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Ética e Política 9 - John Rawls

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igualitarismo moral e político 
 
Fernando Quintana
Segundo documentos normativos, tanto em nível doméstico quanto internacional, a dignidade da pessoa e os direitos humanos são indissociáveis. Tal assertiva trazendo à tona duas ideias: que os direitos humanos se originam na dignidade e que para se ter uma vida digna é necessário o respeito dos direitos fundamentais. A partir destas premissas, propomos analisar A theory of justice (TJ) (1971) de John Rawls na medida em que parte de postulados morais a priori, liberdade e igualdade, para fundar direitos fundamentais a posteriori (direitos individuais, políticos e sociais) que tornam possível o autorespeito.
A TJ é relevante porque permite superar o conflito ideológico da época, marcado pela Guerra Fria (1947-1989), socialismo versus liberalismo. Conflito este que se reflete na Declaração Universal e nos Pactos Internacionais de Direitos Humanos da ONU opondo duas visões contrapostas: para ter uma vida digna é necessário o respeito dos direitos econômicos e sociais (países de Leste) ou para ter uma vida digna é necessário o respeito dos direitos e liberdades individuais (países do Oeste).[1: Cumpre lembrar que os países do bloco socialista se abstiveram de votar a Declaração universal (1948) pelo “diferente peso” dado aos direitos (quatro artigos relativos aos direitos econômicos e sociais de um total de 31). O dois Pactos internacionais dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos e sociais levaram onze anos para serem elaborados (1949- 67) e, mais dez para entrarem em vigor (1977) - o que mostra a dificuldade entre ambos os grupos de países de um acordo sobre a prioridade a ser dada a estes direitos em relação à dignidade humana. Para um aprofundamento deste debate. QUINTANA, F. La ONU y la exégesis de los derechos humanos: uma discusión teórica de la noción. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998. ]
A TJ procura uma conciliação entre duas correntes do pensamento político: liberalismo e democracia. Uma posição intermediária capaz de superar o impasse entre aqueles que priorizam as liberdades individuais e os direitos civis e aqueles que priorizam as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública em geral, ou seja, um equilíbrio entre a dimensão individual e política da liberdade. Contudo, também traz a dimensão distributiva da justiça, isto é, a criação de uma ordem social mais igualitária capaz de atenuar as desigualdades de oportunidades e o acesso à riqueza, fazendo como que o self respect ocupe, como diz Rawls, um “lugar central” na obra. 
A TJ visa estabelecer uma “afinidade eletiva” (Wahlverwandtschaft)entre diferentes famílias teóricas: o que tentei fazer é levar a teoria tradicional representada por Locke, Rousseau e Kant a um nível mais elevado de abstração (Rawls, 1993: 10); bem como, importa insistir, trazer a dimensão welfarista da justiça que visa uma sociedade mais igualitária. [2: Para Goethe há “afinidade eletiva” quando dois seres ou elementos “buscam-se um ao outro, atraem-se um ao outro e a seguir resurgem dessa união íntima numa forma (Gestal) renovada e imprevista” (Löwy, 1989: 15). ]
A importância da TJ responde ao fato de ter preenchido uma lacuna: havia um tácito consenso entre os pensadores da filosofia política de que nenhum marco teórico decisivo fora registrado na primeira metade do século passado, que nenhuma obra monumental nesta área fora publicada desde o início da Guerra Fria. Uma obra, vale acrescentar, que se torna na virada do século o maior best-seller filosófico das últimas décadas, publicado em mais de 25 países, suscitando centenas de estudos e artigos em todo o mundo (Oliveira, 2003:7; 9). E, ainda:
Os últimos 100 anos foram mesmo duros para (a filosofia política) na década de 60, chegaram inclusive a declarar sua morte. E já estavam até encomendando a missa de sétimo dia quando a surpresa aconteceu. Em 1971, John Rawls, um professor americano da Universidade Harvard, entregou a seus editores um livro chamado Uma Teoria da Justiça. Veio a publicação e, como num passe de mágica, a filosofia política ganhou novo alento (...) desde então, pelo menos 5000 livros vieram à luz criticando ou defendendo Rawls - um rio de tinta e papel que corre de China aos Estados Unidos (Graieb, 2000: 154). 
Voltando ao início, propomos, num primeiro momento, abordar os direitos humanos e fundamentais a partir da concepção metafísica ou kantiana da pessoa. Mostrar como a TJ se inspira numa filosofia capaz de elaborar princípios de justiça impermeáveis ao contexto histórico porque se funda numa concepção moral e anistórica da pessoa (Silveira, 2003: 89). Trata-se, portanto, de analisar aspectos do chamado igualitarismo moral rawlsiano que é de “natureza nitidamente kantiana” (Rawls, 1993: 10). [3: Na primeira parte do texto nós deteremos na parte inicial da TJ, isto é, a Justice as fairness, a justiça como equidade ou imparcialidade, título aliás de um artigo de Rawls de 1957, bem como na concepção metafísica da justiça, de inspiração kantiana, como mostra o título de outro trabalho do autor de 1980: kantian constructivism in moral theory. ]
Ademais, num segundo momento, abordar aspectos da “guinada política” da teoria da justiça, que se dá em 1993 com O liberalismo político (LP). Ou seja, uma abordagem da justiça que não depende de nenhuma natureza essencial da pessoa humana, mas de cidadãos que, em pé de igualdade, o chamado igualitarismo político, deliberam sobre princípios pelos quais querem ser governados, apesar das diferentes doutrinas filosóficas, morais, religiosas, etc. Ambos os tipos de igualitarismo remetem, por sua vez, ao igualitarismo deontológico, no sentido de toda pessoa ou cidadão ser capaz de escolher um único conjunto de princípios de justiça, que faz com que todos sejam tratados de forma igual.[4: A political turn da teoria pode ser observada no artigo de Rawls de 1985 que leva, justamente, por título - Justice as fairness: political non metaphysical enquanto o termo “liberalismo político” é utilizado, pela primeira vez, em 1987 - The idea of an overlapping consensus. ]
A TJ dá um passo decisivo no tratamento dado ao direito, seja como postulados morais a priori, liberdade e igualdade - estes capazes de permitir um acordo imparcial e cooperativo da justiça ou como direitos fundamentais a posteriori a serem usufruídos pelos membros da “sociedade bem ordenada” através da “estrutura básica da sociedade”- ou seja através de instituições e normas - estas capazes de efetivar direitos na dimensão social, no sentido de igualdade de bem-estar, política, no sentido de igualdade de participação e individual, no sentido de igualdade de liberdades ou, segundo o conteúdo dos dois princípios de justiça rawlsiana: direito às liberdades, às oportunidades e recursos materiais necessários que tornam possível fazer da vida algo de significativo, que valha a pena de ser vivido (Vita, 1993: 11).
 Para analisar a liberdade e igualdade como postulados morais é conveniente destacar aspectos do modelo contratualista proposto pelo autor, mais especificamente, aquele que diz respeito ao acordo imparcial da justiça. A escolha desta parte da teoria, a justiça como fairness ou imparcialidade, obedece ao fato de mostrar a relação existente entre moral e justiça, mais especificamente, como a partir do igualitarismo moral rawlsiano dá-se uma concepção da pessoa nitidamente kantiana. 
 
