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Merleau Ponty- Caderno Espinosano

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ISSN 1413-6651
São Paulo - 2009
XX
Editora Responsável Institucional
Marilena de Souza Chaui
Editora Responsável
Tessa Moura Lacerda
Comissão Editorial
Celi Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.
Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo Pires, 
Aurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de 
Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofo-
lini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de 
Lyon).
Pareceristas
Alexandre de Oliveira Torres Carrasco, André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Cal-
deroni, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, 
Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Leandro Neves Cardim, Luciana Zaterka, Luís César 
Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Marcus Sacrini, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho, 
Sérgio Xavier Gomes de Araújo.
Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII
Universidade de São Paulo
Reitora: Suely Vilela
Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo
FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretor: Gabriel Cohn
Vice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini
Departamento de Filosofia
Chefe: Moacyr Novaes
Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino
Coord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de
Ávila Zingano
Endereço para correspondência:
Profa. Marilena de Souza Chaui
A/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431
e-mail: cadernos.espinosanos@gmail.com
site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos
Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// Tiragem: 1000 exemplares
A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças. 
N. XX, JAN-JUN DE 2009 – ISSN 1413-6651
Ficha Catalográfica
Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVII
São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2009.
Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651
 
 APRESENTAÇÃO
O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade 
de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades 
foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, 
tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os 
Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.
Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão 
dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, 
expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do 
período sempre estiveram presentes a cada edição.
O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos 
sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e 
pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.
Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, 
tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros 
projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores 
brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto.
Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele 
período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a 
comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, 
inclusive, outrosdepartamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento 
deste trabalho.
Franklin Leopoldo e Silva
 SOBRE ESTE NÚMERO
A filosofia do século XVII ocupa um lugar especial na obra de Maurice Merleau-
Ponty. Das primeiras publicações às derradeiras notas de trabalho, persiste a reflexão 
sobre esse século “intrépido”, que soube tão bem ajustar ciência e filosofia e elevar 
ao cume a questão ontológica. Nisso inclusive, dirá o filósofo, o grande racionalismo 
seiscentista, longe de constituir apenas um passado, tornou-se passagem obrigatória para 
os pensadores contemporâneos.
Foi em vista desse íntimo relacionamento, às vezes embate, às vezes aquiescência, 
sempre inspiração e prova da potência da história da filosofia, que o Grupo de Estudos 
Espinosanos realizou as jornadas “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”, marcando 
o centenário de nascimento d o filósofo francês.
Os textos recolhidos neste número dos Cadernos espinosanos são uma amostra 
significativa das discussões travadas ao longo do evento, que teve lugar nos dias 17 e 18 
de novembro de 2008, no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, e se inscreve no 
conjunto das atividades do projeto temático “Ruptura e Continuidade: Investigações 
sobre a relação entre Natureza e História a partir de sua formulação pelo Grande 
Racionalismo Seiscentista”, financiado pela Fapesp.
Os Editores
 SUMÁRIO
Merleau-Ponty: da constituição à instituição 
 Marilena chaui.......................................................................................11
a Presença do filósofo 
 renaud Barbaras....................................................................................37
a “Grande PolÍtica” ou Merleau-Ponty leitor de MaQuiaVel
 leandro neves cardim...........................................................................49
Merleau-Ponty entre ontoloGia e MetafÍsica
 Marcus sacrini a. ferraz.........................................................................74
o conceito de Vida e a Gênese da ordeM huMana
 silvana de souza ramos.........................................................................90
Merleau-Ponty e a Bola de neVe: eloGio e crÍtica de BerGson
 Pablo Zunino.........................................................................................104
Proust à luZ de freud – uMa leitura Merleau-Pontyana
 ronaldo Manzi......................................................................................121
a Visão coMo aBertura
 alex de campos Moura.........................................................................131
.
fiGuras de conceito. soBre a linGuaGeM eM Merleau-Ponty
 Júlio Miranda canhada..........................................................................138
Merleau-Ponty e o “Grande racionalisMo”: Que É ler uM clÁssico?
 José luiz B. neves..................................................................................149
11
MERlEAU-PONTy: dA cONSTITUIÇÃO à INSTITUIÇÃO
Marilena chaui*
Resumo: Este ensaio examina a noção merleaupontyana de instituição como descoberta de um 
caminho para superar a tradição das filosofias da consciência, particularmente as aporias deixadas 
pela fenomenologia transcendental husserliana, permitindo a passagem de uma filosofia da 
constituição a uma filosofia da gênese.
Palavras-chave: instituição, constituição, filosofia da gênese, fenomenologia, filosofia da 
consciência.
“A consciência constituinte é a impostura profissional do filósofo 
(...) e não o atributo espinosista do pensamento”. Todos se lembram 
dessas palavras, escritas por Merleau-Ponty em “Le philosophe et 
son ombre”, quando de sua leitura da obra de Husserl. 
“Procura-se aqui, com a noção de instituição, um remédio para 
as dificuldades da filosofia da consciência”. Com estas palavras, 
Merleau-Ponty define a intenção de seu curso de 1954-55, no 
Collège de France, denominado L’institution.
Essas duas afirmações nos permitem tomar o projeto filosófico merleaupontyano 
como passagem da constituição à instituição, ou, se se quiser, de uma filosofia da posição 
a uma filosofia da gênese.
Nosso trajeto, aqui, não se ocupará com o momento em que Merleau-Ponty passa 
da fenomenologia transcendental à ontologia do ser bruto,mas apenas com o percurso 
realizado ainda no interior da fenomenologia para superá-la como filosofia da consciência 
e no qual a noção de instituição terá papel nuclear.
***
Pensar a relação de Merleau-Ponty com o Grande Racionalismo do século XVII 
significa, inicialmente, considerar o lugar ocupado em sua filosofia pela cisão entre res 
extensa (pura exterioridade das coisas corpóreas como composição de partes extra partes) 
* Professora Titular do Departamento de Filosofia da USP.
12
Cadernos Espinosanos XX 
13
Marilena Chaui
e res cogitans (presença da consciência a si mesma como pura interioridade).
“Fomos habituados pela tradição cartesiana a uma atitude reflexiva 
que purifica simultaneamente a noção comum do corpo e da alma, 
definindo o corpo como uma soma de partes sem interior e a alma 
como um ser totalmente presente a si mesmo, sem distância. Essas 
definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: 
transparência de um objeto sem dobras, transparência de um sujeito 
que é exclusivamente aquilo que ele pensa ser. O objeto é objeto 
de ponta a ponta e a consciência, consciência de ponta a ponta. Há 
dois e somente dois sentidos para a palavra existir: existe-se como 
coisa ou existe-se como consciência” (Merleau-Ponty 1, p.231).
Desprender-se dessa tradição é abandonar o ser como coisa empírica, mas também 
como resultado da análise e da síntese intelectuais, que o fazem posto pelo entendimento. 
Trata-se, pois, de renunciar à subjetividade pura e ao seu outro lado, a objetividade pura, 
construída pelas operações de um pensamento que se julga desencarnado e de uma técnica 
reduzida apenas à sua superfície instrumental.
Tomando a herança clássica como ponto de partida, Merleau-Ponty se encaminha, 
por um lado, à noção de estrutura do comportamento, que lhe permite formular a idéia de 
uma dialética das ordens de realidade ― física, vital e humana ―, e pensar na fundação 
de uma história; e, de outro, a uma fenomenologia da percepção, que desvenda o corpo 
próprio como corpo percipiente ou cognoscente, sexuado, falante e reflexivo, dotado de 
interioridade ou espírito encarnado. Se tal é o ponto de partida, não surpreende que o 
percurso de Merleau-Ponty, como vemos em seus últimos trabalhos no Collège de France, 
o conduza a uma análise das concepções de natureza em Descartes, Kant, Schelling e na 
ciência contemporânea, assim como a novos estudos sobre o corpo humano, afirmando, 
então, que a encarnação se enraíza numa camada originária, a natureza, entendida não 
como res extensa (Descartes), nem como multiplicidade dos objetos dos sentidos (Kant), 
nem como exterioridade abstrata (Hegel e filosofias dialéticas), nem, enfim, como modelo 
matemático e laboratorial (ciências), mas como “definição do ser”, “presença originária 
comum”, entrelaço e quiasma dos corpos e da expressão simbólica (sexualidade e 
linguagem), de sorte que a relação entre natureza e cultura é concebida numa perspectiva 
diversa daquela proposta em La structure du comportement, ou seja, em lugar de uma passagem 
da natureza à cultura, agora Merleau-Ponty concebe a fundação da cultura na natureza. 
Se considerarmos o ponto de partida e o percurso realizado, ilumina-se a 
diferença entre o texto sobre o Grande Racionalismo, em “Partout et nulle part”, e o 
de uma nota sobre a filosofia seiscentista, redigida para um de seus últimos cursos no 
Collège de France.
Em “Partout et nulle part”, lemos:
“O Século XVII é esse momento privilegiado em que o conhecimento 
da natureza e a metafísica acreditaram haver encontrado um 
fundamento comum. Criou a ciência da natureza e, contudo, não 
fez do objeto de ciência o cânone da ontologia. Admite que uma 
filosofia seja o fio de prumo da ciência sem ser sua rival. O objeto de 
ciência é um aspecto ou um grau do Ser; justifica-se em seu lugar e 
talvez seja, até mesmo, por ele que aprendemos a conhecer o poder 
da razão. Mas esse poder não se esgota nele. De maneiras diferentes, 
Descartes, Espinosa, Leibniz, Malebranche, reconhecem, sob a 
cadeia das relações causais, um outro tipo de ser que a subtende sem 
rompê-la. O Ser não está inteiramente vergado e achatado sobre o 
plano do Ser exterior. Há também o ser do sujeito ou da alma e o ser 
de suas idéias, e o das relações recíprocas entre as idéias, a relação 
interna de verdade, e esse universo é tão grande quanto o outro, ou 
melhor, o envolve, visto que, por mais estrito que seja o vínculo 
dos fatos exteriores, não é um deles que dá a razão última do outro; 
juntos participam de um ‘interior’ que sua ligação manifesta. Todos 
os problemas que uma ontologia cientificista suprimirá instalando-se 
sem crítica no ser exterior como meio universal, a filosofia do XVII, 
ao contrário, não cessa de colocá-los. Como compreender que o 
espírito aja sobre o corpo e o corpo sobre o espírito e mesmo o corpo 
sobre o corpo ou um espírito sobre outro espírito ou sobre si mesmo, 
pois, por mais rigorosa que seja a conexão das coisas particulares em 
nós e fora de nós, nenhuma delas jamais é, sob todos os aspectos, 
causa suficiente do que sai dela? De onde vem a coesão do todo?” 
