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 INTÉRPRETES DO BRASIL 
 Silviano Santiago 
 
 
 
 
 “Sob os nossos olhos, uma parte do Terceiro 
Mundo industrializa-se, mas com uma dificuldade inaudita, 
com inúmeros fracassos e uma morosidade que parece a 
priori anormal. Uma vez, é o setor agrícola que não 
acompanhou a modernização; ou há escassez de mão-de-
obra qualificada; ou a demanda do mercado interno revelou-
se insuficiente; outra vez, os capitalistas locais preferiram 
aos investimentos no país colocar o dinheiro no exterior, em 
negócios mais seguros e mais lucrativos; ou o Estado 
revelou ser esbanjador ou prevaricador; ou a técnica 
importada é inadaptada, ou custa muito caro e pesa sobre o 
preço de custo; ou as importações necessárias não são 
compensadas pelas exportações: o mercado internacional, 
por este ou aquele motivo, revelou-se hostil, e sua 
hostilidade teve a última palavra. Ora, todas essas 
transformações produzem-se quando a Revolução [industrial] 
já não tem de ser inventada, quando os modelos estão à 
disposição de todo o mundo. Portanto, a priori, tudo deveria 
ser fácil. E nada funciona facilmente.” 
 Fernand Braudel, A dinâmica do capitalismo (1977) 
 
 
 
 
 
 
 
 2 
 
Os muitos livros que temos e que envolvem, de maneira descritiva, ensaística ou 
ficcional, o território chamado Brasil e o povo chamado brasileiro, sempre serviram a 
nós de farol (e não de espelho, como quer uma teoria mimética apegada à relação 
estreita entre realidade e discurso). Com a sua ajuda e facho de luz é que temos 
caminhado, pois eles iluminam não só a vasta e multifacetada região em que vivemos, 
como também a nós, habitantes que dela somos, alertando-nos tanto para os acertos 
quanto os desacertos administrativos, tanto para o sentido do progresso moral quanto 
para o precipício dos atrasos irremediáveis. São eles que nos instruem no tocante às 
categorias de análise e interpretação dos valores sociais, políticos, econômicos e 
estéticos que -- conservadores, liberais ou revolucionários; pessimistas, entreguistas ou 
ufanistas – foram, são e serão determinantes da nossa condição no concerto das 
nações do Ocidente e, mais recentemente, das nações do planeta em vias de 
globalização. 
O interesse mais profundo e direto que esses livros manifestam não é pelo 
habitante privilegiado desde a primeira hora. Aquele que, ao se transplantar de lá para 
cá, recebeu benesses, ou aquele outro que foi alvo de ato de nomeação para ocupar 
cargo oficial, auferindo altos proventos e jurando obediência irrestrita à Coroa 
portuguesa. Interessam-se, antes e quase que exclusivamente, pelo habitante que, já 
nascido nestas terras, buscava construir (ou inventar) um pequeno domínio de que seria 
proprietário exclusivo, sem reconhecer os limites das amarras políticas e fiscais 
metropolitanas, ou ainda pelo estrangeiro que, ao adotar a nova pátria, queria colonizá-
la à sua própria maneira, dela extraindo o que havia de mais rentável para si próprio e 
para os seus descendentes. Todos eles procuravam se autodefinirem e definir as várias 
regiões do país em palavras, gestos e ordens de independência (sempre relativa, é 
 3 
claro) com relação aos países europeus e, a partir do século XIX, com relação a todo e 
qualquer país que questionasse a soberania nacional. 
 Os que queriam se autodenominar brasileiros -- ou por serem autóctones, ou por 
serem filhos brancos ou mestiços da terra colonial, ou por viverem em “terra 
desconhecida”, modo como ela devia se apresentar para muitos imigrantes europeus, 
ou por serem filhos negros, transplantados contra a própria vontade pela violência dos 
grilhões do trabalho servil -- se sentiam desprovidos de um estatuto sócio-econômico 
próprio. Este, quando definido pela metrópole apresentava-se precário e recente, 
passível de constantes revisões críticas pelos donos do poder, como é o caso da 
situação entre nós do escravo ou até mesmo do índio, para não mencionar o imperativo 
legal de dar sentido às várias levas de imigrantes brancos que povoaram estas terras 
do Novo Mundo, em particular a partir da débâcle do sistema escravocrata. 
 De modo geral, viviam todos os “brasileiros” em pequenas comunidades, rurais 
na maioria dos casos, não de maneira completamente indiferenciada à semelhança de 
animais num conglomerado, mas em situação social amorfa, que beirava muitas vezes 
o caos. Essa situação não deixava de ser preocupantemente negativa para os que 
tinham o ideal de nação. 
A situação confusa e complexa dos habitantes durante os dois primeiros séculos 
do período colonial propiciava aos que empunhavam a pena abordar, com firmeza e 
presunção, as questões relativas à identidade colonial da região, à hierarquia fidalga 
dos poderosos e à liderança político-econômica subalterna à metrópole. Identidade 
nacional, hierarquia social e liderança político-econômica iam sendo reconfiguradas e 
impostas pelos portugueses-abrasileirados à medida que um projeto de nação, já no 
terceiro século colonial, começava a iluminar as cabeças mais revolucionárias, 
convencendo as elites (não tenhamos ilusões) e, indiretamente, a população das 
 4 
cidades de maior projeção econômica a dar o chute inicial no processo de expulsão do 
colonizador metropolitano, o português, ou de qualquer outro povo invasor. 
Nos três casos levantados (identidade, hierarquia e liderança), a palavra escrita, 
os livros (tanto o descritivo, quanto o ensaístico e o ficcional) servirão como mecanismo 
de abordagem dos problemas, definição de categorias de análise e estabelecimento dos 
valores sociais, políticos, econômicos e estéticos da nova terra e da sua gente. Valores 
estes que, mal lançados no minguado mercado de leitores exigentes, rapidamente 
serviriam para entronizar a elite nativa como legítima, numa cópia flagrante do modelo 
metropolitano, vigente nos países europeus, em particular em Portugal ou na Espanha. 
 O fim óbvio dos panfletos mais rebeldes à colonização lusa (e, nas entrelinhas, 
dos menos rebeldes) era o de apresentar o país colonial como independente e o país 
independente como nação. Era o de apresentar o colono (branco ou mestiço e, bem 
mais tarde, o africano) como homem livre e o homem livre como cidadão. Como 
documentos públicos, esses textos representavam e representam o que se denomina 
uma força nacionalista, ainda que toda a variada e multifacetada bibliografia sobre o 
assunto ainda tenha dificuldade em definir com clareza o que seja essa força. Apesar 
da falta de definições convincentes e definitivas, apesar das críticas feitas pelos 
pensadores marxistas, grandes especialistas da questão, como Benedict Anderson, não 
sabem por que, até os nossos dias, movimentos nacionalistas “inspiram uma 
legitimidade emocional tão profunda” 1. 
 
 [espaço] 
 
 
1 Nação e consciência nacional [Imagined comunities. Reflections on the Origin and Spread of 
Nationalism]. São Paulo, Ática, 1989, p. 12. 
 5 
 A maioria dos primeiros textos que foram escritos para descrever terra e homem 
da nova região levam a assinatura de portugueses. Respondem às próprias perguntas 
que colocam, umas atrás das outras, em termos de violentas afirmações 
europeocêntricas. A curiosidade dos primeiros colonizadores é menos uma instigação 
ao saber do que a repetição das regras de um jogo cujo resultado é previsível. Os 
nativos eram de carne-e-osso, mas não existiam como seres civilizados, 
assemelhavam-se a animais. Na Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita a El-Rei D. 
Manuel, observam-se melhor as obsessões dos portugueses, intrusos assustados evisitantes temerosos, que desembarcam de inusitadas casas flutuantes, do que as 
preocupações dos indígenas, descritos como meros espectadores passivos do grande 
feito e do grande evento que é cerimônia religiosa da missa, realizada em terra. Não é, 
pois, por casualidade que a primeira metáfora para descrever a condição do indígena 
recém-visto é a “tabula rasa”, ou o “papel branco” 2. Eis uma boa descodificação das 
metáforas: eles não possuem valores culturais ou religiosos próprios e nós, europeus 
civilizados, os possuímos; não possuem escrita e eu, português que escrevo, possuo. 
Mas da tabula rasa e do papel branco trazia o selvagem, ainda dentro do 
raciocínio etnocêntrico, a inocência e a virtude paradisíacas 3, indicando que, no futuro, 
aceitariam de bom grado a voz catequética do missionário jesuíta que, ao impô-los em 
língua portuguesa, estaria ao mesmo tempo impondo os muitos valores que nela 
 
2 “[…] os índios são tanquam tabula rasa para imprimir-lhes todo o bem; […] poucas letras 
bastariam aqui, porque tudo é papel branco e não há que fazer outra coisa, senão escrever à 
vontade as virtudes mais necessárias […]”. Apud Mecenas Dourado, A conversão do gentio. Rio 
de Janeiro, São José, 1958, pp. 62-63. 
3 Consultar o clássico de Sérgio Buarque de Hollanda, Visão do Paraíso. Para maiores detalhes 
consultar a introdução a Raízes do Brasil. 
 6 
circulam 4 em transparência. Ao fazer extenso levantamento, nas gramáticas 
renascentistas, do topos da “língua companheira do Império”, o filólogo e crítico 
espanhol Eugenio Asensio observou agudamente que os gramáticos portugueses 
Fernão de Oliveira e João de Barros -- quando tomaram de empréstimo aquela idéia do 
colega espanhol, Elio Antonio de Nebrija -- acrescentaram ao significado original do 
conceito, que era político e nacionalista, matizes afins de assimilação colonial e de 
missão cristã. Escreve Eugenio Asensio: “Lecturas posteriores me fueron revelando que 
el concepto [la lengua compañera del Imperio] derivaba de las Elegantiae, del 
humanista italiano Lorenzo Valla; había sido resumido en frase muy parecida por el 
jurista aragonés Geraldo García de Santa María antes de hallar hospedaje en las 
páginas de Nebrija para definir las ambiciones culturales de la expansión española; y 
que, cargado ya con el nuevo sentido que le daban los descubrimientos y conquistas, 
había sido acogido por los gramáticos portugueses [Fernão de] Oliveira y [João de] 
Barros, que, a su significado político y nacional, habían ido añadiendo los matices afines 
de asimilación colonial y de misión cristiana” 5. 
 Somente uma leitura “sintomal” da Carta, para usar o termo e o método de Louis 
Althusser 6, devidamente alicerçada em um instrumental teórico tomado de empréstimo 
à Antropologia, é que poderá ir revelando ao leitor contemporâneo nosso todos os 
valores indígenas que se encontram recalcados no texto do escrivão português, tendo 
sido recalcados para todo o sempre no processo de construção da nacionalidade. 
Talvez o aspecto mais instrutivo para o nosso propósito atual seja o de rastrear no texto 
de Caminha o problema da (ausência de) chefia indígena. 
 