O contratualismo rawlsiano diz respeito à necessidade de se chegar a um acordo sobre princípios de justiça que devem nortear a “sociedade bem ordenada” e as “instituições básicas da sociedade”, que organizam a vida política, econômica e jurídica e que atribuem direitos e deveres aos indivíduos para realizar seus diferentes projetos de vida. 
Para o consenso ser equitativo ou imparcial são necessários certos requisitos. Assim, as partes no momento da escolha dos princípios de justiça que haverão de regê-las se encontram numa situação fictícia, ideal: a original position, a partirda qual é possível um acordo justo não só no sentido da imparcialidade, mas também da sua recíproca e desinteressada cooperação. Ou seja, no momento do acordo, as partes encontram-se numa situação em que todos são agentes racionais (rational) e razoáveis (reasonable), capazes de elaborar e cooperar com os princípios de justiça. [5: “É claro, então, que a posição original é uma situação puramente hipotética. Não é necessário que algo parecido a tal posição tenha acontecido alguma vez” (Rawls, 1993: 145).]
Tal situação, contrafática, diz respeito a um contexto marcado pelo veil of ignorance: as partes desconhecem as condições naturais e as contingencias relativas à sua existência (gênero, riqueza, inteligência, geração, status social, bens que perseguem). Assim, a justiça se apresenta com os olhos cobertos: o véu que os cobre é a garantia de sua imparcialidade ou equidade (fairness):
Entre as características essências dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, sua classe social ou seu status social; e ninguém conhece sua sorte na distribuição de recursos e das possibilidades naturais, sua inteligência, força e coisas do gênero. Presumirei até mesmo que as partes não conhecem suas concepções do bem nem suas propensões psicológicas especiais. Os princípios de justiça são escolhidos por trás de um véu da ignorância (Rawls, 1993: 29). 
Tais requisitos formais (posição original, véu da ignorância) fazem que o acordo consiga o resultado pretendido: a cooperação sobre princípios de justiça, tornando possível uma sociedade justa. A justiça como acordo equitativo é procedimental no sentido de chegar a um resultado justo independente de situações concretas – a justiça procedimental, diz o autor, se dá quando existe um procedimento correto de modo que o resultado seja igualmente correto e imparcial (Rawls, 1993: 109).
 
Para justificar o acordo, Rawls apela à concepção metafísica da pessoa como agente livre e racional. Os princípios de justiça a que as partes chegam são resultado de um ato de autolegislação, realizado por indivíduos desejosos em orientar suas condutas com base em princípios públicos e morais. Tal concepção da pessoa implica abdicar por completo o conhecimento da situação social e das circunstâncias concretas em que se encontram inseridos. Em termos kantianos: os indivíduos aí se apresentam como seres numênicos, isto é, em condições ideais de equidade para realizar suas escolhas. Segundo Rawls, atribuir às partes a condição de seres fenomênicos com conhecimento das circunstâncias em que vivem poderia encorajá-los a agir em benefício próprio, subvertendo a equidade do acordo, ou seja, dele não ser benéfico para todos.
A liberdade a que se refere Rawls no momento do acordo é de tipo negativa, isto é, segundo Kant, quando o homem pauta sua conduta sem depender de qualquer objetivo particular ou inclinação pessoal, quando age conforme à lei moral, recusando atender interesses particulares. Rawls entende a liberdade em termos semelhantes ao afirmar que, no momento da escolha dos princípios de justiça, os indivíduos não atuam movidos pelo desejo de realizar algum interesse particular, mas pelo respeito exclusivo de agir conforme os princípios. É o que se depreende, também, da seguinte afirmativa do autor extraída de A concepção kantiana da igualdade (1975): 
Particularmente importantes dentre as características da posição original para a interpretação da liberdade negativa são os limites da informação, por mi denominados de ‘véu de ignorância’ (...) A forma mais forte tem uma concepção kantiana: não iniciamos com informação alguma; pois Kant entende por liberdade negativa que somos capazes de agir independentemente da determinação de causas alheias (Oliveira, 2003: 63-64).
No entanto, a liberdade a que se refere Rawls no momento do acordo é também positiva, isto é, segundo Kant, quando o homem elabora leis boas submetendo-se a elas voluntariamente, consentindo em sua vigência. Assim, a escolha sobre os princípios de justiça pode ser entendida como um ato de autolegislação através do qual as pessoas não aceitam ser governadas por leis a não ser aquelas que deram seu consentimento. Sendo assim, o termo liberdade não se refere à ideia invocada pelo contratualismo clássico: poder de fazer, escolher ou agir com vistas à obtenção de um interesse particular, ou seja, ela não aparece associada à obtenção de algum bem próprio.
Na justiça como equidade a liberdade aparece como postulado moral a priori, isto é, a pessoa como agente livre e racional capaz de elaborar regras de justiça que atendem a esta concepção da pessoa:
A fim de prover uma interpretação da liberdade positiva, duas coisas são necessárias: primeiro, as partes concebidas como pessoas morais livres e iguais devem desempenhar um papel decisivo na sua adoção da concepção da justiça; e segundo, os princípios dessa concepção devem possuir um conteúdo apropriado para exprimir essa visão determinante de pessoas (...) Uma sociedade que efetivou esses princípios alcançaria a liberdade positiva, pois eles refletem as características de pessoas que determinaram sua seleção e assim exprimem uma concepção que elas atribuem a si mesmas (Oliveira, 2003: 65). 
Tratamento semelhante recebe a igualdade na justiça como equidade. De fato, ela não está associada a um direito subjetivo, à exigência de uma igualdade de tipo jurídica ou material, mas a uma igualdade moral/metafísica, que acena com a possibilidade de o acordo sobre a justiça operar-se, também, de forma desinteressada ou cooperativa. Para isso, Rawls recorre novamente à concepção kantiana da pessoa ao sustentar serem os indivíduos, além de livres e racionais, iguais e razoáveis porque dotados de um senso ou sentimento de justiça (sense of justice). 
Neste contexto, a igualdade, como postulado moral a priori, diz respeito à capacidade de todo indivíduo ter um senso público de justiça e cooperar com este ideal que é bom em si. Supor que as pessoas agem de forma razoável significa considerar os indivíduos moralmente iguais, capazes de agir pelo interesse ético de contribuir para a realização de um projeto comum de justiça. Trata-se do “intuicionismo moral” que admite poder o senso público de justiça fundar-se no bom sentimento. “Os termos equitativos da cooperação, diz o autor, articulam uma ideia de reciprocidade e mutualidade: todos os que cooperam devem beneficiar-se ou compartir alguma carga” (Rawls, 1980 apud Vallespín, 1985: 62).
Examinada a liberdade e igualdade como postulados morais a priori os quais permitem um acordo imparcial e cooperativo da justiça, convém, a seguir, enunciar o conteúdo dos dois princípios mostrando a ordem serial ou léxica entre eles existente.
- Primeiro princípio: cada pessoa tem igual direito a um esquema completamente adequado de liberdades básicas iguais, que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para os demais - Princípio da igual liberdade (equal liberty principle);
- Segundo princípio: as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: a) devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos – Princípio da igualdade de oportunidades (equality of oportunity principle); b) devem beneficiar os membros menos privilegiados da sociedade - Princípio da diferença (difference principle). 
O segundo princípio podendo ser reformulado da seguinte maneira: as desigualdades ligadas a cargos e funções de autoridade, rendimento e riqueza, são consideradas justas se promovem benefícios para todos, em particular, para os que se encontram na situação mais desfavorável. 
Os dois princípios são acompanhados por regras estritas de prioridade que por pouco não constituem outro princípio: o da ordem preferencial, isto é, uma sequência serial em que as liberdades básicas têm primazia sobre a igualdade de oportunidades que, por sua vez, precede o princípio da diferença. Assim, nenhum princípio pode intervir, a menos que os colocados antes não sejam satisfeitos, tendo,pois, um valor absoluto frente aos que seguem. A partir desta ordenação léxica fica claramente estabelecida a opção - preferencial - de Rawls por certos bens primários em relação a outros bens, no sentido de não se poder renunciar a nenhuma das liberdades básicas (primeiro princípio) em favor de uma distribuição mais justa de cargos e funções (segundo princípio - primeira parte), nem tampouco em favor de um nivelamento igualitário das condições socioeconômicas (segundo princípio - in fine). 
Tal ordem implica uma hierarquia entre exigências: uma sociedade é mais justa do que outra se as liberdades básicas são mais amplas e mais igualmente distribuídas, seja qual for a distribuição dos bens englobantes dos demais princípios. No mesmo sentido, entre duas sociedades parecidas no plano das liberdades básicas, aquela que melhor proporciona oportunidades iguais para todos é mais justa - seja qual for o grau de realização do princípio da diferença. 
A sequência prioritária, na aplicação dos princípios, retoma a antiga discussão da hierarquia entre direitos fundamentais individuais, políticos e sociais. Da perspectiva rawlsiana, não cabe dúvida de que os bens primários do primeiro princípio (liberdades individuais e políticas) têm precedência ao desfrute de bens resultantes da igualdade de oportunidades e da distribuição de recursos (segundo princípio).
A TJ coloca, então, claramente a primazia do justo (fair), o direito (right) sobre o bem (good) isso porque a escolha dos princípios se faz independente de projetos pessoais e concepções do bem. O modelo da justiça rawlsiano é deontológico, não teleológico. De fato, ao colocar tal prioridade, ela representa uma alternativa a modelos de cunho utilitarista que definem a justiça com base em outro princípio: é justa a sociedade que maximiza a soma ou média de níveis de bem-estar do maior número dos membros. Minha teoria, diz o autor, é uma “alternativa ao utilitarismo dominante” (Rawls, 1993: 10).
Tal princípio alicerça um modelo finalístico ou teleológico da justiça no qual o bem é concebido independentemente do justo. Esta possibilidade é descartada pela TJ que não admite ser a pessoa reduzida à maximização racional da utilidade, pelo fato de que as escolhas, baseadas neste comportamento, podem trazer uma limitação ou restrição dos “bens primários básicos” (primeiro princípio). À diferença da concepção rawlsiana da justiça, o utilitarismo defende a primazia do bem em relação ao justo, a justiça sendo entendida como resultado de uma escolha racional e individual, que, através de meios adequados, torna possível determinados fins. À luz desta perspectiva, utilitária, as escolhas e decisões se apoiam no cálculo de perdas e ganhos de bem-estar. 
Pelo contrário, a TJ acredita na primazia do justo, do direito, sendo ela ontologicamente anterior a qualquer ideia do bem. A inviolabilidade das liberdades básicas é um dever moral que permanece assegurado acima de todos os ajustes envolvendo questões de oportunidades e desigualdades e isso, vale reiterar, para evitar a restrição ou sacrifício de alguma liberdade fundamental (primeiro princípio) em benefício da utilidade. Tal situação, o sacrifício da liberdade, baseada numa racionalidade instrumental de meios e fins, sendo possível a partir de uma concepção utilitarista da justiça da qual o modelo rawlsiano procura ser uma alternativa:
Rawls argumenta que o utilitarismo é incapaz de fazer distinções entre as pessoas ao eleger um fim maior, como a felicidade, a riqueza, etc, o utilitarismo permite que alguns indivíduos sejam sacrificados em prol do aumento da utilidade da maioria, ou seja, no limite ele permite a violação da integridade do indivíduo (Feres; Pogrebinschi, 2010: 74). 
O contraste com o utilitarismo e a prioridade atribuída ao primeiro princípio de justiça pode ser mais bem apreciado se levarmos em conta o alcance do princípio da diferença. Para Rawls, tal princípio exige que a sociedade maximize a oportunidade dos membros menos favorecidos da sociedade, enquanto o utilitarismo exige a maximização das condições do conjunto dos membros da sociedade, entendida como a soma ou média de níveis de utilidade a serem por eles usufruídos.
A diferença entre ambas as teorias fica evidenciada pelo fato de que o utilitarismo não se preocupa com a distribuição do bem-estar entre os membros da sociedade: o que lhe interessa é a soma ou a média desse bem-estar, qualquer que seja a maneira como é repartido. Para a TJ, pelo contrário, a maneira como os bens primários são repartidos é fundamental, já que a questão de saber se uma sociedade é justa não depende da quantidade de bens (cobertos pelo princípio da diferença) que podem dispor os que se encontram em situação mais favorável, mas da quantidade de bens que podem dispor os menos afortunados da sociedade. 
O “perigo” do utilitarismo é este poder levar à restrição de alguma liberdade básica, ao sacrifício de algum direito fundamental, calcado no princípio da maximização da soma ou média das utilidades. Ao contrario do princípio da prioridade rawlsiano, o qual não permite que o aumento da condição global ou média dos membros da sociedade possa justificar tal restrição.
Enunciados o conteúdo dos princípios de justiça, a ordem que deve ser respeitada na sua aplicação e o “perigo” de teorias que conferem prioridade ao bem-estar sobre o justo convém, a continuação, conhecer os direitos fundamentais a posteriori a serem garantidos pela estrutura básica da sociedade. Em outras palavras: como os indivíduos racionais e razoáveis, livres e iguais, capazes de chegar a um acordo sobre a justiça, são sujeitos de direitos individuais, políticos e sociais a serem usufruídos em sociedade. 
 
