Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS THOMAZ ALBALADEJO HALLAM A EMISSÃO DE NORMAS PELAS AGÊNCIAS REGULADORAS: sua validade e seus limites na atualidade Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Luis Carlos Cancellier de Olivo Florianópolis 2011 SUMÁRIO RESUMO ................................................................................................................................... 4 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 5 1. A EVOLUÇÃO DA INTERVENÇÃO ESTATAL E OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA .............................................................................................. 7 1.1 A mudança de paradigma na intervenção estatal ........................................................... 7 1.1.1 A intervenção e a regulação no feudalismo ................................................................... 7 1.1.2 A regulação no Estado absolutista ................................................................................. 7 1.1.3 O Estado liberal ............................................................................................................. 8 1.1.4 O Estado intervencionista .............................................................................................. 9 1.1.5 O Estado regulador ...................................................................................................... 10 1.2 A intervenção do Estado brasileiro ................................................................................. 12 1.2.1 Breve histórico ............................................................................................................. 12 1.2.2 Tipos de regulação ....................................................................................................... 13 1.2.3 A intervenção na ordem econômica na atual Constituição Federal (CF) .................... 15 1.3 Princípios da administração pública .............................................................................. 16 1.3.1 Princípio da legalidade ................................................................................................. 17 1.3.2 Princípio da supremacia do interesse público .............................................................. 17 1.3.3 Princípio da razoabilidade ........................................................................................... 18 1.3.4 Princípio da impessoalidade ........................................................................................ 18 1.3.5 Princípio da publicidade .............................................................................................. 19 1.3.6 Princípio da moralidade ............................................................................................... 19 1.3.7 Princípio da eficiência ................................................................................................. 19 1.3.8 Princípio da proteção ao consumidor ........................................................................... 20 2. AS AGÊNCIAS REGULADORAS ................................................................................... 21 2.1 Conceito ............................................................................................................................. 21 2.2 Histórico ............................................................................................................................ 24 2.2.3 Histórico no Brasil ....................................................................................................... 26 2.3 A autonomia das agências reguladoras .......................................................................... 27 2.3.1 A autonomia estrutural ................................................................................................. 28 2.3.2 A autonomia econômico-financeira ............................................................................. 29 2.3.3 A autonomia funcional ................................................................................................. 29 2.3.4 A pressão sofrida pelas agências reguladoras .............................................................. 30 2.4 Controle das agências reguladoras ................................................................................. 31 2.4.1 Controle interno ........................................................................................................... 31 2.4.2 Controle externo .......................................................................................................... 32 2.5 As agências reguladoras no direito comparado ............................................................. 33 2.5.1 França ........................................................................................................................... 33 2.5.2 Espanha ........................................................................................................................ 34 2.5.3 Inglaterra ...................................................................................................................... 34 2.5.4 Argentina ..................................................................................................................... 35 2.6 As principais agências reguladoras federais .................................................................. 35 2.6.1 Agência Nacional do Petróleo (ANP) .......................................................................... 35 2.6.2 Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) ....................................................... 36 2.6.3 Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) ........................................................ 36 2.6.4 Agência Nacional do Cinema (Ancine) ....................................................................... 37 2.6.5 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ................................................ 37 2.6.6 Agência Nacional das Águas (ANA) ........................................................................... 38 2.6.7 Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) .............................................................. 38 3. A EMISSÃO DE NORMAS PELAS AGÊNCIAS REGULADORAS .......................... 39 3.1 A separação de Poderes e a emissão de normas pelas agências reguladoras .............. 39 3.1.1 A separação de Poderes ............................................................................................... 39 3.1.2 Funções e organização de cada Poder ...................................................................... 40 3.2 A legitimidade das agências reguladoras para emitir normas ..................................... 43 3.2.1 A emissão de normas das agências reguladoras como poder delegado ................ 45 3.2.2 A Natureza Jurídica das normas emitidas pelas agências reguladoras ........................ 46 3.3 Os limites do poder normativo das agências reguladoras e seu controle .................... 47 3.3.1 Os limites das normas emitidas pelas agências reguladoras ........................................ 48 3.3.2 O controle sobre a emissão de normas emitidas pelas agências reguladoras .............. 50 3.3.3 Casos concretos de controle judicial ............................................................................ 51 CONCLUSÃO .........................................................................................................................55 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ...................................................................................... 57 4 Resumo A presente monografia trata da emissão de normas pelas agências reguladoras com base na doutrina e em julgados recentes. O Estado atualmente busca regular segmentos importantes do mercado e para isso adotou o sistema de agências reguladoras inspirado no modelo norte americano. Desde seu surgimento até a atualidade, esse sistema adaptou-se ao ordenamento jurídico pátrio e já foi alvo de grandes debates, especialmente sobre o tema em questão ‒ a emissão das normas pelas agências reguladoras. Busca-se primeiramente abordar a relação de interferência estatal nos mercados e na sociedade analisando a mudança de paradigmas ocorrida ao longo do tempo até chegar no atual estágio de regulação para, então, serem abordados os princípios que atualmente regem a administração pública. Em seguida, dedica-se ao estudo das agências reguladoras propriamente ditas analisando seu conceito, sua função, seu histórico, suas características, as formas de controle, as agências no direito comparado e, por fim, as agências reguladoras federais em espécie. Esclarecido o instituto das agências reguladoras, bem como seu funcionamento, apresentam-se as possibilidades para legitimar o poder normativo das agências reguladoras dado pela doutrina para, então, analisarem-se os limites impostos a essas normas e seu controle judicial. Palavras chave: Direito Administrativo. Agências reguladoras. Emissão de normas. 