(Merleau-Ponty 7, p.218)
14
Cadernos Espinosanos XX 
15
Marilena Chaui
Em contrapartida, numa das últimas notas de seus cursos sobre a 
natureza, escreve:
“A extraordinária confusão da idéia da Natureza, da idéia de 
homem e da idéia de Deus entre os modernos ― os equívocos de 
seu “naturalismo”, de seu “humanismo” e de seu “teísmo” ― não 
seria penas um fato de decadência. Se hoje todas as fronteiras se 
apagaram entre essas ideologias, é porque, com efeito, há, para 
repetir uma palavra de Leibniz, mas tomando-a ao pé da letra, um 
“labirinto da filosofia primeira”. A tarefa do filósofo seria descrevê-
lo, elaborar tal conceito do ser para que as contradições, nem 
aceitas nem ultrapassadas, nele encontram seu lugar. Isso que as 
filosofias dialéticas não conseguiram fazer, porque nelas a dialética 
permanecia enquadrada numa ontologia pré-dialética, tornar-se-ia 
possível para uma ontologia que descobriria no próprio ser uma 
falta de prumo ou um movimento. É seguindo o desenvolvimento 
moderno da noção de natureza que tentamos aqui nos aproximar 
dessa ontologia nova.” (Merleau-Ponty 13, p.371)
O que nos interessa é a maneira como Merleau-Ponty situa uma nova ontologia 
a partir de uma interpretação da filosofia clássica e do fracasso das filosofias dialéticas. 
Sob essa perspectiva, podemos indagar se o início e o término da obra merleaupontyana 
são tão diferentes e contrastantes como supusemos há pouco, uma vez que A Estrutura do 
Comportamento, graças à idéia de ordem física, vital e humana ou simbólica, já prepara 
a aproximação entre natureza e história, realizada nos cursos do Collège de France sobre 
a idéia de natureza, e, por seu turno, os capítulos finais da Fenomenologia da Percepção 
dedicam-se à temporalidade e à liberdade, a partir da relação entre corpo e espírito como 
encarnação e da relação entre homem e mundo como situação. Em outras palavras, aquilo 
que essas duas obras chamam de mundo, os cursos do Collège de France chamam de 
natureza, mudança que, afinal, já se encontra presente em “Le philosophe et son ombre”, 
quando Merleau-Ponty afirma que a natureza é mundo sensível. 
Como natureza, o mundo é profundo e nosso contacto com ele, ambíguo: 
passamos da superfície ao seu interior porque é ele próprio que se oferece com imensas 
regiões de sombras onde as coisas já se fizeram antes de nossa chegada. O originário para 
o homem não é a gênese ideal que as filosofias da consciência propuseram, mas aquilo 
que imediatamente “o articula sobre outra coisa que não ele mesmo; aquilo que introduz 
em sua experiência, conteúdos e formas mais antigas do que ele e dos quais ele não é o 
senhor”(Merleau-Ponty 4, p.87). É esse mundo-natureza que a pintura de Cézanne deseja 
alcançar, a natureza em estado nascente, antes do homem e antes que o homem nela tenhadepositado suas pegadas ou seus rastros. E esse mundo-natureza faz com que o homem 
esteja imerso em múltiplas temporalidades, algumas dispersas, outras concentradas, 
algumas mais velhas do que ele, outras criadas por sua ação ou por sua mera presença, 
de sorte que passado e futuro não são momentos de um presente que já foi ou que ainda 
será, mas dimensões de uma temporalidade aberta, feita de retomadas, sedimentações e 
criações. Isso significa, portanto, uma nova concepção da historicidade. Donde a crítica 
às filosofias dialéticas e, no Éloge de la philosophie, a crítica à temporalidade hegeliana, 
que finda no “dia eterno do presente” (para usarmos a expressão cunhada por Paulo 
Arantes), ou de “de um pensamento que pelo movimento que realiza ― totalidade reunida, 
apreensão violenta no final do desenvolvimento ― curva-se sobre si mesma, ilumina sua 
própria plenitude, acaba seu círculo, se reencontra em todas as figuras estranhas de sua 
odisséia e aceita desaparecer no mesmo oceano onde tinha brilhado”. 
Em suma, de Descartes a Hegel, o infinito positivo – esteja ele no começo ou 
no final do percurso – desenha a filosofia como crença na determinação completa, seja do 
visível, seja do invisível, seja da percepção, seja a da linguagem e do pensamento. Dessa 
maneira, ao erguer-se contra a figura do filósofo como kosmotheóros, Merleau-Ponty se 
ergue contra a filosofia clássica e as filosofias dialéticas, mas o interessante é que o faça 
tendo como horizonte a superação da fenomenologia husserliana.
***
Desde La Structure du Comportement e da Phénoménologie de la Perception, 
a crítica do empirismo e do idealismo, do mecanicismo causalista e do intelectualismo 
retomava constantemente as conseqüências do dualismo substancial inaugurado pela 
metafísica clássica, isto é, o dilema coisa-consciência, que redundaria na cisão sujeito-
16
Cadernos Espinosanos XX 
17
Marilena Chaui
objeto, consumada em proveito do primeiro no criticismo kantiano e em proveito do 
segundo no dogmatismo empirista. No entanto, o trabalho de Merleau-Ponty se realizava 
no interior de um campo de pensamento aberto pela fenomenologia husserliana, pela 
Psicologia da Forma e pelo existencialismo de Heidegger, portanto, no interior de 
referenciais que não estavam livres do risco do essencialismo (como aquele que espreita 
a fenomenologia quando crê na possibilidade da variação completa e numa Wesenschau 
inteiramente desligada da faticidade por parte do sujeito absoluto), do objetivismo (como 
aquele em que cairá a Psicologia da Forma, seduzida pela geometria e pelas ciências 
naturais), nem do humanismo (como aquele que ronda o existencialismo, quando 
identifica existência e homem, confundindo a finitude do ser-para-a-morte com as 
limitações empíricas “vividas”). Esses riscos tendem a ser evitados por Merleau-Ponty 
porque La Structure du Comportement e a Phénoménologie de la Perception situam-
se fora do campo de uma psicologia eidética e de uma fenomenologia das essências 
psíquicas preliminares à explicação científica dos fatos psíquicos. Também não se situam 
no interior de uma constituição universal efetuada pelo sujeito filosófico. Pelo contrário, 
contestam a explicação científica e a análise reflexiva. Por um lado, procuram essências 
— do comportamento e da percepção — mas, por outro , não as procuram em regime de 
redução. Visto considerar impossível a constituição transcendental como ato do sujeito 
constituinte, Merleau-Ponty não trabalha com a separação entre noema-noesis e a tese 
do mundo natural, mas busca a essência do comportamento e da percepção no interior 
da faticidade ou do que chama de existência. Interessa-se menos pela essência como 
significação pura ou síntese lógica e muito mais pela intencionalidade operante. Busca, 
como toda fenomenologia, a “aparição do ser para a consciência” sem, contudo, à maneira 
do idealismo transcendental, considerá-la um ato centrífugo de significação ou 
pura doação de sentido. Conseqüentemente, também não toma o ser que aparece 
como posição ou tese ou modalidade ou correlato da consciência, mas como 
enraizamento e solo originário da consciência, que será sempre, e em última 
instância, consciência perceptiva.
La Structure du Comportement procura as relações entre a consciência e a 
natureza física e orgânica e entre ela e o mundo psíquico e social para além da solução 
kantiana, do vitalismo e do mecanicismo. “Na França”, escrevia Merleau-Ponty na 
Introdução, “estão justapostas uma filosofia que faz da Natureza uma unidade objetiva 
constituída diante da consciência e ciências que tratam o organismo e a consciência 
como duas ordens de realidades e, em suas relações recíprocas, como ‘efeitos’ ou 
como ‘causas’” (Merleau-Ponty 10, p.2). Assim, entre um certo kantismo, que abolia o 
problema da natureza reduzindo-a à construção permitida pela analítica transcendental, 
um vitalismo, prestes a converter-se em espiritualismo, e um mecanismo reducionista, 
para o qual certos acontecimentos físicos no cérebro tinham a peculiaridade de 
aparecerem como conscientes, Merleau-Ponty retorna às questões clássicas das relações 
entre a alma e o corpo (título do capítulo final do livro) e encontra na noção de estrutura 
do comportamento uma via para ultrapassar a ilusória alternativa em que se debatiam 
mecanicistas e vitalistas, ou a alternativa entre as causas e efeitos “observáveis” e os fins 
“inobserváveis”. Revelando o comportamento como estrutura, isto é, como totalidade 
auto-regulada de relações dotadas de finalidade imanente, torna possível afastar a 
causalidade mecânica e a finalidade externa.
