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Ivo José Triches Cláudio Joaquim Rezende Luciano D. da Silva Natalina Triches Wanderley Machado Fundamentos Filosóficos da Educação Fundamentos Filosóficos da Educação Fu nd am en to s Fi lo só fic os d a Ed uc aç ão 9 7 8 8 5 7 6 3 8 1 6 6 2 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-7638-166-4 Fundamentos Filosóficos da Educação Autores Ivo José Triches Cláudio Joaquim Rezende Luciano D. da Silva Natalina Triches Wanderley Machado 2009 Sumário Convite à Filosofia ...............................................................................................................5 Etimologia da palavra Filosofia ...............................................................................................................5 A atitude filosófica ...................................................................................................................................5 Para que Filosofia? ...................................................................................................................................6 A Filosofia e o senso comum ...................................................................................................................7 Filosofia: nem dogmatismo nem ceticismo .............................................................................................8 O contexto de Sócrates e o nascimento da moral ocidental .................................................9 Visão panorâmica da História da Filosofia ..............................................................................................9 O apogeu da Filosofia grega ....................................................................................................................10 Platão e o nascimento da razão ocidental ............................................................................13 Aspectos da vida e obra de Platão ...........................................................................................................13 A influência de sua obra no processo ensino-aprendizagem ...................................................................14 Aristóteles e a Filosofia como totalidade dos saberes ..........................................................17 Aspectos gerais da vida e obra de Aristóteles ..........................................................................................17 Somente o individual é real .....................................................................................................................18 A importância da lógica formal ...............................................................................................................19 Teoria das Quatro Causas ........................................................................................................................19 Visão do homem, da ética e da política ...................................................................................................20 De Aristóteles à Renascença ................................................................................................25 O Período Helenístico ..............................................................................................................................25 A Filosofia na Idade Média ......................................................................................................................26 O Renascimento cultural ..........................................................................................................................27 O pensamento de Baruch Espinoza ......................................................................................29 Aspectos gerais de sua vida – a diáspora .................................................................................................29 Os conflitos na comunidade .....................................................................................................................29 A sua Filosofia .........................................................................................................................................30 Racionalismo absoluto .............................................................................................................................31 A virtude da alma é pensar .......................................................................................................................32 A Ética da alegria e da liberdade .............................................................................................................33 Direito Natural e estado de natureza ........................................................................................................33 O Iluminismo e o Século das Luzes .....................................................................................35 A relação do Iluminismo com os outros dois grandes acontecimentos do século XVIII ........................35 Os iluministas como ideólogos da burguesia ...........................................................................................36 Os principais representantes ....................................................................................................................37 As consequências do Iluminismo ............................................................................................................37 A presença do pensamento iluminista em nossa realidade ......................................................................38 Immanuel Kant e o idealismo alemão ..................................................................................39 Aspectos gerais de sua vida .....................................................................................................................39 O racionalismo e o empirismo do século XVII .......................................................................................40 A revolução copernicana proposta por Kant ............................................................................................41 A ética kantiana ........................................................................................................................................44 Contribuição de Kant na Educação ..........................................................................................................44 A dialética idealista e materialista de Hegel e Marx ............................................................47 Breve histórico .........................................................................................................................................47 Dialética idealista .....................................................................................................................................49 A lógica tradicional e a dialética idealista ...............................................................................................50 O movimento dialético idealista ..............................................................................................................50 A dialética materialista ............................................................................................................................51 O movimento dialético materialista .........................................................................................................53 Schopenhauer: o mundo como representação ......................................................................55 Aspectos gerais de sua vida .....................................................................................................................55 Sua relação com Hegel ............................................................................................................................55 “O mundo é representação minha” ..........................................................................................................56 O mundo como vontade...........................................................................................................................56 Contribuição de Schopenhauer para a Educação .....................................................................................57 O positivismo e o desenvolvimento da ciência ....................................................................59 Lineamentos gerais ..................................................................................................................................59 Auguste Comte e a Lei dos Três Estados .................................................................................................61 Nietzsche e o fortalecimento do sujeito (1844-1900) ..........................................................63 Aspectos gerais de sua vida .....................................................................................................................63 O desmistificador dos falsos valores ........................................................................................................64 O predomínio do “espírito apolíneo” .......................................................................................................64 O projeto filosófico de Nietzsche educador .............................................................................................65 A Escola de Frankfurt ..........................................................................................................67 Um pouco