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Curso Introdução à experiencia intelectual de Deleuze

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Curso 
Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze:
1.Parte:
Em direção à Diferença e Repetição
Ministrado no Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo
Primeiro semestre de 2012
11 aulas
Professor:
Vladimir Safatle�
Introdução á experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 1
Duas imagens
Creio que todos vocês conhecem este quadro. Trata-se de Las meninas, de Velásquez. Este quadro teve uma grande importância nos debates próprios à filosofia francesa contemporânea, já que é através de um comentário a seu respeito que Michel Foucault abre esta que é uma das obras mais conhecidas do pensamento francês do pós-guerra: As palavras e as coisas. 
	A escolha de Foucault em começar com este quadro não deixava de ter uma certa ironia. Basta lembrarmos que ele foi pintado em 1656. Aqueles que leram A história da loucura sabem muito bem o que esta data representa. 1656 é também a data do edito de criação do Hospital Geral e, conseqüentemente, data do início desta experiência de internamento da loucura que irá marcar, de maneira, definitiva o modo de partilha entre a razão e seu Outro. Assim, através do comentário do quadro de Velásquez, Foucault irá descrever a figuração de um processo semelhante ao “grande internamento” analisado em A história da loucura. Trata-se do início deste processo de constituição do sujeito através da exclusão do que não se submete mais a um regime de saber marcado pela disponibilização do objeto através da representação. 
	No caso do quadro de Velásquez, o que chama a atenção de Foucault é fundamentalmente o fato dele ser a figuração estética de um corte epistemológico, dele ser a “representação da representação clássica”�, já que seu motivo central é o próprio ato de representar, o próprio processo de ordenação do campo de visibilidade. Neste sentido, ele marca o advento da episteme clássica, toda ela fundada na noção de representação, e a obsolescência da episteme em voga da Renascença. Mas, tal como em A história da loucura, tal corte implica exclusão daquilo que, para o regime de saber próprio à razão moderna, é desprovido de verdade. O objeto desta exclusão será a crença na capacidade cognitiva da semelhança. É isto que Foucault tem em mente ao dizer que o espaço aberto pelo quadro de Velásquez é solidário de um vazio essencial:
O desaparecimento necessário daquilo que funda a representação – daquele a quem ela assemelha-se e daquele aos olhos de quem ela é apenas semelhança. O próprio sujeito – que é o mesmo – foi elidido. E finalmente livre desta relação que a aprisionava, a representação pode se oferecer como pura representação�.
	Ou seja, o sujeito pode enfim nascer como sujeito da representação, como aquele que está no interior do campo de visibilidade do saber. Mas este “estar” não deixa de ter sua peculiaridade. O sujeito moderno traz uma estrutura peculiar do estar no mundo. Analisando os motivos internos ao quadro, Foucault lembra que um de seus eixos é a constituição de um lugar, lugar fundado na intercambialidade absoluta dos objetos que porventura irão ocupá-lo. O assunto central do quadro não está apenas ausente. Ele será encarnado a todo momento que o quadro for visto. Mas encarnado sempre no interior de uma relação de representação, já que uma imagem está lá: a imagem dos soberanos Felipe IV e sua mulher que aparece ao fundo, em um espelho. Espelho que: “restitui a visibilidade àquilo que permanece fora de todo olhar”�. Mas esta restituição expõe a verdade de toda imagem especular: a verdade de ser uma imagem formadora e conformadora, ao invés de simples dispositivo de descrição de semelhanças. Este espelho não é o espelho que apenas reproduz o objeto que a pintura já apresenta. Ele é espelho que se coloca como única condição de possibilidade do objeto a ser apresentado.
	A identificação entre o olhar de quem contempla o quadro e a imagem do espelho é, por um lado, abolição de toda relação de semelhança; por outro, constituição de uma nova relação de representação. Relação na qual o sujeito não aparece apenas como fundamento soberano de toda visualidade, mas como fundamento apenas à condição de submeter-se a um regime amplo de visibilidade, a uma ordem da representação que lhe ultrapassa. Submeter-se a esta ordem, ser capaz de reconhecer processos de relação e de ordenamento, é condição para que o olhar possa ser constituído com tal e desempenhar sua função no interior do quadro.
	No entanto, não esqueçamos como este fundamento é um estranho fundamento negativo. Ele não está lá, posto diretamente no campo de visibilidade. Ele está pressuposto, sem nunca poder estar totalmente posto. O sujeito moderno se manifesta assim como o que um dia Hegel chamará de “negatividade” (ele é o que não pode ser integralmente posto, ele é o que não se confunde completamente com suas próprias representações) e o que Deleuze chamará de transcendência (ele nunca é integralmente fenômeno). Uma negatividade e uma transcendência que, ao menos aos olhos de Deleuze, seriam astúcias supremas da representação. Seriam a maneira do pensar representativo pôr um limite, pôr um para além da representação, mas apenas para absorvê-lo e calá-lo. Apenas para dizer que o fora da representação é caracterizado exatamente por isto, por não poder ser representado, por ser um limite da representação, por não ter, em si, nenhum princípio positivo, nenhum princípio outro de organização. É a representação que fornece a ordem própria ao pensar com suas regras e seus processos de recognição. O pensar não saberia se mover em uma ordem outra. Tudo se passa como nestas sonatas onde a dissonância é aceita, mas à condição de permitir a reiteração, o retorno à uma ordem que aceita o que lhe nega apenas para finalmente poder triunfar.
Este, por sua vez, é um quadro menos conhecido. Trata-se de Tríptico: estudos do corpo humano, pintado por Francis Bacon em 1970. Ele é um dos principais quadros analisados por Gilles Deleuze em um livro dedicado à obra de Bacon: Lógica da sensação. Não creio estar incorrendo em erro se afirmar que, para Deleuze, este quadro tem, para a contemporaneidade, a mesma função que Las meninas teve para aquilo que Foucault chama de Idade Clássica. Ele descreve uma operação que diz respeito aos modos de posição do que serve de fundamento à visualidade. Ele diz respeito, tal como em Las meninas, à encenação de um modo de funcionamento do saber que servirá de vetor de desenvolvimento para a os padrões de racionalidade de toda uma época. 
	Tais colocações nos forçam a perguntar: quais os vetores de caracterizam, ao menos segundo Deleuze, a época de Estudos do corpo humano? Notemos inicialmente que, se no quadro de Velásquez, a estrutura pictural visa apresentar o lugar do sujeito como fundamento transcendente, no caso de Bacon trata-se de apresentar este fundamento que só pode aparecer lá onde a “dissolução do Eu” toma a cena. Esta não é apenas dissolução de um Eu determinado em sua identidade e individualidade. Ela é a dissolução de todo um padrão de ordenamento dependente da aceitação tácita do princípio de identidade e dos modos tradicionais de determinação de individualidades. Deleuze partilha um grande diagnóstico de época que podemos encontrar em autores tais distintos entre si como Adorno, Foucault, Lacan, Derrida, Lyotard. Diagnóstico é aqui a palavra mais correta porque se trata de identificar as causas de um sofrimento social. Nossa época sofre, mas ela não sofre, por exemplo, da indeterminação advinda da perda de relações substanciais e seguras que nos permitiam saber claramente nossos papéis sociais. Se quiséssemos utilizar uma metáfora ilustrativa de Deleuze, diríamos: ela não sofre de desterritorialização. Ela sofre por não suportar mais as amarras da identidade, da individualidade, do Eu. É deste sofrimento que, ao menos segundo Deleuze, os quadros de Bacon seriam feitos.
	Vejamos, por exemplo, como Deleuze pensa os quadros de Bacon. Há sempre um processo de isolamento,de extração que permite construir um lugar no qual a figura pode ser exposta em sua nudez. Não há estruturas de relações (fundo/forma, claro/obscuro, profundidade de cores que permitiram variações e gradações, motivos subordinados). O que ocupa o resto do quadro são cores imóveis e absolutamente uniformes. Por isto, Deleuze pode afirmar não haver “modelo a representar, nem história a contar”�. Aqui, o isolamento aparece como garantia de ruptura com a narrativa e a representação. Pois estas figuras não estabelecem relações de figuração (embora não possamos dizer que elas são exatamente abstrações). 
	Sabemos que tais figuras são corpos, mas corpos que fazem um grande: “esforço sobre si mesmos para advir Figura”�, como um corpo que tenta escapar de si mesmo através de um de seus órgãos. Deleuze é sensível, por exemplo, ao fato dos corpos das pinturas de Bacon não terem exatamente rostos, mas cabeças, como se seu projeto de retratista fossa o de: “desfazer o rosto, reencontrar ou fazer surgir a cabeça sob o rosto”�. Em Mil Platôs, quando dedicar um capítulo ao rosto, Deleuze e Guattari dirão: “O rosto tem um grande futuro, à condição de ser destruído, desfeito. Em direção ao a-significante, ao a-subjetivo”�. Se pensarmos como nossa ideia de individualidade está visualmente vinculada ao rosto e a seus traços, podemos imaginar o que significa tal processo de dissolução. Ele é, no fundo, procura da imagem em apreender uma zona objetiva de indiscernibilidade, zona de indecidibilidade que nos remete a um estranho “fator comum” anterior a constituição de individualidades. Fator comum entre o homem e o animal, entre o corpo e a carne (viande).
