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1 INTÉRPRETES DO BRASIL Silviano Santiago “Sob os nossos olhos, uma parte do Terceiro Mundo industrializa-se, mas com uma dificuldade inaudita, com inúmeros fracassos e uma morosidade que parece a priori anormal. Uma vez, é o setor agrícola que não acompanhou a modernização; ou há escassez de mão-de- obra qualificada; ou a demanda do mercado interno revelou- se insuficiente; outra vez, os capitalistas locais preferiram aos investimentos no país colocar o dinheiro no exterior, em negócios mais seguros e mais lucrativos; ou o Estado revelou ser esbanjador ou prevaricador; ou a técnica importada é inadaptada, ou custa muito caro e pesa sobre o preço de custo; ou as importações necessárias não são compensadas pelas exportações: o mercado internacional, por este ou aquele motivo, revelou-se hostil, e sua hostilidade teve a última palavra. Ora, todas essas transformações produzem-se quando a Revolução [industrial] já não tem de ser inventada, quando os modelos estão à disposição de todo o mundo. Portanto, a priori, tudo deveria ser fácil. E nada funciona facilmente.” Fernand Braudel, A dinâmica do capitalismo (1977) 2 Os muitos livros que temos e que envolvem, de maneira descritiva, ensaística ou ficcional, o território chamado Brasil e o povo chamado brasileiro, sempre serviram a nós de farol (e não de espelho, como quer uma teoria mimética apegada à relação estreita entre realidade e discurso). Com a sua ajuda e facho de luz é que temos caminhado, pois eles iluminam não só a vasta e multifacetada região em que vivemos, como também a nós, habitantes que dela somos, alertando-nos tanto para os acertos quanto os desacertos administrativos, tanto para o sentido do progresso moral quanto para o precipício dos atrasos irremediáveis. São eles que nos instruem no tocante às categorias de análise e interpretação dos valores sociais, políticos, econômicos e estéticos que -- conservadores, liberais ou revolucionários; pessimistas, entreguistas ou ufanistas – foram, são e serão determinantes da nossa condição no concerto das nações do Ocidente e, mais recentemente, das nações do planeta em vias de globalização. O interesse mais profundo e direto que esses livros manifestam não é pelo habitante privilegiado desde a primeira hora. Aquele que, ao se transplantar de lá para cá, recebeu benesses, ou aquele outro que foi alvo de ato de nomeação para ocupar cargo oficial, auferindo altos proventos e jurando obediência irrestrita à Coroa portuguesa. Interessam-se, antes e quase que exclusivamente, pelo habitante que, já nascido nestas terras, buscava construir (ou inventar) um pequeno domínio de que seria proprietário exclusivo, sem reconhecer os limites das amarras políticas e fiscais metropolitanas, ou ainda pelo estrangeiro que, ao adotar a nova pátria, queria colonizá- la à sua própria maneira, dela extraindo o que havia de mais rentável para si próprio e para os seus descendentes. Todos eles procuravam se autodefinirem e definir as várias regiões do país em palavras, gestos e ordens de independência (sempre relativa, é 3 claro) com relação aos países europeus e, a partir do século XIX, com relação a todo e qualquer país que questionasse a soberania nacional. Os que queriam se autodenominar brasileiros -- ou por serem autóctones, ou por serem filhos brancos ou mestiços da terra colonial, ou por viverem em “terra desconhecida”, modo como ela devia se apresentar para muitos imigrantes europeus, ou por serem filhos negros, transplantados contra a própria vontade pela violência dos grilhões do trabalho servil -- se sentiam desprovidos de um estatuto sócio-econômico próprio. Este, quando definido pela metrópole apresentava-se precário e recente, passível de constantes revisões críticas pelos donos do poder, como é o caso da situação entre nós do escravo ou até mesmo do índio, para não mencionar o imperativo legal de dar sentido às várias levas de imigrantes brancos que povoaram estas terras do Novo Mundo, em particular a partir da débâcle do sistema escravocrata. De modo geral, viviam todos os “brasileiros” em pequenas comunidades, rurais na maioria dos casos, não de maneira completamente indiferenciada à semelhança de animais num conglomerado, mas em situação social amorfa, que beirava muitas vezes o caos. Essa situação não deixava de ser preocupantemente negativa para os que tinham o ideal de nação. A situação confusa e complexa dos habitantes durante os dois primeiros séculos do período colonial propiciava aos que empunhavam a pena abordar, com firmeza e presunção, as questões relativas à identidade colonial da região, à hierarquia fidalga dos poderosos e à liderança político-econômica subalterna à metrópole. Identidade nacional, hierarquia social e liderança político-econômica iam sendo reconfiguradas e impostas pelos portugueses-abrasileirados à medida que um projeto de nação, já no terceiro século colonial, começava a iluminar as cabeças mais revolucionárias, convencendo as elites (não tenhamos ilusões) e, indiretamente, a população das 4 cidades de maior projeção econômica a dar o chute inicial no processo de expulsão do colonizador metropolitano, o português, ou de qualquer outro povo invasor. Nos três casos levantados (identidade, hierarquia e liderança), a palavra escrita, os livros (tanto o descritivo, quanto o ensaístico e o ficcional) servirão como mecanismo de abordagem dos problemas, definição de categorias de análise e estabelecimento dos valores sociais, políticos, econômicos e estéticos da nova terra e da sua gente. Valores estes que, mal lançados no minguado mercado de leitores exigentes, rapidamente serviriam para entronizar a elite nativa como legítima, numa cópia flagrante do modelo metropolitano, vigente nos países europeus, em particular em Portugal ou na Espanha. O fim óbvio dos panfletos mais rebeldes à colonização lusa (e, nas entrelinhas, dos menos rebeldes) era o de apresentar o país colonial como independente e o país independente como nação. Era o de apresentar o colono (branco ou mestiço e, bem mais tarde, o africano) como homem livre e o homem livre como cidadão. Como documentos públicos, esses textos representavam e representam o que se denomina uma força nacionalista, ainda que toda a variada e multifacetada bibliografia sobre o assunto ainda tenha dificuldade em definir com clareza o que seja essa força. Apesar da falta de definições convincentes e definitivas, apesar das críticas feitas pelos pensadores marxistas, grandes especialistas da questão, como Benedict Anderson, não sabem por que, até os nossos dias, movimentos nacionalistas “inspiram uma legitimidade emocional tão profunda” 1. [espaço] 1 Nação e consciência nacional [Imagined comunities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism]. São Paulo, Ática, 1989, p. 12. 5 A maioria dos primeiros textos que foram escritos para descrever terra e homem da nova região levam a assinatura de portugueses. Respondem às próprias perguntas que colocam, umas atrás das outras, em termos de violentas afirmações europeocêntricas. A curiosidade dos primeiros colonizadores é menos uma instigação ao saber do que a repetição das regras de um jogo cujo resultado é previsível. Os nativos eram de carne-e-osso, mas não existiam como seres civilizados, assemelhavam-se a animais. Na Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita a El-Rei D. Manuel, observam-se melhor as obsessões dos portugueses, intrusos assustados evisitantes temerosos, que desembarcam de inusitadas casas flutuantes, do que as preocupações dos indígenas, descritos como meros espectadores passivos do grande feito e do grande evento que é cerimônia religiosa da missa, realizada em terra. Não é, pois, por casualidade que a primeira metáfora para descrever a condição do indígena recém-visto é a “tabula rasa”, ou o “papel branco” 2. Eis uma boa descodificação das metáforas: eles não possuem valores culturais ou religiosos próprios e nós, europeus civilizados, os possuímos; não possuem escrita e eu, português que escrevo, possuo. Mas da tabula rasa e do papel branco trazia o selvagem, ainda dentro do raciocínio etnocêntrico, a inocência e a virtude paradisíacas 3, indicando que, no futuro, aceitariam de bom grado a voz catequética do missionário jesuíta que, ao impô-los em língua portuguesa, estaria ao mesmo tempo impondo os muitos valores que nela 2 “[…] os índios são tanquam tabula rasa para imprimir-lhes todo o bem; […] poucas letras bastariam aqui, porque tudo é papel branco e não há que fazer outra coisa, senão escrever à vontade as virtudes mais necessárias […]”. Apud Mecenas Dourado, A conversão do gentio. Rio de Janeiro, São José, 1958, pp. 62-63. 3 Consultar o clássico de Sérgio Buarque de Hollanda, Visão do Paraíso. Para maiores detalhes consultar a introdução a Raízes do Brasil. 