5 Introdução As agências reguladoras são um fenômeno recente em nosso país. Surgiram na década de 1990 devido à falência do estado interventor e a necessidade de uma nova forma de interferência estatal. O estado mínimo seria uma mudança radical demais e a história mostra que essa forma de (falta de) intervenção não possui bons resultados, sendo assim, optou-se pela regulação do mercado. As agências reguladoras nesse novo contexto de regulação foram dotadas de poderes normativos e autonomia para que pudessem exercer suas funções de forma neutra e imparcial, mas então surge o debate sobre a legitimação dessas agências para emissão de normas, bem como sobre quais os limites do poder normatizador conferido a elas. Neste trabalho serão abordados os fundamentos necessários para a compreensão do tema para que assim se possa analisar, após estas quase duas décadas de existência das agências reguladoras em nosso ordenamento jurídico, como a doutrina e a jurisprudência se posicionam a respeito do tema. Seriam as normas emitidas pelas agências reguladoras inconstitucionais e contrárias à separação de Poderes? Qual sua natureza jurídica e força normativa? Quais os limites estabelecidos para as normas das agências reguladoras? São essas questões que este trabalho busca responder. Por meio de uma metodologia dedutiva, o trabalho é estruturado em três capítulos. No primeiro, e mais abrangente, abordam-se as formas de intervenção estatal ao longo da história ocidental, sendo definidas as épocas em que ocorreram e como eram realizadas essas intervenções. Após essa análise sobre as agências reguladoras mundiais, parte-se para uma breve análise sobre as agências nacionais, até chegar na atualidade para, então, serem explicados os princípios que regem a administração pública nacional. O segundo capítulo começa com uma análise do conceito das agências reguladoras. Em seguida é feita uma relação do desenvolvimento dessa instituição através do tempo, desde as suas origens até a atualidade, principalmente nos Estados Unidos, e também sua implementação no Brasil. Nesse capítulo também é feito um estudo das funções das agências reguladoras, bem como uma abordagem de direito comparado entre diversos países que possuem figuras semelhantes às agências reguladoras para então ser feita uma abordagem das principais agências reguladoras federais em espécie. O capítulo final destina-se a abordar a emissão de normas pelas agências reguladoras, sendo que para total compreensão desse tema primeiramente é explicada a divisão de poderes constitucionalmente prevista. Em um segundo momento, faz-se uma análise sobre a 6 legitimidade e a constitucionalidade das normas emitidas frente a esse princípio constitucional para, por fim, ser abordado o controle judicial sobre a emissão de normas por meio da teoria e de casos concretos. 7 1. A evolução da intervenção estatal e os princípios da administração pública 1.1 A mudança de paradigma na intervenção estatal 1.1.1 A intervenção e a regulação no feudalismo Após a queda do Império Romano a Europa entrou em um processo de grande desintegração e descentralização política, não havendo um novo centro de poder. As pessoas passaram então a conviver sob domínio e proteção de senhores em pequemos territórios (feudos), nos quais havia certa organização e segurança. As relações eram caracterizadas por pessoalidade, lealdade, laços de sangue, honra militar, religião e na troca da utilização do solo por proteção e repasse de parte da produção para o grupo dominante. Nessa época a produção era essencialmente agrícola, com técnicas rudimentares, sem grandes intelectuais ou administradores, uma vez que a realidade não permitia devido, por exemplo, à falta de meios de comunicação, elevadas taxas de analfabetismo etc. Assim, Aragão (2009, p. 42) caracteriza as relações sociais da seguinte forma: A classe dominante formava um conjunto articulado seguindo uma hierarquia complexa e dinâmica, que se fazia e se desfazia segundo as relações de força locais. Em todos os níveis, havia uma ligação estreita entre o poder econômico, político e militar, todos com caráter patrimonial e pessoa. Único elemento de centralização era a religião e, consequentemente, o Rei, portador da Palavra de Deus[...]. Diante desse contexto, pode-se indicar três principais características na economia: 1ª ‒ Vassalagem na produção agrícola: era concedido o uso da terra em troca de parte do produzido. 2ª ‒ A atividade econômica urbana era artesanal, fundada em corporações (guildas), que eram instituições fechadas, e estabeleciam rígidas normas de ingresso e exercício da atividade. 3ª ‒ Ausência de diferenciação entre público e privado. 1.1.2 A regulação no Estado absolutista 8 Com o surgimento das cidades e a queda dos feudos e do sistema feudal, surge uma nova classe social: a burguesia. Apoiada pela burguesia, a figura do Rei acaba por concentrar em si o monopólio da força e do Direito de maneira absoluta e soberana. O período absolutista corresponde ao renascimento da indústria, do comércio e das cidades. A economia continua marcada em larga escala pela produção agrícola, que ainda era influenciada pelos valores feudais, podendo o Rei ser agora considerado um grande “senhor feudal”. Mesmo com o avanço do comércio e da sociedade, toda atividade ou função político- administrativa desenvolvida, mesmo a cobrança de impostos, fundava-se na autorização do rei, que a emitia como um direito patrimonial seu. O rei, em caráter absolutista, era o único responsável pela regulação e intervenção na economia durante esse período, mas, como acima destacado, jamais com o intuito de regrar o mercado, incentivá-lo ou torná-lo mais justo, e sim com a intenção de arrecadar para si tributos por ser ele o possuinte legítimo de tal direito. 1.1.3 O Estadoliberal Com início após a Revolução Francesa, essa fase foi marcada pela ausência de regulação econômica. Com princípios liberais, o Estado apenas oferecia aos cidadãos garantias mínimas essenciais a não violação de seus direitos. Poucos serviços públicos tiveram sua titularidade conferida pelo Poder Público, e mesmo estes logo tiveram o seu exercício transferido aos particulares por meio de concessão. O Estado liberal é caracterizado pela clara distinção entre o papel do Estado e a da sociedade, podendo ser afirmada a existência de distanciamento entre eles. Os particulares eram os que exerciam as atividades públicas, por meio de concessão contratual, sendo as interferências do Estado nos negócios privados as mínimas possíveis. Essa distância entre o Estado e a sociedade acabou sendo responsável pelo fim do próprio modelo liberal, vindo assim a emergir um modelo intervencionista. Isso deve-se ao fato de os indivíduos isolados demandarem da administração pública uma atuação mais eficaz, presente e particularizada. Ainda sobre o Estado liberal, Vaz (apud Manoel Afonso, 1985, p.15) utiliza os ensinamentos de Adam Smith na obra a Riqueza das Nações para assim explicar: De acordo com o sistema da liberdade natural só restam ao Estado três funções para desempenhar: a) a obrigação de defender a nação contra as violações e ataques de 9 outras nações independentes; b) a obrigação de salvaguardar todo o membro da própria nação contra ataques, mesmo legais, de todos os outros, ou seja, manter uma legislação imparcial; c) criar e manter certas instituições públicas cuja criação e manutenção não possam ser esperadas da iniciativa privada. Para Figueredo (2009, p. 45) “o Estado Liberal caracteriza-se por uma postura abstencionista, uma vez que atua de forma neutra e imparcial no que tange a atividade econômica.” O que ocorreu foi a queda do modelo liberal, que deu lugar a um novo posicionamento do Poder Público em face da economia, agora não mais com o ideal de liberalismo puro, mas sim caracterizado pela intervenção em seus variados aspectos e intensidade, de acordo com a politica ideológica do governo. 1.1.4 O Estado intervencionista Essa forma de participação estatal é caracterizada pela atuação do Estado com a finalidade de garantir o exercício racional das liberdades individuais. Ao contrário do que se possa pensar, a intervenção não visa ferir os princípios liberais, mas fazer com que o Estado possa evitar e repreender os abusos decorrentes do liberalismo puro. Cronologicamente, pode-se considerar que o modelo de Estado intervencionista teve início na década de 1930, acentuando-se no segundo pós-guerra e perdurando até a década de 1970. As doutrinas de John Maynard Keynes são as grandes influenciadoras do modelo intervencionista, principalmente sua obra Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, que demonstrou como deve-se o nível de emprego, bem como o desenvolvimento socioeconômico, em grande parte, às políticas públicas implementadas pelo governo. A política intervencionista pode-se dar de duas formas: diretamente, quando o Estado assume a inciativa da atividade econômica na condição de produtor de bens e serviços ao lado de particulares; e na forma indireta, quando o Estado atua tributando, incentivando, regulamentando ou normatizando a atividade econômica. Durante o Estado intervencionista, o Poder Executivo teve um forte aumento, porque na sua busca para atender a todas as demandas, trouxe para si maiores poderes. O direito público passa então por uma série de transformações, que podem ser entendidas por meio da relativização do modelo hierárquico, na descentralização do aparato estatal e na pluralização da produção normativa, não mais concentrando-se no Poder Legislativo. 