de sua história ........................................................................................................................67 Em que consistiu a teoria crítica? ............................................................................................................67 Duas correntes filosóficas: o pragmatismo e o existencialismo ..............................................71 O pragmatismo .........................................................................................................................................71 O existencialismo de Jean-Paul Sartre .....................................................................................................72 Filosofia e Educação ............................................................................................................75 A Filosofia da Educação ..........................................................................................................................75 O ato de educar ........................................................................................................................................76 Ética e Educação ..................................................................................................................79 Conceito de valor .....................................................................................................................................79 A diferença entre Ética, Moral e Moralismo ...........................................................................................80 Ética, Educação e algumas características da pós-modernidade .............................................................81 Filosofia e a formação humana na escola ............................................................................85 As três dimensões da existência humana .................................................................................................85 Conceito de interseção .............................................................................................................................86 A crise da modernidade e a questão da Educação ...................................................................................86 O processo do filosofar na Educação Infantil ......................................................................89 Por que Filosofia para crianças? ..............................................................................................................89 Algumas sugestões metodológicas ..........................................................................................................90 Referências ...........................................................................................................................93 Convite à Filosofia Ivo José Triches1 Cláudio Joaquim Rezende2 A verdadeira Filosofia é reaprender a ver o mundo. Merleau-Ponty Não se pode aprender a Filosofia; somente se pode aprender a filosofar. Kant Etimologia da palavra Filosofia Q uando olhamos para a Filosofia, considerando a natureza do seu objeto de estudo, podemos perceber a importância de estudarmos a etimologia de cada novo conceito por nós investigado. Se procedermos dessa ma- neira, perceberemos que a capacidade de reflexão acerca de um dado fenômeno tornar-se-á mais fecunda. Podemos perceber que o conceito de Filosofia, quando olhado sob seu viés etimológico, pode ser assim compreendido: Phylos = amigo, amor Sophya = sabedoria Daí: “amor à sabedoria.” Esse termo foi inicialmente elaborado por Pitágoras (séc. VI a.C.) e designa a procura amorosa pela verdade, pelo conhecimento. É nesse sentido que Aristó- teles define a Filosofia como a “ ciência da verdade.”3 Por isso, aquele que desejar ter uma postura filosófica frente ao mundo pre- cisa, inicialmente, buscar o conhecimento como um ato de prazer, ou seja, como o amante que procura seu par pelo mais puro desejo de estar com o mesmo. A atitude filosófica Em que consiste uma atitude filosófica? Quando, de fato, estão os envolvi- dos no processo do filosofar? O que há de fundamental na atitude filosófica é a sua capacidade de indagar. Perguntar o que a coisa é; perguntar como a coisa é, e, ainda, perguntar por que a coisa é assim4 são questões que fazem parte da atitude de alguém que quer colocar-se numa postura filosófica frente ao mundo. Foi considerando acima a ideia de que a Filosofia é um conhecimento ins- tituinte, à medida que questiona o saber instituído. O saber instituído pode ser 1Mestre em Engenharia de Produção pela Uni- versidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialis- ta em Filosofia Política pela Universidade federal do Pa- raná (UFPR). Graduado em Filosofia pela Pontifícia Uni- versidade Católica do Paraná (PUCPR). 2Cláudio Joaquim Rezen-de. Professor na Facul- dade Bagozzi Ctba. Direito de pesquisa do Centro de pós-Graduação da Faculdade Bagozzi Curitiba 3Esta afirmação está inse-rida no contexto da elabo- ração no verbete Filosofia no Dicionário de Filosofia de Ja- cqueline Russ. Uma obra que recomendamos como leitura de apoio para aqueles que de- sejam aprofundar-se no tema em questão. Na sua obra Me- tafísica, Aris tóteles afirmou: “É [...] a justo título que se chame a Filosofia como a ci- ência da verdade.” 4Quando perguntamos o que a coisa é, estamos fa- lando de qualquer coisa. Lem- brar-se sempre de que não há nada sobre o que a Filosofia não possa debruçar-se. Fundamentos Filosóficos da Educação 6 compreendido como o saber já posto, como tudo aquilo que se afirma num de- terminado momento, no mundo da cultura. Nesse processo de indagação acerca desse saber institucionalizado, o homem vai dando um novo significado ao mundo e à sua própria existência. Outro aspecto é que o conteúdo da reflexão filosófica, o tecido do seu pen- sar, é a trama dos acontecimentos do cotidiano. É por isso que nesse processo de indagação estão presentes os temas mais diversos, que nos causam preocupação. Buscamos conhecê-los para podermos viver melhor. Nesse sentido, a Filosofia caracteriza-se por ser uma busca incessante do sentido último das coisas, um saber universal acerca das questões fundamentais. Tem como finalidade compreender o significado da existência humana em seus diferentes aspectos, bem como as relações entre o homem, Deus e o mundo. (SOUZA, 1995, p. 64) Na atitudefilosófica, está implícito o pressuposto de que não podemos acei- tar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valo- res em geral, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais devemos aceitá-los sem, antes, havê-los investigado e compreendido. Por ser seu papel questionador, o filósofo acaba confrontando-se com o po- der. Toda vez que algum detentor de poder5 deseja fazer com que uma determina- da situação permaneça inalterada – uma vez que dela obtém privilégios – ele não aceita a possibilidade de mudanças. É por esta razão que os filósofos são odiados em tempos de ditaduras. Por fim, mas não por último, indicamos as três principais questões que cer- tamente ajudarão a situarmo-nos no “clima da Filosofia”: por que pensamos o que pensamos? Por que dizemos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos? Com base nessas questões, poderíamos refletir sobre a Educação Infantil: por que tenho essas ideias acerca das crianças? Será que não há outra maneira de ver o processo de constituição da infância? Por que falo dessa maneira sobre ou com nossas crianças? Existe outra maneira de falar sobre ou com as crianças com as quais trabalho ou pretendo trabalhar? Por que me comporto dessa maneira em relação ao que as crianças fazem? Será que não há outra maneira de comportar-me em face ao comportamento das crianças? Essas questões, uma vez refletidas, cer- tamente vão nos ajudar a compreendermos melhor o que desejamos fazer, quando estamos envolvidos nesse trabalho. Para que Filosofia? A Filosofia é um dos únicos, senão o único, conhecimento questionado. Como bem lembrou Marilena Chauí6 (1994, p. 17), é muito raro alguém perguntar: para que Medicina? Para que a Pedagogia? A Física é realmente importante? No entan- to, a indagação “para que Filosofia?” é muito comum. Como vivemos numa cultu- ra que somente valoriza o que tem alguma finalidade prática e de utilidade imediata, o conhecimento filosófico parece supérfluo e é colocado sob suspeita. Contudo, quando não nos contentamos apenas com o que é imediatamente útil e desejamos formar uma visão abrangente daquilo que aparece de modo fragmentado 5Os políticos profissionais no Brasil, de modo geral, são especialistas nisso. 