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11. EFICÁCIA DO CASAMENTO 11. EFICÁCIA DO CASAMENTO 0 11. EFICÁCIA DO CASAMENTO SUMÁRIO: 11.1 Visão histórica – 11.2 Tentativa conceitual – 11.3 Direitos e deveres: 11.3.1 Fidelidade; 11.3.2 Vida em comum no domicílio conjugal; 11.3.3 Mútua assistência, consideração e respeito; 11.3.4 Sustento, guarda e educação dos filhos – Leitura complementar. Referências legais: CF 226 §§ 1.º e 2.º; CC 1.565 a 1.570; CP 235; L 9.263/96. 11.1 Visão histórica A legislação pretérita bem retratava o perfil de uma sociedade patriarcal e machista, que colocava a mulher em uma posição de absoluta subserviência. O Código Civil de 1916 elencava, de modo distinto, os direitos e os deveres do marido (CC/16 233 a 239) e da mulher (CC/16 240 a 255) e empurrava a mulher para uma posição de incontestável inferioridade jurídica e social.1 O viés marcadamente hierarquizado da família levava a atribuir, ao homem, a representação legal da família. Assim, era ele o chefe da sociedade conjugal, o “cabeça” do casal, com uma série de privilégios a comprovar sua superioridade. Era dele a responsabilidade pela manutenção da família, cabendo-lhe administrar os bens comuns e os bens da mulher. Ele é quem fixava o domicílio conjugal. A mulher tinha de se submeter à vontade do marido. Essa supremacia masculina se evidenciava, também, no poder familiar, que se denominava pátrio poder, ou seja, o poder do pai. Havendo divergência entre os genitores, prevalecia a palavra dele. A vontade da mulher nada valia. No máximo, podia ela socorrer-se do juiz para tentar ser ouvida. A mulher, ao casar, era obrigada a adotar o sobrenome do marido. Perdia sua plena capacidade, pois se tornava relativamente capaz e precisava da autorização do marido para trabalhar. Ao ficar viúva, vindo a casar novamente, perdia a guarda dos filhos menores. O casamento, historicamente, sempre teve por finalidade a procriação. Os filhos necessitavam ser filhos do patriarca, pois destinados a se tornarem os herdeiros da sua fortuna. Assim, a fidelidade da mulher era uma exigência, tanto que o desvirginamento da esposa, desconhecido do marido, autorizava a anulação do casamento. A verdade é que considerável número de dispositivos discriminava a mulher, os quais se tornaram odiosos com o passar do tempo.2 O chamado Estatuto da Mulher Casada (L 4.121/62) devolveu a plena capacidade à mulher, que passou à condição de colaboradora do marido na administração da sociedade conjugal. A ela foi deferida a guarda dos filhos menores, no caso de serem ambos os cônjuges culpados pela separação. Não mais necessitava da autorização marital para o trabalho. Ainda que admitida a sua colaboração na chefia da sociedade conjugal, os direitos e deveres do marido e da mulher continuavam constando de elencos distintos. Foi a Constituição Federal de 1988 que impôs a igualdade do homem e da mulher, inclusive quanto aos direitos e deveres do casamento (CF 226 § 5.º). Assim, todas as normas da legislação infraconstitucional, que afrontavam o desígnio do constituinte, acabaram letra morta. Passou a vigorar a plena igualdade. Senão a igualdade material, ao menos a igualdade formal, meio caminho andado para se alcançar a igualdade efetiva. A essa diretriz procurou afeiçoar-se o Código Civil, que traz, em um único elenco, os deveres a serem respeitados por ambos os cônjuges durante o casamento. 11.2 Tentativa conceitual Sob a expressão: Da eficácia do casamento, regula o Código Civil alguns dos seus efeitos. Além de passar a desfrutar da especial proteção do Estado (CF 226), a família constituída pelo casamento tem eficácia erga omnes, pois vai além dos cônjuges e se impõe perante a sociedade. O casamento irradia uma série de efeitos de natureza social, pessoal e patrimonial.3 Traz algumas vantagens na esfera previdenciária, tributária etc., mas também impõe algumas restrições. O cônjuge necessita da autorização do outro para: vender ou gravar de ônus real bens imóveis, prestar fiança e aval e fazer doações (CC 1.647). Ou seja, os terceiros também são atingidos pela existência do casamento daqueles com quem se relacionam juridicamente.4 O casamento gera a presunção de filiação dos filhos do casal (CC 1.597), além de tornar indissolúvel o vínculo de afinidade de um dos cônjuges com os parentes do outro (CC 1.595 § 2.