6 circulam 4 em transparência. Ao fazer extenso levantamento, nas gramáticas renascentistas, do topos da “língua companheira do Império”, o filólogo e crítico espanhol Eugenio Asensio observou agudamente que os gramáticos portugueses Fernão de Oliveira e João de Barros -- quando tomaram de empréstimo aquela idéia do colega espanhol, Elio Antonio de Nebrija -- acrescentaram ao significado original do conceito, que era político e nacionalista, matizes afins de assimilação colonial e de missão cristã. Escreve Eugenio Asensio: “Lecturas posteriores me fueron revelando que el concepto [la lengua compañera del Imperio] derivaba de las Elegantiae, del humanista italiano Lorenzo Valla; había sido resumido en frase muy parecida por el jurista aragonés Geraldo García de Santa María antes de hallar hospedaje en las páginas de Nebrija para definir las ambiciones culturales de la expansión española; y que, cargado ya con el nuevo sentido que le daban los descubrimientos y conquistas, había sido acogido por los gramáticos portugueses [Fernão de] Oliveira y [João de] Barros, que, a su significado político y nacional, habían ido añadiendo los matices afines de asimilación colonial y de misión cristiana” 5. Somente uma leitura “sintomal” da Carta, para usar o termo e o método de Louis Althusser 6, devidamente alicerçada em um instrumental teórico tomado de empréstimo à Antropologia, é que poderá ir revelando ao leitor contemporâneo nosso todos os valores indígenas que se encontram recalcados no texto do escrivão português, tendo sido recalcados para todo o sempre no processo de construção da nacionalidade. Talvez o aspecto mais instrutivo para o nosso propósito atual seja o de rastrear no texto de Caminha o problema da (ausência de) chefia indígena. 4 Cf.: “[…] por certo esta jente he boa e de boa sijnprezidade e enpremarsea ligeiramete neeles qualquer crunho que lhes quiserem dar […]”. A Carta de Pero Vaz Caminha. Rio de Janeiro, Agir, 1965, p. 105 [grifo nosso]. 5 Revista de Filología Española, XLIII, 1960, p. 399. 6 Lire le Capital. Paris, Maspero, 1969, v. I, p. 16. 7 As várias e ricas interpretações do texto português salientam a encenação que Cabral faz em seu camarote para passar aos indígenas que o visitam uma imagem concreta da sua superioridade: “Ocapitam quando eles [indígenas] vieram estaua asentado em huua cadeira e huua alcatifa aos pees por estrado e bem vestido cõ huu colar douro muy grande ao pescoço, e sancho de toar e simam de miranda enycolaao coelho e aires corea e nos outros que aqui na naao cõ ele himos asentados no chaão por esa alcatifa” (p. 89). As interpretações menos comprometidas com o europeocentrismo acentuam também o propósito econômico do encontro. Através de linguagem gestual (não havia língua humana comum entre eles, por isso o código gestual é constantemente verificado e aprimorado pelos dois grupos antagônicos), os marinheiros desejam obter dos indígenas informações sobre as possíveis riquezas da terra a que chegam. As interpretações esquecem, no entanto, de assinalar que, um pouco mais tarde, o escrevente Caminha anota – ao perceber que se os selvagens preferem permanecer ao lado do capitão e não em companhia dos marinheiros – que a preferência é fruto único e exclusivo do acaso. Reconhece, sem meias palavras, que os indígenas se aproximam do capitão “nõ polo conhecere por Senhor ca me parece que nõ entendem ne tomauã dysso conto” (p.97), mas simplesmente porque os muitos marinheiros que estavam no camarote tinham se distanciado dos selvagens, tinham já atravessado o rio que, agora, os separava. Nesse sentido, aquelas interpretações deixam de lado a preocupação que tem o grupo de marinheiros portugueses em encontrar um chefe entre os indígenas (ou seja, um correspondente simétrico ao capitão da esquadra, ou melhor, para se valer do exemplo azteca, um Moctezuma ou um Cuauhtémoc). Diversas vezes os marinheiros portugueses parecem distinguir um líder indígena na multidão dos seres inominados que os cercam ou os acompanham, mas todas as vezes o indivíduo sobre quem recai o olhar classificador frustra o intento português. Um 8 rebate falso a mais. Logo depois da missa de domingo, um dos selvagens, com seus 50 ou 55 anos, apontava para o altar e depois para o céu, conseguindo atrair em torno de si, com sua gesticulação, um bom número de companheiros. Caminha não é o único que acredita ser ele um “organizador”, para empregar o jargão político moderno; também o capitão da esquadra assim pensa. Este imediatamente faz trazer à sua presença o velho indígena, juntamente com o irmão [sic], e lhe dispensa muita honra, conforme se lê. Cabral chega até a presenteá-lo com uma “camisa mourisca” e ao irmão, com uma comum, ou seja, “destoutras”, como diz o texto (pp. 107-108). Na qualidade intrínseca aos presentes oferecidos, estabelece-se uma hierarquia entre os dois “irmãos”, possíveis chefes. Eis o primeiro germe de uma estratificação política entre os indígenas, que se dá pela diferença entre os favores feitos pelo capitão português. Nem sempre a aparência foi boa conselheira para os olhos lusos. Tomada, no entanto, ao pé da letra pelo colonizador, acaba por suscitar o exercício do poder indiscriminado e eficaz. Em um dos mais polêmicos livros sobre o primeiro século brasileiro, La société contre l’état, Pierre Clastres reabre a possibilidade de uma Antropologia política, aventando a hipótese de haver existido organizações sociais que se estruturaram sem a violência inerente ao “poder coercitivo”, isto é, sociedades humanas que não conheceram processos de hierarquização impostos pelo alto. Segundo ele, as organizações sociais em que o poder é obtido pelo mecanismo e exercício de coerção por parte de poucos e obediência por parte de muitos são apenas um caso particular na história das sociedades, e não o geral. Na Antropologia tradicional, em virtude da cegueira etnocêntrica, era impossível vislumbrar uma sociedade onde a organização social não dependia do uso da força e da violência como causa da aglutinação. Torna- se importante constatar que Pierre Clastres vai encontrar, nos primeiros documentos descritivos da região recém-descobertapelos portugueses, os indícios certos de que o 9 modelo político não-coercitivo existe nas tribos da América do Sul, sendo possível para ele comprovar a tese de que “il nous est pas évident que coercition et subordinnation constituent l’essence du pouvoir politique partout et toujours” 7. Tal preocupação do colonizador português em detectar o chefe indígena em meio à multidão inominada pode ser perseguida em outros textos do período colonial. Ainda a favor da tese de Clastres, cite-se esta passagem de Gabriel Soares de Sousa, no Tratado descritivo do Brasil em 1587: “Em cada aldeia dos tupinambás há um principal, a que seguem somente na guerra onde lhe dão alguma obediência, pela confiança que têm em seu esforço e experiência, que nos tempos de paz cada um faz o a que o obriga o seu apetite" 8. A obediência ao “principal” (curiosa a ausência da palavra “chefe”) só se evidencia em tempo de guerra; cada indígena segue sua própria vontade em tempo de paz. Pode-se então levantar a hipótese (só hipótese, pois os textos dos indígenas que a comprovariam nos faltam por razões óbvias) de que a liderança coercitiva só surge entre os selvagens no momento em que os portugueses (ou outros grupos europeus invasores) já não se dão como meros visitantes desconhecidos, assustados e temerosos, mas como verdadeiros inimigos, pois passam a querer transformar o índio em escravo. A violência entra com o propósito da dominação e da exploração, vale dizer, com os ideais da colonização renascentista. Como comprovação dessa hipótese basta perseguir o significante “arcos” no texto da Carta de Caminha. Desde o primeiro encontro entre portugueses e índios, os olhos europeus percebem que os nativos estão “armados”, mas arcos e flechas são imediatamente neutralizados pela esperteza lusa. Acompanhemos o movimento interno ao texto. Tão 7 La société contre l’état. Paris, Minuit, 1974, p. 12. Ler, em particular, o capítulo intitulado “Copernic et les sauvages”. 8 Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo. Editora Nacional/USP, 1971, p. 303. 