	Esta zona objetiva de indiscernibilidade anterior a toda constituição de individidualidades, fator comum que indica uma unicidade anterior a toda diferença ordenada pela representação é, no fundo, o verdadeiro objeto da filosofia de Gilles Deleuze. Que toda a experiência intelectual do filósofo da diferença, do nomadismo, da desterritorialização seja animada pela procura das condições para pensar a unicidade, esta unicidade que está em nós e cuja potência nos atravessa: eis algo que, como veremos no decorrer deste curso, não deve mais nos surpreender. Veremos como, neste sentido, devemos seguir uma indicação preciosa de Alain Badiou: “O problema fundamental de Deleuze não é certamente liberar o múltiplo, é dobrar o pensamento a um conceito renovado do Uno”�.
	Mas se nós voltarmos a Bacon, veremos que as condições para pensar tal zona de indiscernibilidade estão vinculadas a um certo resgate do que Deleuze chama de “sensação”, ou seja, isto que: “age imediatamente sobre o sistema nervoso, que é a carne”�. Ele chega mesmo a falar da “violência” de uma sensação que não passa pela estruturação do diverso da experiência pela forma do conceito, que não passa pela espontaneidade de uma subjetividade constitutiva com suas formas a priori, que, por isto, pode se manifestar como “agente de deformação dos corpos”.
	Não seria difícil enxergar, neste recurso ao imediato da sensação que parece descartar o trabalho de um conceito que sempre será confundido com a representação, alguma evidente forma de irracionalismo? Ou não seria melhor dizer que o sensível impõe sua “lógica”, que há uma “lógica da sensação” que exigiria uma “remodelação da estética transcendental, que libera o sensível de sua domesticação ou unificação conceitual”�? Uma remodelação que exigiria nos despedirmos de um conceito de sujeito que Francis Bacon parece nos dizer que ele já não nos diz mais respeito. Uma remodelação que seria condição sine qua non para apreendermos o “ser do sensível”� (notemos esta construção, pois ninguém, em filosofia, fala impunemente do ser).
	Sugiro levarmos a segunda hipótese a sério e descartarmos a primeira. Devemos descartá-la com a tranqüilidade de um leitor atento de Deleuze, Bento Prado Júnior. O mesmo Bento Prado que respondeu, nos seguintes termos, a uma pergunta sobre o pretenso irracionalismo do filósofo francês: “Irracionalismo é um pseudoconceito. Pertence mais à linguagem da injúria do que da análise. Que conteúdo poderia ter, sem uma prévia definição de Razão? Como há tantos conceitos de Razão quantas filosofias há, dir-se-ia que irracionalismo é a filosofia do Outro. Ou pastichando uma frase de Émile Bréhier que, na ocasião, ponderava as acusações de ´libertinagem’, poderíamos dizer: “on est toujours l´irrationaliste de quelqu´un”�.
Da peculiariedade da experiência intelectual de Gilles Deleuze
	Dito isto, devemos nos perguntar sobre uma questão de método de leitura: qual a melhor maneira de abordar a experiência intelectual de Gilles Deleuze? De fato, esta não é uma questão simples, já que uma análise de sobrevôo parece nos apresentar uma obra fragmentada e dispersiva. Grosso modo, conseguimos enxergar três grandes fases. 
	A primeira começa com seu primeiro livro, publicado em 1953, quando o autor tinha então 28 anos. Trata-se de uma tese de mestrado, dirigida por Jean Hyppolite, sobre David Hume intitulada Empirismo e subjetividade. Durante oito anos, Deleuze não publica nada. Segue-se então uma seqüência de monografias que parecem firmá-lo como um historiador atípico da filosofia. São textos sobre Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza, isto além de dois livros sobre escritores: Marcel Proust e Sacher-Masoch. “Historiador atípico” porque, a primeira vista, é difícil identificar o que vincularia autores aparentemente tão distantes entre si como Hume, Nietzsche, Spinoza, Kant e Bergson. Mas se colocarmos um pouco de lado Kant, já que, segundo o próprio Deleuze, tratava-se de fazer um livro sobre “um inimigo sobre quem procuro mostrar como ele funciona, quais são seus mecanismos”�, veremos uma certa ligação patrocinada pela possibilidade recuperação de uma filosofia da imanência capaz de ser “a elaboração escrita de uma forma singular de intuição”�. Como ele mesmo dirá: “Desenhar um plano de imanência, traçar um campo de imanência, todos os autores dos quais me ocupei fizeram isto (mesmo Kant quando ele denuncia o uso transcendental das sínteses, mas ele se limita à experiência possível e não à experimentação real)”�.
	Mas por que afinal a contemporaneidade precisaria reconstruir as condições para pensar a imanência? A resposta só será dada de maneira articulada através de dois livros que marcam a sistematização daquilo que estava em gestação durante todo este longo trajeto na história da filosofia. São eles: Lógica do sentido e, principalmente, Diferença e repetição, sua tese de Doutorado de Estado orientada por Maurice de Gandillac e publicada em 1969 (a tese suplementar era Spinoza e o problema da expressão, orientada pelo cartesiano Ferdinand Alquié). 
	Estes são, do ponto de vista da elaboração filosófica, os dois livros mais importantes de Deleuze e aqueles que determinam o que poderíamos chamar de um “programa filosófico” marcado sobretudo por aquilo que o filósofo francês entende por um “anti-hegelianismo” generalizado. A crítica ao hegelianismo é, no fundo, a crítica a uma tradição filosófica (cujas raízes se encontrariam em Platão, mas que englobaria ainda Descartes) incapaz de escapar das amarras de um pensamento da representação e de alcançar a identidade imediata. Impossibilidade, que no caso de Hegel, consistiria em criticar a representação, em insistir em seus limites, contradições e antinomias, insistir na negatividade que tais limites e contradições acarretam, mas sem ser capaz de pôr uma outra ordem positiva em seu lugar, sem ser capaz de realmente ultrapassar as dicotomias e os lugares que o pensamento articula (essência/aparência, necessidade/contingência, objetividade/subjetividade, forma/conteúdo). Uma impossibilidade de ultrapassar lugares que Deleuze chama de nomos sedentário. Platão, Descartes e Hegel: filósofos do nomos sedentário.
	No entanto, esquecemos muitas vezes como esta crítica é sobretudo moral, até porque, um pouco como em Nietzsche, a crítica do conhecimento e a critica das categorias lógicas do pensar (identidade,diferença, unidade, repetição) têm sempre um fundamento moral, isto no sentido delas visarem um certo ethos por trás dos modos de operação da razão. De onde vem o medo por aquilo que não se submete ao conceito? De onde vem o medo do caos? Por que compreendemos a diferença como negatividade que pode ser superada pelo auto-movimento do conceito? De onde vem esta paixão pelo sistema e pela totalidade? Por que continuamos a falar em alienação quando estamos em uma posição na qual não mais nos reconhecemos, já que se alienar significa perder uma identidade, exilar-se de uma essência, ou seja, insistir na necessidade de não abandonarmos a noção mesma de essência? Por que compreendemos as individuações como produção de identidades estáveis e fixas? Por que ainda estamos aferrados ao sujeito quando vemos se abrir diante de nós uma zona de indiscernibilidade anterior à formação mesma da dicotomia sujeito-objeto? Todas estas perguntas receberão respostas ligadas, á sua maneira ao campo da moral. Trata-se de um ethos que deve se afirmar através das operações da razão, trata-se de, no fundo, validar uma forma de vida. 
	Por exemplo, uma das operações filosóficas maiores de Lógica do sentido e Diferença e repetição é a recuperação da noção de simulacro, ou seja, desta imagem que não é representação de um modelo, não é cópia de um modelo, mas cópia da cópia e que, por isto, contesta a relação de subordinação entre cópia e modelo. Mas o questionamento da relação ao modelo é, no fundo, questionamento da essência do fundamento, já que não posso mais garantir uma partilha das imagens, quais imagens têm relação ao fundamento e quais não o tem, quais são boas imagens e quais são imagens ruins. Até porque fundar é aqui estabelecer o existente através da sua relação a um padrão que me permite orientar-me no pensamento. Daí porque a essência do mal não é a posição de uma nova ordem, mas a confusão, o embaralhamento, a impossibilidade de julgar, a profusão dos simulacros. Ou seja, através da crítica ao simulacro, Platão procuraria afirmar uma visão moral do mundo. 
	Nós havíamos partido de uma questão: por que afinal a contemporaneidade precisaria reconstruir as condições para pensar o imediato e a imanência? A resposta de Diferença e repetição e Lógica do sentido será: para escapar do hegelianismo e de sua maneira de desqualificar o imediato através de um pensamento da negatividade. Veremos tudo isto com calma no interior do nosso curso. No entanto, não deve ter escapado a vocês o caráter circular e desonesto da minha resposta. Por que a contemporaneidade precisa reconstruir as condições para pensar o imediato? Para escapar de uma forma de pensar que nos impede de pensar o imediato. No entanto, Deleuze tem uma resposta melhor do que esta. 
	Podemos mesmo dizer que tal resposta é a essência do que devemos chamar de segunda fase do pensamento deleuzeano, esta que começa em 1972 e que é marcada pela sua colaboração com Felix Guatarri. A obra central desta fase é Capitalismo e esquizofrenia com seus dois grandes volumes: O anti-Édipo, de 1972, e Mil platôs, de 1980. Para além de seu caráter militante e polemista, o que devemos guardar destes livros é a maneira peculiar com que eles tentam articular a reflexão filosófica anterior de Deleuze a um diagnóstico social de larga escala a respeito do capitalismo e de suas formações sócio-culturais. À sua maneira, Deleuze quer dizer que o hegelianismo, suas formações e sua maneira de insistir na identidade, no conflito que deve ser superado, na negatividade reativa são, no fundo, a ideologia do último estágio do capitalismo avançado. Este capitalismo marcado pela territorialização e pela produção regulada de identidades que na mesma época leva Theodor Adorno a afirmar: “a identidade é a forma originária da ideologia”.. A crítica da razão se transforma, a partir de então, em crítica social. 
