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FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 2014. 24° ed. - “(...) O discurso está na ordem da lei (...) [há] preparado um lugar que o honra, mas o desarma e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós (...) que lhe advém.” (p. 7) - “(...) em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. ” (p. 8-9) - “Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente (...) é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala (...). ” (p. 9) - “(...) o discurso - como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também aquilo que é objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que se traduz nas lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. Existe (...) [na] sociedade (...) [a] separação [e a] rejeição. Penso na oposição razão e loucura. (...) o louco é aquele cujo discurso não pode circular como dos outros: pode ocorrer que sua palavra não seja considerada (...) tendo verdade ou importância, não podendo testemunhar na justiça (...) pode ocorrer também, em contrapartida, que lhe atribuía, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer verdade escondida, o de pronunciar o futuro (...). Ou caía no nada – rejeitada tão logo proferida; ou então nela se decifrava uma razão ingênua ou astuciosa (...). Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde exerciam a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. (...). Todo esse imenso discurso do louco retornava ao ruído (...). (p. 10-11) - Existe “a oposição do verdadeiro e do falso como um terceiro sistema de exclusão (...). (...) se nos situamos no nível de uma proposição, no interior de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se nos situamos em outra escala, se levantamos a questão de saber qual foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos (...), ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se.” (p.13-14) - “Entre Hesíodo e Platão certa divisão se estabeleceu, separando o discurso verdadeiro do falso; separação nova visto que, doravante, o discurso verdadeiro não é mais o discurso preciosos e desejável, visto que não é mais o discurso ligado ao exercício do poder. O sofista é enxotado. (...) as grandes mutações científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como consequências de uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas da vontade de verdade. ” (p. 15) - “(...) essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. ” (p. 17) - [Há] três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso, a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade (...). (p.18) - “(...) [o] controle e (...) delimitação do discurso (...) se exercem de certo modo do exterior; funcionam como sistemas de exclusão; concernem, sem dúvida, à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo. (...) Procedimentos internos, visto que são os discursos eles mesmos que exercem seu próprio controle; procedimentos que funcionam, sobretudo, a títulos de princípios de classificação, de ordenação de distribuição, como se tratasse, desta vez, de submeter outra vez, de submeter outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso. ” (p. 20) - (...) o comentário (...) pode-se supor que há, muito regularmente nas sociedades uma espécie de desnivelamentos entre os discursos: os discursos que ‘se dizem’ no decorrer dos dias e das trocas (...) e os discursos que estão na origem de certos números de atos novos de falas que os retomam, ou transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer (...): são os textos religiosos ou jurídicos (...). Esse deslocamento [do discurso] não é estável, nem constante, nem absoluto. ” (p. 21-22) - “(...) no que se chama globalmente um comentário, o desnível entre texto primeiro e texto segundo desempenha dois papéis que são solidários. Por um lado permite construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro pairar acima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso funda uma possibilidade aberta de falar. Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. (...). O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permita-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. ” (p. 23-24) - “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta. (...) outro princípio de rarefação de um discurso (...). Trata-se do autor. O autor, não entendido, é claro como princípio de argumento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência. Esse princípio não voga em toda a parte nem de modo constante: existem, ao nosso redor, muitos discursos que circulam, sem receber seu sentido [são as] (...) conversas cotidianas que precisam de signatários, mas não de autor, receitas técnicas transmitidas no anonimato. ” (p. 25) - “O autor é aquele que dá à inquietante linguagem de ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real. ” (p. 26) - “(...) o indivíduo que se põe a escrever um texto no horizonte do qual paira uma obra possível retoma por sua conta a função do autor: aquilo que ele escreve e o que não escreve, aquilo que desenha, mesmo a título de rascunho provisório, como esboço da obra (...). Todo