º), pois, mesmo depois de extinto o casamento, tal relação permanece. Aliás, em face disso, existe a proibição de casamento entre sogro e nora ou com os enteados. Mas o casamento assegura alguns direitos, como o de um pleitear alimentos ao outro (CC 1.694). As sequelas de ordem patrimonial são significativas. A depender do regime de bens adotado quando do casamento (CC 1.639), pode haver a comunicação de bens, inclusive de bens particulares, como acontece no regime da comunhão de bens. Também o cônjuge é o primeiro legitimado a ser curador do cônjuge que se incapacita (CC 1.775). O casamento, igualmente, garante direitos sucessórios. O cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário (CC 1.829 III) e desfruta do direito real de habitação (CC 1.831). Conforme o regime de bens, o viúvo tem o direito de concorrer com os herdeiros de classes anteriores (CC 1.829 I e II). O casamento altera o estado civil dos cônjuges, que passam de solteiros a casados. O estado civil é um atributo da personalidade, que qualifica a pessoa perante a sociedade. Revela a situação jurídica do indivíduo nas relações sociais. A condição de casado cria restrições para a prática de determinados atos, daí a justificativa de essa informação integrar a qualificação das pessoas. O estado civil identifica a titularidade dos bens e a necessidade de haver a concordância de outrem para a prática de determinados atos (CC 1.647). No entanto, a partir do momento em que a união estável passou a produzir os mesmos efeitos de ordem patrimonial, sem reflexos no estado civil dos conviventes, a insegurança jurídica está instalada. O casamento autoriza qualquer dos cônjuges a adotar o nome do outro (CC 1.565 § 1.º). Sem qualquer restrição na lei, não há como descartar a possibilidade de cada um assumir o sobrenome do par. Assim, pode a noiva adotar o nome do noivo e ele adotar o nome dela. Igualmente, por ausência de impedimento, além da troca de nomes, é possível cada um excluir o seu nome de família. Conclusão: ocorre a inversão dos sobrenomes. Limita-se o Código Civil (1.565 § 2.º) a reproduzir a regra constitucional (CF 226 § 7.º) que delega ao casal o planejamento familiar, vedando qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas. A tentativa de regulamentar tal preceito é sobremodo acanhada. A L 9.263/96 define planejamento familiar (art. 2.º): o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. Afirmada a competência do Estado para propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (art. 5.º), restringe a lei a esterilização voluntária (art. 10). Tipifica como crime a esterilização cirúrgica fora dos permissivos legais (art. 15). De forma absolutamente desarrazoada, é exigida a concordância expressa de um dos cônjuges para o outro submeter-se a procedimento de esterilização (art. 10 § 5.º). Porém, não há a mesma exigência na união estável. De qualquer modo, nada justifica limitar a liberdade da mulher de escolher a extensão de sua prole, mesmo estando casada. 11.3 Direitos e deveres A necessidade de demarcar os núcleos familiares como elementos estruturantes da sociedade leva o Estado a regular, à exaustão, o casamento como forma de constituição da família. Não se restringe a chancelar o casamento e regulamentar a sua dissolução. Assumindo o encargo de proteger a família, sente-se autorizado a atribuir responsabilidades ao casal e impor regras a serem respeitadas pelos cônjuges. O alcance da expressão“sim”, na solenidade do casamento, significa a concordância de ambos os nubentes com que o Estado estabeleça a eles, de forma rígida, deveres.5 O casamento deita sobre o par afetivo um conjunto de enunciados enumerados na lei, que impõe uma espécie de poder absoluto e exclusivo de um sobre o outro.6 O legislador tenta explicitar os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal que, por determinação constitucional (CF 226 § 5.