No que diz respeito ao “esquema de liberdades básicas iguais” (primeiro princípio), Rawls enuncia um conjunto de direitos fundamentais que compõem tal esquema: a liberdade política entendida como direito ao voto e ao exercício de funções públicas; a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e pensamento; a liberdade da pessoa, incluindo a liberdade diante da opressão psicológica e agressão física, do arresto e detenção arbitrária tal como definida pelo rule of law; e o direito de propriedade. 
Como se depreende desta lista: as liberdades e direitos fundamentais constituem uma reformulação detalhada dos ideais da liberdade e da segurança individual, de extração liberal, e dos ideais de igualdade política, de extração democrática. Uma junção de Locke e Rousseau. 
Apesar de Rawls evitar definições clássicas, a liberdade política lembra aquela tradição do pensamento político para a qual ser livre consiste em cada um participar de uma parte da soberania, elaborar leis direta ou indiretamente por meio das quais serão governados. Ela diz respeito àquela dimensão da liberdade que ficou conhecida como liberté des anciens (Constant) ou, mais recentemente, como liberdade positiva (Berlin) que responde à seguinte questão: por quem somos governados? A este respeito, o autor destaca que só uma pequena fração de pessoas dedica uma parte de seu tempo à política e que a tomada de decisões deve ficar a cargo dos que foram escolhidos para governar. 
A liberdade política rawlsiana se afasta, assim, de qualquer visão idealista ou radical da mesma, uma cidadania ativa, em que todos tomariam parte dos negócios públicos. O direito de igual participação é utilizado para definir quem e como devem ser governadas as instituições políticas de uma sociedade bem ordenada. Neste sentido, a constituição deve prever normas destinadas a tornar efetivo este direito, tais como que cada voto tenha o mesmo valor para determinar o resultado das eleições; que todos os cidadãos tenham, ao menos formalmente, igual acesso ao poder público; que todos os cidadãos possam candidatar-se em eleições e ocupar postos de autoridade; que todos os cidadãos se encontrem informados sobre a marcha dos assuntos públicos, bem como a regra da maioria no processo de tomada de decisões políticas.Por último, a liberdade política implica da parte do governo medidas compensatórias, as quais contribuam para a concretização e transparência do exercício deste direito como o financiamento público de partidos políticos para que tenham suficientes recursos e sejam mais independentes de grupos ou interesses econômicos privados. O direito de igual participação política implica, ademais, a responsabilidade das autoridades diante do eleitorado, uma vez que devem aprovar medidas no interesse de todos fomentando aquelas consistentes com os princípios de justiça.
No que toca aos outros direitos do primeiro princípio: o direito de opinião e expressão, Rawls entende que sua prioridade responde ao fato deste direito ser inerente às instituições democráticas e proteções legais constitucionais. O direito de “publicar as opiniões” encontra em John Stuart Mill uma forte inspiração ao declarar Rawls que: a política mais razoável é aquela influenciada ou modificada pela presença de interesses e opiniões em conflito. Para o autor, a diversidade de opiniões é fundamental porque implica uma discussão razoável, retificadora e pública sobre os programas e projetos políticos que visam promover fins sociais e, o bem público. As associações políticas, os partidos, canais desta diversidade, tendo como tarefa buscar, junto ao eleitorado, a aprovação de projetos e programas que atendam a esta finalidade. 
No relativo à segurança jurídica, associada pelo autor ao rule of law, ela supõe um sistema de normas públicas e princípios legais sem os quais ela é ineficaz. Assim, seguindo Rawls, as normas devem prescrever condutas possíveis: as ações exigidas ou proibidas pelas normas legais, afirma, têm que ser de tal sorte que os homens possam cumpri-las e evitá-las de modo razoável. Além do mais, as normas legais devem contribuir no sentido de juízes, legisladores e funcionários públicos atuarem de boa fé e que esta possa ser reconhecida pelos destinatários. O preceito: casos similares devem ser tratados de maneira igual significa os indivíduos poderem regular suas ações por meio de normas, bem como uma limitação à discricionariedade dos juízes e autoridades. Tal limitação pode ser obtida também pela aplicação do preceito: nullum crimen sine lege e as exigências resultantes dele: promulgação, conhecimento, generalidade e irretroatividade das leis, imparcialidade e independência dos juízes, normas para preservar a integralidade do processo, provas judiciais, etc.
As normas e preceitos ligados ao rule of law têm como finalidade estabelecer limites legais ao princípio de liberdade igual e tornar possível os indivíduos regularem suas condutas por meio de normas públicas. Do contrário, os cidadãos não saberiam como se comportar em sociedade, nem como regular sua conduta livre, nem exercer seus direitos e deveres. 
Em relação à liberdade individual definida pelo autor nos seguintes termos: as pessoas se encontram em liberdade de fazer algo quando estão livres de certas restrições para fazê-lo, e não o estão quando indefesas frente às interferências de outras pessoas, significa que os indivíduos são livres de promover diferentes concepções religiosas, morais ou filosóficas sem sofrer restrições ou impedimentos de terceiros. As únicas restrições previstas por Rawls são aquelas em que a prática da liberdade implique uma invasão na igual liberdade de outrem. Assim, a prática de consciência religiosa pode, por exemplo, sofrer limitações desde que, in casu, não permita o igual exercício de outrem deste direito ou, como diria Kant, sempre e quando não prejudique a fruição do livre arbítrio de outrem; ou, ainda, pode sofrer restrições quando perturbe a ordem pública que o governo deve manter. Em resumo: a limitação da liberdade individual pode ser justificada só quando é necessário o exercício dos direitos dos demais e não comprometa a segurança de todos.
Finalmente, o direito de propriedade, intimamente ligado ao exercício da liberdade, implica que cada pessoa possua recursos suficientes para satisfazer suas necessidades. A propriedade privada dos meios de produção sendo um “tema contingente e não uma parte essencial” da teoria, preocupada pela distribuição dos bens (Barry, 1973 apud Mouffe, 1999: 67). Tal entendimento fazendo com que esta propriedade possa sofrer limitações para favorecer os menos afortunados da sociedade.
 