este jogo de diferenças é prescrito pela função do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como ele, por sua vez a modifica. ” (p. 27) - “O comentário limita o acaso ao discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu. Seria preciso reconhecer também no que se denomina, não nas ciências, mas as ‘disciplinas’, outro princípio de limitação (...) relativo e móvel. Princípio que permite construir, mas conforme um jogo restrito. A organização das disciplinas se opõe tanto ao princípio do comentário como ao do autor. Ao do autor, visto que uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras (...) isto constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligadosa quem sucedeu ser seu inventor. ” (p. 28-29) - “(...) em uma disciplina, diferentemente do comentário, o que é suposto no ponto de partida, não é um sentido que precisa ser redescoberto, nem uma identidade que deve ser repetida; é aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados. Para que haja disciplina é preciso, (...) que haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições novas. (...) uma disciplina não é a soma de tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito (...). A medicina não é constituída de tudo o que se pode dizer de verdadeiro sobre a doença (...). ” (p. 29) - “(...) duas razões: primeiro, a medicina, como qualquer outra disciplina, [é feita] tanto de erros como de verdades, erros que não são resíduos ou corpos estranhos, mas que tem funções positivas, uma eficácia histórica, um papel muitas vezes indissociável daquele das verdades. Mas, além disso, para que uma proposição pertença (...) à patologia, é preciso que ela responda a condições, em um sentido mais estritas e mais complexas, do que a pura e simples verdade: em todo caso, a condições diferentes. Ela precisa dirigir-se a um plano de objetos determinado (...). (...) sem pertencer a uma disciplina, uma proposição deve utilizar instrumentos conceituais ou técnicas de um tipo bem definido. ” (p. 30) - “Há mais ainda: para pertencer a uma disciplina uma proposição deve poder inscrever-se em um certo horizonte teórico (...). ” (p. 31) - “(...) uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser proclamada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se (...) ‘no verdadeiro’. ” (p. 32) - “Mendel dizia a verdade, mas não estava ‘no verdadeiro’ do discurso de sua época: não era segundo tais regras que se constituíam objetos e conceitos biológicos; foi preciso toda uma mudança de escala, o desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologia para que Mendel entrasse ‘no verdadeiro’. ” (p. 33) - “ A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras.” (p. 34) - “Creio que existe um terceiro grupo de procedimentos que permitam o controle dos discursos. (...) trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta vez dos sujeitos que falam, ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início qualificado para fazê-lo. ” (p. 35) - “A troca e comunicação são figuras positivas que atuam no interior de sistemas complexos de restrição; e sem dúvida não poderiam funcionar sem estes. A forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é constituída pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (...) define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que deve acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção. (...). [Há também] as ‘sociedades do discurso’, cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-lo circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas. ” (p. 36-37) - “É certo que não mais existem tais ‘sociedades do discurso’, com esse jogo ambíguo de segredo e de divulgação. Mas que ninguém se deixe enganar; mesmo na ordem do discurso verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado e livre de qualquer ritual, se exercem ainda formas de apropriação de segredo e de não permutabilidade. ” (p. 38) - “(...) existem muitas outras [sociedades] que funcionam de outra maneira, conforme outro regime de exclusividade e de divulgação: lembraremos o segredo técnico-científico, as formas de difusão e de circulação do discurso médico, os que se apropriam do discurso econômico ou político. ” (p. 39) - “À primeira vista, as ‘doutrinas’ (religiosas, políticas, filosóficas) constituem o inverso de uma ‘sociedade de discurso’: nesta o número dos indivíduos que falam mesmo se não fosse fixado, tendia a ser limitado (...). A doutrina, ao contrário, tende a difundir-se; e é pela partilha de um só e mesmo conjunto de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto se queiram imaginar, definem sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de certa regra – mais ou menos flexível – de conformidade com os discursos validados (...). (...) a pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito que fala, e um através do outro. Questiona o sujeito que fala através e a partir de um enunciado, como provam os mecanismos de rejeição que entram em jogo quando um sujeito que fala formula um ou vários enunciados inassimiláveis (...). (...) inversamente, a doutrina questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na