º), são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. A imposição coacta de direitos e deveres faz lembrar a origem da palavra “cônjuge”, que identifica quem está unido pelos sagrados laços do matrimônio. O vocábulo jugum era o nome dado pelos romanos à canga ou aos arreios que prendiam as bestas às carruagens. O verbo conjugare (de cum jugare), entre outros sentidos, significa a união de duas pessoas sob a mesma canga. Donde conjugis quer dizer jungidos ao mesmo jugo ou ao mesmo cativeiro. Não há como esquecer isso, quando se atenta ao exacerbado intervencionismo estatal nas relações afetivas. Ainda que sejam impostos direitos e deveres aos cônjuges (CC 1.566), não há qualquer impedimento de que, via pacto antenupcial, os noivos deliberem da forma que desejarem o modo que vão levar suas vidas. Impositivo respeitar o princípio da autonomia da vontade. Eles só não podem incluir cláusulas que afrontem disposição absoluta de lei (CC 1.655), dispor sobre direito sucessório (CC 426) e sobre alimentos (CC 1.707). No mais, tudo pode ser convencionado, até o estabelecimento de regras de convívio. O Código Civil concede aos casados a condição de consortes e companheiros, repassando-lhes a responsabilidade pelos encargos da família (CC 1.565). Nada mais fez o legislador do que delegar aos pais o dever de assegurar o cumprimento dos direitos que são outorgados às crianças e aos adolescentes (CF 227). Fica o Estado na cômoda posição de repartidor de deveres e ônus a serem cumpridos pelos cônjuges a partir do casamento. Não só durante o período de convívio, mas para todo o sempre. A lei impõe, aos cônjuges, deveres de um para com o outro. O dever de um corresponde ao direito do outro (CC 1.566): I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos. Apesar do extenso rol, a doutrina reconhece que a lei não cogita de todos os deveres inerentes a ambos os consortes, prevendo os mais importantes, isto é, aqueles reclamados pela ordem pública e pelo interesse social.7 A presença do Estado é tão invasiva, que chega à vida íntima do par. Há quem diga que o casamento gera o chamado débito conjugal. O exercício da sexualidade seria um encargo, a ponto de gerar no par o direito de exigir o seu adimplemento. Por tudo isso, é possível afirmar que o Estado acaba na cama com o casal! Arvora-se o direito de ditar comportamentos, impondo aos cônjuges uma série de encargos e deveres. Parece que, com sua onipotência, olvida que são pactos íntimos que ligam duas pessoas: parte subjacente das relações, baseadas em um contrato ou “trato”.8 O fato é que ninguém consegue imiscuir-se nos espaços de convívio do par, e não são normas legais que irão mantê-los unidos. De nada adianta tentar impor condutas ou ditar o modo de viver a quem optou por oficializar o seu relacionamento afetivo. Dita ingerência, além de nitidamente descabida, é de todo desnecessária. Nas relações conjugais e parentais, há total interpenetração entre direitos e deveres. Os direitos subjetivos são exercidos e os deveres jurídicos são cumpridos através de uma mesma ação do titular do direito e do dever.9 Eventual ou reiterado, dissimulado ou público, o inadimplemento dos deveres conjugais, por um ou ambos os cônjuges, em nada afeta a existência, a validade ou a eficácia do casamento. O descumprimento de qualquer dos deveres matrimoniais não gera a possibilidade de o cônjuge credor buscar seu adimplemento em juízo. Com o fim do instituto da separação, não é mais permitido sequer imputar ao infrator a culpa pelo fim do amor. A partir da EC 66/10,10 a dissolução do casamento só pode decorrer do divórcio, que não admite questionamentos sobre causas e motivos (CC 1.580 § 1.º). A quebra dos deveres vem sendo considerada violação à boa-fé objetiva, lesando a legítima confiança que um deposita no outro. Este é o fundamento invocado nas ações de indenização por dano moral, que tem abarrotado os tribunais. De qualquer modo, as regras estabelecidas para vigorarem durante a vida em comum têm utilidade somente para fundamentar o pedido de indenização, ou seja, são invocáveis depois de findo o casamento. A identificação de culpas, se algum proveito traz, é auxiliar ao que se sentiu traído a elaborar o luto da separação. Não é a imposição de normas de conduta que consolida a estrutura conjugal. É a consciência dos papéis desempenhados que garante a sobrevivência do relacionamento como sede de realização