O capítulo final de La structure du comportement, dedicado à clássica questão 
das relações entre a alma e o corpo, prepara uma fenomenologia da percepção voltada 
para a descrição do campo pré-reflexivo, para uma fundação perceptiva do mundo 
realizada pelo corpo próprio e no corpo próprio enquanto corpo cognoscente ou 
princípio estruturante. A reflexão aparece como ato segundo porque não pode anular 
sua dependência ao pré-reflexivo onde se efetua a gênese do sentido, mas este, por seu 
turno, não dispensa a reflexão porque esta explicita e exprime o que existe tacitamente 
no simbolismo do corpo e do mundo. A reflexão desponta como exposição de uma 
posição pré-reflexiva originária.
A Introdução da Phénomélogie de la Perception, passando criticamente em 
revista as noções de sensação, associação, atenção e juízo como preconceitos que formam 
o tecido cerrado da psicologia intelectualista e da filosofia reflexiva, chega à estrutura 
agora apresentada como campo fenomenal enquanto campo transcendental e, assim, 
afasta o Ego transcendental. Fazendo do campo transcendental a articulação originária 
entre o exterior e o interior e tomando o pensamento uma saída de si, Merleau-Ponty 
transforma a idéia de verdade. O eidos não é essência separada cujo requisito é “uma 
absoluta posse de si no pensamento ativo, sem a qual este não conseguiria se desenvolver 
18
Cadernos Espinosanos XX 
19
Marilena Chaui
numa série de operações sucessivas e construir um resultado válido para sempre”. Contra 
a imanência transcendental, Merleau-Ponty faz intervir a noção husserliana de dupla 
Fundierung, baralhando a separação clássica entre verdades de fato e de razão: 
“A relação entre a razão e o fato, a eternidade e o tempo, a reflexão 
e o irrefletido, o pensamento e a linguagem ou entre o pensamento 
e a percepção é essa relação em duplo sentido que a fenomenologia 
chamou de Fundierung: o termo fundante — o tempo, o irrefletido, 
o fato, a linguagem, a percepção — é primeiro no sentido de que 
o fundado se dá como uma determinação ou explicitação do 
fundante, o que lhe proíbe reabsorvê-lo, entretanto, o fundante não 
é o primeiro no sentido empirista e o fundado não é simplesmente 
derivado, pois é através do fundado que o fundante se manifesta”. 
(Merleau-Ponty 1, p.) 
Isso significa,por um lado, que as verdades são de mesma ordem que 
as percepções, ou seja, feitas de pressupostos que não podemos explicitar até o fim 
para obter uma evidência sem lugar e sem tempo, e, por outro , que a reflexão ou o 
pensamento de pensar não está mais às voltas com o dogmatismo ou com o criticismo, 
mas com a descoberta de sua “espessura temporal” e de seu “engajamento corporal”, 
com o fato de que não somos nenhum de nossos pensamentos particulares e, todavia, só 
nos conhecemos através deles. 
A Phénoménologie de la Perception descreve ek-stases e não operações 
reflexivas. Por isso a chegada ao Cogito não só inverte a fórmula cartesiana, exprimindo-
se como “sou, logo penso”, pois a consciência está atada por dentro à existência, como 
ainda desemboca no Cogito tácito. O Cogito não é inerência psicológica nem imanência 
transcendental, não é unidade sintética, como queria Kant, mas, como dizia Heidegger, 
é coesão de vida. É precedido e sustentado por um irrefletido irredutível. Não está junto 
a si senão estando fora de si, pois o Cogito explícito não se realiza no silêncio, mas 
exprimindo-se e, portanto, como linguagem. Assim como o sujeito da geometria é um 
“sujeito motriz”, também o sujeito da reflexão é um “sujeito falante”, de modo que o corpo 
não é um suporte ou um instrumento do espírito, mas corpo de um espírito pelo qual este 
pode ser espírito. O Cogito desencarnado não seria Cogito, seria Deus. Como ek-stase 
ou transcendência, o Cogito abre, assim, para a descrição do tempo, que não é deduzido 
das conseqüências da subjetividade, mas descoberta de que o sujeito é temporalidade. 
O tempo, transcendência e síntese (o sistema das retenções e pretensões husserlianas) é 
“lançamento de uma potência indivisa num termo que lhe é presente”. A transcendência 
inscrita no coração da subjetividade leva, por fim, à descrição da liberdade. Esta, muito 
mais do que situada, é descrita por Merleau-Ponty como encarnada.
A conclusão de Phénoménologie de la Perception nos convida a reler seu 
Prólogo, no qual Merleau-Ponty apresenta a fenomenologia husserliana como projeto de 
uma filosofia radical e examina os conceitos husserlianos — intencionalidade, descrição, 
redução e constituição — em duas direções. Retoma, de um lado, o projeto de Husserl 
e, de outro, discute seu fracasso aparente. A intencionalidade enraíza a consciência, em 
lugar de separá-la do mundo; a redução eidética, na tentativa de captar as essências para 
além da “tese natural do mundo”, descobre a faticidade irredutível que funda o possível 
sobre o real; a constituição mergulha num solo de postulados que desvendam tudo quanto 
não constituímos. A impossibilidade da intencionalidade pura e da redução completa é, 
portanto, impossibilidade da constituição transcendental. 
“A fenomenologia como revelação do mundo repousa sobre si 
mesma ou, ainda, funda a si mesma. Todos os conhecimentos se 
apóiam sobre um solo de postulados e, finalmente, sobre nossa 
comunicação com o mundo como primeiro estabelecimento 
da racionalidade. A filosofia como reflexão radical priva-se, em 
princípio, desse recurso. Como também está na história, também 
usa o mundo e a razão constituída. Será preciso, pois, que dirija 
a si mesma a interrogação que dirige a todos os conhecimentos 
e, portanto, ela se reduplicará indefinidamente, será, como diz 
Husserl, um diálogo ou uma meditação infinita e, na medida 
em que permaneça fiel a si mesma, nunca saberá onde vai. O 
inacabamento da fenomenologia, seu compasso incoativo não são 
signos de fracasso. Eram inevitáveis porque a fenomenologia tinha 
como tarefa revelar o mistério do mundo e o mistério da razão.”( 
Merleau-Ponty 1, p.XVI)
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O “compasso incoativo” da fenomenologia, isto é, seu recomeçar perene, 
oposto à redução e constituição transcendentais, afirma a recusa da filosofia como auto-
fundação, recusa que se explicita de maneira admirável na idéia de instituição, como 
veremos logo mais. 
***
Pensamos que a crítica do legado do Grande Racionalismo se consuma na 
interpretação de sua última figura, qual seja, a fenomenologia husserliana. 
Em “Le Philosophe et son Ombre”, Merleau-Ponty estende e distende a 
fenomenologia até o limite entre dois extremos que podem aniquilá-la. Numa ponta, 
examinada na primeira parte do ensaio, encontra-se a redução transcendental, que 
não consegue reduzir a natureza, descobrindo que esta, afinal, é irrelativa. A redução, 
portanto, deve contentar-se em ser redução eidética e a fenomenologia precisa admitir 
que a infra-estrutura secreta e selvagem onde nascem nossas teses não pode ser 
produzida pelos atos da consciência absoluta. Na outra ponta, examinada na terceira 
parte do ensaio, encontra-se a constituição transcendental, que não consegue fundar a 
própria reflexão, mas apenas usá-la e transformá-la num artefato filosófico, de modo 
que a consciência constituinte, não podendo efetuar uma reflexão-da-reflexão que a 
pusesse a si mesma, precisa contentar-se em ser constituída vagarosa e dificultosamente 
por nossa experiência. Entre esses dois extremos, a reabilitação ontológica do sensível 
é empreendida pela segunda parte do ensaio.
A primeira parte termina declarando que Husserl se sentira igualmente atraído 
pela “ecceidade da natureza” e pelos “turbilhões da consciência” e que descobrira 
haver alguma coisa entre a transcendência e a imanência, cabendo a quem retomasse o 
empreendimento fenomenológico prosseguir caminho nesse entre-dois. A terceira parte 
culmina na afirmação de que o projeto de Husserl como projeto de posse intelectual do 
mundo é insensato e que o próprio filósofo disso soubera quando, em 1912, falara na 
simultaneidade do real — natureza, animais, espíritos. Para que a terceira parte possa 
discorrer sobre a hybris husserliana é preciso, antes, trilhar o entre-dois, o espaço cavado 
entre a redução e a constituição, isto é, urge passar pela reabilitação ontológica do 
sensível. Visando à imanência, a redução e a constituição redescobriram a transcendência; 
entre ambas, o sensível se descobre como ser à distância, fulguração, aqui e agora, das 
lembranças e promessas de outras experiências.
As dificuldades da redução, escreve Merleau-Ponty, não são preliminares à 
investigação filosófica, mas seu começo, e como são dificuldades insuperáveis, o começo 
é contínuo. A redução é contraditória porque, se não é “natural” e sim o contrário da 
natureza, esta deve ser inteiramente constituída pela consciência e ser relativa, enquanto o 
espírito deve ser absoluto, mas, em contrapartida, a natureza não é produzida pelo espírito 
e a imanência transcendental não é mera antítese da atitude natural.
Nas Idéias II, Husserl considerara problemática a passagem do “objetivo” ao 
“subjetivo”, pois o Eu teórico puro que visa as puras e nuas coisas não é o sujeito filosófico, 
mas a ciência da natureza, herdeira de um naturalismo filosófico. O sujeito procurado por 
Husserl o conduzia “abaixo” desse naturalismo, a um “meio ontológico diverso do em-si 
e que na ordem constitutiva não pode ser derivado deste último”, visto ser primeiro. Na 
verdade, a atitude natural não é “atitude” (conjunto de atos judicatórios e proposicionais), 
não é tética, mas síntese aquém de toda tese ou uma fé primordial ou opinião originária, 
que opõe ao originário da consciência teórica o originário de nossa existência. Resulta 
dessa descoberta que a atitude natural não se relaciona com a transcendental como o antes 
e o depois, nem como passagem do obscuro e confuso ao claro e distinto, nem como 
supressão da aparência pela verdade da essência. A atitude transcendental está preparada 
na atitude natural como antecipação e preparação intencionais. Justamente por isso, a 
redução descobre que o espírito precisa da natureza para ser espírito, enquanto a natureza 
dele não carece para ser natureza. A coisa natural pode ser inteiramentecompreendida por 
si mesma, enquanto o espírito, por ser intencional, não pode ser auto-suficiente e, como 
disseram as Idéias II, um espírito sem corpo não será espírito.