4 Cf.: “[…] por certo esta jente he boa e de boa sijnprezidade e enpremarsea ligeiramete neeles 
qualquer crunho que lhes quiserem dar […]”. A Carta de Pero Vaz Caminha. Rio de Janeiro, Agir, 
1965, p. 105 [grifo nosso]. 
5 Revista de Filología Española, XLIII, 1960, p. 399. 
6 Lire le Capital. Paris, Maspero, 1969, v. I, p. 16. 
 7 
 As várias e ricas interpretações do texto português salientam a encenação que 
Cabral faz em seu camarote para passar aos indígenas que o visitam uma imagem 
concreta da sua superioridade: “Ocapitam quando eles [indígenas] vieram estaua 
asentado em huua cadeira e huua alcatifa aos pees por estrado e bem vestido cõ huu 
colar douro muy grande ao pescoço, e sancho de toar e simam de miranda enycolaao 
coelho e aires corea e nos outros que aqui na naao cõ ele himos asentados no chaão 
por esa alcatifa” (p. 89). As interpretações menos comprometidas com o 
europeocentrismo acentuam também o propósito econômico do encontro. Através de 
linguagem gestual (não havia língua humana comum entre eles, por isso o código 
gestual é constantemente verificado e aprimorado pelos dois grupos antagônicos), os 
marinheiros desejam obter dos indígenas informações sobre as possíveis riquezas da 
terra a que chegam. 
 As interpretações esquecem, no entanto, de assinalar que, um pouco mais tarde, 
o escrevente Caminha anota – ao perceber que se os selvagens preferem permanecer 
ao lado do capitão e não em companhia dos marinheiros – que a preferência é fruto 
único e exclusivo do acaso. Reconhece, sem meias palavras, que os indígenas se 
aproximam do capitão “nõ polo conhecere por Senhor ca me parece que nõ entendem 
ne tomauã dysso conto” (p.97), mas simplesmente porque os muitos marinheiros que 
estavam no camarote tinham se distanciado dos selvagens, tinham já atravessado o rio 
que, agora, os separava. Nesse sentido, aquelas interpretações deixam de lado a 
preocupação que tem o grupo de marinheiros portugueses em encontrar um chefe entre 
os indígenas (ou seja, um correspondente simétrico ao capitão da esquadra, ou melhor, 
para se valer do exemplo azteca, um Moctezuma ou um Cuauhtémoc). 
 Diversas vezes os marinheiros portugueses parecem distinguir um líder indígena 
na multidão dos seres inominados que os cercam ou os acompanham, mas todas as 
vezes o indivíduo sobre quem recai o olhar classificador frustra o intento português. Um 
 8 
rebate falso a mais. Logo depois da missa de domingo, um dos selvagens, com seus 50 
ou 55 anos, apontava para o altar e depois para o céu, conseguindo atrair em torno de 
si, com sua gesticulação, um bom número de companheiros. Caminha não é o único 
que acredita ser ele um “organizador”, para empregar o jargão político moderno; 
também o capitão da esquadra assim pensa. Este imediatamente faz trazer à sua 
presença o velho indígena, juntamente com o irmão [sic], e lhe dispensa muita honra, 
conforme se lê. Cabral chega até a presenteá-lo com uma “camisa mourisca” e ao 
irmão, com uma comum, ou seja, “destoutras”, como diz o texto (pp. 107-108). Na 
qualidade intrínseca aos presentes oferecidos, estabelece-se uma hierarquia entre os 
dois “irmãos”, possíveis chefes. Eis o primeiro germe de uma estratificação política 
entre os indígenas, que se dá pela diferença entre os favores feitos pelo capitão 
português. Nem sempre a aparência foi boa conselheira para os olhos lusos. Tomada, 
no entanto, ao pé da letra pelo colonizador, acaba por suscitar o exercício do poder 
indiscriminado e eficaz. 
 Em um dos mais polêmicos livros sobre o primeiro século brasileiro, La société 
contre l’état, Pierre Clastres reabre a possibilidade de uma Antropologia política, 
aventando a hipótese de haver existido organizações sociais que se estruturaram sem a 
violência inerente ao “poder coercitivo”, isto é, sociedades humanas que não 
conheceram processos de hierarquização impostos pelo alto. Segundo ele, as 
organizações sociais em que o poder é obtido pelo mecanismo e exercício de coerção 
por parte de poucos e obediência por parte de muitos são apenas um caso particular na 
história das sociedades, e não o geral. Na Antropologia tradicional, em virtude da 
cegueira etnocêntrica, era impossível vislumbrar uma sociedade onde a organização 
social não dependia do uso da força e da violência como causa da aglutinação. Torna-
se importante constatar que Pierre Clastres vai encontrar, nos primeiros documentos 
descritivos da região recém-descobertapelos portugueses, os indícios certos de que o 
 9 
modelo político não-coercitivo existe nas tribos da América do Sul, sendo possível para 
ele comprovar a tese de que “il nous est pas évident que coercition et subordinnation 
constituent l’essence du pouvoir politique partout et toujours” 7. 
 Tal preocupação do colonizador português em detectar o chefe indígena em 
meio à multidão inominada pode ser perseguida em outros textos do período colonial. 
Ainda a favor da tese de Clastres, cite-se esta passagem de Gabriel Soares de Sousa, 
no Tratado descritivo do Brasil em 1587: “Em cada aldeia dos tupinambás há um 
principal, a que seguem somente na guerra onde lhe dão alguma obediência, pela 
confiança que têm em seu esforço e experiência, que nos tempos de paz cada um faz o 
a que o obriga o seu apetite" 8. A obediência ao “principal” (curiosa a ausência da 
palavra “chefe”) só se evidencia em tempo de guerra; cada indígena segue sua própria 
vontade em tempo de paz. 
 Pode-se então levantar a hipótese (só hipótese, pois os textos dos indígenas 
que a comprovariam nos faltam por razões óbvias) de que a liderança coercitiva só 
surge entre os selvagens no momento em que os portugueses (ou outros grupos 
europeus invasores) já não se dão como meros visitantes desconhecidos, assustados e 
temerosos, mas como verdadeiros inimigos, pois passam a querer transformar o índio 
em escravo. A violência entra com o propósito da dominação e da exploração, vale 
dizer, com os ideais da colonização renascentista. Como comprovação dessa hipótese 
basta perseguir o significante “arcos” no texto da Carta de Caminha. 
Desde o primeiro encontro entre portugueses e índios, os olhos europeus 
percebem que os nativos estão “armados”, mas arcos e flechas são imediatamente 
neutralizados pela esperteza lusa. Acompanhemos o movimento interno ao texto. Tão 
 
7 La société contre l’état. Paris, Minuit, 1974, p. 12. Ler, em particular, o capítulo intitulado 
“Copernic et les sauvages”. 
8 Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo. Editora Nacional/USP, 1971, p. 303. 
 10 
logo os marinheiros lhes acenam para que depositem os arcos no chão, obedecem (p. 
87). Não existe por parte dos indígenas o menor sinal de possível revide armado. Tanto 
é que, em página posterior, constata Caminha que o depor armas é já algo ensinado 
pelos marinheiros: “do emsino que dantes tijnham poseram todos os arcos e acenauam 
que saisemos” (p. 97) E na terça-feira, dia 28, quando os navegadores pisam de novo a 
terra, descobrem que os sessenta ou setenta selvagens já estavam “sem arcos e sem 
nada” (p. 102). Os conquistadores já se sentem completamente à vontade, isto é, sem 
medo, para andarem “mesturados” a eles. Duas vezes anota Caminha frases 
praticamente idênticas. Eis uma delas como exemplo: “e [os indígenas] amdauam ja 
mais mansos e seguros antre nosdo que nos amdauamos antreles” (p. 105). 
 À medida que recebem dos conquistadores uma imagem cordial e 
(aparentemente) pacífica e desinteressada, os indígenas vão também, 
sintomaticamente, se desarmando. São mansos -- eis a conclusão a que chega o texto. 
Quanto mais os portugueses procuram detectar um líder no bando, tanto menos 
necessária é a sua necessidade e premência, tanto mais melíflua teria sido a presença 
de um chefe a demarcar o território dos seus comandados contra os invasores. 
 Não é nosso interesse exclusivo -- nesta introdução geral às interpretações do 
Brasil, posteriores à data da Independência, que estão coligidas nestes três volumes -- 
salientar as conseqüências desastrosas da nossa leitura dos textos escritos pelos 
portugueses para o melhor conhecimento futuro do problema da cordialidade como 
mediadora, na história do Brasil, entre dois grupos antagônicos (metropolitanos x 
nativos, fazendeiros x escravos, colonos x independentistas, brancos x negros, patrões 
x operários, etc. etc.), neutralizando tanto manifestações abertas de solidariedade 
comunitária que extravasassem os limites e as regras impostos pelo poderoso clã 
fazendeiro, quanto o estouro de conflitos citadinos, propriamente ideológicos, marcados 
 11 
seja pelo clamor contra as injustiças étnicas 9 ou as de classe social. Não é nosso 
interesse exclusivo centrar o raciocínio na questão da conquista sem violência, nos 
primeiros momentos dessa pseudo-história “incruenta”, para retomar a palavra do 
historiador José Honório Rodrigues 10, forma que foi se disseminando pelos manuais 
escolares de história do Brasil, para se tornar dominante ideológica na análise, pelos 
donos do poder e intelectuais conservadores, de todo e qualquer conflito dentro do devir 
histórico brasileiro 11. 
 Nosso interesse maior é o de não desprezar, a partir do aprendizado que foi 
adquirido nos últimos anos pelas metodologias de leitura, os textos que traduzem, como 
alerta sibilinamente Raymundo Faoro, “o capítulo original da história brasileira, o cenário 
 