medida em que a doutrina vale sempre como sinal, a manifestação e o instrumento de uma pertença prévia (...). ” (p. 40) - “A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, consequentemente, todos os outros; mas ela se serve em contrapartida, de certos tipos de enunciação para ligar os indivíduos entre si e diferencia-los, por isso mesmo, de todos os outros. ” (p. 41) - “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. ” (p. 41) - “Bem sei que é muito abstrato separar, como acabo de fazer, os rituais da palavra, as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais. A maior parte do tempo, eles se ligam uns aos outros e constituem espécies de grandes edifícios que garantem a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos. ” (p. 42) - “(...) o pensamento ocidental tomou cuidado para que o discurso ocupasse o menor lugar possível entre o pensamento e a palavra (...). ” (p. 43) - “O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si. (...) o discurso nada mais é do que um jogo, de escritura, (...) de leitura (...) e de troca, essa leitura e essa escritura não jamais põem em jogo senão signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, colocando-a na ordem do significante. ” (p. 46-47) - “(...) princípio de inversão: (...) segundo a tradição, cremos reconhecer a fonte dos discursos, o princípio de sua expansão e de sua continuidade, nessas figuras que parecem desempenhar um papel positivo como a do autor (...) é preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso. (...) princípio de descontinuidade: o fato de haver sistemas de rarefação não quer dizer que por baixo deles e para além deles reine um grande discurso ilimitado, contínuo e silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado e que nós tivéssemos por missão descobrir restituindo-lhe, enfim, a palavra. ” (p. 49) - “Os discursos devem ser tratados como práticasdescontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem. (...) princípio de especificidade: não transformar o discurso em um jogo de significações prévias; não imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que teríamos de decifrar apenas (...). Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade. (...) exterioridade: não passar do discurso para o seu núcleo interior e escondido, para o âmago de um pensamento ou de uma significação que se manifestassem nele; mas, a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras. ” (p. 50-51) - “(...) (significação, originalidade, unidade, criação) de modo geral dominaram a história tradicional das ideias onde, de comum acordo, a unidade de uma obra, de uma época ou de um tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indefinido das significações ocultas. ” (p. 51) - “(...) o tênue deslocamento que se propõe pratica na história das ideias e que consiste em tratar, não das representações que pode haver por trás dos discursos, mas dos discursos como series regulares e distintas de acontecimentos, este tênue deslocamento, temo reconhecer nele como uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso, o descontínuo e a materialidade. Tríplice perigo que certa forma de história procura conjurar narrando o desenrolar contínuo de uma necessidade ideal. Três noções que deveriam permitir ligar à prática dos historiadores a história dos sistemas de pensamento. Três direções que o trabalho de elaboração teórica deverá seguir. ” (p. 56) - (...) o conjunto ‘crítico’ que põe em prática o princípio da inversão: procurar cercar as formas da exclusão, da limitação, da apropriação (...); mostrar como se formaram, para responder a que necessidades, como se modificaram e se deslocaram, que força exerceram efetivamente, em que medida foram contornadas. (...) o conjunto ‘genealógico’ que põe em prática os outros três princípios: como se formaram através, apesar, ou com o apoio desses sistemas de coerção, séries de discursos; qual foi a norma específica de cada uma e quais foram suas condições de aparição, de crescimento, de variação. ” (p. 57) - (...) toda a tarefa crítica, pondo em questão as instâncias de controle, deve analisar ao mesmo tempo as regularidades discursivas através das quais elas se formam; e toda descrição genealógica deve levar em conta os limites que interferem nas formações reais. Entre o empreendimento crítico e o empreendimento genealógico, a diferença não é tanto de objeto ou de domínio mas, sim, de ponto de ataque, de perspectiva e de delimitação. (p. 62-63) - “(...) as descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar-se, apoiar-se umas nas outras e se completarem. A parte crítica da análise liga-se aos sistemas de recobrimento do discurso; procura detectar, destacar esses princípios de ordenamento, de exclusão, de rarefação do discurso (...). A parte genealógica da análise se detém, em contrapartida, nas series da formação efetiva do discurso: procura apreende-lo em seu poder de afirmação e, por aí entendendo não um poder de constituir domínios de objetos, a propósito dos quais se poderia afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas. ” (p. 65)
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