A fenomenologia é desvendamento da “camada pré-teorética” como solo 
irredutível das “camadas teoréticas” e, por antecedê-las e explicá-las, pode ultrapassá-las. 
No entanto, essa “arqueologia”, escreve Merleau-Ponty, não deixa intactos os instrumentos 
de trabalho da fenomenologia porque modifica o sentido da intencionalidade, do noema 
e da noesis e talvez não permita que se continue procurando numa analítica dos atos 
da consciência a mola de nossa vida e do mundo. Apontando para a “constituição 
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pré-teorética dos pré-dados”, Husserl vislumbrava uma intencionalidade operante e 
espontânea, latente, mais velha e mais nova do que a intencionalidade dos atos de 
consciência. Percebia que os fios intencionais se agrupam ou se enovelam em torno de 
certos nós sem, contudo, terminarem na posse intelectual de um noema, de sorte que o 
percurso não tem começo nem fim.
Longe dessas descobertas serem um empecilho para a fenomenologia, vão abrir-
lhe um campo novo de investigação e configurar a reabilitação ontológica do sensível, 
desde que rumar para a camada sensível não implique permanecer cativo de seus enigmas 
e, sim, decifrá-los. Está em questão, portanto, a idéia de natureza. Deixando de tomá-la 
como unidade constituída e como “unidade dos objetos dos sentidos”, Husserl passara a 
defini-la como “totalidade dos objetos que podem ser pensados originariamente e que, para 
todos os sujeitos comunicantes, constitui um domínio de presença originária”. A natureza 
tornava-se, afinal, mundo sensível, de que dependem as evidências e a universalidade 
das relações de essência. Noutros termos, a relação fato-essência foi transtornada. Mas a 
natureza não é só presença originária do que pode ser originariamente pensado. É ainda 
o que se oferece como presença a “sujeitos comunicantes” sendo, portanto, inseparável 
da linguagem. Assim procedendo, Husserl ampliava indefinidamente o sensível, pois este 
não são apenas as coisas, mas “tudo que nelas se desenha, mesmo no oco, tudo que nelas 
deixa vestígio, tudo que nelas figura, mesmo a título de afastamento e como uma certa 
ausência”. Essa ampliação desenha no tecido do sensível o perfil de outras sensibilidades 
— os animalia — e de outros pensamentos — os animais humanos —, isto é, “seres 
absolutamente presentes que têm uma esteira de negativo”. No caso dos homens, é o 
comportamento (visível) que nos ensina haver ali um outro espírito (invisível). O sensível 
é, pois, o universal.
Podemos adivinhar o que sucederá à constituição transcendental. Num primeiro 
momento, porque a encarnação da consciência transtorna as relações entre o constituído 
e o constituinte, corre-se o risco de tentar conservar a fenomenologia deslizando-se 
para o psicologismo ou para a antropologia filosófica, isto é, confundindo-se empírico 
e transcendental. Esse risco pode ser evitado se o filósofo, além de compreender o 
que Husserl chamara de dupla Fundierung, também se voltar para a articulação entre 
constituição e sedimentação.
Merleau-Ponty se interessa pela sedimentação como auto-esquecimento ou 
como olvido de si, que permite compreender o movimento de constituição das idealidades 
enquanto derivação da intersubjetividade carnal (o sensível como presença original 
para sujeitos comunicantes), desde que esta seja esquecida como inerência ao mundo, 
em virtude de sua própria capacidade para se esquecer de si mesma. A constituição 
desemboca em círculos — das coisas com as pessoas, destas com o corpo, que também é, 
sob certos aspectos, uma coisa; da natureza impessoal com um todo que engloba pessoas 
que, por seu turno, enquanto sujeitos comunicantes, irão constituir em comum a própria 
Natureza. Cada camada, no ponto onde se constitui, retoma as precedentes e invade as 
seguintes, é anterior e posterior a si mesma, de modo que a constituição não tem começo 
nem fim, levando Husserl a falar em simultaneidade. A constituição nascera para igualar 
pela reflexão nossa atitude natural, que é espontaneamente naturalista e personalista, 
“excêntrica” e “egocêntrica”, passando tranqüilamente de uma posição à outra sem o 
menor problema. A reflexão deveria dar conta do trânsito entre as atitudes naturais e do 
transitivismo entre elas; deveria, a partir da própria interioridade, explicar a passagem do 
interior ao exterior, e vice-versa. Para ser reflexão absoluta teria, além dessa explicação, 
que fundar a própria interioridade fundadora da explicação e, portanto, teria que pôr-
se a si mesma como reflexão, efetuando uma reflexão-de-reflexão. Dessa autoposição 
radical depende a possibilidade da gênese transcendental. E isso a reflexão não consegue 
efetuar; não consegue reflexionar-se. Não é capaz de se pôr como inteligência de todas 
as intelecções. Sendo forçada a admitir que a consciência constituinte é constituída, a 
fenomenologia deve tomá-la como artefato, como impostura profissional do filósofo e 
não como atividade do atributo espinosano do pensamento. O fracasso da constituição 
transcendental é compreendido por Husserl, tanto assim que, nos textos inéditos pode-se 
ver que ele pretendia que o pensamento fosse capaz de compreender a junção simultânea 
da natureza, do corpo e do espírito, já que somos essa junção. A tarefa da fenomenologia 
começava, agora, pela admissão dessa existência simultânea e pela necessidade de 
pensar sua relação com a não-fenomenologia. Teria, finalmente, que abdicar da gênese 
transcendental e encaminhar-se para uma ontologia.
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“à medida que o pensamento de Husserl amadurece, a constituição 
torna-se cada vez mais o meio para revelar um avesso das coisas 
que não constituímos. Foi preciso a tentativa insensata de tudo 
submeter às conveniências da consciência, no jogo límpido de 
suas atitudes, de suas intenções, de suas imposições de sentido, foi 
preciso levar até o fim o retrato de um mundo bem comportado, 
que herdamos da filosofia clássica, para revelar todo o resto: os 
seres aquém de nossas idealizações e objetivações, que as nutrem 
secretamente e nos quais temos dificuldade para reconhecer os 
noemas.” (Merleau-Ponty 6, p.227)
Donde o lugar ocupado, em Le visible et l’invisible, pela crítica à concepção 
husserliana da intuição de essência, que poderíamos designar como o último avatar do 
desejo da determinação completa inaugurado pelo Grande Racionalismo. Escreve, então, 
Merleau-Ponty:
“Não há mais essências acima de nós, objetos positivos, oferecidos 
a um olho espiritual, há, porém, uma essência sob nós, nervura 
comum do significante e do significado, aderência e reversibilidade 
de um no outro, como as coisas visíveis são dobras secretas de 
nossa carne e de nosso corpo, embora este também seja uma das 
coisas visíveis.” (Merleau-Ponty 11, p.158)
Como se dá a passagem da essência-noema, completamente determinada, à 
essência operante, aberta à indeterminação? Merleau-Ponty parte de três indagações: 
pode a essência ser considerada acabamento de um saber? pode-se alcançar a essência 
da experiência? quem é o sujeito que intui essências desligadas da faticidade? A primeira 
questão é respondida negativamente, pois a essência sendo essência “de alguma coisa”, 
só pode ter certeza de seu conteúdo e de sua adequação ou verdade supondo a existência 
daquilo de que é essência, porém essa suposição era o que deveria ser explicado por ela 
ao invés de ser sua justificação. Como a dúvida metódica, a epochê é um positivismo 
clandestino ainda que deliberado. A essência é apenas um in-variante e não um ser positivo. 
A segunda questão também é respondida negativamente. Para que a essência não tivesse 
qualquer pressuposto e fosse inteiramente pura teria que realizar a variação completada experiência e pagar um preço que não pode pagar, pois a experiência-em-essência 
será tudo quanto se queira menos essência da experiência. Liberada das “impurezas” da 
faticidade, a experiência terá perdido o que faz ser experiência: a inerência sensível, o 
inacabamento ou a transcendência, em suma, a abertura. Despojando-a, pela imaginação 
transcendental, de todo solo e de todo apoio, sua essência será “um recuo para o fundo 
do nada”. E não há possibilidade de conservar em pensamento sua adesão ao mundo, 
porque, neste caso, já não será essência. À terceira pergunta, Merleau-Ponty responde 
descrevendo a figura do Kosmotheoros como poder absoluto de ideação que sobrevoa 
o mundo e domina o espetáculo, fazendo do real uma variante do possível. A posição 
de um observador absoluto é a origem da dicotomia fato-essência, ou da suposição de 
duas modalidades opostas de existência: a do que existe individualizado num ponto 
do espaço e do tempo, e a do que existe para sempre em parte alguma. Na verdade, 
diz Merleau-Ponty, não temos aí duas existências, mas duas positividades abstratas, as 
essências sendo duplicação inteligível dos fatos. Donde a questão: somos o observador 
absoluto fora do espaço e do tempo? ou estamos no espaço e no tempo? No primeiro 
caso, dir-se-á que o sujeito é essência; no segundo, fato. E, em ambos, reabre-se o 
problema que a posição de um observador tinha justamente a finalidade de resolver. A 
separação entre a superfície plana dos fatos e o corte transversal das essências não dá 
passagem à experiência e à essência. 