	É desta forma que devemos compreender o sentido maior de O anti-Édipo. O título não poderia ser mais claro: trata-se partir da crítica deste dispositivo de socialização do desejo que a psicanálise chama de complexo de Édipo. Mas trata-se de partir dele a fim de lembrar como o modo de socialização no primeiro núcleo de interação social, ou seja, na família, determinará os modos de interação em esferas mais amplas da vida social (as instituições, o Estado, o Capital). Ao colocar a reflexão sobre o desejo e seu destino no cerne de uma reflexão sobre o social, Deleuze não fazia outra coisa que realizar aquilo que ele havia afirmado em seu primeiro livro, sobre David Hume: “só uma psicologia dos afetos pode constituir a verdadeira ciência do homem”�. O que mostraria a coerência profunda entre o passional e o social. A riqueza de O anti-Édipo está exatamente aqui, no fato de ter realizado o projeto de pensar a natureza dos vínculos entre o pathos e o socius a partir de uma perspectiva de tentativa de renovação da crítica ao capitalismo animada pelos movimentos de maio de 68. Vínculos estes que permitirão uma das operações centrais dos últimos quarenta anos: a elevação do corpo à condição de dispositivo central da política. Transformar seu corpo em espaço de manifestação da liberdade, espaço de afirmação de um projeto de estetização de si, de construção plástica e performativa da multiplicidade. Conjugar a “plasticidade” do corpo. Todas estas colocações aparecem para nossa sensibilidade contemporânea como dotadas de forte potencial disruptivo. Como se tivéssemos deslocado nossas aspirações de reforma social para dentro do corpo, como se tivéssemos transformado o impulso de reforma social em reforma do corpo e de suas potencialidades. Tais processos seriam impossíveis sem O anti-Édipo. 
	Mas voltemos à psicanálise. Durante anos, Deleuze fora um leitor atento da Freud, Melanie Klein, Lacan, Winnicott, entre outros. Basta ver a precisão de um trabalho sobre o masoquismo como Apresentação de Sacher-Masoch, assim como páginas brilhantes dedicadas à reflexão sobre a pulsão de morte em Diferença e repetição e sobre os objetos parciais em Lógica do sentido. Deleuze seguira de perto a produção de Jacques Lacan, que chegou mesmo a convidá-lo a fazer parte de sua Escola Freudiana de Psicanálise. No entanto, a partir de O anti-Édipo esta posição de acolhimento da psicanálise se inverte radicalmente. Um trajeto extremamente semelhante acontecerá com Michel Foucault a partir de História da sexualidade. Nos dois casos uma relação inicial de aproximação dará lugar a uma compreensão da psicanálise como fundamento dos processos de reprodução social e de miséria afetiva no capitalismo. No caso de Deleuze, a crítica era clara: a maneira com que a psicanálise procura socializar o desejo produz um desejo marcado pela negatividade, pela perda, pelo conflito, desejo como falta que nos remete, afinal de contas, a Hegel. Toda a moral hegeliana da negatividade estaria presente na clínica psicanalítica graças, principalmente, a Jacques Lacan. Contra isto, uma verdadeira crítica social deveria começar como clínica capaz de produzir um curto-circuito nesta forma de socialização.. Esta seria a função de conceitos como: corpo sem órgão, máquina desejante, inconsciente como fluxo, e tantos outros. Uma clínica que Deleuze e Guatarri chamarão de esquizo-análise É sempre bom lembrar como, nesta tentativa de constituir uma clínica a partir de uma reflexão filosófico sobre o modo de ser do desejo, Deleuze acabava por dar seqüência a uma certa tradição francesa que podemos encontrar em Sartre com sua psicanálise existencial. 
	Por fim, haveria uma última fase do pensamento deleuzeano a partir de Mil Platôs. Ela estaria marcada por um certo retorno à história da filosofia (através de monografias sobre Spinoza e Leibniz) e, principalmente, por grandes trabalhos sobre estética visual, como: Imagem-tempo, Imagem-movimento (sobre o cinema) e Lógica da sensação (sobre Francis Bacon). Deleuze sempre escrevera sobre a literatura (Proust, Sacher-Masoch, Kafka), mas estes estudos demorados sobre a imagem não deixavam de ser surpreendentes, sobretudose lembrarmos como Deleuze havia, em Diferença e Repetição, proposto uma filosofia capaz de ser a “crítica radical da Imagem e dos ‘postulados’ que ela implica” ou ainda, ser capaz de operar uma “luta rigorosa contra a Imagem, denunciada como não-filosofia”�. Esta crítica da Imagem com suas ramificações profundas na tradição filosófica francesa do século XX, será revista por Deleuze nos anos 80, isto graças à identificação de um novo regime de imagens vindo do cinema e, principalmente, da pintura pós-abstrata, esta que, como a pintura de Francis Bacon, resgata a figura em sua potencia de não-figuração, em sua forma de disposição do que não se reconhece mais na sua própria forma. 
	Alguns anos antes de morrer, Deleuze escreverá uma última contribuição com Félix Guatarri, uma espécie de obra póstuma em vida na qual eles se propõem a responder esta questão “que enfrentamos numa agitação discreta, à meia-noite, quando nada mais resta a perguntar”, uma questão própria àqueles que “desfrutam de um momento de graça entre a vida e a morte”�, a saber, O que é a filosofia? 
Teoria e prática
	Mas estas passagens entre história da filosofia, clínica, crítica social e estética no interior de uma experiência intelectual como a de Gilles Deleuze: o que elas podem querer significar? O que pode querer significar este movimento que parece exigir uma indistinção entre campos autônomos de saber, entre reflexão e empiricidades? No fundo, esta questão, ao menos segundo Deleuze, nos leva diretamente a um dos problemas maiores da filosofia contemporânea: os modos de relação entre teoria e prática. 
	A este respeito gostaria de lembrá-los de uma entrevista de Deleuze feita por Michel Foucault na qual Foucault começa colocando a questão: “Um maoísta me dizia : ‘ Sartre, eu compreendo bem porque ele está conosco, porque ele faz política e de que forma ele faz; você, em última instância, eu compreendo um pouco, você sempre colocou o problema do encarceramento. Mas Deleuze, este aí eu realmente não compreendo nada”�. 
	A resposta de Deleuze não deixa de ser surpreendente. Ele afirma estarmos vivendo de uma outra maneira as relações entre teoria e prática. Até então, ou concebíamos a prática como uma aplicação da teoria, como a exposição de um processo que já havia sido descrito e conceitualizado pela teoria, ou fazíamos a operação inversa e concebíamos a prática como a força criadora de uma forma de teoria a vir, ou seja, uma prática soberana que despediria a teoria ou, no máximo, que a obrigaria a se curvar diante de seu peso. Nos dois casos, concebemos as relações entre teoria e prática como a subsunção de um pólo pelo outro. Pensamos a aplicação como uma operação guiada por relações de semelhança ou analogia. Onde a prática é análoga à teoria? Onde a teoria se assemelha ao que vemos na prática? Mas, e se ao invés de pensarmos relações hierárquicas e verticais, começássemos a pensar relações horizontais? Poderíamos pensar que, quando a teoria se concentra em seu próprio domínio, ela começa a se confrontar com obstáculos, com muros que a impedem de avançar, que nos obrigam a substituí-la por um outro tipo de discurso, uma prática que nos permita passar a um domínio diferente. Graças a esta passagem, poderemos resolver um problema na teoria, retornar a teoria em outro ponto, a partir de outro lugar. Assim: “a prática é um conjunto de passagens (relais) de um ponto teórico a um outro, e a teoria, uma passagem de uma prática a outro. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é necessário a prática para perfurar este muro”�.
	Deleuze não poderia ser mais claro: para continuar a fazer esta teoria por excelência que é a filosofia, faz-se necessário saber abandonar a filosofia, passar a um outro domínio, a uma prática como a clínica, a estética, a crítica social. Mas este abandono é o que nos permite continuar a fazer filosofia. Parafraseando Nietzsche, a verdadeira filosofia é capaz de se perder para poder se realizar. É indiferente dizer que a prática é uma maneira de permitir a teoria avançar, de resolver um problema teórico que nos bloqueia ou que a teoria é uma maneira de permitir a prática avançar, de resolver um problema prático que nos bloqueia. É indiferente porque o movimento de passagem de um pólo a outro é constante (o que todos os grandes filósofos do século XX compreenderam: Foucault com suas passagens à análise das instituições, Adorno com suas passagens em direção à sociologia e à crítica da cultura, Wittgenstein com seus abandonos da filosofia em direção à análise da linguagem ordinária). Em última instância, era isto que o maoista de Foucault tinha dificuldade em compreender. Compreender que o político, enquanto campo de forças que visam implementar modificações estruturais em nossas formas de vida, enquanto campo de forças que visam impedir o bloqueio e a mutilação de uma vida que pode ser maior do que atualmente é, está presente na recuperação da duração em Bergson e nas experiência clínica de La Borde, ou melhor, está presente na passagem de um campo de problemas a outro. Maneira de afirmar que toda crítica social vigorosa é uma crítica da razão, e toda crítica da razão que vai às últimas conseqüências é uma crítica social. Veremos isto no interior de nosso curso.