9 Há exemplos de contradição que são sempre interessantes de serem analisados. O fazendeiro 
brasileiro não adotou, no trabalho escravo, o sistema norte-americano de “task force”, que 
permitia, como permitiu, que surgissem respostas individualistas à opressão. Aqui foi adotado 
um regime de trabalho mais severo e mais policiado, também coletivo, mas mesmo assim “a 
defesa da autonomia escrava podia manifestar-se tanto por meios acomodativos -- fugas, 
sabotagem de trabalho, ‘preguiça’, etc. -- como expressar-se numa criminalidade violenta que 
atingia, preferencialmente, os senhores e seus prepostos”. Maria Helena Machado, O plano e o 
pânico. São Paulo/Rio de Janeiro, Editora UFRJ/EDUSP, 1994, v. Introdução. 
10 Nesse sentido é indispensável consultar a análise histórica que José Honório Rodrigues fez do 
problema: “A Política de conciliação: História cruenta e incruenta”, seção do livro Conciliação e 
Reforma no Brasil. Rio, Civilização Brasileira, 1975. 
11 Em estudo sobre Iracema, a lenda de José de Alencar, salientamos o fato de que, 
literariamente, o conflito racial é sempre tematizado pelo discurso amoroso. Essa tematização do 
possível conflito entre as duas etnias, através do erotismo dos personagens, visa a explicitar a 
união cordial dos antagonismos pela cópula. Veja-se ainda o poema “A Ilha de Maré”, de Manuel 
Botelho de Oliveira, ou o oitocentista O Cortiço, de Aluísio Azevedo, ou finalmente o 
contemporâneo Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. Perceber-se-á sempre que o 
elemento estrangeiro é do gênero masculino, enquanto o elemento nativo é do feminino. Cf. 
Nossa edição comentada de Iracema. Rio, Francisco Alves, 1975. 
 12 
de outra epopéia [grifo nosso], sem a projeção da outra [a européia], ornamentada pelos 
deuses latinos e pelas letras da Renascença” 12. 
 Por enquanto, também passaremos por cima do fato de que, oficialmente, toda e 
qualquer possível liderança indígena foi sendo anulada para todo o sempre, sendo 
substituída pelo que poderíamos chamar, com a ajuda de historiadores coniventes com 
a versão portuguesa dos fatos, de liderança da aristocracia rural, ou seja, dos “chefes 
de clã”, para retomar a expressão de Oliveira Vianna 13. E aqui voltamos ao nosso 
primeiro parágrafo, não sem antes acrescentar que a liderança (política, social, 
econômica, estética, etc.) da região estava para sempre em mãos brancas (ou 
mestiças) e que se expressava, como previam os gramáticos renascentistas Fernão de 
Oliveira e João de Barros, em língua portuguesa, a companheira do Império. A não ser 
que fosse importante lembrar, galhofeiramente, o projeto de lei, utópico e intempestivo, 
do funcionário público Policarpo Quaresma,criação magistral do romancista Lima 
Barreto. Por desejo e crença dele, o presidente da República decretaria o tupi-guarani 
como a língua oficial destas terras 14. Nao é à toa que, na repartição pública em que 
estava lotado, o apelido do personagem romanesco era o nome do pré-cabralino 
 
12 Os Donos do Poder. Porto Alegre/São Paulo, Globo/USP, 1975, v. I, p. 154. 
13 Esclarece Oliveira Vianna: “O seu caráter [do clã fazendeiro brasileiro] é mais patriarcal do que 
guerreiro, mais defensivo do que agressivo, e a sua estrutura menos estável, menos coesa, 
menos definida e perfeita, e mais flúida; mas, pela sua origem, pela sua composição, pelo seu 
espírito, ele está dentro das leis constitucionais desse tipo de organização social...” V. 
Populações meridionais do Brasil, cap. VIII, “Gênese dos clãs e do espírito de clã”. 
14 Vale a pena lembrar um trecho da petição: “Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, certo de 
que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o 
escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vêem na humilhante contingência de 
sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua [...], usando do direito que lhe 
confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani, como língua 
oficial e nacional do povo brasileiro”. Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma. São 
Paulo, Brasiliense, 1970, p. 61. 
 13 
Ubirajara. Já Lima Barreto não lhe economiza elogios: “É raro encontrar homens assim, 
mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente 
sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança 
na felicidade da raça” (p. 63). 
 Esquecendo galhofa e elogio, vale a pena lembrar que, até mesmo entre os 
letrados, é a língua oral portuguesa que domina entre nós até inícios do século XIX, em 
virtude de vício básico na Ratio Studiorum dos jesuítas. Leiamos a lição de Celso 
Cunha: 
Sem núcleos culturais capazes de irradiar um padrão idiomático, sem 
Universidades, com um número insignificante de escolas de primeiras letras -- as 
únicas que ensinavam o idioma [português] --, sem imprensa (lembre-se que o 
primeiro texto impresso no Brasil data de 1808, quando da transferência da 
Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro), com a população realmente produtiva 
espalhada pelas fazendas e engenhos, a língua oral passou a seguir os seus 
caminhos sem nenhum controle normativo. 
Lembra ainda o citado mestre que, até 1759, o sistema pedagógico adotado tanto em 
Portugal como em suas colônias, nos níveis que hoje chamaríamos de secundário e 
superior, “não incluía o ensino de português, ensino que se restringia à alfabetização 
nas escolas menores”. De acordo com as regras de ensino praticadas pelos jesuítas, os 
alunos “passavam da alfabetização diretamente para o latim da Gramática do Padre 
Manuel Álvares, inteiramente escrita nessa língua”. Como se sabe o modelo jesuítico de 
ensino vai receber condenação na Reforma Pombalina, em consonância com os 
ensinamentos de Luís Antônio Verney, autor do Verdadeiro método de estudar 15, para 
 
15 “Este livro, que deu lugar a uma violenta e demorada polêmica, marca o fim do reinado da 
escolástica em Portugal. Verney escreveu-o para atacar as instituições pedagógicas, jesuíticas e 
medievais, que subsistiam em Portugal, e para propor a sua substituição”. Antônio José Saraiva, 
História da Literatura Portuguesa. Lisboa, Europa-América, 1963, p. 92. 
 14 
quem ”o primeiro princípio de todos os estudos deve ser a gramática da própria língua” 
16. 
 Se a Reforma pombalina, ao tornar obrigatório o uso oficial da língua portuguesa 
em todo o território colonial e por todos os brasileiros, por um lado acaba de vez com a 
possibilidade do ressurgimento das línguas indígenas entre nós como força viva de 
comunicação entre povos não-europeus (como se pode ler nas “coercitivas medidas 
tomadas pelo Diretório de 3 de maio de 1757, aplicadas primeiro ao Pará e Maranhão, 
estendidas em 17 de agosto de 1758 a todo o Brasil” 17), por outro lado, é ela que, ainda 
na colônia, faculta a um pequeno público alfabetizado, a leitura das traduções dos 
filósofos enciclopedistas, que estão na base dos primeiros e dos vários movimentos de 
Independência. Lembra Paulo Prado no Retrato do Brasil: “No Brasil, as primeira 
tentativas nacionalistas ligaram-se à declaração da Independência dos Estados Unidos, 
onde frutificava no campo prático a propaganda iniciada pela Enciclopédia e pelos livros 
incendiários de Voltaire, de Brissot e de Raynal. precursores da própria Revolução 
Francesa” 18 
 
 [espaço] 
 
 Detenhamo-nos no cenário dessa outra epopéia, sem deuses latinos e sem 
sapiência renascentista, de que fala Raymundo Faoro. A definição político-social da 
 