Deslocando-se do espectador para o vidente, Merleau-Ponty desfaz a abstração 
dos fatos. Não há fatos. Há o sensível vindo a si em cada coisa como textura e espessura 
visual, táctil, sonora, presente ao nosso corpo como uma extensão e uma duplicação dele. 
Também não há coisas como indivíduos espaciais e temporais, cada qual em seu lugar 
e data, como atores bem treinados para entrar e sair do palco, nele ocupar um ponto 
fixado de antemão e repetir falas ensaiadas previamente. Porque não estão num palco, as 
coisas não são objeto de contemplação de um espectador cujo olhar varreria totalmente 
o cenário, cujo pensamento alcançaria os bastidores e cujo discurso seria posse do texto 
original. Coisas e vidente são “um relevo do simultâneo e do sucessivo, polpa espacial 
e temporal onde os indivíduos se formam por diferenciação”. Experimentadas por nós 
de seu interior e de nosso interior, as coisas não são objetos sólidos que se converteriam 
em puras essências, passando para o palco do espírito preparado pelo grande espectador. 
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Com isto, se desfaz também a abstração das essências.
O desaparecimento da abstração dos fatos e das essências, das coisas e das 
idéias, do em-si e do para-si, da oposição entre o exterior e o interior significa, antes 
de mais nada, o abandono de uma noção de expressão, com a qual, ainda no interior 
da fenomenologia, Merleau-Ponty buscava enfrentar as aporias filosóficas deixadas por 
Husserl. Significa, ainda, que a mudança dessa noção (mudança que aparecerá em Les 
aventures de la dialectique, nas notas de trabalho de Le visible et l’invisible e em L’oeil 
et l’esprit) conduz o filósofo a uma reinterpretação da noção goethiana e weberiana de 
afinidades eletivas como “prodigioso entrelaçamento” de dimensões naturais, vitais, 
sociais, intelectuais, pessoais e históricas. Ora, essa nova concepção da expressão tem um 
pressuposto preciso, qual seja, a noção de instituição. 
***
Comecemos por uma noção que consideramos estar na base do tratamento 
merleaupontyano da instituição: a de estrutura, tomada inicialmente da Gestaltheorie e, a 
seguir, da lingüística saussuriana e da antropologia social de Lévi-Strauss.
“Para o filósofo, presente fora de nós nos sistemas naturais e 
sociais, e em nós como função simbólica, a estrutura indica um 
caminho fora da correlação sujeito-objeto que domina a filosofia 
de Descartes a Hegel. (...) O filósofo ao qual ela interessa não 
é aquele que quer explicar ou construir o mundo, mas aquele 
que busca aprofundar nossa inserção no ser.” (Merleau-Ponty 8, 
p.165) 
Apreendida internamente, uma estrutura “é um princípio de distribuição, o 
pivô de um sistema de equivalências, é o Etwas de que os fenômenos parcelares são 
a manifestação” (Merleau-Ponty 11, p.193)1. Por isso mesmo, não é uma essência 
nem uma idéia, não é essência dada a um espírito nem constituída por ele, não é 
a-espacial nem a-temporal, assim como não é uma coisa. É uma dimensão do ser. 
Nem coisa nem idéia, uma estrutura é um sistema de puras relações e diferenças 
internas, de sorte que não é arranjo ou mosaico de partes isoláveis nem substância 
extensa ou pensante. É uma significação encarnada que possui um princípio interno 
de organização e de auto-regulação.
A estrutura, escreve Merleau-Ponty, é uma maneira nova de ver o ser. Por que? 
Porque, ao desprendê-lo da metafísica do dualismo substancial e da oposições entre 
o em-si e o para-se, nos permite alcançá-lo como ser de indivisão, pois as estruturas 
qualitativamente distintas são dimensões do mesmo ser. Por outro lado, a estrutura 
também se desprende das filosofias transcendentais, nas quais o ser se reduz às categorias 
e aos conceitos que o entendimento lhe impõe e que o reduzem ao “ser posto” ou ao 
“ser constituído”: com a estrutura, deixamos a tradição do que é posto ou constituído 
pelas operações intelectuais e alcançamos o há originário, mais velho do que nossas 
operações cognitivas, que dele dependem e que, esquecidas dele, imaginam constituí-lo. 
Além disso, a noção de estrutura nos afasta da tradição científica fundada em explicações 
causais de tipo mecanicista e funcionalista ou em explicações finalistas, isto é, apoiada 
no recurso a princípios externos encarregados de dar conta tanto da gênese como das 
transformações de uma realidade qualquer. De fato, porque possui um princípio interno 
de auto-regulação, a gênese da estrutura encontra-se nela mesma como processo global 
e imanente de auto-distribuição dos constituintes; por outro lado, uma estrutura é 
pregnante, grávida ou fecunda, ou seja, possui um princípio interno de transformação 
ou, como escreve Merleau-Ponty, ela é “fecundidade, poder de eclosão, produtividade”, 
um acontecimento, trazendo nela mesma o princípio de seu devir. Ela é, lemos no ensaio 
sobre Mauss e Lévi-Strauss “a inteligibilidade em estado nascente” porque é “junção de 
uma idéia e de uma existência indiscerníveis, arranjo contingente por cujo intermédio os 
materiais se põem a ter sentido para nós”.
A pregnância ou fecundidade da estrutura permite, por exemplo, apreender o 
envolvimento recíproco da sincronia e da diacronia na estrutura lingüística e no ato de 
falar, pois a sincronia contém, no presente, o passado da língua e anuncia seu futuro, graças 
à retomada incessante dos agentes lingüísticos. Como sistema simbólico, a língua é um 
campo aberto ao ausente ou ao possível, nela cada significação aponta para um horizonte 
que ultrapassa o significado instituído e, pela ação instituinte dos sujeitos falantes, um 
novo sentido se engendra. Em outras palavras, a estrutura é uma totalidade aberta, uma 
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matriz simbólica que nos permite interrogar a história de maneira nova.
“Como chamar, senão de história, esse meio no qual uma forma 
sobrecarregada de contingência abre subitamente um ciclo de porvir 
e o comanda com a autoridade do instituído? Não, sem dúvida, 
uma história que quisesse compor todo o campo humano com 
acontecimentos situados e datados num tempo serial e de decisões 
instantâneas, mas uma história que sabe que o mito, o tempo lendário 
assombram, sob outras formas, os empreendimentos humanos, que 
investiga além e aquém dos acontecimentos parcelares, e que se 
chama justamente história estrutural.” (Merleau-Ponty8, p.164-
165)
 Acreditamos que a dimensão simbólica e temporal da estrutura, sua pregnância 
ou produtividade auto-regulada e aberta, é o que permite acercar-nos da inteligibilidade 
da noção merlaupontyana de instituição, da qual o filósofo enfatiza, exatamente como o 
faz com a noção de estrutura, a produtividade e a fecundidade, referindo-se a ela como 
“germinação de uma vida e de uma obra em torno de dados ‘contingentes’. Vínculo do 
acontecimento e da essência” (Merleau-Ponty 4, p.89).
***
Na ementa do curso de 1954-1955, no Collège de France, a noção de instituição 
é assim apresentada:
“Entende-se aqui por instituição aqueles acontecimentos de uma 
experiência que a dotam de dimensões duráveis, com relação 
às quais toda uma série de outras experiências terão sentido, 
formarão uma seqüência pensável ou uma história. Ou ainda os 
acontecimentos que depositam um sentido em mim, não a título 
de sobrevivência e de resíduo, mas como apelo a uma seqüência, 
exigência de um porvir.” (Merleau-Ponty 4, p.89)
E, numa das aulas, diz Merleau-Ponty:
“Instituição significa, pois, estabelecimento em uma experiência 
de dimensões (no sentido geral, cartesiano: sistema de referências) 
com relação às quais toda uma série de experiências terão sentido, 
farão uma seqüência, uma história” (Merleau-Ponty 4, p.38).
Na apresentação do curso, Merleau-Ponty afirma que a noção de instituição é 
buscada por ele “como um remédio para as dificuldades da filosofia da consciência”. De 
fato, escreve ele,
“Diante da consciência, só há objetos constituídos por ela. Mas se 
admitirmos que alguns dentre eles nunca o são completamente, eles 
são a cada instante o reflexo exato dos atos e poderes da consciência, 
nada há neles que possa relançá-la rumo a outras perspectivas, não 
há, da consciência ao objeto, troca, intercâmbio, movimento. Se 
ela considera seu próprio passado, tudo o que ela sabe é que houve, 
lá longe, esse outro que se chama misteriosamente eu, mas que não 
tem comigo nada em comum senão uma ipseidade absolutamente 
universal. É por uma série contínua de explosões que meu passado 
cede lugar ao meu presente. Enfim, se a consciência considera os 
outros, sua existência própria não é para ela senão sua pura negação, 
ela não sabe que eles a vêem, ela sabe apenas que é vista. Os 
diversos tempos e as diversas temporalidades são incompossíveis 
e formam apenas um sistema de exclusão recíproca” (Merleau-
Ponty 4, p.123).
Que sucederia, porém, se o sujeito, em vez de constituinte, fosse instituinte? 
Antes de mais nada, compreenderíamos que ele não é instantâneo, mas que o que começou 
não é algo longínquo situado no passado nem é atual como uma lembrança assumida, mas 
é o campo de seu devir. O sujeito instituinte-instituído é “aquele que põe em marcha 
uma atividade, um acontecimento (...) que abre um porvir. O sujeito é aquilo a que as 
ordens de acontecimentos podem advir”. Compreenderíamos também que outrem não é 
simplesmente o negativo do eu, que eu e o outro coexistem porque cada um pode retomar 
o instituído e recriá-lo.