	Antes então de terminar a aula de hoje, eu gostaria de dizer duas ou três palavras mais pessoais a respeito do que me levou a apresentar para vocês, mais uma vez, um curso sobre Gilles Deleuze. Creio ser obrigado a dizer tais palavras porque aqueles que conhecem o que faço sabem que alguém que escreveu um livro chamado A paixão do negativo não parece ser a pessoa mais indicada para falar sobre a filosofia de Deleuze. Todos meus interesses maiores são por autores que Deleuze claramente afirma detestar (Hegel), dever criticar (Lacan) ou simplesmente ignorar (Adorno). Por isto, se decidi oferecer este curso sobre Deleuze é porque tive um professor que um dia me ensinou que só começamos realmente a pensar quando perdemos o medo de nos confrontar com autores que parecem nossos antípodas. Este professor era um profundo leitor de Sartre que, devido exatamente a esta crença, decidiu escrever uma tese sobre o aparente antípoda de seu autor: o mesmo Henri Bergson que irá influenciar profundamente Deleuze. Foi ele quem me mostrou, pela primeira vez, o interesse que pode existir na filosofia de Deleuze e, a cada dia que passa, tenho certeza de que sua própria filosofia em muitos pontos se encontrava, graças a caminhos absolutamente próprios, com dispositivos maiores do pensamento de Deleuze. Por isto, que este curso seja uma certa maneira de prestar uma pequena homenagem não apenas a ele, mas à forma de fazer filosofia que ele próprio representou. Um fazer filosofia que é, acima de tudo, o ato de pensar contra si mesmo. Se vocês me permitem, é isto que gostaria de fazer durante este semestre, é isto que gostaria de fazer junto com vocês. 
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Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 2: Empirismo e subjetividade
Fica-se surpreso ao considerar o sentido geral das objeções sempre apresentadas contra Descartes, Kant, Hegel etc. Digamos que as objeções filosóficas são de duas formas. Algumas, a maioria, têm de filosófica apenas o nome. Elas consistem em criticar uma teoria sem considerar a natureza do problema ao qual ela responde, no qual ela encontra seu fundamento e estrutura (...) O que diz um filósofo é apresentado como se fosse o que ele faz ou o que ele quer. Como crítica suficiente da teoria, apresenta-se uma psicologia ficcional das intenções do teórico (...) Na verdade, uma teoria filosófica é uma questão desenvolvida e nada mais que isto: por ela mesma, nela mesma, ela consiste, não em resolver um problema, mas em desenvolver até o fim as implicações necessárias de uma questão formulada (...) Neste sentido, vemos quão nula é a maioria das objeções feitas aos grandes filósofos. Dizemos a eles: as coisas não são assim. Mas, na verdade, não se trata de saber se as coisas são assimou não, trata-se de saber se é boa ou não, rigorosa ou não, a questão que deixa as coisas assim. (...) Na verdade, apenas um gênero de objeções é válido: este que consiste em mostrar que a questão posta por tal filósofo não é uma boa questão, que ela não força de maneira suficiente a natureza das coisas, que teria sido necessário colocá-la de outra forma, que deveríamos melhor colocá-la ou colocar uma outra questão. E é desta maneira que um grande filósofo levanta objeções a um outro (...)�.
	Estas questões de método de Deleuze apresentada em seu primeiro livro, Empirismo e subjetividade, servirão de orientação para praticamente todas suas incursões no interior da historia da filosofia. Cada filosofia é animada por uma forma de questão capaz de gerar tanto uma série determinada de problemas quanto algo que Deleuze chamará mais tarde de “imagem do pensamento”, ou seja, uma dimensão de pressupostos tacitamente implícitos e não-problematizados que fornece o campo de enunciação de uma questão filosófica. Contra uma questão filosófica, nós não objetamos um estado de coisas. Nós não devemos dizer: esta filosofia não é válida por as coisas não serem assim. Trata-se apenas de saber se é rigorosa ou não, boa ou não, a questão que deixa as coisas assim. 
	Também não devemos “interpretar” uma questão, procurando a “psicologia ficcional das intenções do teórico”, ou seja, aquilo que em sua vida, em seu contexto, exporia as verdadeiras estruturas causais das proposições filosóficas. Até porque: “A estrutura não é um não-dito que deveria ser descoberto sob o que é dito, nós só podemos descobri-la seguindo a ordem explícita do autor”�. 
	Esta última citação, Deleuze a faz em um texto sobre o método estrutural de leitura de textos filosóficos de Martial Guéroult. De fato, não deixa de ser desprovido de interesse lembrar quão estrutural parecem ser tais colocações que Deleuze toma para si. Aparentemente, trata-se de evitar toda comparação do texto filosófico com o que se dá na sua exterioridade (intenções não ditas, estados de coisas). Tanto que Deleuze chegará a dizer a única problematização que podemos colocar diz respeito ao rigor, ou seja, à coerência interna de uma questão filosófica em relação às suas conseqüências. Ou seja, constituição da ordem das razões e do tempo lógico interno ao desenvolvimento de um projeto filosófico.
	No entanto, como sempre ocorre em Deleuze, a filiação a uma certa perspectiva filosófica guarda algo de subversivo. Pois Deleuze afirma: à uma questão filosófica, podemos perguntar se ela é rigorosa ou não, boa ou não. Mas não nos escapa o fato destes dois julgamentos serem distintos: “rigor” é um julgamento de coerência interna, “bom” é um julgamento de valor que nos leva para fora dos raciocínios intransitivos. “Bom” exige um critério que não se esgota no interior do sistema filosófico estudado. Mas de onde vem o valor que me permite julgar as questões filosóficas que animam projetos filosóficos singulares? Por que uma “boa” questão é aquela que “força de maneira suficiente a natureza das coisas”? O que significa, neste contexto, “forçar” e, principalmente, por que deveríamos fazê-lo? Estas questões não serão respondidas por Deleuze. Ao menos, não agora, em seu primeiro livro. Mas elas serão respondidas pela constituição da série dos autores que irão acompanhá-lo: Hume, Bergson, Nietzsche, Spinoza. No entanto, já aparece neste texto deleuzeano de juventude uma tensão fundamental, uma verdadeira questão de método entre o historiador da filosofia que quer desenvolver até o fim as implicações da questão filosófica que anima um programa filosófico determinado e o filósofo que sabe que, afinal de contas, devemos sempre perguntar: mas esta questão, ela era no final das contas uma boa questão? Hume, Bergson, Nietzsche e Spinoza trarão uma boa questão que em larga medida é a mesma. 
O sujeito e o dado
	Não devemos perder este problema de vista. Mas antes de tentar responder algo sobre os critérios de julgamento do filósofo Deleuze, vamos tentar compreender como o historiador da filosofia Deleuze trabalha. Qual é pois a questão que sintetiza a filosofia de David Hume, isto ao menos segundo Deleuze, já que durante toda a aula de hoje não será exatamente questão da filosofia de Hume, mas da maneira com que Deleuze lê Hume e transforma tal leitura em momento fundamental para a constituição do seu próprio programa filosófico? Podemos colocar tal problema de outra forma: o que realmente interessa Deleuze em Hume? O que ele procura ao ler Hume?
	Notemos que uma resposta esquemática já está presente no próprio título do livro, nesta conjunção inesperada entre empirismo e subjetividade ou, para ser mais preciso, na crença de que o verdadeiro problema do empirismo diz respeito à determinação da natureza da subjetividade. De fato, esta crença não deixa de nos causar surpresas já que aceitamos comumente que, grosso modo, não há um problema da subjetividade no empirismo. Tendemos a admitir que, no empirismo, o sujeito seria apenas um feixe de representações desprovido de qualquer substancialidade ou capacidades inatas, uma forma de tabula rasa que simplesmente recebe e associa o que vem da sensação. O que nos levaria à fórmula do sujeito como nada mais que: “o lugar de uma sucessão de sensações, de desejos e de imagens”�, frase de Jacques Lacan que sintetizava bem o espírito francês dominante na psicologia, na psiquiatria e na tradição fenomenológica da época contra o empirismo. Assim, ao escrever seu livro, Deleuze sabe que está entrando em uma polêmica que toca tanto a filosofia quanto às chamadas ciências humanas (psicologia à frente). É uma polêmica desta natureza que continuará a alimentar sua experiência intelectual, principalmente com O anti-Édipo; o que talvez nos permita expor um dos eixos centrais e invariáveis do pensamento de Deleuze: a problematização do que a tradição moderna compreendeu como o lugar do sujeito e suas conseqüências para a estruturação das ciências do homem.
	Deleuze quer assim mostrar como esta forma então hegemônica de compreender o problema do significado do empirismo e da filosofia de Hume em particular estava equivocada. Ele quer mostrar que, se formos capazes de apreender de maneira correta a natureza do problema da subjetividade no empirismo poderemos, ao mesmo tempo: a) ultrapassar a filosofia da consciência, b) dar um novo encaminhamento para o problema da constituição das individualidades, c) constituir uma teoria social não mais fundada no paradigma jurídico da lei, mas no problema da relação entre interesses práticos e instituições, d) abrir espaço para uma verdadeira filosofia da práxis. Todos estes pontos servem de horizonte para o livro de Deleuze.
	Mas se há um problema da subjetividade no empirismo, em especial no empirismo de Hume, então devemos nos perguntar porque ele não foi visto de maneira correta. A resposta de Deleuze consiste em dizer que aceitamos sem reservas a definição do empirismo proposta pela tradição kantiana: teoria segundo a qual o conhecimento não apenas começa com a experiência, mas deriva dela. Fórmula amplamente insuficiente. Primeiro, porque o conhecimento não é a atividade mais importante do empirismo, mas apenas o meio para a ação prática. O empirismo não é uma filosofia do conhecimento, mas uma filosofia da práxis, reflexão sobre o modo com que o sujeito age em situações da vida ordinária.