10 Nesse período, enquanto o Estado conseguiu manter todos os serviços funcionando de forma satisfatória, também conseguiu reduzir e mascarar os conflitos sociais. Entretanto, manter todo esse aparato estatal de produção direta de bens e serviços custa caro e nem sempre gerou o retorno necessário. Como consequência natural, o endividamento público cresceu sem precedentes e forçou os governos a reduzirem programas de bem-estar social. Mesmo tendo reduzido de certa forma o seu endividamento, o Estado reduziu também os programas sociais. Além disso, manteve-se a ideia de que o Estado também tem limitações, não podendo arcar e exercer de forma satisfatória a exploração direta da economia. O gasto com a Segunda Guerra Mundial pôs fim ao período de prosperidade do modelo intervencionista, não mais permitindo ao Poder Público atuar da mesma forma. Nos países periféricos, esse foi o período do aumento da dívida externa, de desvalorização dos produtos colocados no mercado internacional e de redução de ajuda externa. Constata-se que, sob o aspecto econômico, a década foi verdadeiramente desastrosa. Mas, ao mesmo tempo, não se pode negar que o aumento da participação social e política dos cidadãos foi bastante significativa, iniciando uma fase em que o respeito ao princípio democrático e aos direitos fundamentais não poderia mais ser afastada. Para Figueiredo (2009, p. 46-47) o Estado intervencionista ainda ocorreu de duas formas distintas: Estado intervencionista social – É aquele no qual a intervenção na atividade econômica tem como finalidade garantir que políticas de caráter assistencial sejam efetivadas, de forma a reduzir as diferenças sociais, bem como prover os hipossuficientes em suas necessidade básicas. Estado intervencionista socialista – É a forma máxima de intervencionismo estatal por meio de uma política econômica planificada, baseada na valorização do coletivo sobre o individual. Os bens de produção são apropriados pela coletividade por meio do Estado, de modo que este se torna o único produtor, vendedor e empregador. A livre-concorrência e a liberdade de mercado são literalmente substituídas pelo planejamento econômico racional e centralizado em torno do Poder Público. 1.1.5 O Estado regulador Com o insucesso dos modelos intervencionistas o Estado repensou as formas pelas quais passaria a interferir na economia com a finalidade de atender a uma infinidade de 11 demandas que vinham sendo atendidas de forma insatisfatória ou mesmo ignoradas. Na busca de soluções, retoma-se a noção de subsidiariedade, a qual, por sua vez, tem como princípio a parceria entre o publico e os particulares. Tenta-se então reduzir a participação do Estado como ocorria modelo intervencionista, porém, retornar ao estado liberal e de mínima interferência seria inviável, pois os mesmos problemas voltariam a ocorrer. Dessa forma, o Estado busca se redefinir sem abrir mão dos progressos e experiências já obtidos ao longo da sua história. Os processos de privatizações são exemplos de medidas adotadas pelos Estados com a finalidade de reduzir sua participação direta na economia, mantendo suas funções de ente soberano. Porém, isso não poderia ocorrer de modo absoluto, pois, como a experiência do liberalismo demonstrara, algumas atividades não poderiam ser adequadamente desempenhadas pelo particular. Assim, cumpre ao Estado fomentar essas atividades fornecendo os instrumentos necessários ao seu desempenho. A globalização teve grande influência nesse processo por meio da internacionalização dos fluxos financeiros e da inserção dos países periféricos na economia global. O avanço tecnológico, especialmente dos meios de comunicação, inovaram na atividade de gestão econômica. O Estado adequou suas estruturas à nova ordem econômica internacional, atuando assim de forma a regular atividadesprivatizadas, balizar a concorrência, fomentar a oferta de serviços e criar oportunidades para o desenvolvimento da atividade privada, incentivando também o desenvolvimento tecnológico. Com a estrutura globalizada foi necessário ajustar a economia nacional pela regulação de setores fundamentais para o fortalecimento e aumento da competitividade. Ocorreram diversas privatizações em setores estratégicos para as economias nacionais, fortalecendo assim os órgãos e agentes regulatórios. Dispondo de autonomia (variável) em relação ao chefe do Poder Executivo, esses agentes passaram a exercer funções de supervisão e normatização dos serviços públicos. E por conta da especialidade de cada setor, desenvolveram-se ordenamentos setoriais ou seccionais ‒ é a dita setorização da atividade reguladora. A setorização vem a contornar a crise regulatória que se instaurara no organismo estatal, incapaz de normatizar todas as situações que exigiam uma solução do ordenamento. Ademais, é o meio encontrado pelo Poder Público para cumprir sua nova função de organizador da atividade econômica. O aparato necessário a essa função vem com a criação 12 das agências reguladoras. A regulação constitui, assim, traço de um modelo econômico caracterizado pela intervenção estatal fundada não no exercício da atividade, mas sim em sua autoridade. 1.2 A intervenção do Estado brasileiro 1.2.1 Breve histórico Primeiramente, deve-se estabelecer um conceito para ordem econômica, sobre a qual Figueiredo (2009. p. 113) assim ensina: “Por Ordem Econômica entendem-se as disposições constitucionais estabelecidas para disciplinar o processo de interferência do Estado na condução da vida da Nação.” José Afonso da Silva (2007, p. 787) ensina que a ordem econômica adquiriu dimensão jurídica constitucional a partir da Constituição Federal Mexicana de 1917 e, no Brasil, a partir da Constituição Federal de 1934, que foi a primeira a consignar princípios e normas sobre a ordem econômica. Nessa época, o Estado Brasileiro passou a regular o setor de transporte aéreo civil por meio do Departamento de Aviação Civil e, posteriormente, criou o Instituto Brasileiro do Café. A Revolução de 30 significou um marco para a história nacional, com a passagem do Brasil agrário para o Brasil industrial. No aspecto político, a revolução possuía o apoio das elites oligárquicas, unidas às forças emergentes da nova burguesia industrial, das camadas médias urbanas e, ainda, dos tenentes, comprometidos com um projeto de reformas modernizadoras e autoritárias. Sobre a era Vargas, Costa (2008, p. 847) assim ensina: Nos anos em que Getúlio Vargas esteve fora do governo (1946-1950) não se obteve notícias de grandes esforços reformistas no âmbito da administração pública. Porém, eleito pelo voto direto nas eleições de 50, em seu segundo governo, Vargas designou um grupo de trabalho com a missão de elaborar um projeto de eforma administrativa. Porém, nada foi concretizado nesse período, conturbado por golpes, visando à tomada do poder, levando inclusive ao desfecho trágico da morte de Vargas em 1954. Juscelino Kubitscheck de Oliveira, em 1956, assumiu o governo e apresentou as primeiras tentativas de reformas na administração por meio da criação da Comissão de Simplificação Burocrática e da Comissão de Estudos e Projetos Administrativos com o objetivo de promover estudos para a descentralização de serviços, avaliando as possibilidades de atribuições a demais órgãos de determinadas competências. Apesar dos esforços de 13 Kubitscheck e de seu sucessor, João Goulart, jamais foi implementado algum projeto concreto, ocorrendo a continuidade do modelo já existente. Com a modernização econômica da ordem jurídica e a necessidade de existir a regulamentação do mercado financeiro, foi criado o Sistema Financeiro Nacional por meio de um Banco Central independente e autônomo do Governo, em 1964. Em 1976, foi então criada a Comissão de Valores Mobiliários, uma autarquia federal para a regulação do mercado de valores nacional. Com o governo de Fernando Collor de Mello foram dados os primeiros passos para a reforma da economia e do Estado por meio de uma importante medida de abertura comercial, dando novo impulso para as privatizações. A partir de 1990 o Brasil passou a seguir o modelo europeu, em especial o da Inglaterra, para implementar a desestatização da ordem econômica por meio da Lei n o 8.031/90, que instituía o Programa Nacional de Desestatização e criava regras para as privatizações, devolvendo aos particulares a possibilidade de exploração de diversos setores da economia. Foi com o governo de Fernando Henrique Cardoso que instaurou-se um amplo debate sobre a crise no cenário econômico, bem como sobre a própria Administração Pública e seu funcionamento. Nesse contexto, foi criado pelo então Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado o plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Assim, a Administração Pública passou a uma nova visão de administração, uma nova gestão pública, que baseia-se em valores de eficiência, eficácia e competitividade. 