pessoal. No atual estágio das relações afetivas, é a absoluta lealdade recíproca que deve pautar os vínculos amorosos, principalmente quando existe um projeto de comunhão de vidas com identidade de propósitos. A solidariedade é a razão mesma do surgimento do vínculo da conjugalidade e o motivo de sua permanência. Em lugar de direitos e deveres previstos inocuamente na lei, melhor se o casamento nada mais fosse do que um ninho, laços e nós de afeto, servindo de refúgio, proteção e abrigo. Como diz Michelle Perrot, o que se gostaria de conservar da família no terceiro milênio são seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e de amor. Belo sonho.11 11.3.1 Fidelidade O primeiro dos deveres de um cônjuge para com o outro é o de fidelidade recíproca (CC 1.566 I), que, nas palavras de Clóvis Bevilaqua, representa a natural expressão da monogamia, não constituindo tão somente um dever moral, sendo exigido pelo direito em nome dos superiores interesses da sociedade.12 A fidelidade com certeza só se tornou lei jurídica, isto é, um dos deveres do casamento, porque o “impulso” da infidelidade existe.13 Para o estabelecimento de relações familiares, é necessário impor limitações e interdições ao desejo. Daí a imposição de um interdito proibitório à infidelidade. Para Rodrigo da Cunha Pereira, o direito funciona como uma sofisticada técnica de controle das pulsões, e a imposição da fidelidade é uma renúncia pulsional.14 O interesse pela mantença da família como base da sociedade leva o Estado a arvorar-se no direito de impor regras a serem respeitadas pelos cônjuges, inclusive durante a vigência do casamento, na tentativa de amarrá-los dentro de uma estrutura pré- moldada. Ainda que imposto o dever de fidelidade a ambos os cônjuges, ele só é socialmente cobrado da mulher. A infidelidade masculina sempre foi enaltecida e até invejada pelos outros homens como demonstração de virilidade. Só a fidelidade feminina gera consequências, a presunção de paternidade. O filho nascido na constância do casamento presume-se filho do casal (CC 1.597). Para dar sustentação a essa verdade ficta, garantindo a legitimidade da prole, acaba por ser obrigatória a fidelidade da esposa, não do marido. A preocupação, nitidamente, é de ordem patrimonial: assegurar a transmissão dos bens aos seus legítimos sucessores. O dever de fidelidade é uma norma social, estrutural e moral, mas, apesar de constar entre os deveres do casamento, sua transgressão não mais admite punição, nem na esfera civil, nem na criminal. Com o fim do instituto da separação, perdeu completamente o sentido sua imposição como dever do casamento. Visando a desestimular a infidelidade, ainda é consagrada como crime a bigamia (CP 235), que torna imperativa a anulação do casamento (CC 1.548 II). Pessoas casadas são impedidas de casar (CC 1.521 VI). É anulável a doação feita pelo cônjuge adúlteroa seu cúmplice (CC 550 e 1.642 V). Ainda assim, na eventualidade de um ou ambos os cônjuges não cumprirem o dito “sagrado dever” de fidelidade, o casamento não se rompe. Mesmo sendo uma obrigação imposta por lei, para vigorar durante sua vigência, não há como exigir, em juízo, o cumprimento do dever de fidelidade. Ao menos não se tem notícia de algum cônjuge traído haver proposto ação pleiteando o cumprimento do dever de fidelidade. Tratar-se-ia de execução de obrigação de não fazer? E, em caso de procedência, de que forma poderia ser executada a sentença que impusesse a abstinência sexual extramatrimonial ao demandado? Seria o caso de imposição de astreinte, devendo o infiel pagar uma multa por cada traição? Esforça-se o legislador em não emprestar efeitos jurídicos às relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos de casar, insistindo em chamá-las de concubinato (CC 1.727). As famílias paralelas, por afrontarem o dever de fidelidade, não são reconhecidas como geradoras de efeitos jurídicos. Resiste a jurisprudência em reconhecer direitos em favor do parceiro do cônjuge infiel, ainda que isso leve ao enriquecimento ilícito de um em detrimento do outro. Esta postura dispõe de nítido caráter punitivo com relação à mulher e sempre acaba, é claro, privilegiando o homem. A infidelidade autorizava o cônjuge enganado a buscar a separação (CC 1.573 I). Com a EC 66/10, nem mais para isso serve. Aliás, de forma reiterada, a jurisprudência já desprezava a identificação do culpado para dar por findo o casamento. Como a fidelidade não é um direito exequível, e a infidelidade não mais serve como fundamento para a dissolução do casamento, inútil sua previsão legislativa. Ninguém é fiel porque assim determina a lei ou deixará de sê-lo por falta de determinação legal. 