	Segundo, porque para os empiristas e para Hume, a experiência tem dois sentidos e em nenhum deles ela é constituinte. Em um sentido, chamamos de experiência as diversas conjunções de objetos no passado. Este é o sentido que uso quando afirmo, na linguagem ordinária: “A experiência me mostrou que...”. No entanto, tais conjunções não são dadas pela experiência, mas postas por princípios de associação próprios à natureza humana e que permitem ao sujeito, inclusive, ultrapassar a experiência (dizer que o sol se levantará amanhã, que César existiu ...). Em um segundo sentido, mais importante, chamamos de experiênciaa coleção de impressões e percepções distintas que, por sua vez, também são relacionadas por princípios de associação. Nos dois casos é claro que o conhecimento não deriva da experiência, mas é organizado por princípios. Daí porque Deleuze não cansará de insistir que o empirismo nos mostra como o conhecimento não deriva da experiência, mas do dado. Em última instância, o empirismo afirmaria que o conhecimento provém do dado e, para ser mais preciso, da ultrapassagem, pela transcendência do dado. Mas o que é o dado?
	Podemos afirmar que duas características estruturas definem o dado. Por um lado, o dado: “nos diz Hume, é o fluxo do sensível, uma coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções. É o conjunto do que aparece, o ser igual à aparência, é o movimento, a mudança, sem identidade nem lei”�. Ou seja, o dado é um conjunto formado por impressões e imagens elementares (lembremos da noção da Idéia como cópia das nossas impressões) dispostas como um fluxo; o que significa, sem princípio interno de estruturação e, por isto, atomizado. Este gênero de campo caótico, embrião do que vimos na aula passada sob o nome de “zona de indiscernibilidade”, é o que, no caso de Hume, valida sua perspectiva atomista. 
	Por outro lado, o dado precisa de um princípio que o estruture, que distribua estas impressões e imagens elementares em uma estrutura. Eis a perspectiva associacionista de Hume. Quando Hume afirma: “todo o poder criador da mente nada mais vem a ser do que a faculdade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que nos são fornecidos pelos sentidos e pela experiência”� devemos entender o verdadeiro sentido de tal afirmação. Pois ela nos indica que o princípio de relação que fornece a forma do pensável é exterior aos termos que ele relaciona. O que me permite relacionar idéias é exterior à idéia. Daí porque Deleuze poderá afirmar que o empirismo só se definirá de maneira correta como um dualismo:
A dualidade empírica é entre os termos e as relações, ou mais exatamente entre as causas das percepções e as causas das relações, entre os poderes escondidos da Natureza e os princípios da natureza humana�. 
Assim, aparece um outro critério para o empirismo: não exatamente a teoria que afirma que o conhecimento deriva da experiência, mas a teoria que afirma que as relações que estruturam a experiência não derivam da natureza das coisas. Deleuze chega mesmo a afirmar que Hume elabora o ceticismo moderno ao não insistir mais na variação das aparências sensíveis e dos erros do sentido, mas na exterioridade entre a relação e seus termos. Como vemos, trata-se de uma leitura, digamos, “transcendental” do empirismo e do ceticismo de Hume; o que obriga a Deleuze fazer um verdadeiro malabarismo para afirmar que o pensamento de Kant era não-empirista por excelência, já que: em Kant, as relações dependem da natureza das coisas no sentido de que, como fenômenos, as coisas supõem uma síntese cuja fonte é a mesma que a das relações. “É por isto que o criticismo não é um empirismo”�. Ou seja, Deleuze precisa secundarizar o problema da distância entre as estruturas categorias e as coisas em-si.
	Por mais que esta leitura de Kant seja discutível, é importante compreendermos sua função no interior da economia do texto de Deleuze. Pois ela vai permitir o encaminhamento para a fundamentação daquilo que seria a verdadeira questão posta pela filosofia de Hume. Lembremos destas colocações centrais do nosso texto:
Nós fazemos uma crítica transcendental quando, situando-nos em um plano metodicamente reduzido que nos fornece uma certeza essencial, uma certeza de essência, perguntamos: como pode existir o dado, como algo pode se dar a um sujeito, como o sujeito pode se dar algo? (...) A crítica é empírica quando, colocando-se em um ponto de vista puramente imanente de onde é possível uma descrição que encontra sua regra em hipóteses determináveis e seu modelo na física, perguntamos a respeito do sujeito: como ele se constitui no dado? (...) O dado não é mais dado a um sujeito, o sujeito se constitui no dado. O mérito de Hume foi ter extraído o problema empírico em estado puro, mantendo-o distante do transcendental, mas também do psicológico�.
 Quer dizer, a questão posta por Hume e que será desenvolvida em todas suas implicações é: “como o sujeito se constitui no dado?”. Questão distinta da pergunta transcendental por excelência: “como o sujeito constitui o dado?”. Pois se a segunda parte do reconhecimento do caráter constituinte de uma subjetividade assegurada a priori, a primeira afirma não ser exatamente o sujeito quem constitui o campo da experiência, mas é aquilo que, de uma certa forma, é constituído no interior do que chamamos de experiência. Poderíamos mesmo dizer que “experiência” é o nome que damos para um processo de constituição ou, como Deleuze dirá mais tarde, de produção da subjetividade. Daí porque ele pode afirmar que o empirismo coloca essencialmente o problema da constituição do sujeito, o problema de como o espírito advém sujeito, não como o produto de uma gênese, mas como efeito de princípios transcendentes.
A imaginação e as paixões
Para entender melhor este ponto, devemos analisar o lugar central da imaginação na filosofia de Hume; o que leva Deleuze a afirmar que o empirismo não é uma filosofia dos sentidos, mas uma filosofia da imaginação, já que tudo ocorre na imaginação, o que não quer dizer que tudo ocorra através da imaginação. 
	Deleuze insiste que, em Hume, a imaginação não é inicialmente uma faculdade do conhecimento. No interior, da experiência, ela advém uma faculdade. Inicialmente, ela é apenas um conjunto de percepções e imagens que formam uma espécie de fundo do espírito. Quando submetida às paixões, a imaginação pode produzir associações de maneira fantasiosa, delirante e inconstante. "Nada é mais livre que a imaginação", dirá Hume. Tal como um pintor que mistura cores, a imaginação associa livremente idéias elementares e produz dragões de fogo, quimeras, tucanos honestos. 
	Faz-se necessário pois princípios gerais de associação (como a semelhança, a causalidade, a contigüidade no tempo e no espaço) que não sejam produtos da imaginação mas que, de uma certa forma, afetem a imaginação. Por isto, Deleuze poderá dizer que, para Hume: “O que é universal ou constante no espírito humano nunca é tal ou tal idéia como termo, mais apenas as formas de passar de uma idéia particular a uma outra”�. A natureza humana será assim imaginação que se fixou através de outros princípios. È a partir deste momento que ela pode advir faculdade do conhecimento. Assim: “quando nos falamos do sujeito, o que queremos dizer? Queremos dizer que a imaginação, de simples coleção transformou-se em uma faculdade; a coleção distribuída transformou-se em sistema”�.
	Mas vocês poderiam perguntar: e estes princípios de associação enquanto sistema de regras que organizam os dados caóticos da imaginação? Não seriam eles o embrião da noção de transcendental enquanto estrutura de regras que fornecem a condição para a experiência, assim como da submissão da imaginação ao entendimento? Neste ponto, é de suma importância lembrarmos da maneira com que Deleuze afirma existir em Hume duas modalidades de princípios na natureza humana: os princípios de associação e os princípios das paixões. Pois isto complexificará o problema da relação entre relações e idéias.
	Deleuze lembra como: “os princípios de associação explicam a rigor a forma do pensamento em geral, não seus conteúdos singulares”�. Ou seja, enquanto regras gerais eles apenas dizem, por exemplo, que um determinado sujeito foi capaz de estabelecer relações de semelhança entre dois termos. No entanto, sabemos como, de um certo ponto de vista, tudo pode ter algum grau semelhança com tudo. Como já disse John Searle: “a semelhança é um predicado vazio : duas coisas quaisquer são semelhantes sob algum aspecto”�. Vocês devem inclusive conhecer estes jogos surrealistas onde dois termos quaisquer eram postos em relaçãode contigüidade ou semelhança, criando situações humorísticas. Assim, quando Hume afirma, por exemplo: “Na realidade, todos os argumentos da experiência se baseiam na semelhança que descobrimos entre os objetos naturais e pela qual somos induzidos a esperar efeitos similares àqueles que vimos seguirem-se de tais objetos”�, devemos dizer que tal explicação explica pouco, já que não sabemos sob qual padrão de semelhança estruturamos relações. O uso da probabilidade e da inferência ainda não resolve a questão, já que a inferência e a probabilidade pressupõem a decisão a respeito de princípios de semelhança entre dois casos não contíguos. Ou seja, o raciocínio aqui é circular.
	É tendo questões similares em mente que Deleuze insiste: “o encaminhamento particular de um espírito deve ser estudado, a toda uma casuística a fazer: por que em uma consciência particular, em tal momento, esta percepção vai evocar tal idéia ao invés de outra?”�. A resposta exige o recurso a um outro princípio, no caso a afetividade. Hume a introduz afirmando que a explicação que fornecerá a razão suficiente da relação será fornecida pela circunstância. Neste contexto, circunstância significa que apenas as situações singulares, marcadas por modos de investimentos afetivos podem explicar a tendência que guia os processos de associação. Aqui, Deleuze convoca Freud para lembrar que a explicação para o fato, por exemplo, de um determinado sujeito pensar na liberdade todas as vezes que vê uma bandeira vermelha ou de associar medo de cavalos e medo pelo pai só pode ser fornecida através da compreensão de uma certa história da afetividade. A associação liga as idéias na imaginação, as paixões fornecem um sentido a tais relações ou, para ser mais preciso, uma finalidade. Se as idéias se associam, é em função de uma intenção que só a paixão pode fornecer. O que significa não apenas colocar uma psicologia das afecções do espírito na base de uma verdadeira ciência do homem, mas significa algo mais profundo e decisivo. Trata-se de afirmar que todas as expectativas de conhecimento estão necessariamente submetidas ao interesse, que o conhecimento é uma questão de satisfação de interesses práticos.