Os direitos fundamentais, os quais integram o esquema básico de liberdades, se enquadram naquela tradição do pensamento liberal para a qual ser livre se confunde com a independência individual. Ela diz respeito àquela dimensão da liberdade conhecida como liberté des modernes (Constant) ou, mais recentemente, como liberdade negativa (Berlin) que responde à seguinte questão: até que ponto o governo deve intervir nos assuntos privados? A este respeito, Rawls responde: o governo não deve ocupar-se de doutrinas morais, filosóficas ou religiosas, ele não tem o direito nem o dever de intervir neste domínio. Trata-se, portanto, de um tipo de liberdade referente à possibilidade de escolha do indivíduo, sem interferências externas.
Em resumo: o primeiro princípio de justiça, o princípio de liberdade, que permite a cada um escolher o que é melhor para realizar os fins que prefere - “cada pessoa tem o direito a mais ampla liberdade fundamental, compatível com uma liberdade igual para todos” - supõe o exercício de direitos fundamentais (liberdade de opinião, expressão, reunião, propriedade, etc.) a serem assegurados pela estrutura básica da sociedade. 
Identificadas as liberdades e direitos componentes do primeiro princípio de justiça, convém examinar o segundo princípio que visa a promoção de uma ordem social mais igualitária. Se o primeiro princípio aponta para os direitos tradicionais (individuais, civis e políticos), o segundo se relaciona com os novos direitos (econômicos e sociais) os quais, diferentemente dos primeiros, não são enunciados na TJ. A este respeito, cabe trazer o seguinte comentário:
(...) não é suficiente (...) que cada cidadão disponha das condições que lhe permitem viver sua vida de açodo com suas próprias convicções de valor moral, que seja institucionalmente garantida uma esfera de liberdade negativa (primeiro princípio);ademais, é preciso que os arranjos institucionais básicos da sociedade, políticos e socioeconômicos, propiciem a cada cidadão a capacidade efetiva de fazê-lo (Vita,2013: 57). 
O segundo princípio - in fine -, o da diferença, está na base do Estado de bem-estar, que, seguindo à tradição welfarista, se relaciona com um tipo de igualdade substantiva na medida em que procura maiores vantagens econômicas e sociais para os menos beneficiados da sociedade. O princípio da diferença ou princípio distributivo, quando aplicado à estrutura básica da sociedade, implica que as normas e instituições da sociedade não possam trazer vantagens para os mais favorecidos nem desvantagens para os menos favorecidos. Em outras palavras: as diferenças de renda e riqueza obtidas na produção do produto social devem ser tais que, uma vez aumentadas às vantagens dos mais favorecidos, aumentem as vantagens dos menos favorecidos ou, que uma vez diminuídas as vantagens dos mais favorecidos diminuam as vantagens dos menos favorecidos.
A escolha do princípio da diferença pode ser justificada pelo equilíbrio reflexivo, isto é, juízos relacionados com a desigualdade numa situação, a posição original, em que as pessoas estabelecem um critério no cálculo da justiça do qual será possível uma melhora da situação de todos. Sobre este tipo de juízo, declara o autor: é um equilíbrio porque nossos princípios e juízos coincidem; é reflexivo porque sabemos com que princípios nossos julgamentos se conformam e conhecemos as premissas das quais se derivam (Rawls, 1993: 38). Trata-se do “interesse desinteressado”, o qual caracteriza a atitude dos contratantes na situação da escolha do segundo princípio de justiça, isto é, de “parceiros preocupados com aumentar sua vantagem até o máximo permitido pela regraaceita de partilha e um verdadeiro sentimento de cooperação que vai até a confissão de serem mutuamente devedores” (Ricoeur, 2012: 31). 
O princípio da diferença é compatível com o chamado princípio da eficiência ou “ótimo de Pareto” segundo o qual: uma distribuição de um montante determinado de bens é eficiente quando não é possível mudá-la para trazer uma melhoria das situações de alguns sem que piore, ao mesmo tempo, as situações dos demais. Em outros termos: uma locação de bens é superior à outra se pelo menos um indivíduo nela ganha sem que ninguém com isso perca:
 
(...) uma vez que o princípio da diferença é plenamente satisfeito, seria impossível melhorar a situação de uma pessoa (conferir vantagens aos mais favorecidos) sem piorar a situação de outra (conferir desvantagens aos menos favorecidos). A situação dos menos favorecidos deve, portanto ser objeto de constante maximização. A aplicação do princípio da diferença, como se vê, faz com que todos sejam beneficiados, tanto os mais favorecidos como os menos favorecidos (Feres; Pogrebinschi, 2010: 28).
Cabe lembrar que a igualdade de oportunidades (primeira parte do segundo princípio) tem prioridade sobre o princípio da diferença (segunda parte do segundo princípio), o que significa que as funções e cargos, abertos para todos, não podem sofrer limitações em compensação da aplicação de uma distribuição mais igualitária de bens, visando reduzir as desigualdades. 
 