1.2.2 Tipos de regulação A regulação pode ser classificada, com base em quem exerce a função regulatória, de duas formas distintas: a autorregulação e a heterorregulação. A autorregulação, também chamada de regulação privada é aquela na qual o próprio mercado exerce a regulação, não dependendo de intervenções externas. Nessa forma de regulação o mercado por si só consegue manter o respeito aos princípios que norteiam a ordem econômica, como a livre iniciativa e a liberdade de concorrência. Via de regra, na autorregulação não há intervenção estatal, mas isso não significa que o Poder Público não esteja presente. Nesses casos, a atuação do Poder Público é de forma preventiva, mediante análise dos atos empresariais, a fim de se garantir que não haja desvirtuamento dos mecanismos do mercado. 14 A heterorregulação, também conhecida como regulação pública, é decorrente do Estado, uma vez que ele verifica a necessidade de interferir no mercado a fim de garantir o respeito aos princípios da ordem econômica e consertar as falhas verificadas no mercado. Qualquer órgão da administração pública pode exercer essa função de garantir o não desvirtuamento da ordem econômica, desde que legitimado para tanto. Há, ainda, outro critério de regulação, que utiliza os tipos de regulação, ou seja os nichos em que ela pode ocorrer. Segundo esse critério, têm-se as seguintes formas de regulação: 1 – Econômica: é aquela exercida com a finalidade de prevenir práticas abusivas, corrigir assimetrias informativas em defesa do consumidor e garantir o cumprimento das políticas públicas adotadas para condicionamento do exercício do poder econômico por parte dos agentes de mercado. A intervenção econômica tem como objetivo final maximizar o setor econômico de determinado setor. Temos como exemplo de agentes reguladores econômicos o Banco Central e a Agência Nacional do Petróleo (ANP). 2 – Serviços públicos: a regulação dos serviços públicos tem como objetivo garantir aos usuários a adequada prestação de serviços, garantindo a efetiva universalidade na sua prestação, bem como uma política de manutenção de preços tarifários com uma margem de lucro justa, sem ser abusiva. São exemplo de agentes regulatórios de serviços públicos a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). 3 – Social: tem como objetivo primário garantir o respeito e a dignidade humana por meio do acesso aos bens mínimos necessários à vida em sociedade. Esse é o tipo de regulaçãoque define e intervém na proteção do interesse público, nos padrões para a saúde, na segurança e nos mecanismos de oferta desses bens. Temos como exemplo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e Agência Nacional da Saúde (ANS). 4 ‒ Ambiental: tem como finalidade promover a preservação do meio ambiente e a coexistência dos agentes econômicos com os agentes naturais, determinando sua exploração racional para garanti-los às futuras gerações. Também é nesse tipo de regulação que se enquadra o combate à poluição, bem como o incentivo a pesquisas para utilização de técnicas não degradantes e o combate a práticas predatórias do meio ambiente. É exemplo de agente regulador ambiental o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). 15 5 – Cultural: a função do agentes regulatórios culturais é incentivar a produção cultural nacional, garantindo a preservação de patrimônio histórico-cultural do país. A regulação cultural é aquela que garante a identidade nacional da população com a sua pátria, evitando assim uma invasão de valores e cultura estrangeiros na sociedade. Como exemplo de agentes reguladores culturais podemos citar o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Agência Nacional do Cinema (ANCINE). A regulação em si é realizada por meio dos instrumentos de regulação, que são os institutos jurídicos que materializam a atividade regulatória estatal. Esses instrumentos podem ser assim definidos: 1 – atos normativos para supervisão e regulação da atividade de caráter setorial; 2 ‒ mediação entre os interesses dos setores públicos e privados por instrumentos jurídicos transacionais e da própria composição extrajudicial; 3 ‒ exercício do poder de polícia sobre a atividade econômica; 4 ‒ fomento, estímulo e promoção a determinadas atividades com o intuito de alcançar objetivos políticos estabelecidos. 1.2.3 A intervenção na ordem econômica na atual Constituição Federal (CF) A intervenção do Estado na ordem econômica pode-se dar por duas formas: a direta, na qual o Estado explora as atividades econômicas por si; e a indireta, na qual a função do Estado é monitorar a exploração das atividades pelos particulares, intervindo quando for necessário, a fim de normatizar, regular e corrigir as falhas do mercado para assegurar o interesse e bem da coletividade. A atual CF prevê como regra a intervenção indireta do Estado na ordem econômica enquanto a intervenção direta, que encontra-se disposta de forma clara e taxativa no texto constitucional, deve ser exercida apenas de forma excepcional. O Estado tem uma tríplice função em relação à ordem econômica, sendo seu papel fiscalizar, incentivar e regular, como disposto no art.174 caput da Constituição Federal, que diz: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.” (BRASIL, 1988) A regulação exercida pelo Estado deve ser estruturada e somente feita quando se configurar estritamente necessária para garantir o respeito aos princípios que norteiam a 16 ordem econômica. Assim, a regulação de um setor econômico somente ocorre quando há falhas de mercado, ou seja, quando o mercado não está em equilíbrio e gera uma situação de anormalidade, implicando danos ao processo competitivo e à própria economia. As chamadas falhas de mercado podem ser classificadas em cinco tipos: 1 – Deficiência na concorrência: ocorre quando não há condições favoráveis no mercado para a existência de uma disputa saudável e equilibrada entre os agentes econômicos. Assim, cria- se um prejuízo do ciclo econômico, pois a produção e a comercialização ficam concentradas em apenas um agente (monopólio) ou parte deles (oligopólio), dando a esses agentes o poder de controle do mercado respectivo e gerando, indiretamente, dano aos consumidores, que são os principais prejudicados. 2 ‒ Deficiência na distribuição dos bens essenciais coletivos: ocorre quando o mercado não é capaz de promover o acesso da coletividade aos bens essenciais para satisfação do mínimo necessário à existência, ferindo então diretamente o principio da dignidade humana. 3 ‒ Externalidades: as externalidades podem ser definidas como danos causados pelas condutas dos agentes quando estes não participam do ciclo econômico nem do seu setor de atuação, ou seja, as ações dos agentes econômicos causam danos a terceiros, externos a essa atividade econômica. Podemos citar como exemplo a geração de poluição. 4 ‒ Assimetria informativa: ocorre quando o consumidor e/ou o Estado desconhecem como o mercado opera ou quando esses detêm informações imperfeitas. que não refletem à realidade material do respectivo setor econômico, facilitando assim a prática de condutas abusivas pelos agentes econômicos que nele atuam. A assimetria informativa fere diretamente o princípio da transparência. Mais uma vez, as consequências refletem-se no consumidor, que acaba por desconhecer o funcionamento da cadeia econômica do produto que adquire. Este fato, somado a outros, torna o consumidor mais hipossuficiente na relação de consumo. 5 ‒ Poderio e desequilíbrio de mercado: entende-se essa falha pela relevância do mercado para a economia nacional, que pode ser medida por meio de diversos fatores, como o produto interno bruto (PIB), a balança comercial equilibrada, a renda per capta e a quantidade de empregos gerados. 1.3 Princípios da administração pública 17 Antes de passar ao estudo das agências reguladoras propriamente ditas, faz-se necessário o estudo dos princípios que as regem para que se tenha clara a ideia que todos os atos por elas feitos, bem como a própria criação delas, deve obedecer a tais princípios. 1.3.1 Princípio da legalidade Esse princípio se traduz na máxima: o Poder Público só pode agir mediante autorização legal. Em outras palavras o, Poder Público submete-se à lei. Sobre esse princípio, Di Pietro (2010, p. 63) expõe: Este princípio, juntamente com o de controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade. No direito brasileiro esse princípio está contido no art. 37 da CF, que dispõe: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...” (BRASIL, 1988) E também está presente no Art.5 o, inciso II, que diz: “[...]II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;” (BRASIL, 1988) 1.3.2 Princípio da supremacia do interesse público Reflete-se em dois momentos distintos ‒ primeiramente na elaboração da lei propriamente dita e depois na execução por parte da administração pública. No momento legislativo esse princípio reflete-se na edição de normas por parte do legislador, sempre devendo se orientar para a garantia do interesse público, assim vinculando de forma direta a administração pública também na sua gestão de forma a respeitar tal princípio. Tendo a administração pública o poder de desapropriar, intervir e punir, essas ações devem ser sempre em nome do interesse público, isto é, da coletividade, uma vez quevão diretamente contra um interesse individual. Caso sejam motivadas por razão particular ou privada, haverá um vício no ato da administração pública de desvio de poder ou desvio de finalidade, tornando-o ilegal. 