6A bibliografia dessa au-tora, Convite à Filosofia (Editora Ática), torna-se uma leitura complementar necessária para aqueles que desejam saber mais sobre a importância da Filosofia em nossa existência. Convite à Filosofia 7 em nossa experiência cotidiana, então, necessitamos da Filosofia. Retomando a reflexão de Marilena Chauí, é possível elencar uma série de argumentos que evi- denciam a razão de ser da Filosofia. A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos cien- tíficos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religio- sas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é Sociologia nem Psicologia, mas a inter- pretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas a interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as for- mas do poder. Não é História, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do co- nhecimento da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a Filosofia sabe que está na História e que tem uma história. (CHAUÍ, 1994, p. 17) É por tudo isso que a Filosofia somente se realiza pela reflexão. Diante do processo de reflexão, o homem percebe-se como um ser de transcendência. E o que significa essa possibilidade transcendente? Enfim, a transcendência é mesmo possível? Estamos convencidos de que sim. O homem está sempre diante da necessidade do possível, ou seja, cotidia- namente precisamos fazer escolhas. No ato de escolher, está implícita a existência da liberdade. Portanto, ao perceber-se como um ser livre, o homem passa também a entender que pode mudar as condições materiais em que está inserido, se assim desejar. Ao fazer isso, ele altera não apenas as suas relações com a natureza, mas também a sua própria relação com os demais atores sociais. Desse modo, a transcendência significa que podemos historicamente alterar as condições em que fomos formados. Ao termos consciência de que podemos mudar tais condições, perceberemos que dias melhores virão, se assim desejarmos. É por esta razão que se justifica, mais uma vez, a importância da Filosofia em nosso cotidiano como educadores: ela impede a estagnação e dá sentido à experiência. Por exemplo: será que eu, diante do meu fazer pedagógico, posso contribuir para que a transcendência possa ocorrer com meu aluno? Será que eu posso contribuir para que as crianças cresçam de forma autônoma? A Filosofia e o senso comum Quando nos referimos ao conceito “senso comum”, estamos referindo-nos ao conhecimento fragmentado da realidade. Mas o que significa termos um co- nhecimento fragmentado da realidade? Platão definia esse tipo de conhecimento como doxa (opinião). Assim, o conhecimento no âmbito do senso comum pode ser compreendido como um conhecimento que se manifesta apenas em forma das opiniões que temos sobre as questões do nosso cotidiano. Em outras palavras: emi- timos parecer sobre tudo o que nos cerca, no entanto, nessas opiniões, falta-nos uma visão da totalidade. Não conseguimos perceber que tudo se encontra ligado, ou seja, para que possamos ter uma visão da totalidade de um fenômeno, torna-se necessário compreendermos os fenômenos na relação que eles têm entre si. Fundamentos Filosóficos da Educação 8 Quando abordamos a diferença entre o conhecimento filosófico e o senso co- mum, procuramos fazer tal distinção à luz do pensamento de Platão. Muito embora ele tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realidade, destacamos os dois principais: a doxa e a episteme. Um ator social que vive no âmbito da doxa é alguém que localiza sua existência apenas no senso comum. Pensar os problemas a partir da episteme (ciência) é pensá-los à luz da Filosofia. Essa expressão designa a capacidade de olharmos para os fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão somente é sistemática se for rigorosa, radical e de conjunto. Para explicitar a importância desses conceitos dentro do processo do filosofar, valemo-nos do comentário realizado por Maria Lúcia de Arruda Aranha7: A Filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix, radicis significa literalmente “raiz” e, no sentido derivado, “fundamento”, “base”. Portanto, a Filosofia é radical enquanto explica os fundamentos do pensar e do agir. A Filosofia é rigorosa porque, enquanto a Filosofia de vida não leva suas conclusões até as últimas consequências, o filósofo especialista dispõe de um método claramente expli- citado, que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambiguidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem, o filósofo inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais. A Filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto porque é globalizante, examina os pro- blemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam “recortes” da realidade, a Filosofia, além de poder examinar tudo (porque nada escapa ao seu interesse), também visa o todo, a totalidade. (ARANHA, 2002, p. 107). Desse modo, ousamos afirmar que toda forma de analfabetismo contribuipara que o homem permaneça no senso comum, e fique sujeito a toda forma de alienação. Razão pela qual o processo do filosofar torna-se relevante para o fazer pedagógico. Alfabeti- zar pode significar a superação do senso comum, rumo a uma postura crítica. Filosofia: nem dogmatismo nem ceticismo Novamente, aqui, torna-se relevante o estudo da etimologia desses conceitos. Skeptikós significa aquele “que observa”, “que considera”. Desse modo, o cético tan- to observa e tanto considera, que conclui pela impossibilidade do conhecimento. Ao passo que dogmatikós significa aquele “que se funda em princípios”. As- sim, dogmático é todo aquele que se apega à certeza de uma doutrina. Em que consiste um dogma? Dogma pode ser compreendido como sendo o princípio funda- mental e indiscutível de uma determinada doutrina ou teoria. É interessante obser- var que, quando nos referimos a esse conceito, não estamos referindo-nos apenas ao campo das religiões. Toda vez que alguém deseja explicar algo, fazendo-o parte do pressuposto de que sua explicação é “a verdade”, faz isso com base num dogma. Por esta razão, tanto o cético quanto o dogmático acabam produzindo uma visão imobilista do mundo. A Filosofia, ao contrário, é movimento, pois o mundo é movi- mento. Se queremos ter uma postura filosófica frente ao mundo, devemos partir do princípio que nós mesmos estamos sujeitos a mudar nossa visão acerca das coisas. “A Filosofia é a procura da verdade, não a sua posse” (ARANHA, 1988, p. 51). 7Recomendamos como lei- tura complementar os li- vros dessa autora. Entre eles, Filosofando e Filosofia da Educação. Ambos da Editora Moderna. O contexto de Sócrates e o nascimento da moral ocidental Ivo José Triches Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor. Pergunta, não responde. Indaga, não ensina. Marilena Chauí Visão panorâmica da História da Filosofia G ostaríamos, inicialmente, de enfatizar que, ao nosso entendimento, exis-tem duas concepções didáticas básicas no momento em que vamos estu-dar um determinado assunto. Alguns professores, ou instituições, preferem fazer um determinado recorte temático e aprofundá-lo ao máximo. Por exemplo: ao decidirmos estudar a História da Filosofia, escolhemos um determinado pensador da Filosofia antiga (no caso em questão) e o estudamos à exaustão. Conheceremos muito do autor escolhido, mas deixamos de olhar para os demais pensadores desse período. No entanto, em uma outra concepção – da qual somos partidários – em vez de aprofundar-se num determinado autor, prefere-se apresentar uma visão pano- râmica do assunto, deixando o aprofundamento por conta dos interessados. Por analogia1, quando desejar conhecer uma determinada cidade, posso inicialmente pegar uma aeronave e sobrevoá-la. Assim, terei uma visão geral (panorâmica) da cidade que escolhi conhecer. Depois, descerei dessa aeronave e poderei percorrer as ruas. Ao fazer isso, a cada dia que passa, verei que meus conhecimentos sobre a mesma serão cada vez maiores. Tanto na forma de apresentarmos esses textos de apoio às aulas, como na própria forma em que as aulas foram construídas, partimos desse pressuposto, qual seja: de que primeiro necessitamos ter uma visão panorâmica sobre o assunto escolhido. Depois, poderemos aprofundá-lo ao longo dos nossos dias. Assim, como temos o objetivo de mostrar os principais acontecimentos que possibilitaram o surgimento do pensamento socrático e sua influência sobre a mo- ral ocidental, buscamos apresentar uma visão panorâmica do pensamento grego, para que o tema possa ser mais bem compreendido. O pensamento filosófico grego pode ser compreendido em três períodos: perío- do pré-socrático ou cosmológico, que nasce com Tales de Mileto2 e vai até Sócrates3; o período antropológico4 ou socrático, que vai de Sócrates até Aristóteles; por fim, 1Analogia em Filosofia um raciocínio por semelhan- ça. Consiste em apresentar- mos uma determinada ideia não na forma literal, mas nos utilizando de algo como com- paração. É um bom recurso didático para ser utilizado no processo ensino-aprendiza- gem, seja na Educação Básica ou na Educação Superior. 