10 logo os marinheiros lhes acenam para que depositem os arcos no chão, obedecem (p. 87). Não existe por parte dos indígenas o menor sinal de possível revide armado. Tanto é que, em página posterior, constata Caminha que o depor armas é já algo ensinado pelos marinheiros: “do emsino que dantes tijnham poseram todos os arcos e acenauam que saisemos” (p. 97) E na terça-feira, dia 28, quando os navegadores pisam de novo a terra, descobrem que os sessenta ou setenta selvagens já estavam “sem arcos e sem nada” (p. 102). Os conquistadores já se sentem completamente à vontade, isto é, sem medo, para andarem “mesturados” a eles. Duas vezes anota Caminha frases praticamente idênticas. Eis uma delas como exemplo: “e [os indígenas] amdauam ja mais mansos e seguros antre nosdo que nos amdauamos antreles” (p. 105). À medida que recebem dos conquistadores uma imagem cordial e (aparentemente) pacífica e desinteressada, os indígenas vão também, sintomaticamente, se desarmando. São mansos -- eis a conclusão a que chega o texto. Quanto mais os portugueses procuram detectar um líder no bando, tanto menos necessária é a sua necessidade e premência, tanto mais melíflua teria sido a presença de um chefe a demarcar o território dos seus comandados contra os invasores. Não é nosso interesse exclusivo -- nesta introdução geral às interpretações do Brasil, posteriores à data da Independência, que estão coligidas nestes três volumes -- salientar as conseqüências desastrosas da nossa leitura dos textos escritos pelos portugueses para o melhor conhecimento futuro do problema da cordialidade como mediadora, na história do Brasil, entre dois grupos antagônicos (metropolitanos x nativos, fazendeiros x escravos, colonos x independentistas, brancos x negros, patrões x operários, etc. etc.), neutralizando tanto manifestações abertas de solidariedade comunitária que extravasassem os limites e as regras impostos pelo poderoso clã fazendeiro, quanto o estouro de conflitos citadinos, propriamente ideológicos, marcados 11 seja pelo clamor contra as injustiças étnicas 9 ou as de classe social. Não é nosso interesse exclusivo centrar o raciocínio na questão da conquista sem violência, nos primeiros momentos dessa pseudo-história “incruenta”, para retomar a palavra do historiador José Honório Rodrigues 10, forma que foi se disseminando pelos manuais escolares de história do Brasil, para se tornar dominante ideológica na análise, pelos donos do poder e intelectuais conservadores, de todo e qualquer conflito dentro do devir histórico brasileiro 11. Nosso interesse maior é o de não desprezar, a partir do aprendizado que foi adquirido nos últimos anos pelas metodologias de leitura, os textos que traduzem, como alerta sibilinamente Raymundo Faoro, “o capítulo original da história brasileira, o cenário 9 Há exemplos de contradição que são sempre interessantes de serem analisados. O fazendeiro brasileiro não adotou, no trabalho escravo, o sistema norte-americano de “task force”, que permitia, como permitiu, que surgissem respostas individualistas à opressão. Aqui foi adotado um regime de trabalho mais severo e mais policiado, também coletivo, mas mesmo assim “a defesa da autonomia escrava podia manifestar-se tanto por meios acomodativos -- fugas, sabotagem de trabalho, ‘preguiça’, etc. -- como expressar-se numa criminalidade violenta que atingia, preferencialmente, os senhores e seus prepostos”. Maria Helena Machado, O plano e o pânico. São Paulo/Rio de Janeiro, Editora UFRJ/EDUSP, 1994, v. Introdução. 10 Nesse sentido é indispensável consultar a análise histórica que José Honório Rodrigues fez do problema: “A Política de conciliação: História cruenta e incruenta”, seção do livro Conciliação e Reforma no Brasil. Rio, Civilização Brasileira, 1975. 11 Em estudo sobre Iracema, a lenda de José de Alencar, salientamos o fato de que, literariamente, o conflito racial é sempre tematizado pelo discurso amoroso. Essa tematização do possível conflito entre as duas etnias, através do erotismo dos personagens, visa a explicitar a união cordial dos antagonismos pela cópula. Veja-se ainda o poema “A Ilha de Maré”, de Manuel Botelho de Oliveira, ou o oitocentista O Cortiço, de Aluísio Azevedo, ou finalmente o contemporâneo Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. Perceber-se-á sempre que o elemento estrangeiro é do gênero masculino, enquanto o elemento nativo é do feminino. Cf. Nossa edição comentada de Iracema. Rio, Francisco Alves, 1975. 12 de outra epopéia [grifo nosso], sem a projeção da outra [a européia], ornamentada pelos deuses latinos e pelas letras da Renascença” 12. Por enquanto, também passaremos por cima do fato de que, oficialmente, toda e qualquer possível liderança indígena foi sendo anulada para todo o sempre, sendo substituída pelo que poderíamos chamar, com a ajuda de historiadores coniventes com a versão portuguesa dos fatos, de liderança da aristocracia rural, ou seja, dos “chefes de clã”, para retomar a expressão de Oliveira Vianna 13. E aqui voltamos ao nosso primeiro parágrafo, não sem antes acrescentar que a liderança (política, social, econômica, estética, etc.) da região estava para sempre em mãos brancas (ou mestiças) e que se expressava, como previam os gramáticos renascentistas Fernão de Oliveira e João de Barros, em língua portuguesa, a companheira do Império. A não ser que fosse importante lembrar, galhofeiramente, o projeto de lei, utópico e intempestivo, do funcionário público Policarpo Quaresma,criação magistral do romancista Lima Barreto. Por desejo e crença dele, o presidente da República decretaria o tupi-guarani como a língua oficial destas terras 14. Nao é à toa que, na repartição pública em que estava lotado, o apelido do personagem romanesco era o nome do pré-cabralino 12 Os Donos do Poder. Porto Alegre/São Paulo, Globo/USP, 1975, v. I, p. 154. 13 Esclarece Oliveira Vianna: “O seu caráter [do clã fazendeiro brasileiro] é mais patriarcal do que guerreiro, mais defensivo do que agressivo, e a sua estrutura menos estável, menos coesa, menos definida e perfeita, e mais flúida; mas, pela sua origem, pela sua composição, pelo seu espírito, ele está dentro das leis constitucionais desse tipo de organização social...” V. Populações meridionais do Brasil, cap. VIII, “Gênese dos clãs e do espírito de clã”. 14 Vale a pena lembrar um trecho da petição: “Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua [...], usando do direito que lhe confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani, como língua oficial e nacional do povo brasileiro”. Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo, Brasiliense, 1970, p. 61. 13 Ubirajara. Já Lima Barreto não lhe economiza elogios: “É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça” (p. 63). Esquecendo galhofa e elogio, vale a pena lembrar que, até mesmo entre os letrados, é a língua oral portuguesa que domina entre nós até inícios do século XIX, em virtude de vício básico na Ratio Studiorum dos jesuítas. Leiamos a lição de Celso Cunha: Sem núcleos culturais capazes de irradiar um padrão idiomático, sem Universidades, com um número insignificante de escolas de primeiras letras -- as únicas que ensinavam o idioma [português] --, sem imprensa (lembre-se que o primeiro texto impresso no Brasil data de 1808, quando da transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro), com a população realmente produtiva espalhada pelas fazendas e engenhos, a língua oral passou a seguir os seus caminhos sem nenhum controle normativo. Lembra ainda o citado mestre que, até 1759, o sistema pedagógico adotado tanto em Portugal como em suas colônias, nos níveis que hoje chamaríamos de secundário e superior, “não incluía o ensino de português, ensino que se restringia à alfabetização nas escolas menores”. De acordo com as regras de ensino praticadas pelos jesuítas, os alunos “passavam da alfabetização diretamente para o latim da Gramática do Padre Manuel Álvares, inteiramente escrita nessa língua”. Como se sabe o modelo jesuítico de ensino vai receber condenação na Reforma Pombalina, em consonância com os ensinamentos de Luís Antônio Verney, autor do Verdadeiro método de estudar 15, para 15 “Este livro, que deu lugar a uma violenta e demorada polêmica, marca o fim do reinado da escolástica em Portugal. Verney escreveu-o para atacar as instituições pedagógicas, jesuíticas e medievais, que subsistiam em Portugal, e para propor a sua substituição”. Antônio José Saraiva, História da Literatura Portuguesa. Lisboa, Europa-América, 1963, p. 92. 14 quem ”o primeiro princípio de todos os estudos deve ser a gramática da própria língua” 16. Se a Reforma pombalina, ao tornar obrigatório o uso oficial da língua portuguesa em todo o território colonial e por todos os brasileiros, por um lado acaba de vez com a possibilidade do ressurgimento das línguas indígenas entre nós como força viva de comunicação entre povos não-europeus (como se pode ler nas “coercitivas medidas tomadas pelo Diretório de 3 de maio de 1757, aplicadas primeiro ao Pará e Maranhão, estendidas em 17 de agosto de 1758 a todo o Brasil” 17), por outro lado, é ela que, ainda na colônia, faculta a um pequeno público alfabetizado, a leitura das traduções dos filósofos enciclopedistas, que estão na base dos primeiros e dos vários movimentos de Independência. Lembra Paulo Prado no Retrato do Brasil: “No Brasil, as primeira tentativas nacionalistas ligaram-se à declaração da Independência dos Estados Unidos, onde frutificava no campo prático a propaganda iniciada pela Enciclopédia e pelos livros incendiários de Voltaire, de Brissot e de Raynal. precursores da própria Revolução Francesa” 18 [espaço] Detenhamo-nos no cenário dessa outra epopéia, sem deuses latinos e sem sapiência renascentista, de que fala Raymundo Faoro. A definição político-social da 16 Cf. Celso Cunha. “Um pouco de História”, A questão da norma culta brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985, pp. 71-76.. 17 Cf.: “[...] será um dos principais cuidados dos Diretores estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum que os Meninos e Meninas, que pertencerem às escolas, e todos aqueles índios, que forem capaz de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas nações ou da chamada geral {...]”. Apud Celso Cunha, idem, p. 80. 18 Retrato do Brasil. cap. 4, “O romantimo”. 