16 Cf. Celso Cunha. “Um pouco de História”, A questão da norma culta brasileira. Rio de Janeiro, 
Tempo Brasileiro, 1985, pp. 71-76.. 
17 Cf.: “[...] será um dos principais cuidados dos Diretores estabelecer nas suas respectivas 
povoações o uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum que os Meninos e 
Meninas, que pertencerem às escolas, e todos aqueles índios, que forem capaz de instrução 
nesta matéria, usem da língua própria das suas nações ou da chamada geral {...]”. Apud Celso 
Cunha, idem, p. 80. 
18 Retrato do Brasil. cap. 4, “O romantimo”. 
 15 
liderança econômica nativa é dada, de maneira estruturada e hegemônica, desde o 
primeiro parágrafo de Cultura e opulência do Brasil, de André João Antonil (1711). O 
recurso estilístico usado pelo autor será, desde então, o que tem determinado o padrão 
lingüístico no processo de configuração da arquitetura do poder brasileiro. Define-se o 
ser político-social brasileiro (por exemplo: o que é o senhor de engenho?) pela 
comparação 19 da figura dele com a figura correspondente na organização social 
européia, gerando como conseqüência um deslocamento semântico, geográfico e 
temporal bastante significativos. Seria oportuno abrir antes um parêntese, para lembrar 
um dos magistrais ensinamentos de Roland Barthes. Lembra-nos ele que toda frase é 
hierárquica, e continua: “elle implique des sujétions, des subordinnations, des rections 
internes. De là son achèvement: comment une hiérarchie pourrait-elle rester ouverte?” 20 
 Voltando ao texto de Antonil, observamos que as duas forças econômicas mais 
fortes no Brasil -- o senhor de engenho e o colono -- são dadas como semelhantes, 
respectivamente, à do fidalgo e à do cidadão europeus. E, ao mesmo tempo em que 
 
19 O padrão lingüístico estabelecido pela comparação entre duas regiões com posições 
assimétricas no tempo histórico já está na Carta de Caminha. Por não terem vergonha de suas 
vergonhas, os selvagens não conheciam nem o pecado nem o trabalho, e viviam numa época 
pré-adâmica. Do ponto de vista da história da humanidade, a comparação assinala o 
compromisso dos colonizadores com o monogenismo. Explica Ricaro Benzaquen de Araújo: 
“Assim, o monogenismo termina por converter a história da Europa numa espécie de 
prefiguração da marcha da humanidade, em um processo que tomaria essa história como um 
modelo cujos diversos estágios forneceriam a chave para a compreensão dos momentos 
específicos -- mas de forma alguma singulares -- enfrentados por cada uma das várias 
sociedades na realização do seu destino comum. As diferenças geográficas seriam assim 
drasticamente reduzidas pela sua inclusãonum mesmo eixo de tempo, o qual, transformado em 
uma linha que se movimenta sempre para a frente, confundindo-se com o progresso, parecia 
garantir que todas as raças teriam finalmente a mesma rota e a mesma sorte, só que ambas 
regidas por valores eminentemente ocidentais”. Guerra e Paz. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994, 
pp. 36-37. 
20 Le plaisir du texte. Paris, Seuil, 1973, p. 80. 
 16 
compara uma a uma as quatro figuras no tabuleiro da colonização, estabelecem-se dois 
padrões de hierarquia. Um que é ditado pelo original e pela cópia, cópia esta que cópia 
sempre será e que nunca almeje a ser original. E um segundo padrão, que agora nos 
interessa mais de perto, que é o que define a hierarquia na sociedade brasileira 
colonial. Assim como os cidadãos dependem dos fidalgos na Europa, assim também os 
lavradores, ou homens livres na ordem escravocrata, para retomar a expressão de 
Maria Sylvia de Carvalho Franco, dependem dos senhores de engenho no Brasil. 
Na medida em que a pirâmide do poder é estabelecida na colônia, fácil é 
compreender a primeira frase de Cultura e opulência do Brasil: “O ser senhor de 
engenho é título a que muitos aspiram [...]”. 21 No entanto, se na Europa, o título 
nobiliárquico é concedido pelo Rei, ou pelo próprio status familiar do indivíduo, aqui o 
título [de nobreza nativa?] é conferido pelo texto (ainda que ele não o delegue 
claramente a fulano e a sicrano mas a um determinado e minguado número de 
colonos). Ele é conferido a um colono que se afirmou no governo dos homens e no 
trabalho da terra de que é proprietário, graças à capacidade de explorar o trabalho 
servil, de modo semelhante ao que acontecia no regime feudal europeu. 
 É significativo que o terceiro e o quarto segmentos sociais encontrados na 
colônia (o senhor e o homem livre seriam os dois primeiros, pois estamos excluindo da 
nossa discussão o “clero”) se ligam, direta e respectivamente, uns pelas mãos e os 
outros pelos pés, ao senhor de engenho. Surge uma outra série de comparações no 
tratado de Antonil. Só que, neste caso, como é total a dependência do terceiro e quarto 
segmentos humanos ao senhor de engenho, o campo semântico das definições ficará 
restrito ao vocábulo corpo -- o corpo do senhor de engenho. De resto, desde que 
estabelecido o vértice superior da pirâmide -- o senhor e, abaixo, o homem livre -- as 
 
21 São Paulo, Editora Nacional, s/d. Introdução e vocabulário por A. P. Canabrava. P. 139. 
 17 
comparações com a sociedade européia moderna teriam de desaparecer do texto de 
Antonil, pois lá na metrópole não existe mais a escravidão negra. Trata-se de questão 
restrita à colônia, ou seja: uma colônia dentro de uma colônia. Retome-se o ponto de 
partida. Daí o senhor de engenho ser semelhante a um fidalgo, subalterno, mas ainda 
fidalgo. 
 O terceiro e o quarto segmentos sociais são os feitores (governo da fazenda) e 
os escravos (trabalho servil). Vejamos como os feitores são descritos por Antonil: “Os 
braços de que se vale o senhor de engenho para o bom governo da gente e da fazenda, 
são os feitores” (p. 151). Repare-se, no entanto, que são “braços” que não podem 
aspirar à condição de “cabeças”. O texto não deixa dúvidas: “se cada um deles [feitores] 
quiser ser cabeça [senhor], será o governo monstruoso e um verdadeiro retrato do cão 
Cérbero, a quem os poetas fabulosamente dão três cabeças”. E continua: “Eu não digo 
que se não dê autoridade aos feitores; digo que esta autoridade há de ser bem 
ordenada e dependente, não absoluta, de sorte que os menores se hajam com 
subordinação ao maior, e todos ao senhor a quem servem” (p. 151). Mais claro, 
impossível. 
 Se entre o primeiro segmento social e o terceiro há dependência e subordinação 
à cabeça do senhor de engenho e a diferença reside no uso que um e o outro fazem 
com o braço, entre o terceiro e o quarto segmentos sociais são os pés que se ajuntam 
às mãos, para configurar a figura e o papel, bem como a função do escravo nas terras 
lucrativas do açúcar e do tabaco. Apesar de ser o escravo o último na escala 
hierárquica, reza o texto de Antonil que é o único verdadeiramente indispensável para a 
empreitada da colonização (v. adiante, nota 44). Leiamos: “Os escravos são as mãos e 
os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, 
conservar e aumentar fazenda nem ter engenho corrente” (p. 159). 
 18 
Na verdade, a imagem de um “corpo branco” de senhor, com mãos e pés de 
“escravos negros”, é mais esdrúxula do que aquela imagem do cão Cérbero. Mas a 
lógica retórica não é o forte dos nossos primeiros e rudimentares pensadores políticos. 
 Sem querer entrar no mérito duma questão que seria melhor explicitada por 
análise e interpretação feitas por sociólogos ou economistas, gostaríamos de retomar 
novamente a importância que tem, nestes textos que estamos lendo, o recurso à 
comparação entre os valores europeus, já estabelecidos e consagrados, e os valores 
brasileiros, indefinidos até o momento da publicação de cada novo livro interpretativo da 
nova realidade. 
 A justeza da relação entre a realidade européia e a realidade que se lhe ajunta 
por comparação, colonialmente, só pode tomada ao pé da letra caso se aceite sem 
questionar o desígnio do texto, que é o de estabelecer para a terra e o homem 
brasileiros (índios e escravos y inclus) uma estrutura de poder convincente, paralela e 
subalterna. Uma estrutura de poder altamente hierarquizada e “justa”, cujo fim é o de 
dar estatuto social condigno àquele que, por sua situação econômica extraordinária, por 
sua posição de mando no local de que é único responsável, se situa no alto da 
pirâmide. Da mesma forma, a possível coerência dentro do sistema estabelecido de 
comparações (cabeça, mãos, pés -- em ordem decrescente de poder, descendo para o 
chão e para o trabalho servil 22) dependeria ainda do fato de que tinha de se passar 
uma imagem verossímil da estrutura social brasileira e da maneira como esta própria 
estrutura letrada ia, ao mesmo tempo, lendo, interpretando a realidade, fixando de 
maneira legal e livresca os diversos escalões. 
 Portanto, toda discussão sobre a adequação, ou não, da realidade comparada 
portuguesa à realidade brasileira que se lhe ajunta, pode ser exata dentro de uma visão 
 
22 Gilberto Freyre dedica páginas importantes ao ócio do senhor de engenho. Casa Grande & 
Senzala. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973, pp. 428-429. 
 19 
europeocêntrica, mas será sempre frustrante como alimento para análises futuras, pois 
apenas insistirá na falsidade do recurso à comparação, vale dizer, da interpretação, 
sem indagar o por quê dela. Disso, por exemplo, não pôde escapar A. P. Canabrava, 
lúcida comentadora de Cultura e opulência do Brasil: “Em tão alta conta [Antonil] tem a 
qualificação de senhor de engenho, que a iguala a um título de nobiliarquia dos fidalgos 
do Reino. Na América Portuguesa esta nova fidalguia se acomodava aos padrões de 
base econômica marcadamente mercantil”. E continua mais abaixo: a comparação é 
uma “estranha transposição de um tipo de relação de mundo medieval, para formas de 
condição econômico-social de natureza completamente distinta que caracterizaram na 
Colônia o uso da terra” (p. 41). 
 Portanto, antes de mais nada a comparação tem a função precípua e oficiosa de 
definir a hierarquia de poder no Brasil (ainda que o sistema utilizado e legitimado pela 
tradição histórica seja totalmente equivocado, caso se tome o sentido preciso dos 
conceitos europeus e o estágio histórico-econômico por que passam ambas as regiões). 
Se, como diz na nossa época McLuhan,os meios de comunicação são extensões do 
homem, naquela época a força-trabalho das mãos e pés negros era uma extensão da 
“cabeça” branca do senhor de engenho. A ociosidade das outras mãos e dos outros pés 
-- os brancos -- do senhor só é possível por ter sido o seu trabalho delegado ao feitor 
(mando) e ao escravo (obediência e labuta servil). Dentro dessa visão ampla e bicolor 
do corpo do senhor de engenho 23 é que se justifica o seu governo e o seu prestígio 
 