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Exatamente como no caso da noção de estrutura, que Merleau-Ponty emprega 
para pensar a natureza física, o organismo vivente e a ordem simbólica da cultura, e da 
noção de campo transcendental, que emprega para pensar a percepção como corporeidade, 
intersubjetividade, temporalidade e liberdade, também a noção de instituição é empregada 
por ele para pensar a natureza, a animalidade, a vida pessoal privada, as obras de arte e 
de pensamento e a sociabilidade ou a vida pública e, sobretudo, como história, ou como 
“acontecimentos matrizes que abrem um campo histórico que tem unidade”. Diz ele: 
“A instituição é o que torna possível uma série de acontecimentos, 
uma história: acontencimentalidade de princípio” (Merleau-Ponty 
4, p.44). 
Em outras palavras, a instituição abrange o campo da natureza e o da cultura, o 
que significa, em primeiro lugar, que a oposição entre exterioridade e interioridade 
ou entre o em-si e o para-si é desfeita – “com a noção de instituição como exterior-
interior, propomos justamente como sair da solidão filosófica” – e, ao mesmo tempo, 
como conseqüência, ela modifica a relação com o mundo, que deixa de se apresentar 
sob o modo da presença imediata para surgir como abertura, perspectiva, configuração; 
em segundo lugar, significa que com essa noção emerge, finalmente, a inteligibilidade 
da articulação entre contingência e necessidade, entre criação do sentido e devir do 
sentido. Agora, natureza é pensada como historicidade imanente e a cultura, como 
diferença temporal e não como distinção empírica dos tempos nem como história 
universal. Em outras palavras, o tempo, diz Merleau-Ponty, é o modelo da instituição: 
é passividade-atividade, continuação porque houve um começo, início porque é ato, 
total porque parcial. 
A instituição não é coisa nem idéia, não é um conceito, é uma ação, um 
acontecimento, uma práxis – sob esta perspectiva, ela oferece uma sentido alargado para 
aquilo que a Phénoménologie de la perception designava como “eu posso” e La structure 
du comportement designava como comportamento, ao defini-lo não como movimento, 
mas como trajeto e ato, não como repetição, mas como relação com o espaço-tempo 
valorados, em suma, como capacidade para o novo, o genérico, o particular e o universal. 
Donde a insistência de Merleau-Ponty de que o modo de ser da instituição não é o de um 
fazer eficaz ou eficiente fundado numa relação entre meios e fins e numa escolha, mas é 
uma operação simbólica ou um ato, que pode ser designado como nascimento, entendido 
como “instituição de um provir”. A instituição, como nascimento, é ato iniciante ou 
gênese, cuja peculiaridade é ser uma gênese continuada cuja seqüência não está pré-
determinada. É essa indeterminação que Merleau-Ponty sublinha ao dizer:
“A instituição no sentido forte é aquela matriz simbólica que 
faz com que haja abertura de um campo, de um porvir, segundo 
dimensões, donde [ser] possibilidade de uma aventura comum e de 
uma história como consciência.” (Merleau-Ponty 4, p.45)
***
Ao concluir “Le Philosophe et son Ombre”, Merleau-Ponty dizia que as 
descobertas tardias de Husserl e a tranqüilidade com que as expunha, demolindo muitas de 
suas antigas certezas, não deviam surpreender nem escandalizar os leitores, pois estavam 
anunciadas como problemas desde suas primeiras obras. Dá-se com a obra de Husserl o 
mesmo que se dá na gênese do espaço pictórico: 
“ainda quando é possível datar a emergência de um princípio para 
si, este já se encontrava anteriormente presente na cultura a título de 
inquietação ou de antecipação e a tomada de consciência que o põe 
como significação explícita apenas completa sua longa incubação 
num sentido operante. A cultura nunca nos dá significações 
absolutamente transparentes, a gênese do sentido nunca está 
acabada. O que chamamos nossa verdade só é contemplado por 
nós num contexto de símbolos que datam nosso saber”. (Merleau-
Ponty 5, p.52) 
Esta passagem elucida o sentido da noção merleaupontyana de instituição, que 
aqui examinaremos brevemente a propósito das obras de arte e de pensamento. Lemos 
numa passagem das notas de seu curso:
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“Para o artista, a obra é sempre um ensaio. E para a história, a 
pintura inteira é um começo. Como exprimir filosoficamente esse 
sentido? A noção de instituição é a única capaz de fazê-lo, como 
abertura de um campo em cujo interior se pode descrever fases; não 
apenas um pulular de obras e achados, mas tentativas sistemáticas, 
um campo que, como o campo visual, não é o todo, não tem limites 
precisos e abre para outros campos” (Merleau-Ponty 4, p.79).
Cada obra de arte ou de pensamento retoma uma tradição: a da percepção, as 
obras dos outros, as obras anteriores do mesmo artista ou pensador, mas, simultaneamente, 
institui uma tradição,isto é, abre o tempo e a história, funda novamente seu campo de 
trabalho e, incidindo sobre as questões que o presente lhe coloca, resgata o passado ao 
criar o porvir. Uma obra é instituição porque deforma, descentra, desequilibra, recentra 
e reequilibra o que lhe é dado no ponto de partida – o percebido e outras obras de arte, a 
linguagem instituída e as obras literárias, científicas e filosóficas. Essas operações do artista 
ou do pensador são “afastamento com relação a uma norma de sentido” instituída, são a 
diferença. Esse sentido por afastamento e diferença, por deformação e descentramento, 
“é o próprio da instituição” (Merleau-Ponty 4, p.41).
O ponto de partida do artista, do escritor, do pensador “é um vazio”, uma 
ausência que somente o fazer da obra pode preencher; porém, porque toda obra é abertura 
de um campo ilimitado ou significação aberta, só pode ser experimentada como falta – 
pedindo outras obras – e como excesso – suscitando outras obras –, e por isso mesmo 
toda obra pede um porvir, exigindo o futuro não como telos, mas como restituição 
instituinte do passado. Eis por que a história das obras de arte e de pensamento não 
é uma história empírica de acontecimentos, nem uma história racional-espiritual de 
desenvolvimento ou progresso linear: é uma história de adventos. Se o tempo for tomado 
como sucessão empírica e escoamento de instantes, ou se for tomado como forma a priori 
da subjetividade transcendental, que organiza a sucessão num sistema de retenções e 
protensões, não haverá senão a série de acontecimentos. O acontecimento fecha-se em 
sua diferença empírica ou na diferença dos tempos, esgota-se ao acontecer. O advento, 
porém, é o excesso da obra sobre as intenções significadoras do artista; é aquilo que sem 
o artista ou sem o pensador não poderia existir, mas é também o que eles deixam como 
ainda não realizado, algo excessivo contido no interior de suas obras e experimentado 
como falta pelos que virão depois deles e que retomarão o feito através do não-feito, do 
por-fazer solicitado pela própria obra. 
O advento é aquilo que, do interior da obra, clama por uma posteridade, pede 
para ser acolhido, exige uma retomada porque o que foi deixado como herança torna-se 
doação, o dom para ir além dela. Há advento quando há obra e há obra quando o que 
foi feito, dito ou pensado dá a fazer, dá a dizer e dá a pensar. O advento é “promessa de 
acontecimentos”, pois a obra “abre um campo, às vezes, institui um mundo, e, em todo 
caso, desenha um porvir” (Merleau-Ponty 12, p.104). A regra, e única regra, de ação para 
o artista, o escritor, o filósofo e o político não é que sua ação seja eficaz, mas que seja 
fecunda, matriz e matricial. Instituição.
***
Pensamos ter, agora, uma nova perspectiva para pensar a relação de Merleau-
Ponty com o Grande Racionalismo. 
Na última palestra proferida na rádio francesa, em 1948, cujo tema era justamente 
a diferença entre os clássicos e os modernos (ou contemporâneos), Merleau-Ponty começa 
enfatizando a distinção: a limpidez das idéias claras e distintas, a transparência da 
consciência a si mesma e a certeza de um conhecimento demonstrativo e integral 
da natureza e do homem, que caracterizaram a época clássica, são substituídos, na 
modernidade, pela ambigüidade e incompletude do conhecimento e da ação: não 
somente as obras são inacabadas, mas o próprio mundo surge como “se fosse uma 
obra sem conclusão” sem que se possa saber se ele terá alguma. Por isso mesmo “seria 
irrisório querer reagir a isso por uma restauração da razão, no sentido em que se fala 
de restauração a respeito do regime de 1815” (Merleau-Ponty 2, p.73). Não há como, 
ingenuamente, supor que seria possível “retomar pura e simplesmente o racionalismo 
de nossos pais” (Merleau-Ponty 2, p.73). Cumpre analisar as ambigüidades de nosso 
tempo e tentar traçar um caminho que “possa ser mantido com consciência dentro da 
verdade” (Idem ibidem). 
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Cadernos Espinosanos XX 
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Marilena Chaui
No entanto, a experiência do presente suscita uma indagação: a figura límpida, 
completa, acabada e perfeita dos clássicos não seria um efeito da distância temporal, uma 
ilusão retrospectiva?
“Temos razões para perguntar a nós mesmos se a imagem que 
muitas vezes o mundo clássico nos passa é algo mais do que 
uma lenda, se ele também não conheceu a incompletude e a 
ambigüidade em que vivemos, se não se contentou com recusar-
lhes uma existência oficial e se, conseqüentemente, longe de ser 
um caso de decadência, a incerteza de nossa cultura não seria, 
antes, a consciência mais aguda e mais franca do que sempre foi 
verdade, portanto, é aquisição e não de declínio.” (Merleau-Ponty 
2, p.74)
“Do que sempre foi verdade”. Eis o ponto crucial. 