O princípio da igualdade de oportunidades pode ser formulado da seguinte maneira: aqueles com capacidades similares devem ter perspectivas de vida similares, além da posição inicial ocupada no sistema social. Para Rawls, a igualdade de oportunidades implica que a origem social não pode afetar o acesso igual a cargos e funções - o que supõe medidas que impeçam uma concentração excessiva da riqueza e que tenham os indivíduos as mesmas oportunidades de acesso a níveis de educação.
Sendo assim, a ordem prioritária na aplicação do segundo princípio da justiça pode ser matizada, uma vez que a igualdade de oportunidades acontece de forma “imperfeita” enquanto existir a família e as classes sociais: a boa disposição para realizar um esforço e ser merecedor de êxito, diz Rawls, depende da família e das condições sociais. Tal situação fazendo com que:
Aqueles que podem ser sustentados pela família e tem uma boa educação tem vantagens óbvias sobre os demais. Permitir que todos participem da corrida é uma boa coisa, mas se os corredores começam do ponto de partida diferentes, dificilmente será uma corrida justa (Sandel, 2012: 91). 
Visto os obstáculos (família, classe social), os quais impedem a efetivação do princípio de igualdade de oportunidades, pode-se pensar ser a intenção do autor a de incluir este princípio num contexto mais amplo - a “reformulação global do segundo princípio” - em que o da diferença se estende também à igualdade de oportunidades promovendo benefícios para os menos afortunados. 
Tal interpretação pode ser justificada, uma vez que para Rawls os arranjos do livre mercado devem dar-se dentro do marco de instituições políticas, jurídicas e sociais (a estrutura básica da sociedade) reguladoras das tendências gerais dos sucessos sociais necessários para uma justa igualdade de oportunidades. Desta maneira poder-se-ia reduzir as diferenças de oportunidades - oriundas da família ou classe social.
Entretanto, esta solução coloca o problema da aplicação imediata do princípio da diferença (na distribuição dos talentos) sobre a primeira parte do segundo princípio, o da igualdade de oportunidades, quebrando a ordem serial defendida pelo autor. Assim, o problema é: como dar prioridade ao princípio da igualdade de oportunidades se este depende para sua efetivação do princípio da diferença? 
Uma resposta plausível, como vimos, é fazer uma leitura global do segundo princípio, ou seja, que se aplique o principio da diferença simultaneamente ao conjunto dos bens que engloba, isto é, a cargos e funções de autoridade, à riqueza e ingresso de bens. Assim, poder-se-ia diminuir a desigualdade de oportunidades de cargos e funções (primeira parte do segundo princípio) sem com isso aumentar as desigualdades de riqueza e bens entre os menos e mais favorecidos da sociedade (segunda parte do segundo princípio) (Vallespín, 1985: 108-109).
 
Importa lembrar que o princípio da diferença, orientado para um nivelamento mais igualitário das condições socioeconômicas, não pretende de modo algum acabar com as desigualdades (menos ainda com as classes sociais). Pelo contrário, para Rawls, a desigualdade é algo positivo, uma vez que pode trazer benefícios para todos. Assim, destaca: se existem desigualdades de rendimentos e riqueza, bem como diferenças na autoridade e no grau de responsabilidade, e estas fazem o possível para que todos melhorem, por que não permiti-las? 
	
Apesar de a desigualdade ser algo positivo, sabemos não poder haver um aumento da distância entre os menos e mais favorecidos. O critério justificante da desigualdade é a vantagem que venha trazer à camada que ocupa à posição inferior da sociedade, se não for assim a desigualdade não é aceita. Rawls não admite um sacrifício dos menos favorecidos em nome da eficácia econômica, ele rejeita o “liberalismo selvagem”, bem como, importa acrescentar, o “igualitarismo social”, o sacrifício dos mais favorecidos em nome da justiça social, ele rejeita o “socialismo autoritário” (Terré, 1988: 10). 
Em relação ao princípio da diferença, Rawls desenvolve outro argumento: a regra maximin que consiste em empenhar-se ao máximo em melhorar a condição dos que possuem o mínimo. Esta regra de justiça encontra seu fundamento na posição original, isso porque as partes, que intervêm no acordo, devem hierarquizar as alternativas conforme os piores resultados possíveis, optar pelo menor dos piores resultados. 
De fato, o autor supõe que os indivíduos, na posição original, têm uma aversão ao risco, temem sair prejudicados da eleição feita e, sendo assim, optam por maximizar as situações de pobreza, marginalização e desamparo e não as de riqueza e poder. Assim, para justificar tal regra há que se voltar à posição original, uma situação, segundo o autor, dominada pela incerteza e determinada pelo “inimigo”: 
Há uma relação entre os dois princípios e a regra maximin para a escolha em condições de incerteza. Isso fica evidente pelo fato que os dois princípios de justiça são àqueles que escolheria uma pessoa ao conceber uma sociedade na qual o seu lugar lhe fosse atribuído pelo seu inimigo (Rawls, 1993: 181).
Contudo, isso traz um problema no sentido de que o acordo sobre a regra maximin se afasta da escolha cooperativa e desinteressada dos princípios de justiça (supra) para um esquema da escolha racional individual, que consiste em maximizar o que cada um obteria se ficasse na posição mínima:
Todavia, as partes na posição original de Rawls vão escolher conjuntamente os princípios de justiça social que vão reger toda uma sociedade. Fica, assim, em aberto a questão de saber se um problema de escolha social pode ser racionalmente resolvido pelos métodos de escolha individual (grifo do autor) (Feres; Pogrebinschi, 210: 16)
Assim, a regra maximin pode cair no cálculo utilitário, o qual seria o seguinte: se, uma vez erguido o véu da ignorância, a pior parte viesse a me caber, não seria melhor escolher sob o véu da ignorância a regra de partilha que me privaria dos ganhos mais elevados, esperados de uma partilha menos equitativa, mas que me poria ao abrigo de desvantagens maiores numa outra forma de partilha (Ricoeur, 2012: 31). 
 