18 Esse princípio encontra-se positivado no Art. 2 o da Lei n o 9.784/99, o qual dispõe que “A administração pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.” (BRASIL, 1999) 1.3.3 Princípio da razoabilidade Também conhecido como Princípio da proporcionalidade, traduz uma tentativa de impor limites à atividade discricionária da administração. Segundo os ensinamentos de Di Pietro (2010, p.79): A decisão discricionária do funcionário será ilegítima, apesar de não transgredir nenhuma norma concreta e expressa, se é „irrazoavel, o que ocorrerá quando: a) Não dê os fundamentos de fato ou de direito que sustentam; b) Não leve em conta os fatos constantes do expediente ou públicos e notórios; c) Não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei deseja alcançar. Esse princípio encontra previsão no Art. 2 o da Lei n o 9.784/99, assim como a proporcionalidade, e também por meio de diversos incisos desse mesmo artigo, que diz: [...]VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público. IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados. (BRASIL, 1999) 1.3.4 Princípio da impessoalidade Também disposto de forma expressa no caput do Art. 37 da Constituição Federal, tem diferentes interpretações pelos doutrinadores. Em um sentido, assim explica Di Pietro (2010, p. 67): O princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a administração pública não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear seu comportamento. Em um sentido diferente, José Afonso da Silva (2007, p. 613) entende que esse princípio traduz-se da seguinte forma: “Os atos e provimentos administrativos são imputáveis 19 não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa da administração pública, de sorte que ele é o autor institucional do ato” 1.3.5 Princípio da publicidade O Princípio da publicidade exige por parte da administração pública a transparência e divulgação dos atos praticados, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas em lei. Encontra-se disposto no caput do Art.37, mas também é possível deduzi-lo por meio de diversos incisos do Art. 5 o , como LX e XIV, que dispõem: [...] XIV ‒ é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; LX ‒ a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; A segurança ao acesso de informações acaba por exercer uma forma de controle indireta da população sobre a administração pública, uma vez que a mesma tendo conhecimento dos atos praticados pode fiscalizar e utilizar-se das diversas formas previstas em lei para fazer valerem seus direitos e o bom funcionamento da máquina pública. 1.3.6 Princípio da moralidade O Princípio da moralidade, previsto de forma expressa no Art. 37 da Constituição Federal, exige da administração pública uma atuação dentro de padrões éticos de probidade, decoro e boa fé. É visto por muitos como vago e de certeza duvidosa, sendo muitas vezes confundindo com os demais princípios apresentados. Di Pietro (2010, p.78) afirma, entretanto, que por meio dos estudos de Agustin Gordillo esse princípio diferencia-se sim dos demais, tendo uma existência própria. 1.3.7 Princípio da eficiência 20 Segundo esse princípio, os agentes públicos devem agir com rapidez, presteza, perfeição e rendimento. Diz respeito não apenas à atuação da Administração Pública, mas também à própria organização, e sempre busca, por meio de licitações, definir os resultados que deseja obter para então poder, de forma eficiente, concretizá-los. Nas operações econômicas, é necessário ater-se ao custo-benefício, ou seja, devem ser empregados os meios necessários para obter determinado resultado, não podendo haver gastos desnecessários no processo. Esse princípio encontra previsão constitucional no Art.37 da CF, bem como no Art. 2 o da Lei n o 9.784/99. 1.3.8 Princípio da proteção ao consumidor No direito brasileiro, tal princípio é assegurado constitucionalmente, entre os direitos fundamentais, pelo Art. 5º, inciso XXXII, da CF e sua defesa se encontra entre os princípios da ordem econômica: [...] XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: V - defesa do consumidor; (BRASIL, 1988, art. 170, V) A defesa do consumidor, reconhecida como direito fundamental, também devendo nortear a atuação da administração pública, pode ser explicada pelo fato de que em uma economia de mercado o acesso ao consumo relaciona-se diretamente à dignidade humana e ao exercício de direitos subjetivos. Também presume-se o consumidor como hipossuficiente frente ao poder dos agente econômicos detentores de grande influência e poder econômico. Portanto, não é concebível uma política regulatória que não tenha como finalidade a proteção dos consumidores e a inserção na economia de segmentos excluídos das relações de consumo por falta de recursos. 21 2. As agências reguladoras 2.1 Conceito A conceituação de agências reguladoras nem sempre é fácil e completa. Aragão (2009, p. 275) as conceitua da seguinte forma: Autarquias de regime especial, dotadas de considerável autonomia frente à Administração direta centralizada, incumbidas do exercício de funções regulatórias e dirigidas por colegiado cujos membros são nomeados por prazo determinado pelo Presidente da República, após prévia aprovação pelo Senado Federal, vedada a exoneração ad nutum. Para a melhor compreensão desse conceito utilizado por Aragão, cabem algumas considerações. Segundo os ensinamentos de Di Pietro (2010, p.428-429), Autarquias são entidades da Administração Indireta que exercem serviços determinados, com características e efeitos da atividade Administrativa do Estado. Ainda segundo Di Pietro (2010), são características das autarquias: 1 – Criação por lei Segundo o disposto na Constituição Federal em seu artigo 37, XIX: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação; (grifo do autor) 2 – Personalidade jurídica pública As autarquias são pessoas jurídicas,logo possuem direitos e deveres próprios que não devem se confundir com o daqueles que as instituíram ou à administram e representam; 3 – Capacidade de Auto administração Possuem administração, pessoal, receita e patrimônio próprios; 4 – Especialização dos fins ou atividades Desenvolvem capacidade específica para prestação de serviços em determinada área, não podendo exercer atividades diversas nas demais áreas de atuação; 5 – Sujeição a controle ou tutela Forma de garantir que não haverá abuso ou desvios dos fins para qual a autarquia foi criada; Sobre o conceito das agências reguladoras também é importante destacar os ensinamentos de Cuéllar (2008, p. 28-29), que alerta para a falta de previsão constitucional expressa quanto às agências reguladoras. Sobre o tema, o autor escreve que “a Constituição 22 somente se refere a órgãos reguladores para os setores de telecomunicação e de petróleo (mas não trata da sua independência e nem os denomina “agências”).” Os artigos 21 e 177 da Constituição Federal utilizam a expressão “órgão regulador”, como destacamos: [...]Art. 21. Compete à União: XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; [...]Art. 177. Constituem monopólio da União: § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União; (BRASIL, 1988, grifo nosso) Entretanto, a utilização da expressão “agências reguladoras”, criada pelo legislador, e não órgão regulador, prevista na Constituição Federal, não possui qualquer caráter técnico, sendo utilizado por mais se aproximar de uma tradução literal do termo existente nos Estados Unidos da América (EUA). O conceito dado por Figueiredo (2009, p. 150) muito se aproxima daquele aqui já exposto: Podemos conceituar as agências reguladoras como sendo as entidades públicas encarregadas da regulação, politicamente neutra e imparcial, de setores e mercados específicos, estabilizando o convívio de interesses políticos, coletivos e privados. A imagem a seguir ilustra de forma clara o enquadramento das agências reguladoras, bem como os interesses que estas devem tutelar. Figura 1 ‒ Enquadramento e responsabilidade das agências reguladoras Fonte: (Figueiredo, 2009) 23 Podemos então perceber que as agências reguladoras foram criadas com a finalidade de normatizar segmentos específicos do mercado, dado ao seu grau de especialização e corpo técnico, sempre se mantendo livre de pressões políticas que possam ser exercidas pelos governantes que estejam ocupando temporariamente as instâncias dos