2Tales de Mileto é consi-derado o primeiro filóso- fo grego. Pelo próprio enten- dimento da razão, procurou encontrar uma explicação sobre a origem de todas as coisas, que, segundo ele, era a água. 3Esse período se situa his-toricamente entre o final do séc. VII ao séc. V a.C. 4A etimologia desse con-ceito indica o objeto de investigação desse período, ou seja, em grego, antropos quer dizer homem. Fundamentos Filosóficos da Educação 10 tivemos o período helenístico-romano, que vai dos grandes sistemas cosmopoli- tas5 – do século IV a.C. – até o final do Império Romano do Ocidente. O apogeu da Filosofia grega O século V a.C., na Grécia, foi marcado por uma época na qual uma série de acontecimentos contribuíram para fazer com que esse período marcasse toda a História Ocidental. O conceito de democracia – para citar um entre tantos – tão difundido em nossos dias, tem sua origem nessa época. No campo da Filosofia, as coisas também não são diferentes. Seu apogeu no mundo grego está relacionado a esse período. Os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles são expressões disso. Nes- te texto, abordaremos algumas ideias relacionadas ao pensamento de Sócrates. Com os sofistas e Sócrates, a Filosofia mudou o eixo de suas investigações. A preocupação com os fenômenos da natureza6, que esteve presente nos filósofos anteriores, começa a ser deixada de lado. Agora, a Filosofia volta-se para o próprio homem. Começa-se a refletir sobre o mundo e a cultura. O objeto da Filosofia, a partir desse instante, passa a ser o próprio homem. Alguns aspectos relacionados à vida de Sócrates Sobre Sócrates, o que sabemos é que ele [...] nasceu em Atenas em 470/469 a.C. e morreu em 399 a.C., em virtude de uma condena- ção por “impiedade” (foi acusado de não crer nos deuses da cidade e corromper os jovens; mas, por detrás das acusações, escondiam-se ressentimentos de vários tipos e manobras políticas). Era filho de um escultor e uma obstetriz (parteira). Não fundou uma escola, como os outros filósofos, realizando o seu ensinamento em locais públicos (nos ginásios, nas praças públicas, etc) como uma espécie de pregador leigo, exercendo um imenso fas- cínio não somente sobre os jovens, mas também sobre os homens de todas as idades, o que lhe custou inúmeras aversões e inimizades. (REALE e ANTISERI, 1990, p. 85) Outro aspecto relevante da vida de Sócrates é que, muito embora ele seja um dos pensadores gregos mais conhecidos, nunca escreveu nada. O que sabe- mos sobre sua vida chegou a nós principalmente por Platão e Xenofonte. Esses foram seus discípulos mais ilustres. Em relação a esse aspecto, Reale e Antiseri (1990, p.861) comentam que Platão tinha tamanha consideração por Sócrates que na maior parte dos seus diálogos, Platão idealiza Sócrates e o faz porta-voz também de suas próprias doutrinas: desse modo, é dificílimo estabelecer o que é efetivamente de Sócrates nesses textos e o que, ao contrário, representa pensamentos e reelaborações de Platão. (1990, p. 86) Algumas ideias de Sócrates que marcaram a formação da nossa moral ocidental Inicialmente, gostaríamos de destacar um fato relevante na vida de Sócra- tes que contribuiu em nossa formação ao longo desses anos e que, certamente, 5Os principais movi-mentos dessa época: o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo. 6Os pré-socráticos são também chamados de filósofos da na tureza porque sua preocupação consistia na tentativa de explicar racio- nalmente a origem e a causa dos fenômenos naturais de sua época. São vários. Para citar alguns: Tales de Mileto, Anaxágoras, Anaxímenes, Anaximandro, Parmênides, Heráclito, Demócrito, entre outros.O contexto de Sócrates e o nascimento da moral ocidental 11 contribuirá em sua formação. Ousamos afirmar que contribuirá também no seu fazer pedagógico, quando estiver trabalhando com seus alunos. Que fato foi esse? Quando Sócrates foi acusado de corromper a juventude por conta de suas ideias e questionado se de fato havia falado tais coisas para os jovens, ele não hesitou e disse que “sim”. Foi condenado a beber cicuta7. Os discípulos elabo- raram um plano de fuga para ele. No entanto, ele não aceitou. Disse que não abriria mão de seus princípios. Bebeu o veneno e morreu. A grande lição: a verdadeira força vem de não mentirmos, mesmo que sejamos prejudicados se contarmos a verdade. Essa se constitui em um valor que perpassa gerações. A ho- nestidade é um dos valores éticos de maior importância nas relações interpessoais e temos a demonstração empírica que nos foi deixada por Sócrates.8 Outro aspecto que ele salientava era de que o homem devia preocupar-se com aquilo que é mais sagrado para si. Qual seja: o conhecimento de si mesmo. Daí sua máxima: gnothi seauton – conhece-te a ti mesmo. O aludido preceito socrático pretende mais do que orientar o indivíduo ao simples conhe- cimento de si próprio. Seu alcance é maior: é um convite, conforme viu um estudioso da Filosofia, ao aprofundamento da condição humana, do qual, acrescenta constantemente, nos desviamos quando levados pelo conhecimento enciclopédico sobre a natureza das coisas. (PENHA, 1994, p. 33) Partindo desse pressuposto, Sócrates constrói uma ética racionalista, na qual a virtude passa a ter um papel fundamental. Mas, no que consiste a virtude? Antes de mais nada, ela se identifica com o conhecimento. Os gregos chamavam- na areté, “significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 88). Desse modo, ele nos diz que a causa do mal é a ignorância. Se conhecêssemos o bem, não praticaríamos o mal. Por essa razão, o conhecimento de si mesmo é condição suficiente e necessária para a obtenção da areté. Assim, o autodomínio9 e a liberdade são as bases para atingir-se a virtude. Para ele, o homem é o artífice da sua própria felicidade ou infelicidade. Mas, afinal, o que é o homem, para ele? “O homem é sua alma, enquanto é perfeitamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. E, por ‘alma’, Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 87). Por isso afirmamos que a essência do homem – segundo Sócrates – é sua psyché. Outra ideia relevante que encontraremos no pensamento socrático é a noção de humildade. Sua máxima tão conhecida entre nós, “sei que nada sei”, ilustra bem isso. Quando era elogiado por seus discípulos, ele fazia tal afirmação. Para demonstrar que esse era um valor incorporado em sua prática cotidiana, Sócrates construía suas afirmações a partir de uma relação dialógica com seus interlocuto- res. Esses recursos didáticos, como a refutação, a ironia e a maiêutica, utilizados por muitos de nós, professores, têm sua gênese com Sócrates. Sua mãe era parteira. Ele, por analogia, dizia-se parteiro das ideias. Assim dizia: A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulheres, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande superioridade de minha arte consiste [...] na faculdade 7Cicuta: Gênero de plantas umbelíferas, venenosas, de tamanhos diversos, que crescem em pântanos e mon- tanhas, das quais se extrai o veneno. (Fonte: Dicionário Aurélio). 8Essa é a grande discus-são que temos com os políticos, que, de modo geral, acusamos de não falarem a verdade em seus discursos e em suas ações. 9Hoje dá-se muita im-portância ao conceito de inteligência emocional como sendo um conceito contempo- râneo. Mas, no que consiste a inteligência emocional? Con- siste na capacidade de tomar- mos uma decisão fria, racio- nal em momentos de intensa emoção. Esse conceito pode ser melhor compreendido se entendermos bem o que Só- crates nos diz sobre o autodo- mínio. De fato, quantas vezes tomamos decisões baseadas em nossas emoções e depois nos arrependemos, dizen- do que foi um mal. Por isso, pensamos que Sócrates tinha razão quando enfa tizava que decisões tomadas com base na razão podem ajudar-nos a vivermos melhor. Fundamentos Filosóficos da Educação 12 de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera ou faculdade ou fruto legítimo e verdadeiro. (apud PENHA, 1994, p. 35) Em sua etimologia, o conceito ironia tem sentido bem diferente desse uti- lizado em nosso cotidiano. Quando dizemos que alguém está sendo irônico co- nosco, de modo geral, estamos querendo dizer que tal pessoa está com uma cara de “deboche”, que está fazendo “pouco caso” da gente e assim por diante. Desse modo, essa palavra tem um sentido pejorativo. Contudo, na sua origem, ironia significa “a arte de interrogar”. Quando Sócrates utilizava tal recurso, tinha por objetivo mostrar àquele com quem dialogava que o mesmo, na verdade, ignorava o que julgava conhecer. Desejava persuadi-lo, por meio desse processo de indaga- ções, fazendo com que seu antagonista pudesse perceber sua própria ignorância diante de tantas indagações às quais está submetidos cotidianamente. Por meio dessas indagações, ele refutava as “verdades trazidas por seus interlocutores”. Existe ainda uma outra coisa importante que gostaríamos de salientar quan- do olhamos para a história de Sócrates. Sua postura como filósofo mostrou-nos que a Filosofia não é uma forma de conhecimento hermético, fechado, algo para poucos. Ele interpelava os transeuntes, aqueles que passavam pela praça. Discutia os temas do cotidiano com as pessoas. Refletia, por exemplo, sobre a liberdade, o amor, a amizade, a verdade etc. Marilena Chauí – comentando a morte de Sócrates – diz que o maior erro dos juízes foi não terem ouvido o mais importante ensinamento de Sócrates, isto é, que todos os homens são iguais porque todos são capazes de ciência, todos são do- tados de uma alma racional na qual se encontra a verdade e todos são capazes de virtude. Razão, ciência, verdade e virtude são universais e todos os homens são, por natureza, capazes delas. (CHAUÍ, 1994, p. 155) Abordamos isso para mostrar que todos nós podemos nos dedicar a esse pro- cesso da reflexão filosófica. Nosso juízo de valor vai no sentido de que basta von- tade e dedicação. A Filosofia nasceu como uma tentativa do homem resolver seus problemas. Assim, entendemos que ela continua tendo um papel importante em nossa vida, à medida que nos ajuda a dar sentido à nossa existência. Para aqueles que desejarem ir além da visão panorâmica, sugerimos a leitura dos autores Reale e Antiseri. São três volumes sobre a História da Filosofia, escritos numa linguagem acessí- vel e já traduzidos para o português. Platão e o nascimento da razão ocidental Ivo José Triches Quem é capaz de ver o mundo é filósofo, quem não é capaz, não o é. Platão Aspectos da vida e obra de Platão S eu nome, na verdade, era Aristócles. Ele nasceu em 428/427 a.C. e morreu em 347. Viveu, portanto, 80 anos. Platão era seu apelido, que