No segundo princípio de justiça, cabe destacar o direito a um mínimo social já que, para Rawls, o sistema de livre concorrência não pode por si só garantir, eficazmente, uma distribuição de bens. Daí a necessidade do governo adotar medidas reguladoras, compensatórias e de transferência para suprir carências sociais. Em relação ao valor deste mínimo, o autor descarta a possibilidade de serelevado: as expectativas dos mais desafortunados da sociedade devem ser vistas em longo prazo, para as gerações futuras, não devem ter por base expectativas imediatas. Assim, o capital produtivo deveria ser preservado através de uma poupança suficiente para garantir a justiça às sucessivas gerações e não, por exemplo, por meio de uma taxa impositiva exorbitante, que freie a iniciativa econômica. 
No entanto, como fixar tal mínimo? Rawls sugere que, se aumentados os tributos das duas, uma: ou se obterá uma poupança suficiente ou, os impostos interferem na eficácia econômica que não permitirão uma melhora das expectativas dos menos favorecidos, levando a sua piora. Neste caso, embora satisfeito o princípio da diferença, não seria atingido o resultado, isto é, um crescimento suficiente do mínimo social. 
Com base nisso, Rawls contempla outra possibilidade para determinar a amplitude do mínimo social - a justa poupança - também fundada na posição original. De fato, as restrições formais, dadas pelo véu da ignorância, impedem às partes de conhecer a geração a qual pertencem e o nível de desenvolvimento da sociedade. Assim, em tal situação, é lógico que as partes sejam dispostas a poupar para cada nível de riqueza por elas produzida, isso supondo que as demais gerações pouparam seguindo o mesmo critério (Rawls, 1993: 327). Para o autor, é plausível esperar que seja escolhida tal “regra” que permita estabelecer, por antecipação, porcentagens suficientes para cada nível de riqueza produzida. Se for seguida esta regra, cada geração dá uma contribuição aos seus pósteros que a recebem de seus antecessores.
Tal regra pode ser vista do ponto de vista dos menos afortunados de cada geração, sendo assim caberia saber quem são as pessoas com menor quantidade de bens? Uma possibilidade é a de escolher uma posição social particular, a dos trabalhadores não qualificados e, a partir daí, contar como menos favorecidos os que tenham ingresso ou riqueza aproximada aos que se encontram em tal situação ou ainda pior (Vallespín, 1985: 111).
Analisada a liberdade e igualdade como postulados morais a priori, permitindo um acordo imparcial e cooperativo da justiça, e os direitos fundamentais a posteriori a serem usufruídos pelos membros da sociedade bem ordenada, através da estrutura básica da sociedade, convém tecer algumas críticas da TJ. Uma teoria, como tentamos mostrar, que se inscreve nas teorias kantianas da justiça por fundar-se numa moral e racionalidade universalista (Alexis, 1994: 134).
Os direitos, sejam como postulados morais ou como direitos fundamentais, são tidos, segundo a abordagem abstrata da justiça, como universais: erga omnis homines, isso porque os princípios da justiça, segundo Rawls, são universais em sua aplicação, uma vez que todas as pessoas são éticas. A este propósito, vale lembrar, as palavras do autor quando se refere à ficção da posição original: ela nos obriga a contemplar a situação humana não só de todos os pontos de vista sociais, mas também de todos os pontos de vista temporais – o que não significa senão admitir o caráter universalista e abstrato da justiça. 
O universalismo abstrato da TJ deve-se ao fato de partir do pressuposto racional/moral da pessoa dar-se princípios de justiça. Tal universalismo é “vazio” na medida em que se limita a consagrar uma natureza idêntica (racional/moral) que ignora as diferenças reais criadas pela história, pela sociedade. Como acontece com teorias que tomam a humanidade de forma abstrata, que pretendem explicar o idêntico, imutável, etc., elas correm o risco de banalizar as diferenças. É o que acontece com a TJ que, a partir de postulados morais a priori (liberdade e igualdade) deduz direitos fundamentais a posteriori (individuais, políticos e sociais), os quais tornam possível o autorrespeito. 
O universalismo abstrato da TJ ao tomar como medida verdadeira ou, seguindo Rawls, ao adotar uma concepção metafísica da pessoa deixa, implicitamente, em aberto a tentação preconceituosa de julgar outros indivíduos ou sociedades como inferiores por carecerem dos atributos apriorísticos necessários que permitem definir o justo. 
Além do mais, como fica a TJ diante daqueles modelos teóricos que não admitem uma concepção abstrata da pessoa porque o verdadeiramente real é a satisfação do bem-estar. Assim, seguindo estudiosos, podemos dizer que a relação entre bens primários e bem-estar varia em virtude das diversidades pessoais de converter bens primários em realizações de bem-estar (Feres; Pogrebinschi, 2010: 53). Assim, por exemplo, a regra maximin, os indivíduos para evitar riscos optam por maximizar o mínimo de vantagens possíveis que, do ponto de vista utilitarista, não refletiria o modo como atuamos: optar por maiores ganhos potenciais ao custo de admitir riscos de sofrer perdas, ou seja, à diferença da racionalidade identificada com a aversão ao risco (TJ), os utilitaristas estão dispostos a assumir riscos para obter maiores benefícios (Silveira, 2003: 59). 
A concepção metafísica da justiça obedece ao fato da TJ, baseada no construtivismo kantiano, sustentar-se numa racionalidade de tipo monológica, capaz de estabelecer cientificamente o justo. Pois bem, o solipsismo, enquanto hiper-racionalismo, parte do pressuposto de que só existe o sujeito, daí advém a impossibilidade de reconhecer a existência simultânea de outros egos. Contudo, seguindo críticos deste tipo de racionalidade, caberia dizer que o traço da subjetividade ou racionalidade está dado pelo fato dela não coincidir consigo mesma, ou seja, de abrir-se ao mundo externo, ao outro. Além do mais, o próprio fundamento da razão não é igualmente um modelo cultural, histórico, entre muitos outros? 
Esta possibilidade é descartada por Rawls quando afirma não se poder abrir mão do princípio universal do igual valor da dignidade, que, como destacamos, ocupa um “lugar central” na TJ. A preferência pelo valor do igual respeito, porém, não leva também a uma assertiva questionável no sentido de considerar tal postulado como verdadeiro? 
O individualismo metodológico de Rawls parece inspirar-se no modelo do “espectador imparcial” segundo o qual os seres humanos, como agentes livres e racionais e iguais e razoáveis, que agem em condições fictícias/ideais (posição original, véu da ignorância), podem definir o justo. No entanto, quem é esse agente? Quais os limites dessa racionalidade? Tais questões “ficam no ar” ao colocar a racionalidade como ponto de partida e não como um produto social, histórico.
Como “codificador universal” Rawls adota um ponto de vista sub specie aeternitatis que procura responder ao seguinte problema: qual concepção da justiça, idealmente, deve ser preferível a todas as outras? Resposta: aquela que permita extrair princípios necessários resultantes de uma exigência inamovível - a capacidade das pessoas estabelecerem a ideia do justo dado pelo conjunto dos direitos fundamentais que englobam os dois princípios. Tratar-se-ia, portanto, de chegar a regras de justiça absolutas, fundadas em convicções morais e racionais, que são impermeáveis às especificidades concretas de cada sociedade. [6: Aliás, reconhecido expressamente pelo autor quando faz referência ao como devemos perceber o mundo social: “(...) observar nosso lugar na sociedade desde a perspectiva desta situação é observá-lo sub specie aeternitatis: é contemplar a situação humana, não só desde todos os pontos de vista sociais, mas também desde todos os pontos de vista temporais” (Rawls, 1993: 648). ]
No reforço destas críticas, convém trazer a opinião de autores comunitaristas na medida em que não admitem, como Rawls, que o bem individual seja equiparado ao livre exercício da capacidade de escolher, mas que a realização do bem é indissociável dos vínculos familiares, nacionais, religiosos em que nós encontramos inseridos: não existe algo assim como uma absoluta liberdade de escolha, não temos a liberdade de renegar de nosso passado nem de ignorar os afetos e compromissos os quais são inseparáveisdo processo de constituição de nossa identidade (Silveira, 2003: 82). E ainda sobre a “posição comunitarista”: [7: Dentre dos autores comunitaristas podemos citar: Sandel, Walzer, Taylor, MacIntyre, etc.]
(ela) não fala a partir de uma posição desprendida no tempo e no espaço, universal ou transcendente, mas de uma localização consciente em determinado grupo social com determinado conjunto de valores e história partilhados, a partir dos quais questões como justiça, direitos e deveres devem ser pensados criticamente (Feres; Pogrebinschi, 2010: 72). 
Diferentemente, a TJ parte do postulado de uma natureza humana idêntica e imutável. Adota como referência o sujeito descarnado, isolado, desimpedido, “verdadeiramente humano”: o ser numênico kantiano. Isto resulta claro de quando Rawls coloca a vontade por trás do véu da ignorância fazendo que apareça sob o domínio exclusivo da razão – enquanto a comunidade e os valores acerca do bem comum, que são concomitantes ao exercício da vontade e liberdade, desaparecem por completo. Sendo assim, caberia outro questionamento: levantado o véu da ignorância, as pessoas “demasiadamente humanas” (Kant) fariam a mesma escolha sobre a justiça? E isso tendo em vista que os valores de cada comunidade diferem entre si:
O problema mais grave reside nas particularidades da história, da cultura e da pertença a um grupo. Incluso se favorecem a imparcialidade, a pergunta que com maior probabilidade surgirá na mente dos membros de uma comunidade política não é: que escolheram indivíduos racionais em condições universalizantes de tal ou tal tipo?, mas que escolheram pessoas como nós, situadas como nós estamos, compartindo uma cultura e decididos a segui-la compartindo? (Walzer, 1993: 19). 
O que interessa a Rawls é descobrir no ser abstrato a capacidade de elaborar princípios de justiça verdadeiros e contribuir de forma cooperativa para sua realização. Contudo, vale reiterar, que tal atitude passa por alto as situações concretas, históricas, em que os indivíduos estão inseridos e através das quais são descobertos e desvelados seus fins: 
O bem não pode ser sempre objeto de livre escolha. Pelo menos parcialmente, nosso bem consistirá na plena realização de aqueles vínculos (familiares, nacionais, religiosos) nos que estamos inseridos desde sempre. Não existe algo como absoluta liberdade de escolha: não temos a liberdade de renegar de nosso passado nem de ignorar os afetos e compromisso que tem sido inseparáveis do processo de constituição de nossas identidades (Silveira, 2003: 82). 
Cabe sublinhar, ademais, que a concepção da pessoa como agente razoável, que tem possuidor de um sentimento de justiça, está ligada ao senso comum, ou seja, àquilo que pode ser aceitável numa sociedade. As condições de coexistência numa sociedade justa, portanto, dependem do sense of justice, que contém exigências múltiplas e, muitas vezes, incompatíveis. Disto resulta não ser possível um acordo razoável de uma estrutura justa da sociedade, uma vez que muitas soluções podem ser igualmente razoáveis. 
Em outras palavras: levantado o véu da ignorância, será que os indivíduos com um sentimento de justiça vão escolher obrigatoriamente os bens primários previstos nos princípios de justiça? É possível um conjunto de bens primários para todos os mundos morais e materiais? Um conjunto assim não pode ser concebido em termos sub specie aeternitatis? Ademais, admitindo a escolha dos princípios de justiça: será que os indivíduos vão respeitar necessariamente a ordem prioritária defendida por Rawls? E, ainda: será que a estrutura básica da sociedade correspondente àquela dos países ocidentais avançados é a única para tornar efetivos os ideais de justiça? Com respeito à ordem prioritária, vale o seguinte comentário:
 