De fato, no último curso que ministrou no Collège de France, significativa e 
sugestivamente denominado “A ontologia cartesiana e a ontologia hoje”, Merleau-Ponty 
percorre a obra de Descartes, desde os escritos pré-metódicos (como a Olímpia) e os 
primeiros elementos metódicos, isto é, as Regras para a direção do espírito, passando 
pela correspondência, pela Dióptrica até chegar às Meditações. Desse curso, queremos 
aqui mencionar apenas dois aspectos: o primeiro é afirmação de Merleau-Ponty de que 
a filosofia contemporânea (particularmente a francesa), implicitamente contida nas obras 
e ações da não-filosofia (as artes, a literatura, a política, as ciências), explicitamente não 
sabe o que diz e que uma boa maneira de buscar seu sentido é compreender em que ela não 
é cartesiana, ou seja, “a finalidade deste curso é buscar formular filosoficamente nossa 
ontologia que permanece implícita e contrastá-la com a ontologia cartesiana” (Merleau-
Ponty 9, p.166). Essa finalidade explica os temas cartesianos examinados para contrastá-
los com o pensamento contemporâneo tendo como referência a relação da filosofia a 
não-filosofia – a Dióptrica como teoria da visão que não pode dar conta da pintura (tema 
trabalhado em L’oeil et l’esprit); a correspondência com Mesland sobre a possibilidade 
de uma língua universal algorítmica e inteiramente unívoca porque completamente 
determinada e que, por visar à expressão completa e tomar a linguagem como instrumento 
do pensamento não pode dar conta da literatura (tema trabalhado nos textos da Prose du 
monde e nos ensaios de Signes sobre a linguagem). 
O segundo aspecto que aqui nos interessa é a afirmação de Merleau-Ponty de 
que pretende seguir uma via diversa daquela seguida por Guéroult, isto é, embora 
seja preciso reconhecer o papel inegável da ordem das razões e da verdade definida 
pela certeza imanente do pensamento, é preciso ainda e principalmente sublinhar tudo 
quanto Descartes não pôde submeter a essa ordem e a essa verdade. No entanto, não 
se trata, como julga Guéroult, de supor que são lacunas, pois uma lacuna pode sempre 
ser preenchida, e sim que são falta e excesso produzidos pela própria obra cartesiana, 
aquilo que ela não pode pensar, mas que sem ela não pode ser pensado por nós. Trata-se 
do impensado de Descartes e não em Descartes, aquilo que lhe permite, a despeito de si 
mesmo, manter aberta a filosofia.
Não se trata, portanto, de acreditar na imagem perfeita e acabada do cartesianismo 
como ordem das razões nem, muito menos, apontar defeitos no pensamento cartesiano 
e sim voltar-se para a instituição cartesiana, abertura de um campo de pensamento que 
não poderia existir sem a obra de Descartes porque, ao pensar, ela dá a pensar, é feita de 
“dimensões duráveis, com relação às quais toda uma série de outras experiências terão 
sentido, formarão uma seqüência pensável ou uma história”. Uma história da filosofia fiel 
ao instituinte só pode ser 
“uma história da filosofia que não seja ‘achatamento’ da história 
no interior da ‘minha’ filosofia e que não seja idolatria: retomada 
e repetição de Descartes, único meio de restituir-lhe sua verdade, 
pensando-a de novo, quer dizer,a partir de nós.” (Merleau-Ponty 
9, p.241)
REFERêNCIAS bIbLIogRáFICAS:
1. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1945.
2. _______________, Conversas,1948. São Paulo, Martins Fontes, 2004.
3. _______________, “Titres et travaux. Projet d’enseignement”, Parcours deux, 1951.
4. ________________, L’instituion, in L’intituion. La passivité. Notes de cours au Collège 
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Cadernos Espinosanos XX 
37
de France (1954-1955). Paris, Berlin, 2003.
5. _______________, “Le langage indirect et les voix du silence”, Signes. Paris, 
Gallimard, 1960.
6. _______________, “Le philosophe et son ombre”, in Éloge de la philosophie et autres 
essais. Paris, Gallimard, 1960.
7. _______________, “Partout et nulle part”, in: Éloge de la Philosophie et autres essais. Paris: Gallimard, 1960.
8 _______________, “De Mauss à Claude Lévi-Strauss”, in Éloge de la philosophie et 
autres essais. Paris, Gallimard, 1960.
9.. _______________, “L’ontologie cartésienne et l’ontologie aujourd’hui – 1960-1961”, 
Notes de cours. 1959-1961. Paris, Gallimard, 1996.
10. _______________, La structure du comportement. Paris, PUF, 1960.
11. _______________, “Interrogation philosophique et intuition”, Le visible et l’inivisible. 
Paris, Gallimard, 1964.
12. _______________, L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard, 1965.
13. _______________, La Nature. Notes. Cours du Collège de France. Paris: Seuil, 1994.
Merleau-Ponty: from the constitution to the institution
Abstract: This essay examines the merleaupontian notion of institution as the discovery of a 
path to overcome the tradition of philosophies of consciousness, specially the apories left by the 
hursselian traditional phenomenology, what allows the transition from a philosophy of constitution 
to a philosophy of genesis. 
Keywords: institution, constitution, philosophy of genesis, phenomenology, philosophy of 
consciousness.
NoTAS
1. Em 1951, Merleau-Ponty, quando da sua candidatura ao Collège de France, 
caracterizava assim seu trabalho em curso: “O deciframento de estruturas, somente o qual 
permite encontrar alguma racionalidade na história de uma língua e na história em geral 
sem fazer dela um novo deus, e que permite reconhecer um interior nos fatos humanos 
sem abandoná-los ao arbitrário de construções a priori, é para nós característico de uma 
filosofia concreta” (Merleau-Ponty 3, p.25).
A PRESENÇA dO fIlóSOfO
renaud Barbaras*
Resumo: O artigo homenageia a obra de Bento Prado Jr, enfatizando a originalidade e o aspecto 
crítico de sua postura filosófica. Neste sentido, ele analisa a força do conceito de “Presença” 
– eixo central da tese de doutoramento do autor, publicada sob o título Presença e campo 
transcendental –, capaz de desenhar de maneira inédita um ponto de convergência entre as 
filosofias de Bergson, Sartre e Merleau-Ponty.
Palavras-chave: Bento Prado Jr, Presença, Bergson, Merleau-Ponty, Sartre, fenomenologia
O meu encontro com o Bento foi um evento decisivo na minha vida, não apenas 
filosófica, mas também pessoal, se é que faz sentido estabelecer uma diferença entre as 
duas. Como em qualquer encontro autêntico, assim que li e, depois, conheci o Bento, tive 
imediatamente um sentimento estranho de familiaridade, como se tudo que eu valorizava, 
sem saber muito bem até que ponto eu estava certo, tivesse se encarnado numa figura 
viva e radiante, como se tudo que eu vislumbrava, tanto no âmbito da filosofia quanto 
no da literatura, de repente se expressasse com uma força e uma clareza sem par. Eu 
poderia caracterizar o lugar do nosso encontro através de uma convicção, talvez um pouco 
desconcertante, que compartilhávamos: enquanto filósofos, somos amadores. 
Primeiro, o amador é quem ama. O Bento era, com certeza, um amador 
nesse sentido: ele se relacionava com as pessoas, quaisquer que fossem, com uma 
generosidade excepcional. É essa mesma generosidade que caracterizava sua relação 
com os textos filosóficos, nos quais ele sempre percebia a intuição positiva, a intuição 
a ser explorada – o que lhe dava uma grande perspicácia e, por conseguinte, uma 
autêntica criatividade filosófica. 
Mas, o amador também é quem faz aquilo que ele faz por convicção e prazer e 
nunca por motivos externos, pragmáticos. Enquanto amador, o Bento sabia que a filosofia 
caracteriza-se por um gesto de ruptura ou de distanciamento em relação ao mundo – 
talvez seja isso o sentido mais profundo da redução fenomenológica – e, portanto, ele 
* Professor de filosofia contemporânea na universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
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Renaud Barbaras
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também sabia que a filosofia perde necessariamente sua alma quando ela se compromete 
com as leis do mundo. Com efeito, hoje em dia e cada vez mais, a nossa relação com 
o mundo é dominada pelo reino da técnica e pela potência esmagadora do capitalismo 
mundial. A conseqüência disso é que qualquer atividade, inclusive no âmbito intelectual, 
encontra-se submetida aos imperativos da tecnicização, da rentabilidade e da visibilidade. 
Infelizmente, a filosofia não escapa disso: daí a criação, em toda parte, de centros de 
pesquisa com obrigação de obter resultados, medidos em termos de número de publicações 
e, outra face da mesma moeda, de organismos de avaliação e de controle, totalmente 
inúteis e deletérios, a não ser para dar aos burocratas a impressão de existir. O amador em 
filosofia é quem recusa esse movimento de profissionalização da filosofia, não no sentido 
da competência, mas da submissão às regras de eficiência e de rentabilidade, que são as 
leis do mercado. Ora, inevitavelmente, tal concepção do lugar da filosofia e da instituição 
filosófica se espelha dentro da própria atividade filosófica, sob forma de uma valorização 
exagerada da erudição histórica em detrimento do pensamento, da tecnicidade e do jargão 
em detrimento de uma escrita clara e accessível a cada qual. É como se se tratasse de 
reduzir a atividade filosófica àquilo que nela é visível (a tecnicidade como garantia de 
seriedade) e mensurável (o número de referências). É nesse sentido que o Bento gostava 
de citar a observação de Andrés Raggio, lógico argentino, segundo a qual “a tecnicidade, 
em filosofia, é inversamente proporcional ao interesse filosófico de um texto”(Prado Jr. 