	Deleuze insiste nesta via ao afirmar que Hume critica o primado do sujeito do conhecimento em prol de um certo utilitarismo: “A associação de idéias não define um sujeito cognoscente, mas ao contrário um conjunto de meios possíveis para um sujeito prático cujos fins reais são de ordem passional, moral, política, econômica”�. Assim, por um lado o sujeito não aparece como sujeito ativo, mas como sujeito afetado pelas paixões que, através do cálculo do prazer e do desprazer, produz um princípio de utilidade. Ele é espírito ativado por princípios que seguem uma finalidade ditada, em última instância, pelas paixões. Os princípios da paixão são absolutamente primeiros e selecionam as impressões de sensação. A subjetividade, por sua vez, aparece definida como regra geral de associação enquanto operada na imaginação e afetada pelas paixões. Desta forma, a questão “como o sujeito se constitui no dado?” pode receber uma resposta como: ele se constitui através de operações regionais de síntese afetadas por paixões que fornecem à ação uma finalidade. “O sujeito do conhecimento, da teoria, é o efeito da imaginação, da crença, do hábito, dos sentimentos e das paixões. Ele não é mais um princípio de explicação, mas o que deve ser explicado”�.
	No entanto, esta resposta parece trazer mais problemas do que solução. Pois esta submissão do conhecimento aos móbiles do interesse está longe de ser uma operação simples. Estaria Hume, ao menos segundo Deleuze, colocando em marcha alguma forma de psicologismo selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche e Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos? Mas, se este for o caso, fica ainda um problema espinhoso: como podemos distinguir a simples fantasia da percepção, o delírio que produz associações ao bel prazer e o conhecimento que me permite agir no mundo? 
	A este respeito, Deleuze provavelmente diria: vejam como já a pergunta opera um deslocamento do problema em direção a uma questão de ordem eminentemente prática. Há dois modos de associação: um é a fantasia privada, o outro é um modo que me permite operar no mundo. Nada escapa mais a nosso conhecimento do que os poderes da natureza e, como o ceticismo mitigado de Hume não cansará de lembrar: operar no mundo não pressupõe conhecer aquilo que a natureza é em-si. Pressupõe, antes de mais nada, o que sujeitos organizados socialmente, ou seja, relacionando-se através de instituições, querem fazer no mundo. 
	Mas para melhor compreender este ponto, ponto fundamental por nos explicar porque Deleuze começa seu livro afirmando que Hume precisou ser um moralista, um sociólogo, um historiador antes de ser psicólogo para ser um psicólogo, devemos dar um pequeno passo para trás. Ele nos levará a colocar a pergunta central: quais são os modos do operar no mundo, quais são os móbiles fundamentais da práxis? Hume fornece principalmente dois: a crença e a invenção. A crença é a base do sujeito cognoscente já que todo ato de conhecer (enquanto ultrapassagem do dado) é a projeção de uma probabilidade, de uma crença. Por sua vez, a invenção, como veremos, é a base do sujeito da moral e da política. Todos estes dois móbiles têm com fundamento o hábito. 
O hábito e a síntese do tempo
	Deleuze dedicará longos trechos de seu Diferença e repetição a uma discussão sobre o problema do hábito. Em Empirismo e subjetividade¸ tal discussão aparece de maneira lateral. No entanto, ela ganhará importância a partir do desdobramento do pensamento de Deleuze. 
	Lembremos inicialmente da maneira com que Hume introduz a questão do hábito. Ao se perguntar sobre o verdadeiro princípio que guia nossas operações de inferência, ele afirma: "Este princípio é o costume ou hábito, pois, onde quer que a repetição de qualquer ato ou operação particular manifeste uma propensão para renovar o mesmo ato ou operação, sem ser impulsionado por raciocínio ou processo algum do entendimento, dizemos sempre que essa propensão é o efeito do costume"�.
	Nesta afirmação encontram-se elementos fundamentais para a interpretação de Deleuze. Primeiro, o hábito, enquanto princípio de repetição, é uma forma de síntese do tempo, já que ele é modo de projeção de um futuro a partir de modos de síntese do passado e do presente ou antes, maneira de organizar o tempo: “como um presente perpétuo a respeito do qual devemos e podemos nos adaptar”�. Deleuze chegará mesmo a dizer que a estrutura da duração própria ao problema da memória em Bergson estaria presente já nas reflexões de Hume sobre o hábito, mesmo que "o hábito não precise da memória"�. O que implica uma reconsideração sobre o que Bergson afinal entende por memória.
	Por ser modo de síntese do tempo, o hábito pode dar conta do problema da crença, problema maior para Hume já que o conhecimento é, no fundo, uma forma de crença. Mas o que é a crença? "Toda a crença acerca de uma questão de fato ou de uma existência real é derivada unicamente de algum objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção habitual entre ele e algum outro objeto"�. Quer dizer, a crença é um sentimento dependente das conjunções produzidas pelo hábito. Daí porque ela nada mais é do que a concepção de um objeto mais viva, estável e intensa do que aquilo que a imaginação pode ser capaz de obter. Ela é dependente das regularidades que sou capaz de perceber [problemas nas distinções entre alucinação e percepção].
	Há duas questões que gostaria de abordar a respeito desta forma de definir o hábito. Primeiro, por ser estrutura de síntese do tempo, o hábito pode aparece como a “raiz constitutiva do sujeito”�. De fato, esta pode ser umadefinição mais precisa do que Deleuze entende neste momento por subjetividade. Subjetividade é aquilo que permite a síntese do tempo. Mas devemos estar atento para um ponto: a síntese através do hábito não é exatamente uma síntese ativa feita por um Eu enquanto operador de sínteses que se dão na transparência da consciência. Daí porque Hume insiste que a repetição de atos e operações não é, quando submetida ao hábito, impulsionada pelo raciocínio ou por processos do entendimento. 
Partindo deste ponto, Deleuze pode afirmar que Eu sou muito mais um paciente do que agente das sínteses do tempo feitas pelo hábito. Eu sou muito mais alguém que contempla a formação silenciosa do hábito, do que alguém que age para produzir unidades. No fundo, esta unidade do hábito permite à subjetividade liberar-se de um determinismo estrito para encontrar uma certa regularidade. Mas, acima de tudo, o hábito não é a função de um Eu, mas algo que permite a produção de um Eu. Não há hábito porque há um Eu. Mais correto seria dizer: há um Eu porque o hábito aparece como “princípio ativo que fixa e desdobra as sínteses passivas da associação”�. Isto talvez nos explique porque Deleuze poderá dizer que, através de Hume, podemos aprender que: “nós somos hábitos, nada mais que hábitos, o hábito de dizer Eu ... Talvez não exista resposta mais surpreendente para o problema do Eu”�.
	Ou seja, desta forma, Deleuze pode estabelecer uma estratégia para a crítica da filosofia da consciência e da sua ilusão de uma subjetividade constitutiva, de uma subjetividade capaz de constituir o campo da experiência e de apropriar de maneira reflexão os procedimentos gerais de constituição de tal campo. No empirismo, ele encontrará uma filosofia na qual a subjetividade é produto de afecções que atuam em princípios de associação e que produzem uma disposição que chamamos de hábito. Disposição esta que me desaloja da condição de agente, mas que me assujeita.
O mundo social
	O outro ponto importante a abordar a respeito da definição humeana do hábito diz respeito a uma questão fundamental para Deleuze. Vimos até aqui como a subjetividade apareceu como regra geral de associação enquanto operada na imaginação e afetada pelas paixões. Esta regra geral recebeu seu nome próprio: hábito. Mas o hábito, enquanto produção de conjunções, tem sua força garantida por "uma espécie de harmonia pré-estabelecida entre o curso da natureza e a sucessão das nossas idéias"�. De onde vêm está harmonia, este acordo entre a natureza humana animada por uma finalidade, marcada pelas paixões e a natureza? 
	Esta resposta exige um desvio. Deleuze começou seu livro afirmando que Hume nos mostrara que as duas formas pelas quais o espírito é afetado são o passional e o social e que haveria uma coerência profunda entre elas. Isto a ponto de afirmar que: "o verdadeiro sentido do entendimento é justamente o de tornar social uma paixão, social um interesse"�. Dificilmente nós encontraríamos uma afirmação mais contra-intuitiva. Pois normalmente diríamos que a função do entendimento é produzir esquemas categoriais capazes de se reportar à percepção. De onde vem esta história de paixão que se torna social? 
Ao subordinar conhecimento ao interesse, Deleuze-Hume quer dizer que a maneira de estruturação do dado depende de interesses que nos permitem agir no mundo, agir em um mundo que sempre é socialmente produzido a partir de expectativas práticas de sujeitos socializados. Daí porque o problema fundamental da filosofia de Hume não diz respeito à dinâmica de confrontação entre sujeito e objeto, mas a um problema de socialização de interesses dirigidos ao mundo, problema relativo à maneira de "tornar social uma paixão, social um interesse". 