15 liderança econômica nativa é dada, de maneira estruturada e hegemônica, desde o primeiro parágrafo de Cultura e opulência do Brasil, de André João Antonil (1711). O recurso estilístico usado pelo autor será, desde então, o que tem determinado o padrão lingüístico no processo de configuração da arquitetura do poder brasileiro. Define-se o ser político-social brasileiro (por exemplo: o que é o senhor de engenho?) pela comparação 19 da figura dele com a figura correspondente na organização social européia, gerando como conseqüência um deslocamento semântico, geográfico e temporal bastante significativos. Seria oportuno abrir antes um parêntese, para lembrar um dos magistrais ensinamentos de Roland Barthes. Lembra-nos ele que toda frase é hierárquica, e continua: “elle implique des sujétions, des subordinnations, des rections internes. De là son achèvement: comment une hiérarchie pourrait-elle rester ouverte?” 20 Voltando ao texto de Antonil, observamos que as duas forças econômicas mais fortes no Brasil -- o senhor de engenho e o colono -- são dadas como semelhantes, respectivamente, à do fidalgo e à do cidadão europeus. E, ao mesmo tempo em que 19 O padrão lingüístico estabelecido pela comparação entre duas regiões com posições assimétricas no tempo histórico já está na Carta de Caminha. Por não terem vergonha de suas vergonhas, os selvagens não conheciam nem o pecado nem o trabalho, e viviam numa época pré-adâmica. Do ponto de vista da história da humanidade, a comparação assinala o compromisso dos colonizadores com o monogenismo. Explica Ricaro Benzaquen de Araújo: “Assim, o monogenismo termina por converter a história da Europa numa espécie de prefiguração da marcha da humanidade, em um processo que tomaria essa história como um modelo cujos diversos estágios forneceriam a chave para a compreensão dos momentos específicos -- mas de forma alguma singulares -- enfrentados por cada uma das várias sociedades na realização do seu destino comum. As diferenças geográficas seriam assim drasticamente reduzidas pela sua inclusãonum mesmo eixo de tempo, o qual, transformado em uma linha que se movimenta sempre para a frente, confundindo-se com o progresso, parecia garantir que todas as raças teriam finalmente a mesma rota e a mesma sorte, só que ambas regidas por valores eminentemente ocidentais”. Guerra e Paz. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994, pp. 36-37. 20 Le plaisir du texte. Paris, Seuil, 1973, p. 80. 16 compara uma a uma as quatro figuras no tabuleiro da colonização, estabelecem-se dois padrões de hierarquia. Um que é ditado pelo original e pela cópia, cópia esta que cópia sempre será e que nunca almeje a ser original. E um segundo padrão, que agora nos interessa mais de perto, que é o que define a hierarquia na sociedade brasileira colonial. Assim como os cidadãos dependem dos fidalgos na Europa, assim também os lavradores, ou homens livres na ordem escravocrata, para retomar a expressão de Maria Sylvia de Carvalho Franco, dependem dos senhores de engenho no Brasil. Na medida em que a pirâmide do poder é estabelecida na colônia, fácil é compreender a primeira frase de Cultura e opulência do Brasil: “O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram [...]”. 21 No entanto, se na Europa, o título nobiliárquico é concedido pelo Rei, ou pelo próprio status familiar do indivíduo, aqui o título [de nobreza nativa?] é conferido pelo texto (ainda que ele não o delegue claramente a fulano e a sicrano mas a um determinado e minguado número de colonos). Ele é conferido a um colono que se afirmou no governo dos homens e no trabalho da terra de que é proprietário, graças à capacidade de explorar o trabalho servil, de modo semelhante ao que acontecia no regime feudal europeu. É significativo que o terceiro e o quarto segmentos sociais encontrados na colônia (o senhor e o homem livre seriam os dois primeiros, pois estamos excluindo da nossa discussão o “clero”) se ligam, direta e respectivamente, uns pelas mãos e os outros pelos pés, ao senhor de engenho. Surge uma outra série de comparações no tratado de Antonil. Só que, neste caso, como é total a dependência do terceiro e quarto segmentos humanos ao senhor de engenho, o campo semântico das definições ficará restrito ao vocábulo corpo -- o corpo do senhor de engenho. De resto, desde que estabelecido o vértice superior da pirâmide -- o senhor e, abaixo, o homem livre -- as 21 São Paulo, Editora Nacional, s/d. Introdução e vocabulário por A. P. Canabrava. P. 139. 17 comparações com a sociedade européia moderna teriam de desaparecer do texto de Antonil, pois lá na metrópole não existe mais a escravidão negra. Trata-se de questão restrita à colônia, ou seja: uma colônia dentro de uma colônia. Retome-se o ponto de partida. Daí o senhor de engenho ser semelhante a um fidalgo, subalterno, mas ainda fidalgo. O terceiro e o quarto segmentos sociais são os feitores (governo da fazenda) e os escravos (trabalho servil). Vejamos como os feitores são descritos por Antonil: “Os braços de que se vale o senhor de engenho para o bom governo da gente e da fazenda, são os feitores” (p. 151). Repare-se, no entanto, que são “braços” que não podem aspirar à condição de “cabeças”. O texto não deixa dúvidas: “se cada um deles [feitores] quiser ser cabeça [senhor], será o governo monstruoso e um verdadeiro retrato do cão Cérbero, a quem os poetas fabulosamente dão três cabeças”. E continua: “Eu não digo que se não dê autoridade aos feitores; digo que esta autoridade há de ser bem ordenada e dependente, não absoluta, de sorte que os menores se hajam com subordinação ao maior, e todos ao senhor a quem servem” (p. 151). Mais claro, impossível. Se entre o primeiro segmento social e o terceiro há dependência e subordinação à cabeça do senhor de engenho e a diferença reside no uso que um e o outro fazem com o braço, entre o terceiro e o quarto segmentos sociais são os pés que se ajuntam às mãos, para configurar a figura e o papel, bem como a função do escravo nas terras lucrativas do açúcar e do tabaco. Apesar de ser o escravo o último na escala hierárquica, reza o texto de Antonil que é o único verdadeiramente indispensável para a empreitada da colonização (v. adiante, nota 44). Leiamos: “Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda nem ter engenho corrente” (p. 159). 18 Na verdade, a imagem de um “corpo branco” de senhor, com mãos e pés de “escravos negros”, é mais esdrúxula do que aquela imagem do cão Cérbero. Mas a lógica retórica não é o forte dos nossos primeiros e rudimentares pensadores políticos. Sem querer entrar no mérito duma questão que seria melhor explicitada por análise e interpretação feitas por sociólogos ou economistas, gostaríamos de retomar novamente a importância que tem, nestes textos que estamos lendo, o recurso à comparação entre os valores europeus, já estabelecidos e consagrados, e os valores brasileiros, indefinidos até o momento da publicação de cada novo livro interpretativo da nova realidade. A justeza da relação entre a realidade européia e a realidade que se lhe ajunta por comparação, colonialmente, só pode tomada ao pé da letra caso se aceite sem questionar o desígnio do texto, que é o de estabelecer para a terra e o homem brasileiros (índios e escravos y inclus) uma estrutura de poder convincente, paralela e subalterna. Uma estrutura de poder altamente hierarquizada e “justa”, cujo fim é o de dar estatuto social condigno àquele que, por sua situação econômica extraordinária, por sua posição de mando no local de que é único responsável, se situa no alto da pirâmide. Da mesma forma, a possível coerência dentro do sistema estabelecido de comparações (cabeça, mãos, pés -- em ordem decrescente de poder, descendo para o chão e para o trabalho servil 22) dependeria ainda do fato de que tinha de se passar uma imagem verossímil da estrutura social brasileira e da maneira como esta própria estrutura letrada ia, ao mesmo tempo, lendo, interpretando a realidade, fixando de maneira legal e livresca os diversos escalões. Portanto, toda discussão sobre a adequação, ou não, da realidade comparada portuguesa à realidade brasileira que se lhe ajunta, pode ser exata dentro de uma visão 22 Gilberto Freyre dedica páginas importantes ao ócio do senhor de engenho. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973, pp. 428-429. 19 europeocêntrica, mas será sempre frustrante como alimento para análises futuras, pois apenas insistirá na falsidade do recurso à comparação, vale dizer, da interpretação, sem indagar o por quê dela. Disso, por exemplo, não pôde escapar A. P. Canabrava, lúcida comentadora de Cultura e opulência do Brasil: “Em tão alta conta [Antonil] tem a qualificação de senhor de engenho, que a iguala a um título de nobiliarquia dos fidalgos do Reino. Na América Portuguesa esta nova fidalguia se acomodava aos padrões de base econômica marcadamente mercantil”. E continua mais abaixo: a comparação é uma “estranha transposição de um tipo de relação de mundo medieval, para formas de condição econômico-social de natureza completamente distinta que caracterizaram na Colônia o uso da terra” (p. 41). Portanto, antes de mais nada a comparação tem a função precípua e oficiosa de definir a hierarquia de poder no Brasil (ainda que o sistema utilizado e legitimado pela tradição histórica seja totalmente equivocado, caso se tome o sentido preciso dos conceitos europeus e o estágio histórico-econômico por que passam ambas as regiões). Se, como diz na nossa época McLuhan,os meios de comunicação são extensões do homem, naquela época a força-trabalho das mãos e pés negros era uma extensão da “cabeça” branca do senhor de engenho. A ociosidade das outras mãos e dos outros pés -- os brancos -- do senhor só é possível por ter sido o seu trabalho delegado ao feitor (mando) e ao escravo (obediência e labuta servil). Dentro dessa visão ampla e bicolor do corpo do senhor de engenho 23 é que se justifica o seu governo e o seu prestígio 23 A mesma atitude de ampliação do corpo do senhor de engenho como uma forma inquestionável de poder se encontra até mesmo em autor modernista, como José Lins do Rego. Em Menino de Engenho, o corpo do senhor de engenho confunde-se magicamente com toda a extensão da sua propriedade. Leiamos um trecho significativo do romance: “Ninguém lhe [ao senhor do engenho] tocava num capão de mato, que era mesmo que arrancar um pedaço de seu corpo”. Rio de Janeiro, José Olympio, 1971, p. 38. 