poderes constituídos. Cuéllar (2008, p.53) escreve sobre o assunto: A criação das agências reguladoras traz consigo o objetivo de uma regulação independente, neutra e imparcial, apolítica e técnica. As agências reguladoras não defendem os interesses do governo, nem das empresas reguladas, tampouco os dos consumidores. A regulação é objetiva e deve se preocupar com o mais eficiente desenvolvimento da atividade econômica... Embora muito se fale sobre a regulação dos segmentos nos quais atuam, não podemos resumir a palavra regulamentação à simples emissão de normas por parte das agências reguladoras. Segundo a lei também compete às agências reguladoras: 1 ‒ Promover o acesso à atividade: a Constituição Federal consagra como princípios da ordem econômica os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. Para sua efetivação deve haver um mercado que possibilite a inserção de novos empreendedores e não deve haver grandes obstáculos para aqueles que atuam nesse mercado. Nesse contexto, cabe à agência reguladora promover o acesso ao mercado, muitas vezes por meio da competência cedida pelo poder concedente (União, Estado, Distrito Federal ou Município) por licitações, celebrações de contratos, autorizações para exploração de determinado serviço e fiscalização. Segundo Cuéllar (2008, p. 55), as agências reguladoras dos setores de energia e de telecomunicações (ANEEL e ANATEL) são os exemplos mais claros do exercício dos poderes delegados e agem em nome da União. 2 – Produção normativa: a emissão de normas é inerente ao poder regulamentar, sendo sua função básica. As agências reguladoras possuem um corpo técnico altamente especializado em sua área de atuação, diferentemente do legislador, que carece desse conhecimento mais especifico. Sendo assim, cabe às agências reguladoras emitir normas nos respectivos setores de atuação, sendo esse assunto objeto de estudo do capítulo 3 da presente monografia. 3 ‒ Competência para resolver conflitos: para Cuéllar (2008, p.64), as agências reguladoras podem também apreciar e desenvolver processos administrativos sem controle hierárquico e sem possibilidade de recursos administrativos para a Administração Central. A resolução de conflitos por parte das agências reguladoras não se confunde com a atividade exercida pelo Poder Judiciário, tampouco pode ser considerada uma atividade jurisdicional (as 24 decisões das agências não fazem coisa julgada). Essa função das agências reguladoras é uma simples competência decisória atribuída aos entes reguladores, que devem buscar resoluções amigáveis e são sujeitas à revisão do Poder Judiciário com base no artigo 5, XXXV, da CF (1988), que dispõe: “Artigo 5 [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” 4 – Impor sanções: uma vez que possuem o poder de editar normas e fiscalizar, faz sentido que as agências reguladores detenham um poder punitivo para concretizar as normas por elas impostas e coibir os variados agentes de más condutas. Podem, as agências reguladoras, impor pena pecuniária (multa), advertências, suspenção ou revogação de concessões de acordo com o caso fático e com a legislação pertinente. Os princípios do devido processo legal, da publicidade, do contraditório e da ampla defesa devem ser respeitados, aplicando-se a lei sobre processo administrativo (Lei n o 9.784/99) no que couber. 2.2 Histórico O surgimento das agências reguladoras não é uma questão pacifica entre os autores. Leila Cuéllar (2008, p.13) afirma que a origens das agências reguladoras ocorreu em 1886 com a criação da Interstate Commerce Commission, pois este possuía características e funções semelhantes com o modelo de agências reguladoras como atualmente as conhecemos, por exemplo, a independência e a autonomia orgânica e funcional. Entretanto, para Leffeld (2008, p.133) a origem das agências reguladoras é anterior à criação da Interstate Commerce Commission, ocorrendo na Inglaterra em 1834 com a criação, pelo Parlamento Inglês, de entes dotados de autonomia com o objetivo de concretizar as medidas previstas em lei e até mesmo resolver eventuais controvérsias. Se não há um consenso sobre a exata origem das agências reguladoras, por outro lado não há qualquer dúvida ou posição contrária sobre o desenvolvimento do modelo nos Estudos Unidos da América e sua influência nos demais países. A implementação e evolução das agências reguladoras nos EUA. pode ser dividida em 5 fases: 1ª fase (de 1886 a 1930) – Houve a criação da primeira agency (em português, agência) e do modelo de regulação norte-americanos propriamente dito. 25 Para melhor entender essa necessidade da criação das agencys, temos que entender o contexto da época, a qual caracterizava-se por diversos conflitos entre as empresas de transporte ferroviários,que devido à liberdade do sistema econômico cobravam tarifas excessivas, e os fazendeiros do oeste dos EUA que detinham grande influência e pressionaram a assembleia para legislar sobre o tema. Diante dessa situação, foi criada, em 1886, a Interstate Commerce Commission, a primeira grande agência federal, com o objetivo de regular as operações ferroviárias interestaduais. 2ª fase (entre os anos de 1930 e 1945) ‒ nos anos de 1930 a 1945 a economia norte americana estava abalada por uma forte crise. Nesse período as agências interviram de forma intensa e constante na economia Essa intervenção ‒ e em até certo ponto, supressão do liberalismo ‒ é explicada pela política New deal, liderada pelo presidente Roosevelt. O New deal causou um profunda alteração das concepções políticas, sociais e econômicas, sendo considerado por Lehfeld (2008, p. 141) “um divisor de águas nas concepções acerca das funções governamentais nos EUA”. Dentro dessa nova política e concepção o governo central assumiu a responsabilidade pela conformação da atividade econômica, produzindo incentivos e até mesmo desenvolvendo atividades econômicas antes reservadas a particulares. Nesse período foram criadas inúmeras agências federais para atuar em diversos setores, como Food and drug administration (FDA) (1931), National Labor Relations Board (NLRB) (1935) e a Social Security Administration (SSA) (1935). 3ª fase (entre 1945 e 1965) – Nessa fase as agências ganharam uma maior legitimidade devido edição de uma lei geral de procedimento administrativo, a Administrative Procedural Act (APA), que uniformizou o processo de tomada de decisões pelas agências. 4ª fase (entre os anos de 1965 e 1985) ‒ As agências regulatórias sofrem uma grande pressão dos agentes econômicos, que detinham enorme poder e influência. Contrariando o mecanismo para qual foram desenvolvidas, as agencys, em vez de exercer pressão e regular o mercado, acabam sendo alvo de pressões e influências do setor econômico. Assim, a autonomia das agências encontrava-se fragilizada e suas decisões deixaram de ser imparciais, uma vez que o conteúdo das suas regulações era determinado pelos agentes econômicos. Os grandes prejudicados foram os consumidores. 5ª fase (1985 em diante) – Após a grande pressão exercida pelos agentes econômicos, iniciou-se um processo de reinvenção e redefinição do modelo das agências regulatórias com 26 a finalidade de garantir maior autonomia a elas, embora ainda sujeitas ao controle externo judicial por parte do executivo e do próprio legislativo. 2.2.3 Histórico no Brasil No Brasil as agências reguladoras surgiram em 1996 com a criação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) por meio da Lei n o 9.427/96. Apesar de ser a primeira agência reguladora criada no país, Di Pietro (2010, p. 467) afirma que “No direito brasileiro, existem, desde longa data, entidades com função reguladora, ainda que sem a denominação de agências.” Como exemplo são citados o Comissariado de Alimentação Pública (1918), o Instituto do Açúcar e do Álcool (1933) e o Instituto Nacional do Sal (1940), instituídos na forma de autarquias econômicas para regular a produção e o comércio dos respectivos produtos e setores. Na primeira etapa de criação, as agências reguladoras integravam uma política publica orientada a captar investimentos estrangeiros. O governo brasileiro as instituiu para regulações de setores cuja expansão era indispensável e que dependiam de investimentos estrangeiros, assim, as primeiras agências reguladoras foram criadas em setores de energia elétrica, petróleo e telecomunicações. A Agência Nacional de Telecomunicação (ANATEL) foi a segunda a ser criada, por meio da Lei n o 9.472/97, seguida da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que foi instituída pela Lei n o 9.478/97. A partir de então houve uma verdadeira expansão no ritmo de criação das agências reguladoras, podendo ser considerado um “modismo”, conforme afirma Cuéllar (2008, p.41). Ao longo de doze anos, de 1996 até 2008, foram criadas 32 agências reguladoras nos níveis federal, estadual, distrital ou municipal, levando muitos a questionarem a real necessidade e até a legitimidade de tais agências. Para justificar a criação dessas agências é utilizada a distribuição de competências instituídas pela Constituição Federal, podendo ser sintetizada da seguinte forma: a competência federal esta expressamente prevista na Constituição Federal; aos municípios cabe a matéria de interesse local, conforme art. 30, I, da CF, e aos estados cabe a competência residual. Há casos de competência concorrente, também previstos na atual CF. Embora não exista uma lei única para a criação das agências reguladoras, cada agência é instituída por lei própria, e percebe-se que em geral adotam-se características semelhantes 27 entre elas. Em uma tentativa de uniformizar as agências reguladoras, foi criada a Lei n o 9.986, de 17 de julho de 2000, que trata sobre o tema dos recursos humanos das agências reguladoras, sendo tal lei aplicada inclusive às agências criadas anteriormente a ela. Em abril de 2004 o Presidente da República encaminhou ao congresso o Projeto de Lei n o 3.337/04 com a intenção de criar uma lei geral para as agências reguladoras, sendo o objetivo desse projeto de lei dispor sobre a gestão, a organização e os mecanismos de controle social das agências reguladoras, redefinindo as suas atribuições, em especial as dos setores de petróleo, telecomunicações e transportes. 