estava asso-ciado às suas características físicas. Platos, em grego, significa “amplitude”, “largueza”, “extensão”. Como tinha a cabeça grande e um físico avantajado aos homens da época, recebeu esse apelido. Ocorre que existe um dado biográfico absolutamente essencial e que, por isso, torna-se necessário destacar, uma vez que acabou influenciando seu pensamento. Trata-se de sua origem social. Era filho da aristocraciaateniense. Seu pai orgulhava-se ao contar que, entre seus parentes, figurava o rei Codros. Sua mãe, por sua vez, sempre destacava que um de seus parentes havia sido Sólon1. Desse modo, foi quase natural que Platão visse na vida política o seu próprio ideal. A obra A República atesta isso. Outro fato marcante na vida de Platão foi a morte de Sócrates. Sua decepção com o mundo da política começa, na verdade, um pouco antes, quando dois dos seus parentes mais próximos – Cármides e Crítias – participaram, de forma intensa, de um governo oligárquico2. Considerou que os métodos utilizados nas ações dos go- vernantes dessa época eram facciosos e violentos e foram executados exatamente pe- las pessoas nas quais ele depositava sua confiança. Ocorre que, no momento seguinte, o governo passa a ter um caráter mais democrático, e foi justamente nessa época que Sócrates foi condenado à morte. Daí seu desprezo pela democracia. Ele considerou a morte de Sócrates a maior injustiça de sua época, porque condenaram à morte um homem que, segundo ele, era o maior exemplo de filósofo de todos os tempos. No tocante à sua obra, podemos destacar também a influência de Sócrates. É notório que, na produção de seus escritos, podemos perceber a influência de diversos filósofos pré-socráticos. Alguns com natureza de pensamento bem dife- rentes, como Parmênides e Heráclito, por exemplo. Contudo, nenhuma influência foi tão grande quanto a de Sócrates, do qual foi um dos alunos mais ilustres. É difícil separar-se aquilo que é de Sócrates ou de Platão em seus escritos. Por meio dos textos do segundo é que conhecemos as ideias do primeiro, e é por meio de Socrátes, tornado seu porta-voz, que conhecemos as ideias de Platão. 1Sólon (séc.640-560 a.C.) foi um estadista e poe- ta ateniense. Autor de um código escrito de leis que introduziu grandes reformas no pri meiro quarto do século VI a.C., em Atenas. Essas leis enfraqueceram o poder da aristocracia, que se baseava somente nas características de nascimento. Sólon sub- stituiu as leis draconia nas por um código menos seve ro, que persistiu como a base para as leis clássicas que surgiriam posterior mente. 2Em grego, oligarquia quer dizer governo de poucos. Fundamentos Filosóficos da Educação 14 A influência de sua obra no processo ensino-aprendizagem Como seus escritos são muitos3 e em diferentes áreas, abordaremos aqui apenas alguns pontos que nos poderão auxiliar na compreensão da disciplina. O conceito academia ou conhecimento acadêmico, tão difundido em nossos dias, tem sua origem com Platão. Após uma de suas viagens, que não foi bem- sucedida, Platão regressa a Atenas e, num povoado próximo conhecido como Co- lona, funda sua Academia4. Ele utiliza esse espaço para ensinar Filosofia aos seus discípulos e para construir sua crítica aos sofistas. Por isso, a Academia rivaliza e combate a Escola retórica, de Isócrates, fundada na mesma época. O ideal da educação autônoma5 significa, em primeiro lugar, ensinar o livre espíri- to de pesquisa, o compromisso do pensamento apenas com a verdade; em segundo lugar, estimular a autodeterminação ética e política. Em vez de transmitir doutrinas, a Academia ensina a pensar ou, como lemos no Menon6, “o dever de procurar o que não sabemos”. Em vez de transmitir valores éticos e políticos, a Academia ensina a criá-los, isto é, a propô-los a partir da reflexão e da teoria. Ali estudaram, entre outros, o matemático Eudóxio e o jovem Aristóteles7. Nela prevaleceu o espírito socrático: a discussão oral e o desenvolvimento do vigor intelectual do estudante, sendo menos importante as exposições escritas. (CHAUÍ, 1994, p. 175) Como podemos observar, lendo essa citação, suas ideias ajudam-nos a compre- ender os fins da educação que estão presentes em nossa (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB). Podemos atestar isso, quando lemos o artigo 2.º: A educação, dever do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de soli- dariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Isso para citarmos um entre vários outros. O “exercício da cidadania” pressupõe a autonomia do sujeito, a capa- cidade de criação e de interpretação das leis. Em relação à sua teoria do conhecimento, existe um tema que se torna rele- vante abordarmos, porque sua influência faz-se sentir até hoje. Gostaríamos de con- vidá-lo a fazer uma reflexão em torno dessas questões: imagine que esteja com uma caneta nas mãos. Agora, olhando para ela, você poderia perguntar-se: sou eu que estou dizendo que ela é uma caneta ou é ela, a caneta, que está me dizendo que é uma caneta? Em outras palavras: Quem é que determina o ato do conhecimento? Sou eu, o sujeito, ou é a caneta, o objeto? Para respondermos a essas questões, torna-se necessário compreendermos a diferença entre conceito e realidade. Na verdade, essa é a questão central do platonismo. Na tentativa de responder a esse problema, Platão estabelece a diferença entre o mundo sensível e o mundo inteligível. Diz que um é distinto do outro. Nas palavras de João da Penha (1994, p. 36): As ideias estão separadas das coisas, o mundo inteligível está fora e acima do mundo sensível. A multiplicidade e instabilidade das coisas resultam de uma ilusão dos sentidos. A única realidade objetiva, perfeita, são as ideias, não passando aquilo que vemos de pá- lidas representações daquelas. As coisas são cópias imperfeitas e fugazes de arquétipos de modelos ideais. É no mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste, que habitam as ideias, essência de tudo o que existe e de suas perfeições. 3São trinta e seis ao todo. 4Esse local era um antigo ginásio situado num par- que dedicado ao herói grego Academos. Razão pela qual até hoje usamos esse termo academia como sendo o local da produção da ciência. 5É interessante observar esse aspecto do seu pen- samento. Os PCN, quando li- dos atentamente, atestam que esse ideal de Platão continua válido até hoje. Paulo Freire tem uma obra publicada que se chama Pedagogia da Au- tonomia. 6Menon é o título de um de seus diálogos. 7Esse foi seu maior discí-pulo. Platão e o nascimento da razão ocidental 15 Na obra O Mundo de Sofia8, Jostein Gaarder apresenta-nos um exemplo que sempre gostamos de citar, quando abordamos esse tema, porque, ao nosso entendimento, ele torna mais fácil a compreensão dessa questão. Por fidelidade ao autor, reproduziremos o mesmo: Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos pro- blemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o “exemplar” isolado do cavalo, este sim “flui”, “passa”. Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira “forma do cavalo” é eterna e imutável. (GAARDER, 1995, p. 100) Desse modo, os conceitos ou ideias que temos em nossa malha intelectiva são eternos e imutáveis, por isso necessários9. São as formas ou modelos espiri- tuais a partir dos quais todos os fenômenos10 são formados. Daí a famosa expres- são: “mundo das ideias” de Platão. A realidade é mutável e imperfeita, por isso contingente11. Aquela questão que apresentei acima seria respondida por Platão da seguinte maneira: sou eu quem estou dizendo que ela é uma caneta. E por quê? Porque, para ele, as ideias são inatas. É importante ressaltar, aqui, que isso é assim para Platão. Aristóteles pensa de forma bem diferente. Em relação a essa dicotomia – mundo das ideias e mundo sensível – cabe salientar que isso acabou influenciando toda a teologia cristã, mais tarde, com o neoplatonismo. Como Platão valorizava mais o “mundo das ideias”, em detrimento de tudo o que estava presente no mundosensível, nossa visão sobre a sexualidade, por exemplo, tornou- se pejorativa ao longo desses séculos. Principalmente pelas interpretações da Patrística12. O mito da caverna e sua analogia com a educação Platão retoma alguns aspectos da mitologia grega, enfatizando sua impor- tância na compreensão de nossa existência. Prova disso é que o mito da caverna pode ser considerado a parte mais conhecida da sua obra. Ele afirmava que o lo- gos – a razão – capta o ser, mas não a vida. O mito tem a função de expressão da nossa fé, de nossas crenças. O risco é belo, por isso o mito tem sua importância. Considerando sua relevância para a compreensão de nossa prática pedagó- gica, reproduziremos abaixo a forma como Marilena Chauí (1994, p. 195) apre- senta-nos o mito da caverna: Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada, nem se locomover, forçados a olharem apenas para a parede do fundo, e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior sejam projeta- das como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais, cujas som- bras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna. No pri- meiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do sol, com a qual seus olhos não 8Esse é um livro básico, bem escrito, para aqueles que desejam ter uma visão panorâmica da História da Filosofia. 9 “Necessário” em Filoso-fia é tudo aquilo que não pode não ser; que não há uma outra forma de ser. É algo inelutável. 