11.3.1.1 Infidelidade virtual O namoro à distância, por meio de bilhetes e cartas, embalou o imaginário de gerações, inspirando filmes e novelas. No entanto, a presença de um mensageiro, a visita do carteiro, a existência material da correspondência, sempre foram fatores limitantes para quem precisava manter tais romances no anonimato. O temor da descoberta desestimulava a mantença de vínculos amorosos pela via postal. A rede mundial de computadores fez surgir o espaço virtual que gerou a queda de todas as fronteiras e invadiu todos os lares, permitindo, com incrível agilidade, a comunicação em momento real. Assim, a internet, em pouco tempo, transformou-se no mais veloz, eficiente, prático e econômico meio para as pessoas se corresponderem. A comunicação virtual tornou-se um convite a uma nova forma de socialização.15 Por outro lado, a possibilidade de limitar o acesso às caixas de correspondência por meio de senhas, garante segurança e privacidade, tornando a troca de mensagens, músicas, fotos etc., um meio relativamente seguro para manter contatos reservados. Fora isso, há uma tendência de as pessoas permanecerem no interior de suas residências, até por motivo de segurança, transformando-se a tela do computador na companhia preferida de uma legião de pessoas que se sentem solitárias. A correspondência virtual se presta, como nenhum outro meio, à fuga da realidade frustrante. Abriram-se, assim, as portas para encontros, confidências e intimidades, tudo protegido pelo anonimato. No campo dos relacionamentos afetivos, o uso do computador possibilitou a utilização do véu virtual, rompendo com a necessidade antes inafastável do contato físico.16 Mas como não há “crime” perfeito, de modo bastante frequente acabam os parceiros descobrindo que seus cônjuges, companheiros ou namorados mantêm vínculos afetivos bastante intensos, íntimos e até tórridos no interior do próprio lar. Muitas vezes, na presença desatenta do par. O grande questionamento que passou a inquietar a todos é se o relacionamento virtual pode ser reconhecido como infração ao dever de fidelidade. A tendência é considerar a comunicação, mantida através da internet, como “infidelidade virtual”, reservando-se a expressão “adultério” ao relacionamento sexual real. Essa distinção, no entanto, não encontra respaldo na doutrina tradicional, que sempre distinguiu a fidelidade no sentido físico e moral. A fidelidade física corresponde à manutenção de relações sexuais exclusivamente com o outro cônjuge. Já a infidelidade moral afronta ao dever de lealdade de cada um dos membros do casal para com o outro, e não está munida de sanção eficiente.17 De qualquer modo, configuraria injúria grave, por caracterizar desrespeito ao outro cônjuge.18 Ao menos constitui afronta aos deveres de sinceridade, zelo pelo cônjuge e pela família.19 Ficam, então, algumas reflexões: é justo punir aquele que não ama mais? É possível, efetivamente, achar um culpado pelo fracasso do casamento ou da união estável? Quem é mais responsável pela ruína de uma união: o parceiro que, há tempos e continuadamente, vem praticando as mais diversas “faltas”, ou o outro, que cometeu o último deslize? Quem é o infrator? O que se relacionou amorosamente pela internet ou aquele que despreza o outro e mantém apenas uma aparência de casamento? Não cabe nominar de descumprimento do dever de fidelidade quando não existe afronta ao dever de respeito que deve reger as relações interpessoais. Ora, não há como falar em traição quando alguém se relaciona com outro exclusivamente por meio de trocas virtuais. Não se pode confundir o mero ciúme do cônjuge, que se considera preterido pelo momento prazeroso desfrutado pelo parceiro, com infidelidade ou adultério. Descabe considerar alguém culpado por fazer uso de um espaço imaginário e se relacionar com uma pessoa “invisível”. Postados diante do terminal de computador, ocorre um mergulho em uma realidade diversa, na qual não há mais separação entre o ator, a plateia e o palco: tudo se confunde, nada/tudo existe.20 De qualquer modo, ninguém está autorizado a invadir o correio eletrônico alheio, mesmo que não esteja bloqueado por meio de senha, e ainda que o computador seja de uso comum. O direito à inviolabilidade do sigilo da correspondência, assegurado constitucionalmente (CF 5.