3, p.12). É também por isso que o Bento (como conta na intervenção na mesa redonda 
dedicada à tradução francesa de sua tese) compreendeu como um elogio a observação de 
Ruy Fausto com respeito ao livro sobre Bergson: “é filosofia geral, não é?” Na verdade, 
é uma tautologia: a filosofia deixa de ser filosófica se ela deixa de ser geral, ou seja, de se 
defrontar com problemas “gerais”. Com certeza, o Bento tinha consciência dessa situação 
da filosofia contemporânea e da ameaça que implicava a tecnicização cada vez maior 
da filosofia. No texto intitulado “Bergson, 110 anos depois”, inicialmente publicado na 
Folha de São-Paulo (1999), ele justifica a decisão de publicar em português o livro sobre 
Bergson, que ele chama de “pecado de juventude”, por um sentimento de “mal-estar 
efetivamente vivido, a sensação fortemente desagradável de uma banalização crescente 
da filosofia, de uma escolarização ou tecnificação asfixiantes do pensamento, de que o 
desinteresse por Bergson seria um dos sintomas” (Prado Jr. 3, p.257). Equivale a dizer 
que o engajamento na filosofia tem um sentido ético, o que significa que ela não pode 
se submeter a valores ou critérios alheios a sua própria exigência, e que seu poder de 
análise fica a serviço de uma função crítica. O amador em filosofia nunca perde de vista 
essa dimensão. Portanto, não é de admirar que o Bento conclua o texto mencionado 
acima com a afirmação da “vocação essencialmente ética da filosofia, de que, implicando 
necessariamente a tecnicidade da análise, ela não pode converter-se em mera atividade 
técnico-profissional, sem perder sua essência” (Prado Jr. 3, p.263).
Enfim, o amador em filosofia não se deixaabsorver completamente pela 
filosofia, não fica preso nela, como se fosse o único mundo: ele sempre fica com um pé 
do lado de fora, isto é, sabe que a filosofia enraíza-se num mundo que é alheio à própria 
filosofia. Mas, isso não é um sinal de ignorância ou de falta de envolvimento na filosofia, 
pelo contrário, é uma forma de lucidez quanto a sua essência. Como Merleau-Ponty, 
em especial, mostrou, há uma vertente da filosofia contemporânea cuja interrogação se 
focaliza sobre a relação da filosofia com a não-filosofia, que não é uma coisa diferente da 
filosofia nem uma negação dela mas, antes, uma dimensão dela, dimensão irredutível e 
obscura de onde a filosofia nasce e que ela tenta esclarecer e formular: trata-se da dimensão 
pré-objetiva, ante-predicativa que Merleau-Ponty chama de “fé perceptiva”. Ora, cabe a 
uma filosofia exigente dar conta da sua própria origem no mundo silencioso da percepção; 
cabe à filosofia dar conta dela mesma a partir da sua própria dimensão de não-filosofia. 
Como Merleau-Ponty escreve: “O fim de uma filosofia é a narrativa de seu começo” 
(Merleau-Ponty 2, p.172). É à luz dessa evidência que, para uma filosofia rigorosa, a não-
filosofia torna-se um objeto filosófico. Mas, tal necessidade levanta um problema: onde 
procurar a não-filosofia, sendo que não se pode voltar ao empirismo do senso comum? 
Onde achar um testemunho da obscuridade ou da opacidade pré-filosóficas, que não lhes 
trai a originalidade e a profundidade. Há somente uma resposta: é na arte que o filósofo 
encontra um testemunho já elaborado e, no entanto, ainda não transformado em conceitos, 
da camada originária que, ao mesmo tempo fundamenta e envolve a filosofia. Assim, o 
amador em filosofia não respeita as fronteiras ou, antes, sabe que não tem fronteiras nítidas 
e intransponíveis. Por exemplo, não faz muito sentido estabelecer uma fronteira rígida 
entre poesia e filosofia, a não ser que a filosofia seja identificada com uma epistemologia 
e a poesia com um discurso ornamental. Filosofia e poesia remetem à mesma dimensão 
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Renaud Barbaras
silenciosa da fé perceptiva e não é óbvio que a filosofia tenha um privilégio qualquer. Em 
todo caso, é assim que entendo a paixão pela poesia que o Bento manifestava e, aliás, 
espero que os poemas que ele próprio escreveu sejam publicados em breve. O Bento 
conta na Folha de São Paulo, por ocasião da comemoração do centenário do nascimento 
de Carlos Drummond de Andrade (outubro de 2002), “a experiência de um verdadeiro 
alumbramento com A máquina do mundo, numa manhã clara e inesquecível, caminhando 
pela alameda Santos em São Paulo. Na ocasião, perplexo, eu disse a mim mesmo : ‘Então 
é possível dizer essas coisas na língua que eu falo e habito?’”1. Assim, a meu ver, 
esse apego à literatura e à poesia em particular não se explica apenas pela recusa de 
toda forma de tecnicidade inútil: ele revela uma certa visão do papel da filosofia como 
desvelamento da sua própria dimensão de não-filosofia. A paixão do Bento pela poesia 
era profundamente ligada ao seu modo de engajamento na filosofia: tratava-se, para 
ele, de fazer filosofia ao limite, ou seja, de se situar no lugar onde ela se enraíza ou na 
fonte de onde ela nasce, naquela fronteira onde silêncio e palavra passam um no outro 
e trocam os seus papeis.. 
Em Um departamento francês de ultramar, Paulo Arantes explica brilhante e 
detalhadamente quais eram as relações entre filosofia e literatura na USP daquela época 
e, particularmente, aos olhos do Bento; e, como se sabe, ele inicia o capítulo com essas 
palavras: “Em meados dos anos 60, Bento Prado Jr era uma ilha de literatura cercada de 
filosofia por todos os lados”. Paulo Arantes insiste sobre a necessidade de se livrar, pela 
filosofia, de uma forma de literatura em torno da qual o essencial da vida do espírito 
girava naquela época. Mas, também tenho o sentimento de que, de certa forma, é na 
própria literatura e, particularmente, na poesia, que se encontra a filosofia luso-brasileira. 
Desse ponto de vista, a obra de Fernando Pessoa, e particularmente O guardador de 
rebanhos de Alberto Caeiro, que é um grande tratado de metafísica e de fenomenologia, 
teve um papel fundador. Acho que o Bento encarava a obra de Drummond da mesma 
maneira, e é isso que ele quer dizer no texto da Folha que citei acima. 
Um dia, o Bento, que também gostava de futebol, enviou-me um poema de 
um poeta que eu não conhecia. O título era Ademir da Guia (um jogador que também 
não conhecia): “Ademir impõe com seu jogo/o ritmo do chumbo (e o peso)/da 
lesma, da câmara lenta/ do homem dentro do pesadelo./Ritmo líquido se infiltrando/
no adversário, grosso, de dentro, /impondo-lhe o que ele deseja,/mandando nele, 
apodrecendo-o./Ritmo morno, de andar na areia, /de água doente de alagados,/ 
entorpecendo e então atando/o mais irrequieto adversário” (Museu de Tudo). Assim, 
foi pelo Bento que descobri a obra de João Cabral, da qual ele também gostava muito. 
Foi um choque enorme para mim. Desde aquele momento, nunca parei de ler João 
Cabral e estou fazendo uma tradução francesa da obra dele. Seja como for, a poesia 
ficava no centro da reflexão filosófica do Bento e ele me disse várias vezes que ele 
estava preparando um grande livro sobre poesia e pensamento. 
No entanto, foi pelo livro sobre Bergson, Presença e campo transcendental, que 
encontrei primeiro o Bento. A leitura de Merleau-Ponty, sobre quem fiz minha tese, me 
conduziu a ler Bergson. Naquela época, eu tinha a impressão de que havia um parentesco 
profundo entre os dois pensadores – o que não era espantoso já que Merleau-Ponty 
conhecia Bergson muito bem e até tinha escrito sobre ele – e, mais do que isso, uma 
possibilidade de interpretar a obra de Bergson, particularmente Matéria e Memória, de 
um ponto de vista fenomenológico. Portanto, a leitura do livro do Bento foi um choque 
muito grande e me lembro que li o livro de cabo a rabo com muito entusiasmo. Tomei 
imediatamente a decisão de traduzi-lo e cabe reconhecer que o livro se tornou rapidamente 
um texto de referência nos estudos bergsonianos e, mais do que isso, no campo da história 
da filosofia francesa do século vinte. Na verdade, é muito mais do que um livro sobre 
Bergson: um livro de filosofia geral, ou seja, um livro de filosofia e, justamente, é por ser 
um livro de filosofia, com uma abordagem muito forte e original, que ele pode ser um 
grande livro sobre Bergson. 
A diretriz de todo o livro é a idéia de que a filosofia de Bergson é uma ontologia 
da Presença (“O movimento da reflexão bergsoniana é governado pelo ideal do retorno 
à Presença”2). Mas, Presença escreve-se com maiúsculas: não se trata da presença 
enquanto aparição de um objeto, nem da presença como aptidão do sujeito a abrir para 
uma exterioridade (presença a alguma coisa), mas do lugar onde se torna presente algo 
para alguém. Nesse sentido, o intuito do Bento é o de uma reconciliação entre consciência 
e presença: mostrar que tem um lugar prévio como condição do encontro entre sujeito e 
objeto equivale a estabelecer que a consciência é originariamente ligada à presença, ou 
seja que sua proximidade ou unidade prevalecem sobre sua diferença. A Presença é a 
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condição de possibilidade ao mesmo tempo da cisão e da relação entre sujeito e objeto e, 
nesse sentido, ela situa-se num nível ontológico mais profundo do que eles. Portanto, a 
interrogação diz respeito ao sentido de ser dessa Presença, desde que ela não possa mais 
ser concebida como substancial. 
O Bento enfatiza o problema da presença na medida em que ele percebe a 
importância decisiva da crítica bergsoniana à idéia do Nada, que é ao mesmo tempo uma 
crítica à história da metafísica. Essa é regida pelo princípio de razão suficiente, isto é, ela 
aborda o problema do Ser através da seguinte pergunta “porque existe algo e não

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