23 A mesma atitude de ampliação do corpo do senhor de engenho como uma forma 
inquestionável de poder se encontra até mesmo em autor modernista, como José Lins do Rego. 
Em Menino de Engenho, o corpo do senhor de engenho confunde-se magicamente com toda a 
extensão da sua propriedade. Leiamos um trecho significativo do romance: “Ninguém lhe [ao 
senhor do engenho] tocava num capão de mato, que era mesmo que arrancar um pedaço de seu 
corpo”. Rio de Janeiro, José Olympio, 1971, p. 38. 
 20 
enquanto ser sócio-econômico junto à Coroa portuguesa e aos pares. De todos os 
habitantes da colônia, ele é a cabeça e é o cabedal. 
 O intento e a reflexão finais do texto de Antonil visam à singularização do senhor 
de engenho no topo da escala sócio-econômica da colônia brasileira. Trata-se de ajudar 
a ele, que realmente o merece, a obter as graças do Rei e os favores burocráticos. No 
último parágrafo de Cultura e opulência do Brasil, lê-se: “Se os senhores de engenhos, 
e os lavradores de açúcar e do tabaco são os que mais promovem um lucro tão 
estimável, parece que merecem mais que outros preferir no favor e achar em todos os 
tribunais aquela pronta expedição que atalha as dilações dos requerimentos e o enfado 
e os gastos de prolongadas demandas” (p. 316). Nessa frase não encontramos a 
linguagem do mero tratado descritivo que o livro propunha a ser, mas a voz exigente e 
possante do lucro colonial e da reivindicação de favores junto ao poder metropolitano. 
No possível jogo entre a empresa açucareira, que se quer semi-independente, 
agressiva, lucrativa e esguia, e a burocracia do Estado, que se dá enferrujada e 
morosa, nesse jogo em que as pedras são marcadas pelo próprio texto laudatório de 
Antonil, o árbitro máximo da partida, o Rei, ou o presidente da República nos dias 
atuais, não poderá ter dúvidas em indicar o privilegiado. Ou as terá? 
 A ratificar a nossa leitura vem em apêndice a Cultura e opulência do Brasil a 
“Licença do Santo Ofício”, assinada na própria Lisboa pelo Fr. Paulo de São 
Boaventura. Ali se lê que, pelo livro em questão, “saberão os que quiserem passar ao 
Estado do Brasil, o muito que custam as culturas do açúcar, tabaco e ouro, que são 
mais doces de possuir no reino que de cavar no Brasil” (p. 135). Sintomático é que -- na 
presença do Rei -- a linguagem mais rebelde dos portugueses – aquela que diz que os 
reinóis devem ser preteridos aos que labutam no Brasil -- cerca-se sempre de um tom 
humorístico, de onde não se exclui até mesmo o trocadilho. Nas palavras do Fr. Paulo 
de São Boaventura, o jogo entre o doce de possuir no reino e o trabalho duro de cavar 
 21 
no Brasil, ligado ao campo semântico da produção do açúcar e do tabaco. No caso do 
Padre Antônio Vieira, no “Sermão da Sexagésima”, proferido em 1685 na Capela Real 
(Lisboa), há um trocadilho que não só visa a glorificar o trabalho missionário dos 
jesuítas na colônia brasileira como também tem sustentado as inumeráveis discussões 
sobre cultismo e conceptismo: “Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-ei 
com mais Paço; os de lá, com mais passos.” 
 
 [espaço] 
 
 Sempre me intrigou a maneira como o romântico José de Alencar escolhia, 
durante a gestação dos seus romances históricos/indianistas, tanto os heróis quanto os 
vilãos. Por que escolheu D. Antônio de Mariz para personagem principal de O Guarani 
(1855)? Por que abriu a ação do romance precisamente naquela época, início do século 
XVII, quando Portugal estava sob o jugo do Rei espanhol? Por que cercou o fidalgo de 
aventureiros, destituídos de qualquer sentido moral? 
 Retomando a diretiva da nossa leitura dos textos descritivos e ensaísticos do 
período colonial, mas agora adentrando-se tanto pelo texto ficcional quanto pelo período 
pós-colonial, percebe-se que o interesse dos brasileiros recém-independentes, 
primeiros responsáveis por um discurso legitimamente nacional, vai para um líder que 
seja capaz de montar, de organizar por conta própria, numa determinada zona do 
território colonial brasileiro (ainda que diminuta), um arremedo de governo, ainda que 
ele próprio confesse, paradoxalmente, ainda dever obediência a Portugal e não à 
Espanha. Para tal tarefa, Alencar deixa claro, o chefe nativo tem de ter cabedal próprio 
para conseguir dissociar os seus próprios interesses financeiros dos interesses dos 
pares no Reino, isto é, ele é um empresário autônomo na nova terra, portanto sem 
dependência econômica direta da Coroa portuguesa. E mais importante: ele deve ser 
 22 
fonte de lucro para ela. É dessa forma, tinha-nos alertado Antonil, que o bom 
colonizador consegue fazer valer o seu valor na Corte e merecer o título de fidalgo. 
 Sintomaticamente, Alencar, ao elaborar em 1855 o seu primeiro romance 
histórico, escolhe D. Antônio em situação bastante exemplar, que se presta a uma 
interpretação complexa e sugestiva da liberdade/fidelidade do colono brasileiro via-à-vis 
de Portugal. Tanto mais complexa é a situação dramatizada porque o país 
metropolitano, naquela época, vive sob o domínio espanhol. Leiamos os dois primeiros 
capítulos de O Guarani 24. 
 D. Antônio é um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Combateu os 
inimigos da sua pátria (franceses e selvagens) com o fim de consolidar o “domínio de 
Portugal nessa capitania”. Com a espada, ajudou a Mem de Sá nas tarefas de 
colonização e por ele foi recompensado com “uma semaria de uma légua com fundo 
para o sertão” (p. 30), onde constrói seu (diz o romance) castelo feudal. É nessa 
sesmaria que o leitor vai encontrá-lo, abrindo “a pesada porta de jacarandá que serve 
de entrada” para o castelo e o romance. O motivo por que abandona a capitania do Rio 
de Janeiro e se embrenha pelo sertão é logo explicitado: Portugal tinha caído nas mãos 
dos Filipes: “Quando, pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. Filipe II como o sucessor 
da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço” 
(p. 30). 
 Tal atitude do fidalgo -- fiel por um lado a Portugal e livre por outro da metrópole 
no estado lastimável em que está -- abre-lhe a possibilidade de articular, dentro de uma 
sesmaria, o seu pequeno e próprio poder de mando e exercer plenamente o governo 
naquele território. Poder de mando e governo desvinculados -- e, ao mesmo tempo, não 
-- de Portugal, num gesto semelhante à futura atitude de D. João VI, ao transferir o 
 