º XII), compreende a correspondência virtual. O acesso a e-mails alheios configura invasão de privacidade, que dispõe de resguardo como direito fundamental (CF 5.º X). Ao depois, são inadmissíveis, em juízo, provas obtidas por meios ilícitos (CF 5.º LVI). A comunicação via internet é um espaço de absoluta privacidade, fazendo parte da auréola da intimidade individual. Inadmissível a correspondência virtual ser trazida a juízo como prova de infidelidade, até porque se tornou irrelevante desvendar culpas e responsabilidades para solver o vínculo de casamento. Em face do conflito de interesses, há que se atentar sempre para o critério da proporcionalidade.21 O direito do “traído” esbarra num direito maior do seu consorte, que é tutelado em sede constitucional, de não ter sua intimidade e sua vida privada expostas e reveladas, de receber um tratamento digno e humano.22 Nada justifica sacrificar o direito à preservação da intimidade. Quando se está frente à auréola de absoluta privacidade de alguém, e seu agir em nada atinge a dignidade do outro, não se pode falar em adultério ou infidelidade virtual. Senão, em pouco tempo, se estará querendo reconhecer como infringência ao dever de fidelidade o mero devaneio, a simples fantasia que empresta tanto sentido à vida. Não há como nominar de infidelidade – e muito menos de adultério – encontros virtuais, sob pena de se ter como reprovável o simples desejo, ou a idealização de um contato com o protagonista de um filme que se esteja assistindo. A imposição do dever de fidelidade simplesmente visa a impedir a concepção de prole ilegítima. Assim, somente na hipótese de haver o risco de os relacionamentos gerarem contatos sexuais é que haveria a possibilidade de se cogitar de infidelidade ou adultério. Ainda que um dos 10 mandamentosseja não cobiçar a mulher do próximo, no mundo virtual o outro não está próximo. Não há como reconhecer na “cobiça”, ou seja, no mero desejo por outrem, adultério ou infidelidade. Afinal, ninguém pode ser impedido de sonhar! 11.3.2 Vida em comum no domicílio conjugal Os outros direitos e deveres reciprocamente impostos aos cônjuges também não resistem a uma análise acerca de sua efetividade. Na expressão “vida em comum, no domicílio conjugal” (CC 1.566 II), não se pode ver a imposição do debitum conjugale, infeliz locução que não pode significar dever de alguém de se sujeitar a contatos sexuais. A origem da expressão débito conjugal é de natureza religiosa, já que a finalidade do matrimônio é a procriação. Aliás, a falta de contato sexual é causa inclusive para a anulação do casamento religioso. Estes preceitos não cabem ser transportados para a regulamentação do casamento pelo Estado. Aliás, há a falsa crença de que o matrimônio “se consuma” na noite de núpcias. Ora, o casamento se constitui no ato de sua celebração, e, não, no leito nupcial. Somente pode ser desfeito se houver infringência aos impedimentos legais (CC 1.548 ou 1.550), e em nenhuma dessas hipóteses se encontra dever de ordem sexual. O fato de a fidelidade implicar renúncia à liberdade sexual não serve sequer de justificativa. Nem por isso nasce a obrigação de exercício da sexualidade. Essa suposta obrigação parece significar o dever de um cônjuge de ceder à vontade do par e atender ao desejo sexual do outro. Mas tal obrigação não está na lei. Basta a comunhão de vida no sentido espiritual e social; o casamento do impotente ou dos estéreis não é menos casamento que os outros.23 A previsão da vida em comum entre os deveres do casamento não significa imposição de vida sexual ativa nem a obrigação de manter relacionamento sexual. Essa interpretação infringe o princípio constitucional