Isto explica porque Deleuze insiste que não há conflito ontológico entre paixões individuais e vínculos sociais em Hume. Pois o homem não é naturalmente egoísta, ele é naturalmente parcial, homem que coloca acima de tudo o interesse da sua família, do seu clã. A ação é animada por uma simpatia, mas parcial. Não se faz necessário negar e restringir os interesses através da Lei, mas estender a simpatia. Isto permite a Deleuze afimar: "a justiça é a extensão da paixão, do interesse a respeito do qual é negado apenas seu movimento parcial"�. O social não é assim espaço da restrição do interesse particularista de cada um, mas o espaço da invenção de modelos de associação fornecidos pela imaginação, espaço de invenção de ilusões capazes de anular a parcialidade das paixões, mas de ilusões necessárias capazes de criar um interesse geral. 
Estes modelos de associação serão as instituições. Daí porque Deleuze insiste em pensar o social não através do paradigma jurídico da lei, mas do paradigma social da inastituição. A diferença entre lei e instituição é: 
a primeira é uma limitação da ação, a outra é um modelo positivo de ação. Contrariamente às teorias da lei que colocam o positivo fora do social (direitos naturais) e o social no negativo (limitação contratual), a teoria da instituição coloca o negativo fora do social (necessidades), para apresentar a sociedade como essencialmente positiva, inventiva (meios originais de satisfação)�. 
Esta inventividade própria ao social que fornece aos nossos corpos um gênero de modelo, assim como fornece à inteligência um saber, uma possibilidade previsão permite ao homem sair do domínio do instinto. "O homem não tem instinto, ele faz instituições". Sendo assim, são estas paixões socializadas que fornecem o princípio para a associação, que são internalizadas como hábito. Assim, quando Deleuze afirma: "ao crer e inventar, nós fazemos do próprio dado uma natureza"�. Nós fazemos através de paixões "instituticionalizadas". Porque, a respeito da natureza tal como ela é (o que, no fundo, é uma maneira de colocar a questão do Ser), até agora não podemos dizer nada. 
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Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze
Aula 3 : Le bergsonisme
Na aula passada, lemos Empirismo e subjetividade, o primeiro livro de Gilles Deleuze. Através desta leitura vimos como já aparece neste texto de juventude uma tensão fundamental, uma verdadeira questão de método que dizia respeito ás relações entre história da filosofia e afirmação de um programa filosófico singular. Vimos como Deleuze procurava realizar duas exigências. 
	Por um lado, tratava-se de desenvolver até o fim as implicações da questão filosófica que animaria a filosofia humeana, uma questão que diz respeito ao estatuto de um conceito de subjetividade que não aparece mais como fundamento para o saber seguro, mas como processo de constituição de um mundo prático. Questão que Deleuze enunciava da seguinte forma: “como o sujeito se constitui no dado?”. Inversão da questão definidora de toda filosofia crítica: “como o sujeito constitui o dado?”.
	Mas, por outro lado, Deleuze já procurava, através de Hume, constituir os problemas e encaminhamentos que direcionarão sua própria experiência intelectual de maturidade; esta experiência que começa com os livros Lógica do sentido e Diferença e repetição. A este respeito, eu havia afirmado na aula passada que uma das chaves de compreensão de Deleuze estava na sua problematização recorrente do lugar do sujeito na filosofia moderna e suas conseqüências para a configuração do que se convencionou chamar de “ciências humanas”, psicologia à frente. Daí porque dois de seus livros são dedicados à correntes e autores objetos de críticas virulentas da psicologia e da psiquiatria de inspiração fenomenológica hegemônica então na França (pensem, por exemplo, em autores como Henri Ey e Karl Jasper). Um deles e o empirismo com sua justificação do associacionismo, o outro e Bergson e sua teoria dos dados imediatos da consciência. 
	Levando esta problemática em conta, procurei mostrar na aula passada como o livro de Deleuze insistia que a apreensão correta da natureza do problema da subjetividade no empirismo permitira, ao mesmo tempo: a) ultrapassar a filosofia da consciência, b) dar um novo encaminhamentopara o problema da constituição das individualidades, c) constituir uma teoria social não mais fundada no paradigma jurídico da lei, mas no problema da relação entre interesses práticos e instituições, d) abrir espaço para uma verdadeira filosofia da práxis.
	A ultrapassagem da filosofia da consciência se dava na medida em que o empirismo trazia uma crítica à noção de subjetividade constitutiva própria às filosofias que colocam a consciência como fundamento do saber. Como a subjetividade aparece como o que é constituído, não como o que constitui o campo da experiência, o esforço filosófico se volta para a análise dos princípios “pré-individuais” que permitem a constituição do que nos aparece como “o dado”. Daí porque Deleuze não cansará de insistir que o empirismo nos mostra, na verdade, como o conhecimento não deriva da experiência, mas do dado.
	Vimos como Deleuze mobilizava um certo dualismo a fim de compreender o que é o dado. Por um lado, o dado: “nos diz Hume, é o fluxo do sensível, uma coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções. É o conjunto do que aparece, o ser igual à aparência, é o movimento, a mudança, sem identidade nem lei”�. Ou seja, o dado é um conjunto formado por impressões e imagens elementares (lembremos da noção da Idéia como cópia das nossas impressões) dispostas como um fluxo; o que significa, sem princípio interno de estruturação e, por isto, atomizado. Por outro, o dado precisa de um princípio que o estruture, que distribua estas impressões e imagens elementares em uma estrutura. Isto demonstra que o princípio de relação que fornece a forma do pensável é exterior aos termos que ele relaciona. O que me permite relacionar idéias é exterior à idéia. Daí porque Deleuze poderá afirmar que o empirismo só se definirá de maneira correta como um dualismo.
	Estes princípios de relação, ou princípios de associação, são inatos à natureza humana. No entanto, só eles não bastam para fornecer as condições para a estruturação do campo da experiência e da ação. Vimos Deleuze insistir como: “os princípios de associação explicam a rigor a forma do pensamento em geral, não seus conteúdos singulares”�. Ou seja, os princípios de associação são regras gerais que apenas dizem, por exemplo, que um determinado sujeito foi capaz de estabelecer relações de semelhança entre dois termos. Como sabemos que “semelhança” é um predicado vazio que pede outro princípio capaz de dar conta do modo específico de determinação da relação entre termos, vimos estes outro princípio ser encontrado na afetividade. Hume a teria introduzido ao afirmar que a explicação que fornecerá a razão suficiente da relação será fornecida pela circunstância. Neste contexto, circunstância significa que apenas as situações singulares, marcadas por modos de investimentos afetivos podem explicar a tendência que guia os processos de associação. Assim a associação liga as idéias na imaginação, enquanto as paixões fornecem um sentido a tais relações ou, para ser mais preciso, uma finalidade. 
A partir desta noção, vimos Deleuze dar um novo encaminhamento para o problema da constituição das individualidades. Pois para além da noção da subjetividade constitutiva, transcendental e imediatamente auto-idêntica, Deleuze podia falar da subjetividade como no modo com que uma regra geral era afetada pelas paixões no interior da imaginação, construindo assim uma ordem a partir de um conjunto de imagens e percepções. A este modo de afecção de uma regra geral de associação no interior da imaginação, Hume dava comumente o nome de “hábito”. Insistindo que a associação é a base dos processos subjetivos de síntese do tempo (já que ela é o que permite a experiência da repetição e da diferenciação de experiências), Deleuze podia ainda falar que o hábito era, no fundo, o dispositivo subjetivo de síntese do tempo. Proposição que, nas mãos de Deleuze, transforma-se em peça central de uma crítica da filosofia da consciência e da noção moderna de sujeito. Pois Eu sou muito mais um paciente do que agente das sínteses do tempo feitas pelo hábito. Eu sou muito mais alguém que contempla a formação silenciosa do hábito, do que alguém que age para produzir unidades. O hábito não é a função de um Eu, mas algo que permite a produção de um Eu. Não há hábito porque há um Eu. Mais correto seria dizer: há um Eu porque o hábito aparece como “princípio ativo que fixa e desdobra as sínteses passivas da associação”�. Isto talvez nos explique porque Deleuze poderá dizer que, através de Hume, podemos aprender que: “nós somos hábitos, nada mais que hábitos, o hábito de dizer Eu ... Talvez não exista resposta mais surpreendente para o problema do Eu”�.
	Por fim, esta maneira de insistir nas paixões como princípio estruturador do campo a experiência permitia a Deleuze mostrar que a verdadeira contribuição do empirismo estaria no deslocamento do problema do sujeito, da teoria do conhecimento para uma teoria da práxis. Daí porque: “A associação de idéias não define um sujeito cognoscente, mas ao contrário um conjunto de meios possíveis para um sujeito prático cujos fins reais são de ordem passional, moral, política, econômica”�. Assim, o sujeito aparece aquilo que, ao se deixar afetar pelas paixões, produz um princípio de utilidade através do cálculo do prazer e do desprazer. Ele é espírito ativado por princípios que seguem uma finalidade ditada, em última instância, pelas paixões. Maneira de lembrar que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos. Maneira ainda de problematizar profundamente a relação entre conhecimento e interesse. 
	A fim de não resvalar em um certo relativismo que submete todas as exigências de verdade ao particularismo dos interesses, Deleuze precisava, de uma certa forma, fornecer um certo universalismo para as paixões como princípio. O próprio termo “paixões” é ruim por ressoar um certo psicologismo e um certo personalismo, o que levará Deleuze a restringir cada vez mais seu uso a fim de usar, em seu lugar a impessoalidade do “afeto” e, principalmente, da “intensidade”. 