2.3 A autonomia das agências reguladoras As agências reguladoras, assim como toda autarquia, são dotadas de autonomia, conforme mencionado. Nos ensinamentos de Aragão (2008, p. 331) a expressão mais correta para definir essa autonomia seria “autonomia reforçada”, e não independência, como grande parte da doutrina utiliza, pois como veremos a seguir as agências reguladoras possuem diversas características e peculiaridades que conferem a elas uma ampla autonomia, mas não uma real independência, já que ainda são sujeitas a diversas formas de controles. Embora muitas vezes empregados como sinônimos pela doutrina, alguns autores, como Aragão, gostam de deixar claro que há diferença no uso dessas expressões. Sobre a independência das agências reguladoras, França (2010, p. 155) assim escreve: A autonomia/independência das agências reguladoras federais urge no sentido de sua atuação junto aos particulares detentores das responsabilidades delegadas pelo Estado. Uma vez que não dependem, tecnicamente, financeiramente ou administrativamente de qualquer outro órgão, há condições de estabelecer-se a imparcialidade e, consequentemente, a confiança da população em suas decisões, assim como a devida fiscalização propriamente dita. A autonomia das agências já foi também questionada judicialmente, sendo que em julgamento ocorrido em 20 de agosto de 1998 foi decidida no Superior Tribunal Federal (STF) a sua constitucionalidade por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), número 1668-5 MC/DF ‒ DISTRITO FEDERAL, que teve como relator o ministro Marco Aurélio. Nesse caso, os partidos Partido Comunista do Brasil (PC do B), Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Partido Socialista Brasileiro 28 (PSB) alegaram a inconstitucionalidade dos artigos 8 o e 9 o da Lei n o 9.472/97 ‒ Lei das Telecomunicações e Instituidora da ANATEL ‒, que assim dispõem: Art. 8° Fica criada a Agência Nacional de Telecomunicações, entidade integrante da administração pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial evinculada ao Ministério das Comunicações, com a função de órgão regulador das telecomunicações, com sede no Distrito Federal, podendo estabelecer unidades regionais. § 2º A natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira. Art. 9° A Agência atuará como autoridade administrativa independente, assegurando-se-lhe, nos termos desta Lei, as prerrogativas necessárias ao exercício adequado de sua competência. (BRASIL, 1997, grifo nosso) O STF, por votação unânime, não conheceu de ação direta, quanto aos arts. 8 o e 9 o da Lei n o 9.472, de 16 de junho de 1997, assim sendo considerada constitucional a independência das agências reguladoras. 2.3.1 A autonomia estrutural As agências reguladoras também detêm autonomia orgânica, evitando assim uma subordinação hierárquica direta ao Governo Central. Essa autonomia traduz-se também na forma de uma autonomia política. Criadas por meio de Lei própria e integrantes da Administração Indireta, as agências reguladoras atuam de forma independente da Administração Central, devendo seguir as diretrizes por ela estabelecidas, mas com discricionariedade em sua atuação. As agências gozam de um corpo técnico próprio, essencial para o desenvolvimento de suas funções devido à grande especialidade e segmentação do mercado em que atuam. O corpo técnico das agências reguladoras é dotado de vínculo estatutário e, em sua maioria, sujeito ao ingresso por meio de concurso público. Seus dirigentes são indicados pelo Chefe do Executivo e sabatinados pelo Senado Federal. Gozam de prorrogativas de permanência no cargo, podendo ser afastados somente em casos de descumprimento das políticas públicas estabelecidas no setor de atuação da agência ou pela prática de atos de improbidade administrativa. Esse mandato fixo dos 29 dirigentes é mais uma forma de garantir a autonomia das agências e a sua neutralidade frente a pressões políticas dos agentes por ela regulados. 2.3.2 A autonomia econômico-financeira A \utonomia financeira e orçamentaria é outro aspecto da autonomia reforçada que as agências detêm. Figueiredo (2009, p. 153) explica a função dessa autonomia da seguinte forma: “reduz o risco de captura do regulador pelos interesses tendentes a influenciar indevidamente o processo de regulação e impedir sua efetividade.” As agências são dotadas de instrumentos econômicos e financeiros próprios, como as taxas regulatórias e multas, para sua autogestão, sem depender exclusivamente do Governo Central. Sobre a taxa de fiscalização, Cuéllar (2008, p. 99) assim escreve: A taxa de fiscalização é cobrada pelas agências reguladoras daquelas empresas que por elas são reguladas. Essa taxa de fiscalização possui um valor variável, que é fixado de acordo com a atividade desenvolvida por cada mepresa e com o benefício econômico anual auferido por ela. Além disso, possuem orçamento próprio, que é enviado ao ministério ao qual estão vinculadas. 2.3.3 A autonomia funcional Cuéllar (2008, p. 94) aponta esse aspecto de independência, a autonomia funcional, como um dos mais importantes. Nesse sentido a autora escreve: Cabe a cada ente regulador desempenhar suas atribuições regulatórias (em síntese, regulamentação, supervisão e aplicação de sanções) de forma autônoma, sem qualquer ingerência externa, por parte do Poder Executivo ou dos demais poderes. (CUÉLLAR, 2008, p. 94) As agências reguladoras são instituídas por lei para atuarem dentro de determinado segmento do mercado, sendo assim, cabe a elas exercer a função regulatória nesse setores específicos de forma exclusiva e independente, livre de interferências externas, principalmente por parte do Poder Executivo. 30 A autonomia funcional, especialmente no que diz respeito ao poder normativo, é alvo de análise mais profunda no capítulo 3 desta monografia, em que são estudados os limites no exercício dessa função das agências reguladoras. 2.3.4 A pressão sofrida pelas agências reguladoras Apesar de todas as garantias que as agências possuem no exercício de suas atividades e funções, na prática vemos casos como ainda as agências são sujeitas a pressões externas. O primeiro caso, trazido por Marçal Justen Filho (JUSTEN FILHO apud CUÉLLAR, 2008, p. 10) ocorreu em 2002, quando ocorreu a vitória da oposição nas eleições. Nesse ano, em meio à crise de abastecimento hídrico causado por longa estiagem, o Governo Central assumiu para si competências essencialmente do setor energético, relegando a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) a uma posição secundária. Mesmo sem alterações no regime jurídico propriamente dito, a falta de provimento dos cargos de direção e do corpo técnico, além do não repasse de recursos, acabaram paralisando a atuação da ANEEL nesse período. Outro caso recente em nossa história envolve a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) no período dos anos de 2006 e 2007. O acidente ocorrido com a aeronave da Gol em 29 de setembro de 2006, a consequente crise aérea e o acidente com a aeronave da TAM em 17 de julho de 2007 fizeram com que o governo pressionasse diretamente a agência. Como consequência, todos os diretores da agência acabaram por renunciar aos seus mandatos, conforme divulgou a Folha de São Paulo do dia 31 de outubro de 2007: O diretor-presidente da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), Milton Zuanazzi, confirmou nesta quarta-feira que deixa o cargo, conforme antecipou ontem a colunista da Folha Eliane Cantanhêde. Desde o dia 24 de agosto, os outro quatro diretores que integravam a diretoria da Anac renunciaram aos cargos. Da cúpula da agência, restava só Zuanazzi. (FOLHA ONLINE, 2007) O diretor da agência à época, Leur Lomanto, escreveu em sua carta de renuncia: O corpo técnico da ANAC é composto de técnicos de excelência que sempre atuaram no então Departamento de Aviação Civil (DAC) e foram eles que respaldaram todas as decisões tomadas pela Diretoria Colegiada da Agência. Apesar do ataque sistemático de várias e poderosas forças, a ANAC vem cumprindo seu papel com eficiência, não se curvando a pressões, quaisquer que sejam, sempre procurando atender ao usuário e proporcionando cenários em que as companhias aéreas pudessem competir com regras claras, dentro de uma economia de mercado. Se colocada em uma balança isenta de paixões e emoções, a ANAC acertou muito mais que errou ao longo de sua trajetória. Por entender que a ANAC deve 31 permanecer fiel ao seu compromisso de ser uma Agência de Estado e não de governo é que venho, neste momento, anunciar minha renúncia ao cargo de Diretor da Agência Nacional de Aviação Civil, não sem antes agradecer a minha indicação feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e aos eminentes senadores que aprovaram meu nome no plenário do Senado da República, depois de sabatina na Comissão de Infra-Estrutura da mesma Casa. Leur Lomanto Brasília, 06 de setembro de 2007. (ESTADÃO, 2007) Ambos os casos são aqui utilizados para demonstrar que apesar de todos os mecanismos que as agências detêm para exercer suas funções com a maior autonomia e imparcialidade possíveis, ainda não são suficientes para garantir o seu sólido trabalho. 