20 enquanto ser sócio-econômico junto à Coroa portuguesa e aos pares. De todos os habitantes da colônia, ele é a cabeça e é o cabedal. O intento e a reflexão finais do texto de Antonil visam à singularização do senhor de engenho no topo da escala sócio-econômica da colônia brasileira. Trata-se de ajudar a ele, que realmente o merece, a obter as graças do Rei e os favores burocráticos. No último parágrafo de Cultura e opulência do Brasil, lê-se: “Se os senhores de engenhos, e os lavradores de açúcar e do tabaco são os que mais promovem um lucro tão estimável, parece que merecem mais que outros preferir no favor e achar em todos os tribunais aquela pronta expedição que atalha as dilações dos requerimentos e o enfado e os gastos de prolongadas demandas” (p. 316). Nessa frase não encontramos a linguagem do mero tratado descritivo que o livro propunha a ser, mas a voz exigente e possante do lucro colonial e da reivindicação de favores junto ao poder metropolitano. No possível jogo entre a empresa açucareira, que se quer semi-independente, agressiva, lucrativa e esguia, e a burocracia do Estado, que se dá enferrujada e morosa, nesse jogo em que as pedras são marcadas pelo próprio texto laudatório de Antonil, o árbitro máximo da partida, o Rei, ou o presidente da República nos dias atuais, não poderá ter dúvidas em indicar o privilegiado. Ou as terá? A ratificar a nossa leitura vem em apêndice a Cultura e opulência do Brasil a “Licença do Santo Ofício”, assinada na própria Lisboa pelo Fr. Paulo de São Boaventura. Ali se lê que, pelo livro em questão, “saberão os que quiserem passar ao Estado do Brasil, o muito que custam as culturas do açúcar, tabaco e ouro, que são mais doces de possuir no reino que de cavar no Brasil” (p. 135). Sintomático é que -- na presença do Rei -- a linguagem mais rebelde dos portugueses – aquela que diz que os reinóis devem ser preteridos aos que labutam no Brasil -- cerca-se sempre de um tom humorístico, de onde não se exclui até mesmo o trocadilho. Nas palavras do Fr. Paulo de São Boaventura, o jogo entre o doce de possuir no reino e o trabalho duro de cavar 21 no Brasil, ligado ao campo semântico da produção do açúcar e do tabaco. No caso do Padre Antônio Vieira, no “Sermão da Sexagésima”, proferido em 1685 na Capela Real (Lisboa), há um trocadilho que não só visa a glorificar o trabalho missionário dos jesuítas na colônia brasileira como também tem sustentado as inumeráveis discussões sobre cultismo e conceptismo: “Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-ei com mais Paço; os de lá, com mais passos.” [espaço] Sempre me intrigou a maneira como o romântico José de Alencar escolhia, durante a gestação dos seus romances históricos/indianistas, tanto os heróis quanto os vilãos. Por que escolheu D. Antônio de Mariz para personagem principal de O Guarani (1855)? Por que abriu a ação do romance precisamente naquela época, início do século XVII, quando Portugal estava sob o jugo do Rei espanhol? Por que cercou o fidalgo de aventureiros, destituídos de qualquer sentido moral? Retomando a diretiva da nossa leitura dos textos descritivos e ensaísticos do período colonial, mas agora adentrando-se tanto pelo texto ficcional quanto pelo período pós-colonial, percebe-se que o interesse dos brasileiros recém-independentes, primeiros responsáveis por um discurso legitimamente nacional, vai para um líder que seja capaz de montar, de organizar por conta própria, numa determinada zona do território colonial brasileiro (ainda que diminuta), um arremedo de governo, ainda que ele próprio confesse, paradoxalmente, ainda dever obediência a Portugal e não à Espanha. Para tal tarefa, Alencar deixa claro, o chefe nativo tem de ter cabedal próprio para conseguir dissociar os seus próprios interesses financeiros dos interesses dos pares no Reino, isto é, ele é um empresário autônomo na nova terra, portanto sem dependência econômica direta da Coroa portuguesa. E mais importante: ele deve ser 22 fonte de lucro para ela. É dessa forma, tinha-nos alertado Antonil, que o bom colonizador consegue fazer valer o seu valor na Corte e merecer o título de fidalgo. Sintomaticamente, Alencar, ao elaborar em 1855 o seu primeiro romance histórico, escolhe D. Antônio em situação bastante exemplar, que se presta a uma interpretação complexa e sugestiva da liberdade/fidelidade do colono brasileiro via-à-vis de Portugal. Tanto mais complexa é a situação dramatizada porque o país metropolitano, naquela época, vive sob o domínio espanhol. Leiamos os dois primeiros capítulos de O Guarani 24. D. Antônio é um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Combateu os inimigos da sua pátria (franceses e selvagens) com o fim de consolidar o “domínio de Portugal nessa capitania”. Com a espada, ajudou a Mem de Sá nas tarefas de colonização e por ele foi recompensado com “uma semaria de uma légua com fundo para o sertão” (p. 30), onde constrói seu (diz o romance) castelo feudal. É nessa sesmaria que o leitor vai encontrá-lo, abrindo “a pesada porta de jacarandá que serve de entrada” para o castelo e o romance. O motivo por que abandona a capitania do Rio de Janeiro e se embrenha pelo sertão é logo explicitado: Portugal tinha caído nas mãos dos Filipes: “Quando, pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. Filipe II como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço” (p. 30). Tal atitude do fidalgo -- fiel por um lado a Portugal e livre por outro da metrópole no estado lastimável em que está -- abre-lhe a possibilidade de articular, dentro de uma sesmaria, o seu pequeno e próprio poder de mando e exercer plenamente o governo naquele território. Poder de mando e governo desvinculados -- e, ao mesmo tempo, não -- de Portugal, num gesto semelhante à futura atitude de D. João VI, ao transferir o 24 Todas as citações de O Guarani e demais obras de Alencar foram extraídas do v. II da Obra completa. Rio, Aguilar, 1964. 23 verdadeiro Portugal para o Brasil em 1808. Surge, dessa forma, dentro do romance alencarino, o tema colonial por excelência, o da independência e da liberdade, com toda uma conotação ambígua que procuraremos analisar. Se o discurso de Antonil é dirigido ao Rei português, o de O Guarani já nos diz que o Rei não é mais o bom interlocutor do fidalgo brasileiro, pois aquele que reina sobre Portugal é falso. O verdadeiro Rei é interiorizado no senhor brasileiro (que assim pode desobedecer ao falso, preservando dentro de si a fidelidade ao verdadeiro). A sesmaria de D. Antônio é livre com relaçãoao Portugal filipino. Ali está se estabelecendo um senhor (“fidalgo”, se ecoarmos o texto) brasileiro, com plenos poderes. Independência e liberdade aparecem de maneira um tanto implícita, já que o senhor continua disposto a prestar obediência a Portugal. Leiamos, com o cuidado requerido, dois fragmentos de frases, situados em passagens diferentes do romance. Fala D. Antônio: “Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal [...]”