De qualquer forma, Deleuze insistia que, em Hume, não havia conflito ontológico entre paixões individuais e vínculos sociais. Pois o homem não é naturalmente egoísta, ele é naturalmente parcial, homem que coloca acima de tudo o interesse da sua família, do seu clã. A ação é animada por uma simpatia, mas parcial. Não se faz necessário negar e restringir os interesses através da Lei, mas estender a simpatia. Isto permite a Deleuze afimar: "a justiça é a extensão da paixão, do interesse a respeito do qual é negado apenas seu movimento parcial"�. O social não é assim espaço da restrição do interesse particularista de cada um, mas o espaço da invenção de modelos de associação fornecidos pela imaginação, espaço de invenção de ilusões capazes de anular a parcialidade das paixões. São pois estas paixões socializadas que fornecem o princípio para a associação, que são internalizadas como hábito. Assim, quando Deleuze afirma: "ao crer e inventar, nós fazemos do próprio dado uma natureza"�, nós o fazemos através de paixões "instituticionalizadas". Porque, a respeito da natureza tal como ela é (o que, no fundo, é uma maneira de colocar a questão do Ser) nada poderia ser dito, como Hume nos ensinara. 
De Hume a Bergson
Mas o ensinamento de Hume não era exatamente algo que Deleuze estava disposto a ouvir. Por isto, ele continuará sua procura em ultrapassar a filosofia da consciência, em pensar outros modos de constituição de individualidades e em se orientar em uma filosofia da práxis através de um outro autor. Um autor capaz de fornecer aquilo que Hume não era capaz de fornecer: uma ontologia, um discurso do ser enquanto ser ou, o que é o mesmo, uma tematização filosófica possível a respeito do conceito de natureza. Esta ontologia, Deleuze encontrará em Henri Bergson. Desta forma, Bergson permite passar desta tendência em colocar uma teoria da subjetividade e umasociologia na base da teoria do conhecimento, isto a fim de fornecer uma ontologia renovada à filosofia: o que, no fundo, era o verdadeiro projeto intelectual de Deleuze.
	O livro sobre Bergson não é escrito logo após Empirismo e subjetividade. Na verdade, 13 anos se passam entre os dois. Durante este tempo, Deleuze passa oito anos sem nada escrever, “um buraco de oito anos” no qual Deleuze se descreve como alguém que procurava “perfurar o muro, para cessar de bater a cabeça”�. Após este tempo, Deleuze começa a escrever um livro por ano. Primeiro, Nietzsche e a filosofia, depois A filosofia crítica de Kant, Proust e os signos e enfim O bergsonismo. Deleuze vê este pequeno livro como o fim de um ciclo. Tanto que, em 1989, ao procurar classificar o conjunto de seu trabalho a partir de séries temáticas, ele construirá onze séries cuja primeira terá como título: De Hume a Bergson. Mas, afinal de contas, como se vai de Hume a Bergson?
	Primeiro, vale a pena lembrar da peculiaridade da escolha de Deleuze. Se havia algo que unia tanto a fenomenologia francesa de Sartre e Merleau-Ponty quanto o estruturalismo em plena hegemonia em 1966 (ano da publicação de dois livros maiores do estruturalismo: Escritos, de Lacan e As palavras e as coisas, de Foucault) era a recusa a Bergson. A filosofia bergsoniana era vista como subjetivista, espiritualista, intuicionista e tributária de um vitalismo evolucionista que parecia flertar com o irracionalismo. Foucault, por exemplo, lembra como havia, em sua época de estudante, uma espécie de bergsonismo latente dominando a filosofia universitária francesa. Ele chega a relatar uma anedota significativa do espírito de época: “Eu me lembro de ter feito uma conferência em uma escola de arquitetura e de ter falado das formas de diferenciação dos espaços em uma sociedade como a nossa. Ao final, alguém tomou a palavra em um tom muito violento dizendo que falar do espaço era ser um agente do capitalismo, que tudo mundo sabe que o espaço é o morto, o fixo, a imobilidade que a sociedade burguesa quer impor a si mesma, que isto significa desconhecer o movimento da história (...) Via-se claramente como, através uma certa valorização bergsoniana do tempo, ele desenvolvia uma concepção marxista muito vulgar”�. A anedota serve para medir o tamanho da inversão que Deleuze procurava fazer ao apresentar um Bergson anti-humanista, próximo de preocupações maiores do empirismo inglês e portador de um conceito de tempo que, em última instância, abria as portas para uma crítica radical do primado da consciência. 
	Deleuze procura realizar seu objetivo através da análise de três conceitos centrais em Bergson: duração (Ensaio sobre os dados imediatos da consciência), memória (Matéria e memória) e élan vital (A evolução criadora). Tal análise visa mostrar as relações profundas entre os três conceitos, assim como a progressão que a passagem de um para outro implica. 
	Antes de entrar na análise direta de tais conceitos, Deleuze precisa fornecer o verdadeiro alcance do chamado “intuicionismo” bergsoniano. Este é um ponto central que não teria sido apreendido pelos leitores de Bergson. O conceito bergsoniano de intuição nada tem a ver com uma noção clássica de intuição como a apreensão mental imediata do que é imediatamente claro e distinto ao espírito. Noção dependente de uma metáfora naturalizada: a metáfora ocular do golpe de vista, tão presente em Descartes, para quem ressoa o sentido de intueri no latim clássico : olhar ou inspecionar. 
	De fato, em Bergson, a intuição é um método que permite construir uma outra relação com as coisas distinta da relação de representação própria ao discurso da ciência. Há em Bergson uma espécie de crítica à reificação produzida pelo discurso científico que leva Deleuze a simplesmente dizer: “Nós estamos separados das coisas, o dado imediato não é pois o imediatamente dado”�. Para recuperar o dado imediato, a intuição deve operar por divisão. Na dimensão da experiência, estamos sempre às voltas com mistos que devem ser distinguidos e divididos. Mistos compostos de percepção e lembranças, de matéria e memória, de tempo e espaço. O trabalho da intuição consiste em dividir estes mistos, mostrando que há uma profunda diferença de natureza entre aquilo que misturamos por, no fundo, ver entre eles apenas diferenças de grau. Por exemplo, ao pensar o tempo como uma linha reta composta de diversos pontos que seriam os instantes (metáfora kantiana para o tempo) acabamos por pôs apenas uma diferença de grau entre tempo e espaço. O mesmo acontece quando compreendemos a lembrança como puros traços mnésicos de antigas percepções. A intuição permite assim a apreensão da verdadeira diferença, para além das puras diferenças de grau. Neste sentido, ela é método por permitir a passagem da experiência às condições de constituição da experiência, por mostrar como a aparência imediata do dado se constitui através de uma ilusão a respeito das diferenças de natureza. Deleuze chega mesmo a afirmar, apoiando em Bergson, que os falsos problemas vêm da nossa incapacidade em ultrapassar a experiência em direção ás condições da experiência, em direção às “articulações do real”, mostrando o que se distingue no interior dos mistos mal analisados no meio dos quais vivemos. Os falsos problemas são manifestações da impossibilidade de se colocar a pergunta: “como se constitui o dado?” e, com isto, alcançar um “empirismo superior”; até porque, essa passagem em direção às condições de experiência não consiste em ultrapassar o dado em direção ao conceito, mas em direção a perceptos puros que só podem ser apreendidos pela intuição.
A ilusão do negativo
	A mais importante destas diferenças de grau é, no entanto, aquela que sustenta a oposição entre ser e não-ser. A partir dos livros sobre Nietzsche, Deleuze introduzirá um dos dispositivos mais importantes do seu programa filosófico: a crítica do negativo. Insistir na realidade do negativo, na realidade de objetos que só podem ser pensados e apreendidos de maneira negativa, seria uma das piores ilusões do pensar, já que isto implicaria na impossibilidade de apreender a verdadeira diferença. Voltaremos em várias ocasiões à análise da anatomia desta crítica. Por enquanto, podemos dizer que a crítica do negativo insiste no estatuto de falso problema próprio ao não-ser, já que o não-ser seria resultado de uma simples diferença de grau e de intensidade em relação ao ser: “Na idéia de não-ser, há a idéia de ser, mais o motivo psicológico particular desta operação (quando um ser não convém à nossa expectativa e que nos o apreendemos apenas como a falta, a ausência do que nos interessa)”�. Ou seja, o Nada sempre é um nada relativo, nada disto ou daquilo, nada em relação a algo que se diferencia como grau de realidade, nunca um Nada absoluto. Daí porque: “O Nada, ainda no nível psicológico, reduz-se a um ‘não-mais’, a um ‘ainda-não’. E nessas expressões, há que sublinhar o ainda e o mais”�.
	No entanto, com a idéia de não-ser, esta realidade subsidiária do Nada é recalcada. Isto permite que a diferença em relação à idéia de ser transforme-se em uma diferença exterior, em uma limitação do ser que se deixa pensar no interior de uma relação de oposição. Isto nos impede pensar a diferença como estrutura interna do ser. Daí porque a intuição é um método de apreensão de objetos para os quais as idéias de não-ser, de negativo, de nada não têm realidade. Por outro lado, esta maneira de pensar diferenças como diferenças externas é o motor gerador das antinomias nas quais o entendimento e o pensamento conceitual sempre se enredam. 
	Esta ausência de realidade do negativo é uma constante do pensamento filosófico do século XX. Já em Heidegger, por exemplo, encontramos a afirmação de que a negação deve ser compreendida como atividade do entendimento, uma atividade secundária, já que dependente da determinação da realidade de algo que será posteriormente negado. Como dirá Sartre, marcado profundamente aqui pelo encaminhamento heideggeriano: “Seria

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