24 Todas as citações de O Guarani e demais obras de Alencar foram extraídas do v. II da Obra 
completa. Rio, Aguilar, 1964. 
 23 
verdadeiro Portugal para o Brasil em 1808. Surge, dessa forma, dentro do romance 
alencarino, o tema colonial por excelência, o da independência e da liberdade, com toda 
uma conotação ambígua que procuraremos analisar. Se o discurso de Antonil é dirigido 
ao Rei português, o de O Guarani já nos diz que o Rei não é mais o bom interlocutor do 
fidalgo brasileiro, pois aquele que reina sobre Portugal é falso. O verdadeiro Rei é 
interiorizado no senhor brasileiro (que assim pode desobedecer ao falso, preservando 
dentro de si a fidelidade ao verdadeiro). 
 A sesmaria de D. Antônio é livre com relaçãoao Portugal filipino. Ali está se 
estabelecendo um senhor (“fidalgo”, se ecoarmos o texto) brasileiro, com plenos 
poderes. Independência e liberdade aparecem de maneira um tanto implícita, já que o 
senhor continua disposto a prestar obediência a Portugal. Leiamos, com o cuidado 
requerido, dois fragmentos de frases, situados em passagens diferentes do romance. 
Fala D. Antônio: “Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu 
braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal [...]”. A segunda diz: “[...] esse pedaço de 
sertão, não era senão um fragmento de Portugal livre”. Vemos que, jogando com o 
conceito de independência e liberdade relativas, consegue D. Antônio introjetar 
Portugal, no seu próprio negócio sócio-econômico colonial, legitimando-o à moda de D. 
João VI. Pode, assim, constituir-se em “senhor de baraço e cutelo, de alta e baixa 
justiça dentro de seus domínios” (p. 32). 
 Torna-se de novo imperioso preocupar-se com as comparações que o texto 
alencarino apresenta entre os elementos da metrópole e os da colônia. Como no tratado 
de Antonil, elas visam a dar um status social ao colono, no caso, rebelde, e ao grupo de 
aventureiros que o cercam, bem como à casa que abriga a todos. As comparações 
fluem no romance sem nenhum pejo. D. Antônio de Mariz, já vimos, é fidalgo. Os 
aventureiros, vassalos. A casa “fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média”. 
Percebe-se que, apesar de não se tratar de um senhor de engenho, apenas um 
 24 
empresário, no sentido moderno da palavra, as comparações servem para recobrir o 
território e os habitantes com o mesmo campo semântico feudal e medieval encontrado 
em Antonil. 
 E mais ainda: se em Antonil a lógica entre a realidade comparada (Portugal) e a 
que se lhe compara (Brasil) é totalmente desprovida de justeza histórica, por razões que 
só um especialista pode detectar, tal o mascaramento sutil que o tratado opera quando 
se refere às verdadeiras relações econômicas que norteavam a empresa açucareira na 
colônia, em O Guarani já não se dá o mesmo. O texto aponta e alerta para o processo 
de mascaramento e para os desacertos violentos da colonização portuguesa. Os 
aventureiros são primeiramente apresentados como “pobres, desejosos de fazer fortuna 
rápida e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e 
vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando de ouro e pedras preciosas que 
iam vender na costa”. Poucas linhas abaixo já são vistos pelo narrador de uma 
perspectiva oposta: “O fidalgo recebia [os aventureiros] como um rico-homem que devia 
proteção e asilo aos seus vassalos [...]” (p. 31). E, em nota, Alencar informa: “Esse 
costume tinha o que quer que seja dos usos da Média Idade, e a necessidade o fez 
reviver em nosso país onde faltavam tropas regulares para as conquistas e 
explorações”. Aqueles aventureiros pobres, ambiciosos e contrabandistas, e estes 
vassalos de um rico senhor, funcionando em tropas regulares, serão eles os mesmos, 
ética e judicialmente? 
 A dubiedade da figura (aventureiro e vassalo ao mesmo tempo) só pode ser 
melhor compreendida, e com mais rigor, num outro nível, levando em conta 
determinado padrão de pensamento de Alencar, que transcende o autor e a sua época. 
Toda atitude de poder coercitivo por parte do chefe não é frontalmente aberta; o gesto 
explicitamente autoritário só se dá em circunstâncias excepcionais. Depois de definir D. 
Antônio como “senhor de baraço e cutelo”, como vimos, acrescenta: “devemos declarar 
 25 
que rara vez se tornara preciso a aplicação dessa lei rigorosa; a severidade tinha 
apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia” (p. 32). 
 O chefe alencarino, fidalgo nas terras brasileiras, guarda muito da transparência 
do “principal” indígena, como o descreveu Gabriel Soares de Sousa e comentou Pierre 
Clastres. O poder não sendo necessariamente coercitivo, ele se manterá como tal 
porque a hierarquia é freqüentemente marcada de maneira inquestionável no texto. Em 
outras palavras: a liderança é mais conseqüência de uma hierarquização rígida dos 
diversos integrantes na organização social do que resultado de ordens violentas e 
repressivas por parte de quem detém o mando. Como a hierarquização é sólida e 
inquestionável, pois advém de valores categóricos tomados de empréstimo à rigidez da 
estratificação social européia, cada um sabe o lugar que ocupa e que é o certo. O 
imobilismo social congela todos os elementos da comunidade dos brancos e mestiços. 
E o texto literário romântico, pós-colonial, serve exatamente como efeito de coágulo. 
 Dentro da sociedade colonial branca, tal qual retratada por Alencar, apenas uma 
exceção é aberta para um não-branco. Para o selvagem. Ele foge à regra da ordem 
escravocrata porque é absolutamente livre 25. Por efeito de contraste, todos os demais 
elementos diferentes-do-selvagem estão presos, fixos e estáticos social e 
economicamente. Sem dúvida, não existe maior elogio social à figura do indígena do 
que este, maior isenção de preconceito contra a sua figura durante a colonização 
portuguesa nos trópicos. Dentro de uma organização sócio-econômica hierarquizada, 
 
25 Obviamente em Ubirajara, romance cuja ação se passa em tempos pré-cabralinos, o selvagem 
não é dado em liberdade social. Encontra-se entre os seus semelhantes, no interior de uma 
hierarquização sócio-política paralela e tão rígida quanto a européia. Isso, de novo, graças ao 
recurso da comparação. A liberdade do selvagem, em O Guarani, cuja ação, repitamos, se 
passa no século XVII, existe porque ele está fora/dentro da sociedade dos brancos. Tem, 
portanto, mais a ver com a ausência de preconceito de Alencar, do que com a lógica das suas 
narrativas. 
 26 
rígida, é o autóctone o único indivíduo que tem o poder de mobilidade. Se for inimigo, é 
enfrentado na guerra. Caso seja tomado como cativo, é vassalo. Corrobora o texto: 
“quando [os selvagens] nos respeitam são vassalos de uma terra que conquistamos, 
mas são homens”. Quando são “nobres” no seu próprio meio, podem se inscrever num 
escalão mais alto dentro da hierarquia brasileira europeizada, mas neste caso não 
existe ascensão social, apenas absorção digna: “Peri estendeu o braço e fez com a 
mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavalheiros que 
continuassem a sua marcha” (p. 39). 
 O mesmo não pode ser dito a respeito do negro, pois em nenhum texto do 
período, que conhecemos, se tematiza a natureza “nobre” do africano e menos ainda 
sua mobilidade social 26. Daí a palavra dura de Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo, 
retomando palavras antigas de José Bonifácio no exílio (“Sem a emancipação dos 
atuais cativos nunca o Brasil firmará a sua independência nacional e segurará e 
defenderá a sua liberal constituição.”), admoestando em 1883 os brasileiros: 
No processo do Brasil um milhão de testemunhas hão de levantar-se contra nós, 
dos sertões da África, do fundo do oceano, dos barracões da praia, dos 
cemitérios das fazendas, e esse depoimento mudo há de ser mil vezes mais 
valioso para a história do que todos os protestos de generosidade e nobreza 
d’alma da Nação inteira. 
 
26 Na literatura brasileira do século XIX, o melhor exemplo de imobilismo social do negro se 
encontra no romance O cortiço (1888). Todos os elementos humanos pretos, ou mulatos, não 
conhecem forma alguma de ascensão social durante o desenrolar da ação. Existe, quando 
muito, um “aprimoramento” da raça negra, possibilitado pelo casamento (ou pela simples união) 
de preta com branco, ou vice-versa. A ascensão socialsó existe para o “homem do sobrado”, o 
português Miranda, que se torna barão, e para o também português João Romão que, para tal, 
tem de abandonar definitivamente a negra Bertoleza. Deve-se excetuar, no período da 
Independência, as idéias defendidas por José Bonifácio durante o período da Constituinte. 
Joaquim Nabuco levanta a hipótese: “Até que ponto as idéias conhecidas de José Bonifácio 
sobre a escravidão concorreram para fechar ao estadista que planejou a Independência a 
carreira política em seu próprio país, é um ponto que merece ser estudado” (p. 57). 
 27 
 
 [espaço] 
 
Se o romance de José de Alencar tematiza de maneira inequívoca a oscilação 
entre a fidelidade a Portugal como sentido da civilização brasileira (o país é o único que, 
depois da Independência, acata o regime dinástico nas Américas, isso graças ao acaso 
da imigração de D. João VI em 1808, fugindo de Napoleão) e a aspiração à 
independência nacional como domínio das riquezas naturais pelos mais bem situados 
na hierarquia determinada pelo dinheiro e o mando, se o romance se fortalece com a 
heroicidade tanto do fidalgo/colono, empresário na nova terra, quanto com a do 
autóctone/selvagem, depositário de todos os valores morais de liberdade, se o romance 
se fertiliza com a dubiedade da figura do aventureiro/vassalo, lembrando sem dúvida a 
“dialética da malandragem” que caracteriza a situação do homem livre na ordem 
escravocrata de que Antonio Candido foi o intérprete mais feliz 27, se o romance 
esconde por detrás de algum misterioso telão ideológico a mancha da escravidão 
negra, não há dúvida de que ali, naquele conjunto disparatado, está apesar de tudo 
uma imagem escrita de Brasil que se apresenta como uma “comunidade política 
imaginada” 28, para retomar a expressão de Benedict Anderson. A comunidade se 
organiza, não pelos laços sangüíneos, mas em virtude de todos os seus membros 
adotarem, consciente ou inconscientemente, a máxima dos gramáticos renascentistas, 
 
27 “Dialética da malandragem”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, 1970, n. 8. 
Para uma leitura crítica desse texto, consultar: Roberto Schwarz, “Pressupostos, salvo engano, 
de ‘Dialética da Malandragem’ “, Esboço de figura, homenagem a Antonio Candido, pp. 133-151. 
28 Em artigo datado de 1964, que retomaremos adiante, José Guilherme Merquior, anuncia 
algumas teses de Benedict Anderson. Vejam, por exemplo, esta definição do poeta que escreve 
“A canção do exílio”: “um melancólico aspira a um país edênico, a uma terra ideal, a uma pátria 
sonhada e, de sonhada, idealizada” . “Poema do lá”, Razão do poema. Rio de Janeiro, 
Civilização Brasileira, 1965, p. 49. 
 28 
“a língua companheira do Império”. Esta, por sua vez, foi passando, século após século, 
e em transparência, os novos valores religiosos 29. A língua portuguesa dá forma ao 
Brasil-nação, fechando-o na sua singularidade, ao mesmo tempo em que serve de 
instrumento para diferençá-lo da multidão dos países-nações limítrofes e vizinhos que 
ganham significado através da língua espanhola. 
“Ela é imaginada” – escreve Anderson – “porque nem mesmo os membros das 
menores nações jamais conhecerão a maioria dos seus compatriotas, nem os 
encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva 
a imagem da sua comunhão” (p. 14). Sem dúvida, essas palavras, ao se referirem ao 
romance de José de Alencar, onde o senso da comunidade se casa com a capacidade 
de esquecer manchas negras tão importantes quanto o próprio sentido da 
nacionalidade, não deixam de lembrar outras palavras também pertinentes, agora de 
Renan: “Or l`essence d`une nation est que tous les individus aient beaucoup de choses 
en commun, et aussi que tous aient oublié bien des choses”. 
Para Anderson a nação é imaginada e, como tal, como uma comunidade 
limitada e soberana. Citemos as definições dos três termos. Primeira: “A nação é 
imaginada como limitada, porque até mesmo a maior delas, que abarca talvez um 
bilhão de seres humanos, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das 
 