(...) a teoria da justiça de Rawls se mostra insuficiente naqueles países onde a justiça se encontra ‘sobre mínimos’, onde a desigualdade é tão escandalosa que o mais racional é desconfiar que nenhum dos princípios se aplicará. Em tais circunstâncias, afirmar o direito prioritário à liberdade igual para todos, soa a puro cinismo. Pois não só a capacidade de cooperar, mas a de conhecer e optar por este ou àquele plano de vida - a capacidade de ser racional - requer umas condições mais matérias que a mera liberdade de expressão ou associação (Camps, 1990: 24). 
Finalmente, cumpre dizer que a limitação da TJ obedece à concepção procedimental da justiça, a qual é insuficiente porque se assenta numa pré-compreensão do justo antes de provar que princípios serão escolhidos. Revela-se a “inevitável circularidade da TJ” – fornecer uma racionalização da justiça que nela já está pressuposta. 
As críticas que recebeu a TJ não desacredita, contudo, a contribuição desta obra para a teoria e filosofia política contemporânea. Prova disso, como destacamos, os inúmeros estudos e trabalhos que suscitou (muito dos quais levou o autor a fazer revisões) os quais enriquecem o debate até hoje: “Não existe acordo na forma como Rawls coloca os problemas, mas o ponto é que, depois de várias décadas da publicação da TJ, grande parte da discussão gira em torno de suas ideias. E este é um mérito do que poucos autores podem se orgulhar” (Silveira, 2003: 108). 
Seguindo esta observação, propomos, a seguir, abordar aspectos da “guinada política” da justiça, ou seja, em que medida o construtivismo político substitui o construtivismo abstrato, em que medida a concepção política abandona toda pretensão universal: minhas observações da justiça são necessárias porque esta concepção da justiça não depende de nenhuma verdade universal, de nenhuma natureza essencial da pessoa (Rawls, 1988: 279). Tal mudança tornando sua teoria menos pretensiosa, “nem todos os países, afirma, são terrenos férteis para a teoria da justiça”, fazendo-a abandonar uma concepção abstrata ou metafísica da pessoa (TJ) por uma “concepção específica da pessoa” inserida numa cultura pública de uma sociedade democrática (LP) (Cardim, 2000: 9-10). 
Dentre os aspectos da mudança destacamos três conceitos: o “consenso sobreposto”, o “pluralismo razoável” e a “razão pública”. Isso nos permite elucidar questões tais como: qual concepção de justiça é mais apropriada para realizar os valores da liberdade e igualdade nas sociedades democráticas pluralistas ocidentais? Como uma concepção da justiça pode gerar apoios duradouros em sociedades caracterizadas pelo pluralismo? Ou, como é possível uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais que se estão divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais incompatíveis entre si? E, ainda, parafraseando o autor:
Como é possível que doutrinas profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de um tal consenso sobreposto? O liberalismo político tenta responder a essas e outras questões (Rawls, 2000: 26).
 
Para responder tais questões convém destacar certas características do construtivismo político: a) ele se aplica a vida política e não à vida moral em geral, isto é, a um tipo de vida em que devemos justificar instituições, normas e ações de acordo com critérios que todos os membros da sociedade aceitam; b) ele não visa estabelecer princípios universalmente válidos, mas princípios de justiça adequados para um tipo de sociedade que se caracteriza pelo pluralismo; c) ele não apela a uma concepção metafísica da pessoa, mas ao cidadão em tanto membro da sociedade política (Silveira, 2003: 91).
Em relação a este ponto, vale reiterar que Rawls abandona toda concepção abstrata da pessoa já que o acordo sobre a justiça e as instituições básicas da sociedade é feito por pessoas concretas, isto é, por cidadãos ligados a uma tradição política determinada, a uma cultura de fundo (background), uma cultura pública, que corresponde àquela das sociedades liberal-democráticas ocidentais.
 
A pessoa humana como agente moralabstrato é substituída pelo cidadão pertencente a um contexto social, político e cultural específico. As pessoas na teoria política da justiça não são seres numênicos, mas fenomênicos (Kant). O agente moral, diz Rawls, é o cidadão livre e igual na medida em que é membro da sociedade, não o agente moral geral. Tal mudança faz com que o “liberalismo igualitário” de Rawls não se enquadre numa visão metafísica, mas política da justiça. 
Partindo da existência de “doutrinas abrangentes” nas sociedades liberal-democráticas e de uma concepção da justiça ligada ao domínio político, Rawls elabora o conceito de consenso sobreposto. Tal conceito significa que o acordo sobre a justiça política e as disposições institucionais que o consolidam incorpora diferentes doutrinas religiosas, morais e filosóficas caracterizando tais sociedades e não uma só e única doutrina filosófica, metafísica, capaz de determinar o justo (TJ).
A aceitação da justiça política decorre do consenso dos cidadãos em torno de valores comuns em que cada cidadão, com sua própria concepção do bem, aceita outros pontos de vista promovido por cada uma dessas doutrinas: o consenso sobreposto implica ser, então, possível um acordo sobre os princípios de justiça, apesar das distintas doutrinas abrangentes e conflitantes existentes na sociedade. Tal acordo permite também dar unidade à sociedade e estabilidade às instituições democráticas representativas:
A unidade social baseia-se num consenso sobre a concepção política; e a estabilidade é possível quando as doutrinas que constituem o consenso são aceitas pelos cidadãos politicamente ativos da sociedade e, as exigências da justiça não conflitam gravemente com os interesses essenciais dos cidadãos (Rawls, 2000: 179-180).
Em relação às pessoas ou, melhor, os cidadãos que intervêm no acordo sobre a justiça, importa dizer que se trata de agentes livres e racionais (rational) e iguais e razoáveis (reasonable), o igualitarismo político, capazes de perseguir diversos fins e escolher os meios mais adequados para atingi-los, bem como agir conforme o sentimento de justiça, de cooperar na sua realização, no caso, aceitar os limites morais dados pelas distintas doutrinas abrangentes.
Assim, o sense of justice encontra-se ligado ao conceito de pluralismo razoável uma vez que, no acordo, as partes, movidas por tal sentimento, aceitam os distintos pontos de vista e concepções do bem originados nas diferentes doutrinas religiosas, morais e filosóficas. Como diz o autor acerca do pluralismo razoável: “presumimos no consenso sobreposto que todo cidadão endossa uma doutrina abrangente” - o que implica que cada doutrina seja aceita pelas partes. Tal capacidade, o cidadão razoável, tornando possível elaborar os princípios de justiça que giram em torno da liberdade e igualdade.
O conceito de razão pública, porque se aplica ao “domínio especial do político”, diz respeito aos sujeitos que participam e os temas que são objeto de deliberação, ou seja, ao razoamento dos cidadãos com igual status, no foro público, os quais deliberam sobre “questões de justiça” e “elementos constitucionais” fundamentais da sociedade:
A razão pública é característica de um povo democrático: é a razão de seus cidadãos, àqueles que compartilham o status de cidadania igual. O objeto dessa razão é o bem do público: aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objetivos a que devem servir (Rawls, 2000: 261-262). 
 
