda a certeza, e nossa espécie, com forte probabilidade, entraram em uma crise de dimensões absolutamente inauditas? e que essa crise está destruindo boa parte da vida não humana no planeta? – neste momento, perguntávamos, o excêntrico etnólogo gascão e sua estranha sociedade primitiva continuam bons para pensar? * * * É sem dúvida por via da filosofia que a obra de Clastres se inscreve na história intelectual e pode aspirar a uma atualidade no presente. Mas essa obra consiste, primeiro que tudo, em uma intervenção no campo da antropologia social ameríndia, intervenção esta que veio fecundar a filosofia ocidental com o aporte do pensamento dos selvagens, abrindo a possibilidade de um autêntico devir-índio do conceito (e aqui, outra vez, Clastres prolonga Lévi-Strauss). Costuma-se considerar Pierre Clastres como antropólogo de uma nota só, defensor de uma tese monolítica, a “sociedade-contra-o-Estado”. Note-se, de saída, que essa forma de organização da vida coletiva é, na verdade, definida pelo autor por uma dupla relação inibitória: uma inibi- ção interna ou intracomunitária, a chefia sem poder, e outra externa ou intercomunitária, o dispositivo centrífugo da guerra. Tal distinção, em si mesma, sugere a possibilidade de interpretações filosóficas distintas, se não divergentes, da obra de Clastres. Como toda possibilidade aspira à realidade, isso foi naturalmente o que aconteceu. Há de fato duas lei- turas principais dessa obra: a fenomenológica e a deleuzo-guattariana. imaginação teórica – com as exceções de praxe, escusado dizer. Nos últimos cinco anos, a obra de Philippe Descola (005) aparece sem dúvida como a primeira tentativa de fôlego da antropologia francesa de retomar a trajetória interrompida do pensamento estruturalista, em bases próximas à inspiração levistraussiana. > 3 Sua coabitação um tanto problemática não foi até agora, tanto quanto eu saiba, objeto de nenhuma menção mais explícita pelos comentadores, e menos ainda de uma reflexão aprofundada. As linhas abaixo, por isso, têm apenas um valor sugestivo e preliminar. A primeira leitura da obra de Clastres põe a ênfase na determina- ção que ali teria sido feita de uma “função política” invariante através de todas as sociedades. O propósito ou resultado dessa função seria “consti- tuir um lugar onde a sociedade aparece para si mesma” (Richir 18: 6). A sociedade-contra-o-Estado é definida, nesses termos, por um certo modo de representação política, e a política ela própria é concebida essencialmente como um modo de representação (antes que um modo de funcionamento ou um exercício – Lima & Goldman 003: 15), um dispositivo de projeção de um duplo molar do corpo social no qual este se reconhece (“aparece”) como tal. A figura do chefe sem poder – a inibição interna, objeto dos primeiros trabalhos de Clastres – avulta aqui como o aporte decisivo do autor, que teria descoberto uma nova ilusão transcendental (Richir op. cit.: 66), um novo modo de instituição (necessariamente imaginária, no sentido de Castoriadis) do social. Digo novo, mas tratar-se-ia de fato do modo arcaico ou originário da socialidade humana; o modo, a pa- lavra se impõe, natural. Ele consistiria na retroprojeção de um Exterior, uma “Natureza” que é preciso negar para que a Cultura ou Sociedade se instituam, mas que é preciso ao mesmo tempo (e para isso mesmo) re- presentar dentro do socius por um simulacro que é, justamente, o lugar destinado à figura do poder. Surge assim o chefe como quase-natureza, o elemento excluído do circuito socializante da troca, a imagem invertida da coletividade: o líder, espelho do grupo, reflete para este sua face una e indivisa. É da natureza da sociedade (primitiva ou natural) separar-se de uma natureza não social que lhe sirva de Outro, e representá-la no interior. Essa interpretação efetua o que se poderia chamar, com licença do trocadilho, uma verdadeira “redução fenomenológica” da sociedade-con- tra-o-Estado. Redução feita com a complacência do inventor do conceito, diga-se de passagem. Refiro-me com isso à proximidade entre Clastres e os intelectuais reunidos à volta de Claude Lefort na concepção da revista Textures e em seguida da Libre, onde foram publicados os três últimos 330330 Posfácio capítulos do presente livro. Lefort, aluno de Merleau-Ponty, egresso do movimento trotskista, com o qual rompeu em 148, cofundou com Cor- nelius Castoriadis o legendário Socialismo ou Barbárie, grupo que teve um papel de destaque na história do pensamento libertário na França. A marca registrada desse agenciamento fenomenológico-socialista (que incluía Marcel Gauchet até sua conversão ao liberalismo, a partir dos anos 80) era a combinação de um radical antitotalitarismo político com um não menos radical humanismo metafísico, que já se revelava, por exemplo, no tipo de crítica “antitroquista” cedo dirigida por Lefort (151) contra o estruturalismo, bem como em sua tentativa de trazer os primitivos para o regaço da História, ao propor – supostamente contra Hegel e o materia- lismo histórico – a existência de “modos de historicidade” próprios, os quais exprimiram posições intencionais características de cada sociedade,
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