de respeito à dignidade da pessoa, o direito à liberdade e à privacidade, além de afrontar o direito à inviolabilidade do próprio corpo. Não existe sequer a obrigação de se submeter a um beijo, afago ou carícia, quanto mais de se sujeitar a práticas sexuais pelo simples fato de estar casado. Mas, talvez, o mais absurdo seja sustentar que o descumprimento de tal “dever” dá ensejo à pretensão indenizatória, como se respeitar a própria vontade afrontasse a imagem ou comprometesse postura ética do parceiro. A abstinência sexual não assegura direito indenizatório, e a não aceitação de contato corporal não gera dano moral. A eventual ou contumaz ausência da vida sexual não afeta a higidez do casamento. Não serve de motivo para sua anulação, apesar de a virgindade da mulher depois do casamento já ter servido de motivo para a sua desconstituição. O simples fato de haver arrefecido a paixão ou o desejo não produz qualquer efeito. Ninguém pode ser condenado pela falta do estímulo indispensável para que os contatos físicos sejam um verdadeiro coroamento das relações afetivas que enlaçam o par. Afinal, não é o exercício da sexualidade que mantém o casamento. São muito mais a afetividade e o amor. Desarrazoado e desmedido pretender que a ausência de contato físico de natureza sexual seja reconhecida como inadimplemento de dever conjugal. Tal postura pode, perigosamente, chancelar a violência doméstica, sob a justificativa de garantir o exercício do direito ao contato sexual. Não se pode olvidar a tendência, que prevaleceu por muito tempo, de desqualificar o estupro conjugal, que repousava na obrigação do coito para os parceiros e era cometido essencialmente por homens, em face do reconhecimento do direito ao exercício da sexualidade.24 A imposição legal de vida no domicílio conjugal não se justifica, pois compete a ambos os cônjuges determinar onde e como vão morar. Necessário respeitar a vontade dos dois, sendo de todo descabido impor um lar comum, até porque a família pode ter mais de um domicílio (CC 71). Cada vez com mais frequência, casais vêm optando por viverem em residências diversas, o que não significa infringência ao dever conjugal. Com o fim da separação e da identificação de culpados, os deveres conjugais perderam ainda mais o significado. As figuras de abandono do lar (CC 1.573 IV) e conduta desonrosa (CC 1.573 VI) não podem ser invocadas para a imposição legal do dever de coabitação. 11.3.3 Mútua assistência, consideração e respeito A promessa de amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença, feita na cerimônia religiosa do casamento, nada mais significa do que o compromisso, imposto a ambos os cônjuges, de atenderem ao dever de mútua assistência (CC 1.566 III) e de mútuo respeito e consideração (CC 1.566 V). O casamento não transige em matéria do pão do corpo e do pão da alma.25 O casamento estabelece comunhão plena de vida (CC 1.511), adquirindo os cônjuges a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família (CC 1.565). Nada mais do que sequelas do dever de mútua assistência. Entre os cônjuges se estabelece verdadeiro vínculo de solidariedade. Sempre que questões de ordem patrimonial tenham de ser solvidas, principalmente depois de rompido o elo de convivência, são invocáveis as normas das obrigações solidárias (CC 264). A família encontra fundamento no afeto, na ética e no respeito entre os seus membros, que não podem ser considerados apenas na constância do vínculo familiar. Pelo contrário, devem ser sublimados exatamente nos momentos mais difíceis da relação. A presença desses elementos é o ponto nodal da unidade familiar.26 O dever de assistência transborda os limites da vida em comum e se consolida na obrigação alimentar para além da dissolução do casamento. Aliás, outro não é o fundamento para os alimentos serem devidos depois do divórcio, que dissolve o vínculo matrimonial. Os alimentos são irrenunciáveis (CC 1.707) e, mesmo que tenham sido dispensados quando da separação, é possível buscá-los posteriormente (CC 1.704). Divergências existem sobre a possibilidade de serem reivindicados depois do divórcio. Não há vedação na lei. Assim, não há como fazer a obrigação desaparecer quando a necessidade de um é absoluta e tem o ex-cônjuge condições de prestar auxílio a quem um dia jurou auxiliar na miséria e na doença. 