10 O conceito “fenôme-no”, em grego, é com- preendido como tudo o que aparece. Tudo o que se impõe diante de nossos olhos. 11“Contingente” é o contrário de neces- sário, ou seja, existe, mas poderia não existir. Nós, por exemplo, existimos, mas caso não existíssemos, o mundo existiria independentemente de nós. 12A Patrística foi um movimento filósofo- teológico que surgiu duran- te o período da Alta Idade Média. Fundamentos Filosóficos da Educação 16 estão acostumados; pouco a pouco se habitua à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e somente voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era íngreme e a luz, ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que se habituar à luz. De volta à caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna. Qual é a mensagem deixada por esse mito? Várias são as interpretações. A primeira delas é que esse homem que consegue sair da caverna é Sócrates. Ele, ao tentar mostrar aos homens de sua época que existia a possibilidade de um outro mundo, não foi compreendido e foi condenado a beber cicuta. Os homens que vivem como se estivem acorrentados são aqueles que vivem no mundo da doxa. No entanto, existem aqueles que procuram a episteme13. A caverna representa o mundo dos sentidos. Esse mito também pode ajudar-nos a entender o nosso papel como educado- res. Muitos programas de televisão certamente poderiam ser considerados como representação dessa caverna. Seus protagonistas desejam que o povo permaneça na doxa, viva apenas no senso comum. Será que o que ensinamos para os nossos alunos está contribuindo para que eles consigam sair apenas do mundo das opiniões, do mundo da doxa? Fica-nos essa indagação. 13Episteme é ciência ou conhecimento fi- losófico no seu sentido eti- mológico. 1. Sugiro a leitura do citado O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder. Após a leitura, discuta com seus colegas os trechos mais interessantes, segundo sua opinião. 2. No seu entendimento, quais são as cavernas de hoje? 3. Como sujeitos estamos contribuindo para que as pessoas com as quais nos relacionamos ultra- passem o mundo das opiniões, do mundo da doxa? Aristóteles e a Filosofia como totalidade dos saberes Ivo José Triches Cláudio Joaquim Rezende Aspectos gerais da vida e obra de Aristóteles — Temos de expulsar Aristóteles de nós. — Mas nem sequer o li, por que razão tenho de expulsá-lo de mim? — A prova de seu domínio sobre o homem ocidental é que ele domina o pensamento da gente que nunca ouviu falar a seu respeito. (GAARDER, apud PENHA, 1998) O texto acima serve para mostrar a importância do pensamento aristo-télico para a civilização ocidental. Não há como pensar sem recor-rer a algum dos conceitos sistematizados por Aristóteles. É o que veremos ao analisar as linhas gerais de sua filosofia. Antes, porém, é preciso conhecer um pouco da vida desse grande filósofo grego. Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu em Estágira, na Macedônia, e era filho de um médico. Graças a esta influência, desde a infância, o futuro filósofo teve uma formação voltada para a pesquisa empírica, experimental. Não é à toa que Aristó- teles escreveu vários tratados sobre questões biológicas. Aos 18 anos, o jovem Aristóteles mudou-se para Atenas a fim de estudar e tor- nou-se membro da Academia de Platão. Discípulo mais brilhante, permaneceu na Academia até a morte do mestre (348-7 a.C.), ocasião em que começou a trilhar seu próprio caminho. Por algum tempo foi preceptor (uma espécie de professor parti- cular) de Alexandre, filho do rei Filipe, e futuro dirigente do império macedônico. Em 335 a.C., Aristóteles retorna a Atenas e funda sua própria escola, o Liceu. Em virtude do seu costume de dar aulas caminhando com os discípulos, a escola também era chamada de “peripatética1”. Em sua velhice, aproximadamente aos 61 anos, Aristóteles foi obrigado a deixar Atenas, em virtude da morte de seu “ex-aluno” Alexandre (323 a.C) e do sentimento antimacedônico predominante. O famoso filósofo de Estágira falece em 322 a.C. Para compreendermos a originalidade da contribuição do pensamento de Aristóteles, dois fatores são essenciais: a influência da formação experimental her- dada de seu pai e da força da filosofia platônica. São duas tendências opostas que en- contrarão uma resposta original. O primeiro fator funciona como ponto de partida 1Peripatos em grego signi-fica caminho. Fundamentos Filosóficos da Educação 18 ou pano de fundo para a refutação do segundo fator de influência. Assim, a filoso- fia aristotélica valoriza o que é empírico como crítica à teoria platônica das ideias. Em outros termos, Aristóteles formula uma filosofia realista contra o pensamento idealista de Platão. Platão tinha uma visão dualista da realidade, pois considerava que havia dois mundos: o mundo das sombras, das aparências, e o mundo das ideias, da verdadeira realidade. Platão subordinava tudo à ideia, ou seja, as coisas individuais presentes na realidade sensível somente existem graças às ideias, que contêm os universais. Somente o individual é real O ponto de partida de Aristóteles, em sua crítica a Platão, consiste em conceber que somente o individual é real. O que existe é a substância individu- al, que podemosconsiderar aqui como o indivíduo material concreto. Este seria o constituinte último da realidade, o que evitaria o dualismo platônico. Assim, a realidade é composta por um conjunto de indivíduos materiais e concretos, segundo o pensamento aristotélico. Afirmar que a realidade é acessível aos sentidos tem como consequência a possibilidade de que a inteligência humana pode conhecer o ser real. A experiên- cia é a única fonte de conhecimento. Vale dizer, não há um mundo de ideias puras a ser investigado. A inteligência humana conta apenas com o que está acessível aos sentidos. Nesse sentido, Aristóteles afirmava, na metafísica, que não há nada no intelecto que antes não tenha passado pelo concreto. Aprofundando sua análise do indivíduo concreto, Aristóteles afirma que ele é composto de matéria e forma. “A matéria é o princípio da individuação e a forma a maneira como, em cada indivíduo, a matéria organiza-se” (MARCONDES, 2000, p. 72). Desse modo, cada indivíduo tem uma matéria específica, particular, e uma forma comum, partilhada com indivíduos da mesma espécie. Matéria e forma são indissociáveis, pois a matéria existe apenas dentro de uma forma específica. A fim de compreender melhor, vejamos o exemplo da estátua. Na estátua, a matéria é már- more, ou bronze, por exemplo; e a forma é a bela Afrodite, ou o feio Sócrates. Contra Platão, Aristóteles postula que não existem ideias puras, mas afir- ma a possibilidade de conhecimento do real. O universal somente existe em nossa mente por meio da abstração. Trata-se de interessar-se imediatamente pelas coisas, pois é nelas que estão as ideias. O caminho pelo qual o intelecto chega ao conhecimento é a abstração: processo segundo o qual a inteligência separa matéria e forma. O conhecimento dá-se quando relacionamos os objetos que possuem a mesma forma e fazemos abstração de sua matéria, ignorando suas características particulares. Formulemos um exemplo de abstração. Pelos sentidos, conheço um ser, identifico que esse ser é semelhante a outros da mesma espécie; trata-se de um mamífero ruminante, que chamamos de vaca. A ideia de vaca não existe em estado puro. O que existe é essa vaca particular, que posso ver com os meus olhos. Mas, Aristóteles e a Filosofia como totalidade dos saberes 19 por um processo de abstração, chego à ideia de vaca, comum a todas as vacas que eu possa conhecer. Em termos aristotélicos, posso afirmar que a ideia que tenho da vaca é a sua essência2. É a partir dessa ideia que reconheço uma vaca concreta, mas a ideia não existe sem este ser individual, que eu percebo pelos sentidos. A importância da lógica formal A lógica formal é o conhecimento introdutório da Filosofia. Aristóteles é o verdadeiro criador da lógica, o Órganon, que em grego quer dizer “instrumento”. Ele a criou de uma série de tratados lógicos que continuam vigentes, dos quais continuamos dependendo para elaborar raciocínios. Com essa disciplina instrumental, Aristóteles praticamente nos ensinou a pen- sar, formulando o percurso da formulação de um raciocínio. A fim de termos uma visão sintética desse percurso, acompanhemos o comentário de Chauí (1995, p. 183): O objeto da lógica é a proposição, que exprime, através da linguagem, os juízos formula- dos pelo pensamento. A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este exprime-se logicamente através da conexão de proposições; essa conexão chama-se silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição (as categorias), os tipos de proposições e de silogismos, e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros (princípio da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído). Qualquer proposição é composta pelos seus termos ou categorias, que são palavras que designam algo: João, morte. Quando emitimos um juízo sobre algo, estamos fazendo uma combinação destes termos, como por exemplo: João é mor- tal. Esse juízo, combinado com outros, forma um raciocínio. Quando o raciocínio é formulado de uma forma lógica, chama-se silogismo. Retomando a frase “João é mortal”, posso elaborar o seguinte silogismo: Todos os homens são mortais. João é homem. Logo, João é mortal. Note que os termos foram combinados num juízo, que possibilitou um ra- ciocínio que chegou à forma de um silogismo. Essa combinação permite que for- mulemos raciocínios com clareza e precisão. Se compreendermos as regras da lógica e as exercitarmos, estaremos em condições de melhorar a nossa forma de pensar. O silogismo ajuda-nos no processo de construção do conhecimento. Teoria das Quatro Causas Os elementos constitutivos de um ser são suas causas. Examinar uma coisa pelas suas causas é obter o completo conhecimento da mesma, no entender de Aristóteles. Há quatro causas. 