Dentre dos elementos constitucionais cabe destacar aqueles relativos à estrutura geral do estado e do processo político - as atribuições do legislativo, executivo e judiciário e o alcance a ser dado à regra da maioria - e, das “questões de justiça” - os direitos e liberdades iguais dos cidadãos - direito de voto, liberdade de pensamento, consciência e associação e as garantias judiciais ligadas ao rule of law (Rawls, 2000: 277).
Neste contexto, cabe enunciar os dois princípios da justiça política: 
- Primeiro princípio: todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido.
- Segundo princípio: as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos - primeiro, devem estar vinculadas a cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades, e, segundo, representar o maior benefício aos membros menos privilegiados da sociedade. 
Tais princípios, portanto, especificam direitos, liberdades e oportunidades do tipo que conhecemos nos regimes constitucionais democráticos; atribuem prioridade especial a esses direitos, liberdades e oportunidades e endossam medidas que garantem a todos os cidadãos os meios adequados para tornar efetivas as liberdades e oportunidades básicas. Disto resulta que o bem comum está dado pelos valores da igualdade civil e política, a igualdade de oportunidades e a igualdade social (Rawls, 2000: 272-273).
Com respeito aos princípios de justiça política, que especificam direitos e liberdades iguais (primeiro princípio) e regula questões relativas à igualdade de oportunidades e justiça distributiva (segundo princípio), importa dizer que Rawls mantém a ordem de prioridade do primeiro frente ao segundo, contudo, o argumento para justificar tal precedência é diferente, ele é factual, histórico (não metafísico: a posição original). Ao largo da história do pensamento democrático, afirma, tem-se insistido na consecução de certas liberdades e garantias constitucionais específicas como, por exemplo, em diversas constituições e declarações de direitos humanos. A prioridade das liberdades básicas, conclui, segue esta tradição. 
A ordem léxica em LP é justificada também pelo fato de que as liberdades básicas asseguram o valor equitativo das liberdades políticas: o direito de aceder a cargos públicos e influir nas decisões políticas. Efetivamente, apesar das liberdades básicas exigirem maior igualdade econômica para serem efetivas tal possibilidade é descartada pelo autor ao entender ser o exercício delas fundamental para a liberdade individual - que pode não acontecer com a aplicação “imediata” de medidas distributivas as quais visam uma maior igualdade social (segundo princípio).
Outro argumento que permite mostrar a prioridade do primeiro princípio sobre o segundo está dado pela relação entre liberdade individual e propriedade pessoal. De fato, dentre os bens primários do primeiro princípio figura o direito de cada cidadão ter e usar suas propriedades pessoais, as quais, segundo Rawls, constituem a base material suficiente para cada cidadão estabelecer sua própria ideia do bem, sendo esta capacidade fundamental nas sociedades democrático-pluralistas pois, como vimos, vimos, elas possuem diferentes concepções do bem, distintas doutrinas abrangentes. O fato de incluir ambos os direitos, liberdade individual e propriedade pessoal, no primeiro princípio, faz que a procura do bem tenha prioridade diante da aplicação de medidas distributivas, trazendo restrições ao direito de propriedade pessoal - base material para a escolha da vida boa. 
Tais argumentos que reforçam a prioridade do primeiro sobre o segundo princípio revelam, mais uma vez, a natureza moral ou deontológica da concepção da justiça na medida em que critérios utilitários, relativos ao bem-estar, são colocados em segundo plano diante dos direitos e liberdades iguais dos cidadãos. 
 
Cumpre destacar que a referência explícita às liberdades políticas no primeiro princípio de justiça (supra) procura destacar o aspecto político, deliberativo, da justiça como equidade, bem como fomentar o uso político da liberdade diante da apatia do cidadão. A importância das liberdades políticas significa que não basta afirmar o direito igual a um esquema de direitos e liberdades básicas, mas que é preciso assegurar paripassu o direito igual das liberdades políticas.
De fato, o exercício das liberdades políticas é relevante porque faz que o procedimento sobre o acordo da justiça seja equitativo, ou seja, basta garantir as liberdades políticas para que as assimetrias, diferenças, se resolvam favoravelmente para todos. Não é necessário, portanto, incluir no primeiro princípio critérios de justiça distributiva os quais velam por igualdades materiais, já que podem trazer limitações ao exercício de ambos os tipos de liberdades: individuais e políticas. O segundo princípio o qual, como sabemos, visa uma maior igualdade das condições socioeconômicas não pode dar-se senão no marco da deliberação, do exercício das liberdades políticas.
Para finalizar, apontamos duas críticas à abordagem política da justiça cuja origem se encontra no igualitarismo político. Uma delas é que os valores que englobam os dois princípios de justiça política se fundam em “ideias intuitivas”, evidentes e indiscutíveis, impossíveis de serem questionadas por cidadãos livres e iguais, racionais e razoáveis:
(Tal situação) longe de ser uma constatação adequada, é o resultado de uma decisão que desde o primeiro momento exclui o diálogo àqueles que acreditam que valores diferentes deveriam orientar a ordem política. (Rawls) está convencido de que partindo dessas premissas racionais e básicas, um processo de razoamento racional e neutral conduz a uma formulação de uma teoria da justiça que todo (cidadão) razoável e racional deveria adotar. Em consequência, aqueles que não estão de acordo com ela são desqualificados como base no argumento de que são irracionais ou não razoáveis (Mouffe, 1993: 67). 
Outra crítica é que a concepção da justiça esvazia a dimensão conflitiva da política: o igualitarismo político de Rawls, afirma ainda a autora, mostra uma forte tendência à homogeneidade e deixa pouco espaço para o dissenso e disputa na esfera política. Um estado, incluso liberal, não existe sem certas formas de exclusão. E arremata: é importante reconhecer isso e não concilia-las sob o véu da racionalidade (Mouffe, 1993: 66). Ou, seguindo outros autores:
 
O que caracteriza a vida política é precisamente o problema da criação continua da unidade, de um público, em um contexto de diversidade, de aspirações variadas e de interesses em conflito (...) para que a atividade política, o “nós”, atue, é necessário resolver essas constantes aspirações rivais e esses interesses continuamente em conflito (Pitkin, 1972 apud Mouffe, 1999: 77).
 
O chamado liberalismo igualitário rawlsiano, cujo traço mais relevante é ter incluído a dimensão social da justiça (segundo princípio), não consegue, contudo, ficar imune a críticas que giram em torno do igualitarismo deontológico: o dever da pessoa ou cidadão escolher um único conjunto de princípios de justiça provocando que todos sejam tratados de forma igual. Tal igualitarismo, moral (TJ) e político (LP), baseado na presunção de que todo indivíduo racional escolherá certos bens primários, tendo o inconveniente de ignorar as particularidades da história, da cultura e da pertença (Walzer), assim como os conflitos, interesses e relações de poder característicos da esfera política (Mouffe).
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