11.3.4 Sustento, guarda e educação dos filhos Não só o Código Civil (CC 1.566 IV), mas também a Constituição (CF 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA 4.º) impõem à família o dever de sustento, guarda e educação dos filhos. No entanto, essa obrigação é dos pais enquanto pais, não enquanto casados. Ainda que a direção da sociedade conjugal seja exercida por ambos os cônjuges (CC 1.567), e as eventuais divergências devam ser solvidas judicialmente, tal não gera responsabilidade solidária no sentido de que o adimplemento do dever por um dos pais libera o outro do encargo. Exercem ambos os genitores o poder familiar durante o casamento (CC 1.631). Depois do divórcio, não se modificam os deveres dos pais em relação aos filhos (CC 1.579). Assim, mesmo depois de dissolvido o casamento, persiste o dever de sustento e de educação da prole. O ônus é de ambos os pais. O genitor que não está com a guarda fática do filho necessita contribuir para a sua manutenção na proporção de seus recursos (CC 1.703). A responsabilidade é divisível, pois depende dos bens e rendimentos de cada um, tanto que estão sujeitos à prática do delito de abandono material (CP 244). Ou seja, os deveres dos pais para com os filhos são individuais. Cada um deve contribuir, na proporção de sua condição econômica, para a manutenção dos filhos. Porém, a impossibilidade de um de honrar o compromisso de sustento não transfere ao outro a obrigação de pagar sozinho o sustento da prole. A transmissão do encargo não é ao outro genitor, mas aos parentes do credor (CC 1.696 e 1.698). Deixando um dos genitores de cumprir como encargo alimentar com relação ao filho, este pode invocar a obrigação alimentar dos avós. Não ocorre a transmissão da obrigação de um dos genitores ao outro, subsidiariedade que não está na lei. Essa orientação, no entanto, não é acolhida pela jurisprudência, o que acaba por sobrecarregar, exacerbada e injustificadamente, o genitor que tem o filho sob sua guarda. Leitura complementar FREITAS, Douglas Phillips. A função sócio-jurídica do(a) amante. Florianópolis: Conceito, 2008. LÔBO, Paulo. As vicissitudes da igualdade e dos deveres conjugais no direito brasileiro. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, IBDFAM/Síntese, n. 26, p. 5-17, out.-nov. 2004. MADALENO, Rolf. O débito e o crédito conjugal. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA. Rodrigo da Cunha (coords.). Direito de família e psicanálise. São Paulo: Imago, 2003. p. 195-204. 1. Rolf Madaleno, O débito e o crédito conjugal, 197. 2. Silvio Rodrigues, Direito civil: direito de família, 121. 3. Sílvio Venosa, Direito civil: direito de família, 151. 4. Silvio Rodrigues, Direito civil: direito de família, 123. 5. Paulo Lins e Silva, O casamento como contrato de adesão…, 358. 6. Rolf Madaleno, O débito e o crédito conjugal, 196. 7. Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, 112. 8. Melanie Falkas, O luto de uma separação, 366. 9. José Lamartine C. de Oliveira e Francisco José F. Muniz, Curso de direito de família, 33. 10. EC 66/10 – deu nova redação ao § 6.º do art. 226 da CF: O casamento pode ser dissolvido pelo divórcio. 11. Michelle Perrot, O nó e o ninho, 81. 12. Clóvis Bevilaqua, Código Civil comentado, 110. 13. Rodrigo da Cunha Pereira, Princípios fundamentais…, 80. 14. Idem, 79. 15. Marilene Silveira Guimarães, Adultério virtual, infidelidade virtual, 442. 16. Alexandre Rosa, Amante virtual:…, 20. 17. Arnoldo Wald, Direito de família, 73. 18. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 175. 19. Adriana Caldas do Rego Maluf, Direito das famílias, 430. 20. Alexandre Rosa, Amante virtual:…, 22. 21. José Carlos Teixeira Giorgis, O direito de família e as provas ilícitas, 163. 22. Marta Vinagre Bembom, Infidelidade virtual e culpa, 32. 23. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t. VII, 210. 24. Elisabeth Roudinesco, A família em desordem, 125. 25. Sílvio Venosa, Direito civil: direito de família, 163. 26. Fabíola Santos Albuquerque, Poder familiar nas famílias recompostas…, 171.
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