. A segunda diz: “[...] esse pedaço de sertão, não era senão um fragmento de Portugal livre”. Vemos que, jogando com o conceito de independência e liberdade relativas, consegue D. Antônio introjetar Portugal, no seu próprio negócio sócio-econômico colonial, legitimando-o à moda de D. João VI. Pode, assim, constituir-se em “senhor de baraço e cutelo, de alta e baixa justiça dentro de seus domínios” (p. 32). Torna-se de novo imperioso preocupar-se com as comparações que o texto alencarino apresenta entre os elementos da metrópole e os da colônia. Como no tratado de Antonil, elas visam a dar um status social ao colono, no caso, rebelde, e ao grupo de aventureiros que o cercam, bem como à casa que abriga a todos. As comparações fluem no romance sem nenhum pejo. D. Antônio de Mariz, já vimos, é fidalgo. Os aventureiros, vassalos. A casa “fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média”. Percebe-se que, apesar de não se tratar de um senhor de engenho, apenas um 24 empresário, no sentido moderno da palavra, as comparações servem para recobrir o território e os habitantes com o mesmo campo semântico feudal e medieval encontrado em Antonil. E mais ainda: se em Antonil a lógica entre a realidade comparada (Portugal) e a que se lhe compara (Brasil) é totalmente desprovida de justeza histórica, por razões que só um especialista pode detectar, tal o mascaramento sutil que o tratado opera quando se refere às verdadeiras relações econômicas que norteavam a empresa açucareira na colônia, em O Guarani já não se dá o mesmo. O texto aponta e alerta para o processo de mascaramento e para os desacertos violentos da colonização portuguesa. Os aventureiros são primeiramente apresentados como “pobres, desejosos de fazer fortuna rápida e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando de ouro e pedras preciosas que iam vender na costa”. Poucas linhas abaixo já são vistos pelo narrador de uma perspectiva oposta: “O fidalgo recebia [os aventureiros] como um rico-homem que devia proteção e asilo aos seus vassalos [...]” (p. 31). E, em nota, Alencar informa: “Esse costume tinha o que quer que seja dos usos da Média Idade, e a necessidade o fez reviver em nosso país onde faltavam tropas regulares para as conquistas e explorações”. Aqueles aventureiros pobres, ambiciosos e contrabandistas, e estes vassalos de um rico senhor, funcionando em tropas regulares, serão eles os mesmos, ética e judicialmente? A dubiedade da figura (aventureiro e vassalo ao mesmo tempo) só pode ser melhor compreendida, e com mais rigor, num outro nível, levando em conta determinado padrão de pensamento de Alencar, que transcende o autor e a sua época. Toda atitude de poder coercitivo por parte do chefe não é frontalmente aberta; o gesto explicitamente autoritário só se dá em circunstâncias excepcionais. Depois de definir D. Antônio como “senhor de baraço e cutelo”, como vimos, acrescenta: “devemos declarar 25 que rara vez se tornara preciso a aplicação dessa lei rigorosa; a severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia” (p. 32). O chefe alencarino, fidalgo nas terras brasileiras, guarda muito da transparência do “principal” indígena, como o descreveu Gabriel Soares de Sousa e comentou Pierre Clastres. O poder não sendo necessariamente coercitivo, ele se manterá como tal porque a hierarquia é freqüentemente marcada de maneira inquestionável no texto. Em outras palavras: a liderança é mais conseqüência de uma hierarquização rígida dos diversos integrantes na organização social do que resultado de ordens violentas e repressivas por parte de quem detém o mando. Como a hierarquização é sólida e inquestionável, pois advém de valores categóricos tomados de empréstimo à rigidez da estratificação social européia, cada um sabe o lugar que ocupa e que é o certo. O imobilismo social congela todos os elementos da comunidade dos brancos e mestiços. E o texto literário romântico, pós-colonial, serve exatamente como efeito de coágulo. Dentro da sociedade colonial branca, tal qual retratada por Alencar, apenas uma exceção é aberta para um não-branco. Para o selvagem. Ele foge à regra da ordem escravocrata porque é absolutamente livre 25. Por efeito de contraste, todos os demais elementos diferentes-do-selvagem estão presos, fixos e estáticos social e economicamente. Sem dúvida, não existe maior elogio social à figura do indígena do que este, maior isenção de preconceito contra a sua figura durante a colonização portuguesa nos trópicos. Dentro de uma organização sócio-econômica hierarquizada, 25 Obviamente em Ubirajara, romance cuja ação se passa em tempos pré-cabralinos, o selvagem não é dado em liberdade social. Encontra-se entre os seus semelhantes, no interior de uma hierarquização sócio-política paralela e tão rígida quanto a européia. Isso, de novo, graças ao recurso da comparação. A liberdade do selvagem, em O Guarani, cuja ação, repitamos, se passa no século XVII, existe porque ele está fora/dentro da sociedade dos brancos. Tem, portanto, mais a ver com a ausência de preconceito de Alencar, do que com a lógica das suas narrativas. 26 rígida, é o autóctone o único indivíduo que tem o poder de mobilidade. Se for inimigo, é enfrentado na guerra. Caso seja tomado como cativo, é vassalo. Corrobora o texto: “quando [os selvagens] nos respeitam são vassalos de uma terra que conquistamos, mas são homens”. Quando são “nobres” no seu próprio meio, podem se inscrever num escalão mais alto dentro da hierarquia brasileira europeizada, mas neste caso não existe ascensão social, apenas absorção digna: “Peri estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavalheiros que continuassem a sua marcha” (p. 39). O mesmo não pode ser dito a respeito do negro, pois em nenhum texto do período, que conhecemos, se tematiza a natureza “nobre” do africano e menos ainda sua mobilidade social 26. Daí a palavra dura de Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo, retomando palavras antigas de José Bonifácio no exílio (“Sem a emancipação dos atuais cativos nunca o Brasil firmará a sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal constituição.”), admoestando em 1883 os brasileiros: No processo do Brasil um milhão de testemunhas hão de levantar-se contra nós, dos sertões da África, do fundo do oceano, dos barracões da praia, dos cemitérios das fazendas, e esse depoimento mudo há de ser mil vezes mais valioso para a história do que todos os protestos de generosidade e nobreza d’alma da Nação inteira. 26 Na literatura brasileira do século XIX, o melhor exemplo de imobilismo social do negro se encontra no romance O cortiço (1888). Todos os elementos humanos pretos, ou mulatos, não conhecem forma alguma de ascensão social durante o desenrolar da ação. Existe, quando muito, um “aprimoramento” da raça negra, possibilitado pelo casamento (ou pela simples união) de preta com branco, ou vice-versa. A ascensão socialsó existe para o “homem do sobrado”, o português Miranda, que se torna barão, e para o também português João Romão que, para tal, tem de abandonar definitivamente a negra Bertoleza. Deve-se excetuar, no período da Independência, as idéias defendidas por José Bonifácio durante o período da Constituinte. Joaquim Nabuco levanta a hipótese: “Até que ponto as idéias conhecidas de José Bonifácio sobre a escravidão concorreram para fechar ao estadista que planejou a Independência a carreira política em seu próprio país, é um ponto que merece ser estudado” (p. 57). 27 [espaço] Se o romance de José de Alencar tematiza de maneira inequívoca a oscilação entre a fidelidade a Portugal como sentido da civilização brasileira (o país é o único que, depois da Independência, acata o regime dinástico nas Américas, isso graças ao acaso da imigração de D. João VI em 1808, fugindo de Napoleão) e a aspiração à independência nacional como domínio das riquezas naturais pelos mais bem situados na hierarquia determinada pelo dinheiro e o mando, se o romance se fortalece com a heroicidade tanto do fidalgo/colono, empresário na nova terra, quanto com a do autóctone/selvagem, depositário de todos os valores morais de liberdade, se o romance se fertiliza com a dubiedade da figura do aventureiro/vassalo, lembrando sem dúvida a “dialética da malandragem” que caracteriza a situação do homem livre na ordem escravocrata de que Antonio Candido foi o intérprete mais feliz 27, se o romance esconde por detrás de algum misterioso telão ideológico a mancha da escravidão negra, não há dúvida de que ali, naquele conjunto disparatado, está apesar de tudo uma imagem escrita de Brasil que se apresenta como uma “comunidade política imaginada” 28, para retomar a expressão de Benedict Anderson. A comunidade se organiza, não pelos laços sangüíneos, mas em virtude de todos os seus membros adotarem, consciente ou inconscientemente, a máxima dos gramáticos renascentistas, 27 “Dialética da malandragem”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, 1970, n. 8. Para uma leitura crítica desse texto, consultar: Roberto Schwarz, “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’ “, Esboço de figura, homenagem a Antonio Candido, pp. 133-151. 28 Em artigo datado de 1964, que retomaremos adiante, José Guilherme Merquior, anuncia algumas teses de Benedict Anderson. Vejam, por exemplo, esta definição do poeta que escreve “A canção do exílio”: “um melancólico aspira a um país edênico, a uma terra ideal, a uma pátria sonhada e, de sonhada, idealizada” . “Poema do lá”, Razão do poema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 49. 