2A distinção entre essên-cia e existência é uma das classificações da Metafísica aristotélica. Existência indica o ser que está acima do nada. Pela essência, torna-se tal e qual espécie de ser. É, pois, a essência, nada mais que um modo do existir. Fundamentos Filosóficos da Educação 20 Causa material: indica do que é feito o ser. Causa formal: é sua alma, ou seja, é o que nos faz diferentes uns dos outros. Causa eficiente: está relacionada com o motor que nos gerou. Causa final: é o objetivo para o qual o ser tende. Vejamos esses conceitos segundo a definição do próprio Aristóteles em Me- tafísica: Causa significa: (1) aquilo de que, como material imanente, provém o ser de uma coisa; por exemplo, o bronze é a causa da estátua e a prata, da taça e, do mesmo modo, todas as classes que incluem estas. (2) a forma ou modelo, isto é, a definição da essência e as classes que incluem esta (v.g. a razão de 2 para 1 e o número em geral são causas da oitava); bem como as partes incluídas na definição. (3) aquilo de que se origina a mutação ou a quietação; por exemplo, o conselheiro é a causa da ação e o pai causa do filho; e, de modo geral, o autor é causa da coisa realizada, e o agente modificador, causa da alteração. (4) o fim, isto é, aquilo que a existência de uma coisa tem em mira; por exemplo, a saúde é a causa do passeio. Efetivamente, à pergunta – por que é que a gente passeia? – respondemos – para ter saúde e, ao falar assim, julgamos ter apontado a causa. O mesmo vale para todos os meios que se interpõem antes do fim, quando alguma outra coisa deu início ao processo. Além da Teoria das Quatro Causas, Aristóteles formulou várias outras, dentre as quais, a Teoria do Ato e Potência. Trata-se de uma forma de classificar, dividir os seres em dois princípios constitutivos intrínsecos. Essa teoria busca explicar as transformações, o movimento. Chamamos ato, o ser enquanto já é. De algum modo, significa determinação e perfeição. A principal determinação é a da existência; é a de- terminação na ordem do ente; o ser que existe está, pois, em ato. A determinação dá- se também na ordem da essência, enquanto esta apresenta essa ou aquela fisionomia. Potência é aquilo que ainda não é, mas preexiste realmente como possibilida- de de vir a ser. Segundo Aristóteles, “das coisas não existentes, algumas existem em potência, por não existirem em ato”. A semente é um exemplo de ser parcial- mente em ato, estando o mais em potência. Há potências ativas e passivas. As potências passivas apenas recebem o ato. As ativas têm a potência de produzir o ato. O homem tem potências, como as do conhe- cimento e as dos impulsos. Seu exercício obedece às regras fundamentais da doutrina do ato e potência. Visão do homem, da ética e da política O homem pode viver três dimensões: a dimensão prática, a teórica e a poiésis. Os conceitos de prática e teoria, que empregamos a todo o tempo, são distinguidos por Aristóteles. A poiésis,que é a fabricação, a produção, tanto faz produzir uma mesa ou um soneto, produz-se algo e, neste sentido, torna-se poeta. Mas, por outro lado, há o conceito de práxis, que é a ação, o que age. Claro, a forma suprema de práxis, o mais práxis de tudo, é a theoria. A teoria é o que há de mais prático para Aristóteles e a Filosofia como totalidade dos saberes 21 Aristóteles, é a forma suprema de práxis, é a contemplação, é a visão. E aí aparecem as formas de vida, que terão uma importância enorme no pensamento aristotélico. Há o bios politikós, a vida produtiva; há o bios praktikós; e há a forma suprema, o bios theoretikós, a vida teorética, a vida teórica, que é a mais prática de todas, que consiste precisamente na visão, na contemplação; aqui, aparece plenamente aquela ideia visual, da visualidade no pensamento de Aristóteles. Ética e Política Para Aristóteles, o estudo da Ética deve enfatizar o preparo do indivíduo para que o mesmo possa viver bem na cidade. Há, portanto, um campo comum entre Ética e Política. A Ética deve estabelecer o princípio da ação virtuosa. O homem caracteriza- se por sua essência racional e por sua tendência para o que é bom, para aquilo que julga ser a sua felicidade. A teoria da felicidade está justamente ligada à sabedo- ria, no pensamento de Aristóteles, na medida em que o homem deve aperfeiçoar o que é em sua essência racional. A política deve enfatizar o homem como um ser social ou comunitário, pro- curando estabelecer os princípios de sua ação racional. A Metafísica de Aristóteles (Aristóteles. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, aos cuidados de G. Reale. Trad. de M. Perine. 3. vols. São Paulo: Loyola, 2002) Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensa- ções, pois, fora até da sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não somente para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista aos demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre. Por natureza, seguramente, os animais são dotados de sensação, mas, em alguns, da sensação não se gera a memória, e, noutros, gera-se. Por isso, estes são mais inteligentes e mais aptos para aprender do que os que são incapazes de recordar. Inteligentes, pois, mas sem possibilidade de aprender, são todos os que não podem captar os sons, como as abelhas, e qualquer outra espécie pa- recida de animais. Pelo contrário, têm faculdade de aprender todos os seres que, além da memória, são providos também deste sentido. [...] Ora, no que respeita à vida prática, a experiência em nada parece diferir da arte; vemos, até, os empíricos acertarem melhor do que os que possuem a noção, mas não a experiência. E isto porque a experiência é conhecimento dos singulares, e a arte, dos universais; e, por outro lado, porque as operações e as gerações todas dizem respeito ao singular. Não é o homem, com efeito, a quem o médico cura, se não por acidente, mas Cálias ou Sócrates, ou a qualquer um outro assim designado, ao qual aconteceu também ser homem. Fundamentos Filosóficos da Educação 22 Portanto, quem possua a noção sem a experiência, e conheça o universal ignorando o parti- cular nele contido, poderá enganar-se a muitas vezes no tratamento, porque o objeto da cura é, de preferência, o singular. No entanto, nós julgamos que há mais saber e conhecimento na arte do que na experiência, e consideramos os homens de arte mais sábios que os empíricos, visto a sabedoria acompanhar em todos, de preferência, o saber. Isto porque uns conhecem a causa, e outros não. Com efeito, os empíricos sabem o “que”, mas não o “porquê”, ao passo que os outros sabem o “por- quê” e a causa. [...] Em geral, a possibilidade de ensinar é indício de saber; por isso nós consideramos mais ciên- cia a arte do que a experiência, porque [os homens de arte] podem ensinar e os outros não. Além disso, não julgamos que qualquer das sensações constitua a ciência, embora elas constituam, sem dúvida, os conhecimentos mais seguros dos singulares. Mas não dizem o “porquê” de coisa alguma, por exemplo, por que o fogo é quente, mas somente que é quente. [...] Já assinalamos na Ética a diferença que existe entre a arte, a ciência e as outras disciplinas do mesmo gênero. O motivo que nos leva agora a discorrer é este: que a chamada filosofia é por todos concebida como tendo por objeto as causas primeiras e os princípios; de maneira que, como acima se notou, o empírico parece ser mais sábio que o ente, o qual unicamente possui uma sensação qualquer; o homem de arte, mais do que os empíricos; o mestre de obras, mais do que o operário e as ciências teoréticas, mais do que as práticas. Que a filosofia seja a ciência de certas causas e de certos princípios é evidente. O estudo proveitoso de um pensador exige que nos deixemos questionar por suas ideias. É necessário que levemos a sério suas indagações. Para compreendermos o papel da Filosofia, vejamos uma distinção entre a evidência da realidade e a evidência intelectual. A evidência intelectual é a coisa que está diante de nós e que nos obriga a pensar, que nos obriga a pesquisar. Isto é, essa mesa é evidente, aí está, mas podemos entender o que ela é, de que foi feita, do que se compõe; isso não é evidente, deve ser indagado. Mas há a evidência da mesa e isso me obriga precisamente a perguntar-me sobre ela. Porque há esse fenômeno da natureza, que é justamente a origem do movimento, que as coisas mudam, que as coisas chegam a ser e deixam de ser, mudam de qualidade, mudam de temperatura, todas as mudanças imagináveis. Ou chegam a ser e deixam de ser, que é a forma mais fundamental, mais radical de natureza. Ainda que distantes no tempo, as questões têm algum elo com nossa realidade e com os proble- mas que nos angustiam. Nesse sentido, procure refletir sobre as questões abaixo. Retome as ideias de Aristóteles e deixe-se questionar por ele. Aristóteles e a Filosofia como totalidade dos saberes 23 1. A fim de ter um acesso direto ao pensamento de Aristóteles, leia o trecho retirado de sua prin- cipal obra, A Metafísica, e responda à seguinte pergunta: é possível pensarmos em algo que nós nunca vimos, nunca tocamos, nunca cheiramos, nunca degustamos ou nunca ouvimos? Pense nisso e tente refutar a ideia de Aristóteles. 