29 Benedict Anderson lembra o édito de San Martín batizando os índios de fala quíchua como 
“peruanos”. Para ele, San Martín “demonstra que desde o início a nação foi concebida pela 
língua, não pelo sangue, e que qualquer um pode ser ‘convidado a entrar’ para a comunidade 
imaginada” (p. 159). Contrastar com as observações feitas por Celso Cunha, parágrafos atrás, e 
também com esta observação, um pouco tardia sem dúvida, de Joaquim Nabuco em O 
abolicionismo: ”A sociedade colonial era por sua natureza uma casa aberta por todos os lados 
onde tudo era entradas; a sociedade da mãe pátria era aristocrática, exclusiva, e de todo 
fechada à cor preta. Daí a conspiração perpétua dos descendentes de escravos pela formação 
de uma pátria que também fosse a sua. Esse fator de desagregação foi o fator anônimo da 
Independência” (p. 54). 
 29 
quais encontram-se outras nações. Nenhuma nação se imagina coextensiva com a 
humanidade”. Segunda: “E imaginada como soberana, porque o conceito nasceu numa 
época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino 
dinástico hierárquico, divinamente instituído. […] O penhor e o símbolo dessa liberdade 
é o Estado soberano”. Terceira: “Finalmente, a nação é imaginada como comunidade 
porque, sem considerar a desigualdade e exploração que atualmente prevalecem em 
todas elas, a nação é sempre concebida como um companheirismo profundo e 
horizontal” (pp. 14-16). 
Fato mais extraordinário vai acontecer no romance Memórias póstumas de Brás 
Cubas, de Machado de Assis, especialmente no capítulo que leva por título “Um 
episódio de 1814” 30, ou seja, momento em que chega ao Rio de Janeiro a notícia da 
primeira queda de Napoleão (renúncia à coroa e exílio em Elba). O narrador 
machadiano, ao se interessar pelas relações entre a Europa e o Novo Mundo, entre o 
país metropolitano e o país colônia, esquece definitivamente a retórica da comparação 
que, como vimos, era utilizada pelos autores precedentes para articular o modo coeso 
como a cópia era um prolongamento do modelo, instaurando ao final a semelhança-
com-diferenças como figura entre as partes envolvidas no processo descritivo. Para 
Machado, a história se passava num tempo homogêneo e vazio, havendo apenas uma 
ligeira defasagem temporal entre o lá e o cá, que se explicava pelo atraso social, 
esperado e justo na vida em colônia. Para a colônia, havia uma referência horizontal, 
tranversal ao tempo histórico -- a metrópole. 
Ao pôr um fim no recurso retórico da comparação, o capítulo machadiano toma a 
forma de uma pedra que ricocheteia sobre a mansidão das águas de um lago, criando 
círculos concêntricos cujo significado é simultâneo e sempre relativo. Os eventos 
 
30 Obra completa. Rio de Janeiro, José Aguilar Editora, 1971, vol. I, pp. 528-531. 
 30 
históricos e corriqueiros (o narrador se interessa mais pelo espadim que ganhou do 
padrinho do que pela queda de Napoleão -- “o nosso espadim é sempre maior do que a 
queda de Napoleão”) são paralelos e, aparentemente, destituídos de nexo causal. A 
pedra fere o centro das atenções: a primeira queda de Napoleão na Europa e as 
conseqüências do acontecimento sobre a situação ambígua de Portugal, de D. João VI 
e o Brasil. O círculo seguinte mostra o modo como “a população [carioca], cordialmente 
alegre não regateou demonstrações de afeto à real família”. E, por isso, aparecem nas 
ruas iluminações, salvas, Te Deum, cortejoe aclamações. A alegria reina na Corte 
transplantada às pressas para o Rio de Janeiro e, indiretamente, também deixa felizes 
os brasileiros com a sua próxima viagem de volta. A família de Brás Cubas julga 
“oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal jantar 
que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos, 
de seus ministros." Durante o jantar um sujeito dava a outro “notícia recente dos negros 
novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o 
sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças…O que afiançava é que 
podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos”. Como se 
não bastasse a simultaneidade de tantos eventos, é também nesse dia que o menino 
Brás Cubas vê o Vilaça tascar, às escondidas, um beijo na dona Eusébia. Anos mais 
tarde, encontrará a “flor da moita”, agora uma moça, infelizmente coxa. 
Machado estava apontando -- no prenúncio do retorno do Rei português à Corte 
lisboeta e na proximidade do momento em que o país se tornaria independente -- para 
um dos traços mais fundamentais que marcam a possibilidade de se pensar uma nação, 
um dado importante na “gênese obscura do nacionalismo”. Ei-lo: o aparecimento de 
uma concepção de “tempo homogêneo e vazio”. Anderson toma de empréstimo a 
expressão a Walter Benjamin. Começa a explicá-la com a análise que Erich Auerbach 
faz do sacrifício de Isaac, que é interpretado como a prefiguração do sacrifício de Cristo. 
 31 
Interpreta Auerbach: existe uma “conexão entre dois eventos [sacrifícios de Isaac e 
Cristo] que não se vinculam temporalmente, nem casualmente – conexão impossível de 
ser estabelecida pela razão na dimensão horizontal. Ela só pode ser estabelecida se 
ambas as ocorrências estiverem verticalmente [grifo nosso] vinculadas à Divina 
Providência, a única capaz de traçar um plano de história como esse e fornecer a chave 
para sua compreensão”. 
 No caso de Machado de Assis, usado aqui para ilustrar a teoria de Anderson, “a 
simultaneidade é como se fosse transversal ao tempo, marcada não pela prefiguração e 
cumprimento, mas por coincidência temporal, e medida pelo relógio e pelo calendário”. 
De maneira jocosa e séria, comenta Anderson: “essa nova idéia está tão arraigada que 
se poderia afirmar que todo conceito fundamental moderno baseia-se num conceito de 
‘enquanto isso’ (p. 33)”, conceito de que se vale, é claro, os romances e os jornais da 
época. Retomemos o capítulo de Brás Cubas. Depois do inverno de 1814, começa a 
derrocada de Napoleão na Europa, enquanto isso rejubila-se a família real no Rio de 
Janeiro e também a população carioca, enquanto isso o pai de Brás Cubas resolve dar 
um jantar para celebrar a destituição do imperador e ser objeto de comentários na corte 
carioca, enquanto isso navios negreiros continuam a entrar no porto do Rio de Janeiro, 
enquanto isso um paspalhão deflora uma senhora que, anos mais tarde, ostentará uma 
bela filha, produto do amor proibido, uma verdadeira flor da moita. Todos os episódios, 
tanto a queda de Napoleão quanto os escravos expostos no mercado de Valongo, se 
passam ao mesmo tempo, estão encravados em sociedades nacionais. Observa 
Anderson: “O fato de que todos esses fatos são desempenhados no mesmo tempo, 
medido pelo relógio e pelo calendário, mas por atores que podem estar em grande parte 
despercebidos uns em relação aos outros, demonstra a novidade desse mundo 
imaginado evocado pelos autores nas mentes de seus leitores” (p. 35). 
 
 32 
 [espaço] 
 
 Retomando passagem anterior dessa Introdução, em que foram alvo, no tratado 
de Antonil e no sermão de Vieira, os jogos retóricos entre o “lá” (terras brasileiras) e o 
“cá” (terras portuguesas), retomemos também a idéia da valorização emblemática do 
trabalho que se tem nas terras brasileiras em oposição às gostosas facilidades que se 
encontram nas terras portuguesas, para reencontrar a extraordinária metamorfose que 
o jogo vai merecer de Gonçalves Dias, no famoso poema “A canção do exílio”. Nesta, o 
jogo entre o lá e o cá vai encontrar a sua dignificação estética, idealizada, no primeiro 
hino da nacionalidade brasileira: “As aves, que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá”. 
 José Guilherme Merquior, em Razão do Poema, fez uma notável e ainda atual 
análise do poema. Dela nos valeremos para dar continuidade ao tema. Afirma ele, em 
primeiro lugar, que: “Estrelas, várzeas, flores, bosques, vida, amores -- tudo isso existe 
em Portugal, como existe no Brasil. O que de fato provoca a saudade não é portanto a 
sua simples existência, e sim a qualidade que esta ganha, quando na moldura da pátria. 
A canção não compara o que o Brasil tem com o que a terra alheia não possui; indica, 
isso sim, o maior valor que as mesmas coisas revestem, uma vez localizadas no Brasil”. 
E continua, ao final da minuciosa análise dos vários passos do poema: “Profundamente 
brasileira é a saudade da terra natal, na forma de um desprezo cego pela realidade 
objetiva do país. Boa ou ruim, promissora ou aflitiva, essa realidade jamais conseguirá 
demover o saudoso de seu amor obstinado à terra. [...] Hoje, como sempre, reluz 
nesses versos a vibração da certeza consoladora de nos sabermos irremediáveis 
amantes do Brasil, mesmo do Brasil tão freqüentemente errado e decepcionante, pobre 
de fortuna e de projetos, abrigo de vícios e de molezas. É que o brasileiro será sempre 
 33 
incapaz de adotar o “ubi bene ibi patria” 31 dos que reduzem o amor de sua terra ao 
prazer que elas lhes possa dar; porque, para nós, será sempre possível esquecer a 
miséria da pátria presente na sublime teimosia com que a amemos, boa ou má, na força 
de quem faz desse amor uma vontade firme” 32 
 À atitude unívoca e radical de Gonçalves Dias, pode-se opor, já entre o fim do 
século XIX e o início do século seguinte, a ambigüidade cosmopolita de Joaquim 
Nabuco, tal como se expressa no livro de memórias Minha formação, capítulo “Atração 
do mundo” 33. Neste, fala mais alto o cientista político do que o patriota, fala mais alto o 
companheiro de Machado de Assis do que o êmulo de Gonçalves Dias. Escreve ele: 
“Sou antes um espectador do meu século do que do meu país; a peça é para mim a 
civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje 
pelo telégrafo”. Morando em país provinciano, o grande estadista da Abolição está 
distante do palco onde a grande peça da História se desenrola, mas dela pode ser 
espectador no conforto do lar em virtude dos meios de comunicação de massa 
modernos, no caso o telégrafo. 
 Escreve Nabuco que, em sua vida, viveu “muito da Política, com P grande, isto 
é, da política que é história”, para logo em seguida afirmar a sua incapacidade para 
viver plenamente “a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos”. 
A incapacidade é também o caminho enviesado e, paradoxalmente, mais correto para o 
cidadão brasileiro atualizado e consciente participar do projeto nacional em andamento. 
Equacionando Política com maiúscula à História, história da civilização ocidental, no 
caso história da Europa na sua expansão geográfica, econômica e social (não se pode 
 