2.4 Controle das agências reguladoras 2.4.1 Controle interno O controle interno é desenvolvido pelos conselhos consultivos, que são órgãos das agências nos quais a participação popular se efetiva como decorrência de sua composiçãomista. Nos conselho há representantes do Senado, da Câmara dos Deputados, do Poder Executivo, das prestadoras de serviços regulados, das entidades representativas de usuários e de entidades que representam a sociedade. As funções desses órgãos e entidades são de caráter consultivo – quanto à fiscalização do serviço prestado – e fiscalizador – quanto à atuação do Conselho Diretor. Além disso, podem emitir pareceres sobre os projetos das agências, dar aconselhamento quanto à prestação de serviços públicos, realizar a apreciação de relatórios e a elaboração de propostas concernentes à atuação do Conselho Diretor. Outro modo de controle interno é a ouvidoria, que é o órgão incumbido de tecer críticas ao funcionamento da entidade, zelar pelo interesse público, opinar sobre a regulação, propor a edição de atos normativos, receber queixas, denúncias e sugestões dos administrados e, em seguida, encaminhá-las aos órgãos competentes para sanar os problemas ou verificar as sugestões apresentadas. Assim, a ouvidoria é considerada uma forma de controle interno apesar da necessária participação popular, uma vez que trata-se de um órgão integrante da própria agência em questão. Como exemplo, traz-se o disposto no sítio da ANAC: 32 A Ouvidoria é o canal de relacionamento da ANAC que recepciona reclamações, denúncias, críticas, elogios e sugestões sobre a prestação de serviços da ANAC e de seus agentes. Fornece ainda análises visando ao aperfeiçoamento das atividades exercidas pelo ente. O ouvidor da ANAC é nomeado pelo Presidente da República para exercer mandato de dois anos podendo haver prorrogação por igual período. O ouvidor tem acesso pleno a todos os documentos e informações e deve atuar com independência e autonomia na apuração dos manifestos recepcionados. (ANAC, 2011) As demais agências reguladoras possuem disposições muito semelhantes quanto a sua organização e funcionamento da ouvidoria, sempre buscando exercer da melhor forma possível seus serviços e mantendo um meio de comunicação aberto para todos. 2.4.2 Controle externo As agências reguladoras submetem-se a diversos tipos de controle, de acordo com a matéria em questão. A administração pública deve sempre buscar a maximização de seus resultados por meio do uso eficiente e do não desperdício de seus recursos. As agências reguladoras, mesmo possuindo maior autonomia, integram a administração publica, portanto, submetem-se aos princípios explicados no capítulo anterior ao desenvolver suas atividades. Em matéria orçamentária e financeira, o controle é exercido primariamente pelo Tribunal de Contas, ao qual compete verificar se o respectivo órgão regulador respeitou os princípios constitucionalmente previstos, como o princípio de eficiência (BRASIL, 1988, art.37) e o princípio de economicidade (BRASIL, 1988, art.70). O Poder Executivo também exerce certa forma de controle nas agências reguladoras. Apesar de sua autonomia, que em muito limita a forma de controle pelo Executivo, segundo o art.84, II, da CF, ainda permanece o Poder Executivo como incumbido da direção superior da administração pública federal. Pela atual disciplina das agências, a intervenção do Executivo sobre a atividade normativa não existe, mas existe intervenção direta por meio da nomeação dos dirigentes. O Poder Legislativo já começa a exercer o seu controle na própria criação das agências reguladoras, que são instituídas por leis próprias. Sendo assim, compete ao Poder Legislativo definir os limites de atuação das agências, fixando previamente padrões de atuação e atribuindo-lhes competência normativa no momento de sua criação. Também cabe ao Legislativo, por meio das Comissões Parlamentares de Inquérito, apurar o cumprimento das políticas públicas, dos objetivos e das finalidades da atividade de regulamentação a serem alcançados pela agência. Esse controle exercido pelo Poder 33 Legislativo não pode ser confundido com o controle de mérito administrativo, tampouco pode versar sobre o juízo de conveniência e a oportunidade sobre as atividades reguladoras da agência. O Poder Judiciário, que exerce a atividade e função jurisdicional, é responsável pela solução de conflitos e do controle de constitucionalidade. Sendo assim, também exerce uma função de controle sobre as agências, especialmente sobre a emissão de normas por elas emitidas, tema que será mais aprofundado no capítulo 3 deste trabalho. 2.5 As agências reguladoras no direito estrangeiro Como já exposto, as agências reguladoras brasileiras tiveram como base o modelo norte-americano das agencys. Entretando, é objeto de estudo deste capítulo a fomra como essas instituições são e como se desenvolveram em alguns outros países, dando ênfase aos aspectos da personalidade jurídica, autonomia e previsão legal em cada um dos países a seguir ‒ França. Espanha, Inglaterra e Argentina. 2.5.1 França Na França, as agências reguladoras são conhecidas como autoridades administrativas independentes e surgiram em 1978 com a Commission Nationale de l’Informatique et des Libertés (CNIL) ‒ que é relativa à informática, aos arquivos e às liberdades ‒ embora anteriormente a essa data já existissem organismos públicos organizacionais independentes, como a Comission Centrale des Banques, criada em 1941. Contudo, na França, curiosamente, não há uma personalidade jurídica própria para suas agências. Contrariamente ao que possamos pensar, a ausência dessa personalidade jurídica própria não significa falta de autonomia, Quermonne (p.218, 1999 in ARAGÃO, 2008 pag.238) escreve: “Apesar de serem desprovidas de personalidade jurídica, sendo orçamentariamente ligadas às estruturas ministeriais, escapam de todo poder hierárquico ou tutela”. A autonomia das agências francesas decorre da força com que seus estatutos são concebidos de forma a garantir a liberdade decisória das mesmas. Quanto à matéria regulamentar e de emitir normas dessas agências, já foram admitidas pelo Conselho Constitucional Francês, exigindo que a lei estabeleça critérios e princípios 34 determinados para o seu desenvolvimento. Na regulamentação dessas autoridades administrativas, ao contrário do que ocorre em diversos países, como o Brasil, a função de regulamentar não se limita ao setor econômico, mas abrange também a função de proteção aos direitos fundamentais e de proteção dos cidadãos frente à administração pública, portanto, indo além do setor econômico. 2.5.2 Espanha No sistema espanhol também há a grande influência do sistema americano, que é adaptado às realidades e características próprias do direito pátrio. A Espanha sempre contou com as figuras de entidades dotadas de personalidade jurídica instituídas pelo Estado, sendo denominadas Administração Instrumental, que equivalem a nossa Administração Indireta. O surgimento da figura de entidades dotadas de grande autonomia em relação à Administração Central ocorreu por volta de 1980. A terminologia de autoridades administrativas independentes é equivocada, já que essa independência na realidade é uma autonomia real ou reforçada frente à administração em geral. A imparcialidade dessas agências é assegurada por meio de uma série de garantias de caráter orgânico, por exemplo, a existência de um órgão colegiado tomador de decisões e o estabelecimento de prazo certo para o mandato dos dirigentes, além das garantias funcionais, como a independência frente às decisões do governo. A constitucionalidade desses órgãos também é assunto de debate, uma vez que a Constituição Espanhola estabelece em seu artigo 97 que cabe ao Governo a direção de toda a administração
Compartilhar