28 “a língua companheira do Império”. Esta, por sua vez, foi passando, século após século, e em transparência, os novos valores religiosos 29. A língua portuguesa dá forma ao Brasil-nação, fechando-o na sua singularidade, ao mesmo tempo em que serve de instrumento para diferençá-lo da multidão dos países-nações limítrofes e vizinhos que ganham significado através da língua espanhola. “Ela é imaginada” – escreve Anderson – “porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria dos seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem da sua comunhão” (p. 14). Sem dúvida, essas palavras, ao se referirem ao romance de José de Alencar, onde o senso da comunidade se casa com a capacidade de esquecer manchas negras tão importantes quanto o próprio sentido da nacionalidade, não deixam de lembrar outras palavras também pertinentes, agora de Renan: “Or l`essence d`une nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun, et aussi que tous aient oublié bien des choses”. Para Anderson a nação é imaginada e, como tal, como uma comunidade limitada e soberana. Citemos as definições dos três termos. Primeira: “A nação é imaginada como limitada, porque até mesmo a maior delas, que abarca talvez um bilhão de seres humanos, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das 29 Benedict Anderson lembra o édito de San Martín batizando os índios de fala quíchua como “peruanos”. Para ele, San Martín “demonstra que desde o início a nação foi concebida pela língua, não pelo sangue, e que qualquer um pode ser ‘convidado a entrar’ para a comunidade imaginada” (p. 159). Contrastar com as observações feitas por Celso Cunha, parágrafos atrás, e também com esta observação, um pouco tardia sem dúvida, de Joaquim Nabuco em O abolicionismo: ”A sociedade colonial era por sua natureza uma casa aberta por todos os lados onde tudo era entradas; a sociedade da mãe pátria era aristocrática, exclusiva, e de todo fechada à cor preta. Daí a conspiração perpétua dos descendentes de escravos pela formação de uma pátria que também fosse a sua. Esse fator de desagregação foi o fator anônimo da Independência” (p. 54). 29 quais encontram-se outras nações. Nenhuma nação se imagina coextensiva com a humanidade”. Segunda: “E imaginada como soberana, porque o conceito nasceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico, divinamente instituído. […] O penhor e o símbolo dessa liberdade é o Estado soberano”. Terceira: “Finalmente, a nação é imaginada como comunidade porque, sem considerar a desigualdade e exploração que atualmente prevalecem em todas elas, a nação é sempre concebida como um companheirismo profundo e horizontal” (pp. 14-16). Fato mais extraordinário vai acontecer no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, especialmente no capítulo que leva por título “Um episódio de 1814” 30, ou seja, momento em que chega ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão (renúncia à coroa e exílio em Elba). O narrador machadiano, ao se interessar pelas relações entre a Europa e o Novo Mundo, entre o país metropolitano e o país colônia, esquece definitivamente a retórica da comparação que, como vimos, era utilizada pelos autores precedentes para articular o modo coeso como a cópia era um prolongamento do modelo, instaurando ao final a semelhança- com-diferenças como figura entre as partes envolvidas no processo descritivo. Para Machado, a história se passava num tempo homogêneo e vazio, havendo apenas uma ligeira defasagem temporal entre o lá e o cá, que se explicava pelo atraso social, esperado e justo na vida em colônia. Para a colônia, havia uma referência horizontal, tranversal ao tempo histórico -- a metrópole. Ao pôr um fim no recurso retórico da comparação, o capítulo machadiano toma a forma de uma pedra que ricocheteia sobre a mansidão das águas de um lago, criando círculos concêntricos cujo significado é simultâneo e sempre relativo. Os eventos 30 Obra completa. Rio de Janeiro, José Aguilar Editora, 1971, vol. I, pp. 528-531. 30 históricos e corriqueiros (o narrador se interessa mais pelo espadim que ganhou do padrinho do que pela queda de Napoleão -- “o nosso espadim é sempre maior do que a queda de Napoleão”) são paralelos e, aparentemente, destituídos de nexo causal. A pedra fere o centro das atenções: a primeira queda de Napoleão na Europa e as conseqüências do acontecimento sobre a situação ambígua de Portugal, de D. João VI e o Brasil. O círculo seguinte mostra o modo como “a população [carioca], cordialmente alegre não regateou demonstrações de afeto à real família”. E, por isso, aparecem nas ruas iluminações, salvas, Te Deum, cortejoe aclamações. A alegria reina na Corte transplantada às pressas para o Rio de Janeiro e, indiretamente, também deixa felizes os brasileiros com a sua próxima viagem de volta. A família de Brás Cubas julga “oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos, de seus ministros." Durante o jantar um sujeito dava a outro “notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças…O que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos”. Como se não bastasse a simultaneidade de tantos eventos, é também nesse dia que o menino Brás Cubas vê o Vilaça tascar, às escondidas, um beijo na dona Eusébia. Anos mais tarde, encontrará a “flor da moita”, agora uma moça, infelizmente coxa. Machado estava apontando -- no prenúncio do retorno do Rei português à Corte lisboeta e na proximidade do momento em que o país se tornaria independente -- para um dos traços mais fundamentais que marcam a possibilidade de se pensar uma nação, um dado importante na “gênese obscura do nacionalismo”. Ei-lo: o aparecimento de uma concepção de “tempo homogêneo e vazio”. Anderson toma de empréstimo a expressão a Walter Benjamin. Começa a explicá-la com a análise que Erich Auerbach faz do sacrifício de Isaac, que é interpretado como a prefiguração do sacrifício de Cristo. 31 Interpreta Auerbach: existe uma “conexão entre dois eventos [sacrifícios de Isaac e Cristo] que não se vinculam temporalmente, nem casualmente – conexão impossível de ser estabelecida pela razão na dimensão horizontal. Ela só pode ser estabelecida se ambas as ocorrências estiverem verticalmente [grifo nosso] vinculadas à Divina Providência, a única capaz de traçar um plano de história como esse e fornecer a chave para sua compreensão”. No caso de Machado de Assis, usado aqui para ilustrar a teoria de Anderson, “a simultaneidade é como se fosse transversal ao tempo, marcada não pela prefiguração e cumprimento, mas por coincidência temporal, e medida pelo relógio e pelo calendário”. De maneira jocosa e séria, comenta Anderson: “essa nova idéia está tão arraigada que se poderia afirmar que todo conceito fundamental moderno baseia-se num conceito de ‘enquanto isso’ (p. 33)”, conceito de que se vale, é claro, os romances e os jornais da época. Retomemos o capítulo de Brás Cubas. Depois do inverno de 1814, começa a derrocada de Napoleão na Europa, enquanto isso rejubila-se a família real no Rio de Janeiro e também a população carioca, enquanto isso o pai de Brás Cubas resolve dar um jantar para celebrar a destituição do imperador e ser objeto de comentários na corte carioca, enquanto isso navios negreiros continuam a entrar no porto do Rio de Janeiro, enquanto isso um paspalhão deflora uma senhora que, anos mais tarde, ostentará uma bela filha, produto do amor proibido, uma verdadeira flor da moita. Todos os episódios, tanto a queda de Napoleão quanto os escravos expostos no mercado de Valongo, se passam ao mesmo tempo, estão encravados em sociedades nacionais. Observa Anderson: “O fato de que todos esses fatos são desempenhados no mesmo tempo, medido pelo relógio e pelo calendário, mas por atores que podem estar em grande parte despercebidos uns em relação aos outros, demonstra a novidade desse mundo imaginado evocado pelos autores nas mentes de seus leitores” (p. 35). 32 [espaço] Retomando passagem anterior dessa Introdução, em que foram alvo, no tratado de Antonil e no sermão de Vieira, os jogos retóricos entre o “lá” (terras brasileiras) e o “cá” (terras portuguesas), retomemos também a idéia da valorização emblemática do trabalho que se tem nas terras brasileiras em oposição às gostosas facilidades que se encontram nas terras portuguesas, para reencontrar a extraordinária metamorfose que o jogo vai merecer de Gonçalves Dias, no famoso poema “A canção do exílio”. Nesta, o jogo entre o lá e o cá vai encontrar a sua dignificação estética, idealizada, no primeiro hino da nacionalidade brasileira: “As aves, que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá”. José Guilherme Merquior, em Razão do Poema, fez uma notável e ainda atual análise do poema. Dela nos valeremos para dar continuidade ao tema. Afirma ele, em primeiro lugar, que: “Estrelas, várzeas, flores, bosques, vida, amores -- tudo isso existe em Portugal, como existe no Brasil. O que de fato provoca a saudade não é portanto a sua simples existência, e sim a qualidade que esta ganha, quando na moldura da pátria. A canção não compara o que o Brasil tem com o que a terra alheia não possui; indica, isso sim, o maior valor que as mesmas coisas revestem, uma vez localizadas no Brasil”. E continua, ao final da minuciosa análise dos vários passos do poema: “Profundamente brasileira é a saudade da terra natal, na forma de um desprezo cego pela realidade objetiva do país. Boa ou ruim, promissora ou aflitiva, essa realidade jamais conseguirá demover o saudoso de seu amor obstinado à terra. [...] Hoje, como sempre, reluz nesses versos a vibração da certeza consoladora de nos sabermos irremediáveis amantes do Brasil, mesmo do Brasil tão freqüentemente errado e decepcionante, pobre de fortuna e de projetos, abrigo de vícios e de molezas. É que o brasileiro será sempre 33 incapaz de adotar o “ubi bene ibi patria” 31 dos que reduzem o amor de sua terra ao prazer que elas lhes possa dar; porque, para nós, será sempre possível esquecer a miséria da pátria presente na sublime teimosia com que a amemos, boa ou má, na força de quem faz desse amor uma