2. Quando nós, educadores, agimos com justiça com nossos semelhantes? Fundamentos Filosóficos da Educação 24 3. Como a Educação pode contribuir para a vivência da boa política? Sugiro a leitura dos livros: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 4. ed. São Paulo: Ática, 1995. MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. De Aristóteles à Renascença Ivo José Triches C omeçar um estudo, acerca de um determinado tema, a partir de uma visão panorâmica, é sempre mais didático. O nosso objetivo consiste em apre-sentarmos as principais ideias que marcaram os seguintes períodos: Hele- nístico, Idade Média e início da Idade Moderna com o Renascimento. O aprofundamento teórico sobre cada um dos temas apresentados fica em forma de convite para que você, possa fazê-lo. Somos partidários de um provérbio latino que diz: “nulla die sine linea”1. Para os escritores latinos, o processo de acumulação de conhecimento seria obtido por meio da leitura diária. Isso signifi- ca que, se nosso propósito é conseguirmos fazer um bom trabalho, necessitamos estar constantemente nos atualizando. Por isso, somente conseguiremos tal feito se nossa vontade estiver conectada com a leitura. O Período Helenístico2 A civilização helenística resultou do entrelaçamento da cultura helênica3 com as culturasdos povos do Oriente Médio. Entre esses povos, destacaram-se os persas e os egípcios. Os macedônicos iniciaram esse processo de difusão da cultura grega por meio de seu principal líder, Alexandre Magno, que conquistou os gregos. Esse povo tinha origem ariana e vivia ao norte da Grécia. Eram con- siderados bárbaros “por natureza” pelos gregos, ou seja, incapazes de cultura e de atividade livre e, em consequência, “escravos por natureza”4. Como geografi- camente estavam isolados, eles estabeleciam relações comerciais com os gregos para poderem vender seus produtos, que eram basicamente de origem agrária. Utilizavam o porto grego de Olimpo para estabelecer relações com outros povos. Na verdade, esse perío do representa a decadência do mundo grego. A época do helenismo foi um período marcado, entre outras coisas, pelo rompimento dessa visão da existência de “escravos por natureza”. Epicuro – filó- sofo desse tempo – tinha, entre os participantes de seus ensinamentos, escravos. Considerava-os como membros de sua família. Isso evidencia que as concepções de mundo que temos podem ser superadas. Uma das características de alguém que deseja ter uma postura filosófica frente ao mundo é acreditar que ele é movimento e, por isso, que cada um pode mudar as representações sobre as coisas. Desse modo, nossas convicções não podem ser consideradas com “cláusulas pétreas”, que jamais mudaram. Tudo é movimento, porque o mundo é movimento. 1“Nem um só dia sem uma linha” é a tradução literal. 2Na mitologia grega, Helena era uma princesa célebre por sua beleza. Ela era filha de Leda. Seus irmãos eram Castor e Pólux. Casou-se com Menelau. Quando casa- da, foi raptada por Páris, ho- mem troiano. Por essa razão, os gregos organizaram-se e decidiram ir a Tróia para resgatá-la. Assim, temos a noção de que o helenismo cor responde à expansão da cultura grega para além de suas fronteiras. 3Cultura grega. 4A maior contradição des-sa forma de pensar dos gregos está relacionada ao fato de terem sido vítimas do próprio domínio dos macedô- nicos. O próprio Aristóteles defendia a teoria da existên- cia de escravos, por natureza. Isso mostra que ninguém está livre da prática dos precon- ceitos. Fundamentos Filosóficos da Educação 26 Os movimentos principais que marcaram essa época foram: o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo. Existe um fio condutor que marcou esses movimentos, qual seja, a preocupação com as questões relacionadas aos aspectos morais dos atores sociais5. Compreende-se assim que o pensamento helenístico se tenha concentrado sobretudo nos problemas morais, que se impunham a todos os homens. E, propondo os grandes proble- mas da vida e algumas soluções para eles, os filósofos dessa época criaram algo de ver- dadeiramente grandioso e excepcional, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo, propondo modelos de vida nos quais os homens continuaram a inspirar-se ainda durante outro meio milênio e que, ademais, se tornaram paradigmas espirituais, verdadeira “conquista para todo o sempre”. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 230) A partir das afirmações contidas no texto acima, fica a indicação de que, se alguém pretende dedicar-se ao estudo acerca das questões que envolvem o tema Ética, torna-se fundamental aprofundar seus conhecimentos sobre esse período. Principalmente, no estoicismo e no epicurismo. A Filosofia na Idade Média A discussão se houve ou não produção filosófica durante o período medie val é uma questão que continua latente até hoje. Certamente, não seremos nós, nesta ge- ração, que daremos por encerrada essa polêmica. Afirmamos isso, porque até hoje existem aqueles que denominam essa época de “idade das trevas” ou período do “obscurantismo filosófico”. Como essa questão não está fechada e nosso objetivo é apresentar uma visão panorâmica do tema, vamos indicar algumas características que marcaram esse período. No nosso trabalho em sala da aula, dizíamos que a máxima desse período era “crer para compreender e compreender para crer”; muitos daqueles que dizem que não houve produção filosófica argumentam que, se eu afirmo que é preciso “crer para compreender”, então, a razão fica subordinada à fé. Como não há coisa alguma sobre a qual a Filosofia não possa debruçar-se, a própria fé pode ser objeto de investigação filosófica. Como isso não podia ser objeto de investigação, então, o processo do filosofar ficou comprometido. Porém, existem aqueles que defendem exatamente o contrário, ou seja, que a fé pode ajudar-nos a confiar na razão. Nos séculos IV e V d.C., a confiança na razão estava em baixa. Santo Agostinho foi quem contribuiu para restaurar a crença na razão. Criticando os céticos, que afirmavam a impossibilidade de che- garmos ao conhecimento da verdade, ele dizia que a maior prova da possibilidade do conhecimento verdadeiro eram as demonstrações no campo da matemática e da lógica. Dessa forma, vemos que: o homem e seu intelecto, mutáveis e perecíveis, não podem ser os avalistas do conhecimento, pois a verdade deve ser eterna. Assim, a verdade somente pode ser assegurada por algo que se coloque acima dos homens e das coisas: Deus. Se a razão, na busca de sua certeza, depara com a fé em Deus, é também a fé que permite resgatar a dignidade da razão: “crer para compreender e compreender para crer”. (ABRÃO, 1999, p. 98-99) 5Atores sociais é um con-ceito utilizado pela Socio- logia. Cada ciência ou setores da sociedade, quando vão referir-se ao outro, utilizam denominações diferentes. É somente observarmos: como, numa loja comercial, referimo- nos ao outro? Por cliente. E se for um médico, como ele se re- fere ao outro? Por paciente. Por isso, na Filosofia, utiliza-se a expressão homem, na Socio- logia, atores sociais, na Psi- cologia, indivíduo, e assim por diante. De Aristóteles à Renascença 27 Os dois movimentos que mais se destacaram durante a Idade Média foram a Patrística6, durante a Alta Idade Média, e a Escolástica7, na Baixa Idade Média. Cabe ainda destacar que não há como ignorar as realizações culturais dessa época. A Igreja, que foi acusada pelos retrocessos no campo da cultura em geral, foi responsável pela conservação de muitos aspectos da cultura clássica. A reto- mada da cultura greco-romana no período seguinte é prova disso. Num mundo em que o cenário predominante é a relação senhor versus servo, a economia é, basicamente, de subsistência. A existência dos mosteiros constituiu um espaço privilegiado para a sobrevivência da cultura. Foi nesse ambiente que os monges se dedicavam ao trabalho no campo, à oração e à compilação dos livros, assim como à tradução, para o latim, dos textos da antiguidade. O Renascimento cultural A expressão “idade das trevas” foi uma referência dos renascentistas ao que ocorreu durante o período medieval. A primeira questão relevante sobre esse tema é: renascimento do quê? O que desejavam os pensadores que criticavam a máxima da Idade Média8? O quadro a seguir serve para ilustrar bem que, para a cada ca- racterística do período medieval, surgiu um movimento de oposição. As características desse período Idade Média Renascimento misticismo racionalismo coletivismo individualismo antinaturalismo naturalismo teocentrismo antropocentrismo geocentrismo heliocentrismo Assim, o Renascimento Cultural representou a possibilidade de o homem europeu ter novas representações acerca do mundo e da própria religião. Novos valores passaram a afirmar-se, o que significou a consolidação de uma nova classe social emergente dessa época: a burguesia. No contexto do Renascimento, já um pouco mais adiante, no século XVII, pensadores como Francis Bacon e Descartes divergiam no tocante a que método devia ser utilizado para ter a garantia de que o conhecimento era verdadeiro ou não. Francis Bacon
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