31 Trata-se do conhecido lema do cosmopolitismo, baseado num trecho de Cícero, das 
Discussões Tusculanas (v. 37): “Onde me sinto bem, lá é a minha pátria”. Cf. Paulo Rónai, Não 
perca seu latim. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. 
32 Idem, pp. 41-50. 
33 Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1966, pp. 61-69. 
 34 
esperar do pensador monarquista uma postura diferente da eurocêntrica), Nabuco não 
só julgaa política com minúscula, a nacional, como inferior, setorizada e dominada por 
estruturas arcaicas e sentimentos baixos, como também inventa caminhos para que a 
nação saia do atraso em que se encontra. 
 É a obra jornalística e ficcional de Joaquim Manuel de Macedo que complementa 
as observações de Nabuco e melhor ilustra a mediocridade da vida política nacional, 
como o demonstrou recentemente Flora Süssekind. Cite-se, como exemplo, o modo 
como o narrador de Macedo apresenta um aprendiz de política na segunda metade do 
século passado: “[...] se é filho, sobrinho ou parente chegado de algum senhor velho, de 
algum membro daquela classe de privilegiados [...], se é nhonhô, encarta-se logo na 
presidência de alguma província; da presidência da província salta para a câmara 
temporária; da câmara temporária pula para o ministério: uma questão de três pulos 
dados em alguns meses, e em duas palhetadas e meia, o nhonhô, que não foi ouvir as 
lições de nenhum mestre, que não teve noviciado, nem tempo para ler mais do que os 
prólogos de alguns livros, é declarado estadista de fama e salvador da pátria” 34. 
 Pela sua formação (e é disso que o livro de memórias trata), a incapacidade que 
Nabuco sente para viver a medíocre política nacional acaba por guiá-lo para fora do 
Brasil, ou seja, para “o ponto onde a ação do drama contemporâneo universal é mais 
complicada ou mais intensa”. Complicação política e intensidade moral, na medida em 
que universais, não podem ser para um brasileiro culto matéria de presenciar, mas só 
de apreciar da sua poltrona na platéia provinciana. O texto exemplifica: “[...] em 1870, o 
meu maior interesse não está na política do Brasil, está em Sedan. No começo de 1871, 
 
34 Em lugar de o discurso medíocre, egoísta e retórico dos políticos brasileiros alimentar -- nos 
diz Flora Süssekind -- os comentários ou as descrições no texto, ele é constitutivo da própria voz 
narrativa. Conclui a ensaísta que o narrador “não é alguém que, de fora, observa e critica o 
comportamento político”. 
 35 
não está na formação do gabinete Rio Branco, está no incêndio de Paris”, e assim por 
diante. Complicação política e intensidade moral, na medida em que universais, só por 
milagre divino podem ser matéria de acontecer no Brasil e, por isso, de ser 
presenciadas: “Em 1871, durante meses, [o meu maior interesse] está na luta pela 
emancipação [Lei do Ventre Livre] — mas não será também nesse ano o Brasil o ponto 
da terra para o qual está voltado o dedo de Deus?” O atraso político brasileiro é antes 
de mais nada questão de geografia e pode ser corretamente encarado, na falta do dedo 
de Deus, pela viagem de observação e estudo ao estrangeiro e, na falta desta, pelo 
telégrafo. Como há uma distância entre o escrever e o representar uma peça de teatro, 
assim também há uma distância entre a ação política e a sua representação no palco 
europeu, como ainda há uma distância entre esta e a sua transmissão, pelos meios de 
comunicação de massa, para outro e distante arremedo de palco europeu. 
 A formação do intelectual brasileiro no século XIX se confunde com outra 
formação: a da sedimentação das camadas geológicas do “espírito humano” (a 
expressão é do texto). Há uma tardia e, por isso, dupla inscrição do brasileiro, vale 
dizer, do americano, no processo histórico de esfriamento da crosta da cultura humana. 
Os americanos pertencem à América pelo sedimento novo, flutuante, do seu espírito, e 
à Europa, por suas camadas estratificadas. Pé cá, pé lá, em equilíbrio — aparente é 
claro, pois não se pode dar o mesmo peso e valor à busca sentimental do começo (a 
história do Novo Mundo) e à investigação racional da origem (a história da civilização 
ocidental). O eurocêntrico Nabuco conclui: “Desde que temos a menor cultura, começa 
o predomínio destas [das camadas estratificadas] sobre aquele [o sedimento novo]”. Diz 
ainda: “o espírito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do 
Atlântico [grifo nosso]”. A pesquisa geológica do nacional vai apenas até o marco cristão 
da descoberta da região por país europeu, ou seja, até a Primeira Missa rezada pelos 
padre português no Brasil; dali o geólogo não deve partir para recompor as tradições 
 36 
dos autóctones; lá chegando, deve se desviar do solo pesquisado, dar meia-volta e, 
vestido de historiador das idéias, sair em busca de profundidades só encontradas em 
civilizações da humanidade, como a dos europeus. Há um fundo (enriqueço 
semanticamente a palavra de Nabuco, tomando-a em todos os seus sentidos: 
geográfico, histórico, econômico, social, etc.) europeu comum que tanto define o lá 
quanto, por formação, legitima o cá. 
 A pátria que fascina o coração não ilude a cabeça e, por isso, o “grande 
espetáculo” do mundo é o que “prende e domina a inteligência”. Em política, a “lei do 
coração” só é forte e dominadora no momento em que a razão é desclassificada pela 
idade avançada ou pela infelicidade da pátria. Escreve o narrador experimentado: “cada 
vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa lei singular do coração que prende o 
homem à pátria com tanto mais força quanto mais infeliz ela é e quanto maiores são os 
riscos e incertezas que ele mesmo corre”. Corpo velho numa pátria republicana, 
dominada por militares jacobinos, são dignos de piedade, daí o sentimentalismo do 
velho narrador de Minha formação. 
 Nos anos da juventude e da maturidade, sentado na platéia do palco brasileiro, 
onde se encena o drama menor da jovem nação, Nabuco almeja estar na platéia do 
grande teatro da humanidade, onde se desenrolam as peças sedutoras e definitivas do 
século. Escreve ele: “As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os 
pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada 
de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre. No meio do 
luxo dos teatros, da moda, da política, somos sempre squatters, como se estivéssemos 
ainda derribando a mata virgem”. A identidade histórica de jovens nações, como as 
americanas, não se encontra ali onde esperam encontrá-las os nativistas, isto é, os 
políticos com p minúsculo. Ela está fora do tempo histórico nacional e fora do espaço 
pátrio: por isso é lacunar e eurocêntrica. Em resumo, o seu lugar é a “ausência”, 
 37 
determinada por um movimento de tropismo. Em virtude da ausência de um solo pátrio 
legítimo, o triste sofrimento por que passa o brasileiro serve de fundamento e 
justificativa tanto para os vôos da sua imaginação eurocêntrica quanto para o apego, no 
exílio londdrino, ao país onde nasceu: “De um lado do mar, sente-se a ausência do 
mundo; do outro, a ausência do país”. A questão do poder (dos “donos do poder”, para 
retomar a expressão de Raymundo Faoro) e da cultura brasileira como herdeira da 
européia se anuncia de maneira extraordinária em Nabuco pela dupla brecha da 
ausência e se reconforta, como um motor se reconforta ao receber nova carga de 
combustível, com a dupla (e não unívoca, como em Gonçalves Dias) sensação de 
saudade 35. 
 Avancemos o relógio do tempo e entremos século XX adentro. Vamos encontrar 
na correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, um 
fascinante eco do diálogo entre Gonçalves Dias (via José Guilherme Merquior) e 
Machado de Assis (via Joaquim Nabuco), eco que, ao ribombar pela cultura brasileira, 
acaba por ser inteiramente a favor da corrente nacionalista. Ao ler carta de Drummond 
escrita nos anos 20, Mário observa que o espírito do poeta mineiro se encontrava então 
completamente tomado pela tristeza e o pessimismo de Joaquim Nabuco e, 
principalmente, pelo ceticismo finissecular

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