vontade firme” 32 À atitude unívoca e radical de Gonçalves Dias, pode-se opor, já entre o fim do século XIX e o início do século seguinte, a ambigüidade cosmopolita de Joaquim Nabuco, tal como se expressa no livro de memórias Minha formação, capítulo “Atração do mundo” 33. Neste, fala mais alto o cientista político do que o patriota, fala mais alto o companheiro de Machado de Assis do que o êmulo de Gonçalves Dias. Escreve ele: “Sou antes um espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo”. Morando em país provinciano, o grande estadista da Abolição está distante do palco onde a grande peça da História se desenrola, mas dela pode ser espectador no conforto do lar em virtude dos meios de comunicação de massa modernos, no caso o telégrafo. Escreve Nabuco que, em sua vida, viveu “muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história”, para logo em seguida afirmar a sua incapacidade para viver plenamente “a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos”. A incapacidade é também o caminho enviesado e, paradoxalmente, mais correto para o cidadão brasileiro atualizado e consciente participar do projeto nacional em andamento. Equacionando Política com maiúscula à História, história da civilização ocidental, no caso história da Europa na sua expansão geográfica, econômica e social (não se pode 31 Trata-se do conhecido lema do cosmopolitismo, baseado num trecho de Cícero, das Discussões Tusculanas (v. 37): “Onde me sinto bem, lá é a minha pátria”. Cf. Paulo Rónai, Não perca seu latim. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. 32 Idem, pp. 41-50. 33 Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1966, pp. 61-69. 34 esperar do pensador monarquista uma postura diferente da eurocêntrica), Nabuco não só julgaa política com minúscula, a nacional, como inferior, setorizada e dominada por estruturas arcaicas e sentimentos baixos, como também inventa caminhos para que a nação saia do atraso em que se encontra. É a obra jornalística e ficcional de Joaquim Manuel de Macedo que complementa as observações de Nabuco e melhor ilustra a mediocridade da vida política nacional, como o demonstrou recentemente Flora Süssekind. Cite-se, como exemplo, o modo como o narrador de Macedo apresenta um aprendiz de política na segunda metade do século passado: “[...] se é filho, sobrinho ou parente chegado de algum senhor velho, de algum membro daquela classe de privilegiados [...], se é nhonhô, encarta-se logo na presidência de alguma província; da presidência da província salta para a câmara temporária; da câmara temporária pula para o ministério: uma questão de três pulos dados em alguns meses, e em duas palhetadas e meia, o nhonhô, que não foi ouvir as lições de nenhum mestre, que não teve noviciado, nem tempo para ler mais do que os prólogos de alguns livros, é declarado estadista de fama e salvador da pátria” 34. Pela sua formação (e é disso que o livro de memórias trata), a incapacidade que Nabuco sente para viver a medíocre política nacional acaba por guiá-lo para fora do Brasil, ou seja, para “o ponto onde a ação do drama contemporâneo universal é mais complicada ou mais intensa”. Complicação política e intensidade moral, na medida em que universais, não podem ser para um brasileiro culto matéria de presenciar, mas só de apreciar da sua poltrona na platéia provinciana. O texto exemplifica: “[...] em 1870, o meu maior interesse não está na política do Brasil, está em Sedan. No começo de 1871, 34 Em lugar de o discurso medíocre, egoísta e retórico dos políticos brasileiros alimentar -- nos diz Flora Süssekind -- os comentários ou as descrições no texto, ele é constitutivo da própria voz narrativa. Conclui a ensaísta que o narrador “não é alguém que, de fora, observa e critica o comportamento político”. 35 não está na formação do gabinete Rio Branco, está no incêndio de Paris”, e assim por diante. Complicação política e intensidade moral, na medida em que universais, só por milagre divino podem ser matéria de acontecer no Brasil e, por isso, de ser presenciadas: “Em 1871, durante meses, [o meu maior interesse] está na luta pela emancipação [Lei do Ventre Livre] — mas não será também nesse ano o Brasil o ponto da terra para o qual está voltado o dedo de Deus?” O atraso político brasileiro é antes de mais nada questão de geografia e pode ser corretamente encarado, na falta do dedo de Deus, pela viagem de observação e estudo ao estrangeiro e, na falta desta, pelo telégrafo. Como há uma distância entre o escrever e o representar uma peça de teatro, assim também há uma distância entre a ação política e a sua representação no palco europeu, como ainda há uma distância entre esta e a sua transmissão, pelos meios de comunicação de massa, para outro e distante arremedo de palco europeu. A formação do intelectual brasileiro no século XIX se confunde com outra formação: a da sedimentação das camadas geológicas do “espírito humano” (a expressão é do texto). Há uma tardia e, por isso, dupla inscrição do brasileiro, vale dizer, do americano, no processo histórico de esfriamento da crosta da cultura humana. Os americanos pertencem à América pelo sedimento novo, flutuante, do seu espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. Pé cá, pé lá, em equilíbrio — aparente é claro, pois não se pode dar o mesmo peso e valor à busca sentimental do começo (a história do Novo Mundo) e à investigação racional da origem (a história da civilização ocidental). O eurocêntrico Nabuco conclui: “Desde que temos a menor cultura, começa o predomínio destas [das camadas estratificadas] sobre aquele [o sedimento novo]”. Diz ainda: “o espírito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico [grifo nosso]”. A pesquisa geológica do nacional vai apenas até o marco cristão da descoberta da região por país europeu, ou seja, até a Primeira Missa rezada pelos padre português no Brasil; dali o geólogo não deve partir para recompor as tradições 36 dos autóctones; lá chegando, deve se desviar do solo pesquisado, dar meia-volta e, vestido de historiador das idéias, sair em busca de profundidades só encontradas em civilizações da humanidade, como a dos europeus. Há um fundo (enriqueço semanticamente a palavra de Nabuco, tomando-a em todos os seus sentidos: geográfico, histórico, econômico, social, etc.) europeu comum que tanto define o lá quanto, por formação, legitima o cá. A pátria que fascina o coração não ilude a cabeça e, por isso, o “grande espetáculo” do mundo é o que “prende e domina a inteligência”. Em política, a “lei do coração” só é forte e dominadora no momento em que a razão é desclassificada pela idade avançada ou pela infelicidade da pátria. Escreve o narrador experimentado: “cada vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa lei singular do coração que prende o homem à pátria com tanto mais força quanto mais infeliz ela é e quanto maiores são os riscos e incertezas que ele mesmo corre”. Corpo velho numa pátria republicana, dominada por militares jacobinos, são dignos de piedade, daí o sentimentalismo do velho narrador de Minha formação. Nos anos da juventude e da maturidade, sentado na platéia do palco brasileiro, onde se encena o drama menor da jovem nação, Nabuco almeja estar na platéia do grande teatro da humanidade, onde se desenrolam as peças sedutoras e definitivas do século. Escreve ele: “As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre. No meio do luxo dos teatros, da moda, da política, somos sempre squatters, como se estivéssemos ainda derribando a mata virgem”. A identidade histórica de jovens nações, como as americanas, não se encontra ali onde esperam encontrá-las os nativistas, isto é, os políticos com p minúsculo. Ela está fora do tempo histórico nacional e fora do espaço pátrio: por isso é lacunar e eurocêntrica. Em resumo, o seu lugar é a “ausência”, 37 determinada por um movimento de tropismo. Em virtude da ausência de um solo pátrio legítimo, o triste sofrimento por que passa o brasileiro serve de fundamento e justificativa tanto para os vôos da sua imaginação eurocêntrica quanto para o apego, no exílio londdrino, ao país onde nasceu: “De um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”. A questão do poder (dos “donos do poder”, para retomar a expressão de Raymundo Faoro) e da cultura brasileira como herdeira da européia se anuncia de maneira extraordinária em Nabuco pela dupla brecha da ausência e se reconforta, como um motor se reconforta ao receber nova carga de combustível, com a dupla (e não unívoca, como em Gonçalves Dias) sensação de saudade 35. Avancemos o relógio do tempo e entremos século XX adentro. Vamos encontrar na correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, um fascinante eco do diálogo entre Gonçalves Dias (via José Guilherme Merquior) e Machado de Assis (via Joaquim Nabuco), eco que, ao ribombar pela cultura brasileira, acaba por ser inteiramente a favor da corrente nacionalista. Ao ler carta de Drummond escrita nos anos 20, Mário observa que o espírito do poeta mineiro se encontrava então completamente tomado pela tristeza e o pessimismo de Joaquim Nabuco e, principalmente, pelo ceticismo finissecular
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