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2.ª edição 2009 Tópi cos da F iloso fia d a Ed ucaç ão Otto Leo pold o Wi nck Ivo J osé Trich es Cláu dio J oaqu im R ezen de Wan derl ey M acha do Luci ano D. da Silv a Nata lina Trich es IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. © 2006-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza- ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. W761 Winck, Otto Leopoldo; Triches, Ivo José; Rezende, Cláudio Joaquim. / Tópicos da Filosofia da Educação. / Otto Leopoldo Winck; Ivo José Triches; Cláudio Joaquim Rezende. 2. ed. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009. 336 p. ISBN: 978-85-7638-998-9 1. Educação. 2. Filosofia. 3. Antropologia educacional. 4. Filo- sofia – História. I. Título. II. Machado, Wanderley. III. Silva, Lu- ciano D. da. IV. Triches, Natalina. CDD 370.1 Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Domínio público Nome da obra: Escola de Atenas, 1510 Autor: Rafael Sanzio Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Espe- cialista em Filosofia com Ênfase em Ética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e bacharel em Teologia pela PUCPR. Otto Leopoldo Winck Mestre em Engenharia da Produção com ênfase em Mídia e Conhecimento pela UFSC. Especialista em Filosofia Clínica pela Faculdade Padre João Bagozzi. Espe- cialista em Filosofia Política pela UFPR. Especialista em Pensamento Contemporâ- neo pela PUC-PR. Graduado em Filosofia pela PUC-PR. Ivo José Triches Sumário Apresentação ............................................................................. 11 Convite à filosofia ..................................................................... 13 Por que filosofia? ........................................................................................................................... 13 Definições .................................................................................................................................... 14 Divisão de tarefas ...................................................................................................................... 16 A atitude filosófica e o senso comum ................................................................................ 17 Nem dogmatismo nem ceticismo ....................................................................................... 18 Sócrates e a filosofia moral ocidental....................................25 O gênio grego, o mito e as origens da filosofia .............................................................. 25 Os filósofos naturalistas e os sofistas ................................................................................. 27 Platão e o nascimento da razão ocidental ..........................41 Platão: atleta e poeta ............................................................................................................... 41 As vigas do pensamento platônico .................................................................................... 43 O legado de Platão ................................................................................................................... 46 Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes ................................................................................. 53 Filho de médico, mestre de príncipe .................................................................................. 53 Os escritos de Aristóteles ....................................................................................................... 54 Só o individual é real ................................................................................................................ 55 A metafísica ................................................................................................................................. 57 O pai da lógica ............................................................................................................................ 59 A justa medida e o bem comum .......................................................................................... 61 De Aristóteles à Renascença................................................. 69 A filosofia na era helenística .................................................................................................. 69 Sob a égide da cruz .................................................................................................................. 77 A Renascença e o divórcio entre razão e fé ...................................................................... 87 Espinosa: uma filosofia da liberdade ................................. 97 A filosofia moderna: entre razão e experiência .............................................................. 97 Uma vida em diáspora ............................................................................................................. 98 Uma vida de filósofo ..............................................................................................................100 O panteísmo de Espinosa .....................................................................................................103 O ser humano ..................................................................................................................................104 A moral, o sábio e a eternidade ..........................................................................................106 Igreja e Estado ..........................................................................................................................106 O Iluminismo e o Século das Luzes ..................................113 Há algo de novo debaixo do Sol ........................................................................................113 Da Inglaterra e da França as luzes brilham para o mundo .......................................115 Luzes e revolução ....................................................................................................................116 A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam à técnica .....................................118 Nomes que brilham ................................................................................................................119 O legado iluminista ................................................................................................................122 Immanuel Kant e o idealismo alemão ...................................129 Na encruzilhada da razão .....................................................................................................129 O filósofo de Königsberg ......................................................................................................130 Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana .............................................................133 A razão no tribunal .................................................................................................................134 O imperativo categórico .......................................................................................................138 Kant e a educação ...................................................................................................................140 O idealismo alemão ................................................................................................................141 A dialética idealista e materialista ....................................147 Dialética: breve histórico ......................................................................................................147 Hegel ............................................................................................................................................149 O hegelianismo ........................................................................................................................151Filósofo e agitador ..................................................................................................................154 O materialismo histórico ......................................................................................................156 A práxis ........................................................................................................................................158 Schopenhauer: o mundo como representação .............167 Contra Hegel .............................................................................................................................167 Uma vida taciturna .................................................................................................................169 O mundo como representação ..........................................................................................171 Tudo é dor ..................................................................................................................................172 O nirvana ....................................................................................................................................173 Schopenhauer e a educação ...............................................................................................174 O positivismo e o desenvolvimento da ciência ...........179 Um mestre e uma musa ........................................................................................................179 História e evolução .................................................................................................................181 A religião da humanidade ....................................................................................................183 Quando filosofia vira samba ................................................................................................183 Nietzsche educador ...............................................................191 Vates e filósofos........................................................................................................................191 Uma vida perigosa ..................................................................................................................192 Uma filosofia feita com o martelo .....................................................................................196 O “anticristo” e a luta contra o platonismo do povo ...................................................197 O super-homem e a nova moral ........................................................................................198 Nietzsche e a educação .........................................................................................................199 Nietzsche está vivo .................................................................................................................201 A Escola de Frankfurt .....................................................................209 A herdeira do facho ................................................................................................................209 Uma escola crítica ...................................................................................................................210 Os momentos da teoria crítica ...........................................................................................212 Teoria crítica versus teoria tradicional ..............................................................................213 Razão instrumental e indústria cultural ..........................................................................214 Principais expoentes ..............................................................................................................216 Luzes, razão e educação........................................................................................................222 Pragmatismo e existencialismo.........................................231 Era dos extremos: as duas faces da moeda ....................................................................231 Pragmatismo: origens e paternidade ...............................................................................232 Existencialismo: “uma mística do inferno” ......................................................................237 Filosofia e educação ..............................................................259 Filosofia para quê? ................................................................................................................................ 259 Crise e filosofia .................................................................................................................................259 Filosofia e educação: isso dá samba? ...............................................................................262 Filosofar ou filosofar: eis a questão ...................................................................................264 Ética e educação .....................................................................269 A refundação da ética ............................................................................................................269 Ética e moral ..............................................................................................................................270 A ética através dos tempos ..................................................................................................271 A ética na educação ............................................................................................................................. 275 Reconstruindo a ética na escola: tarefas .........................................................................276 Filosofia e formação humana na escola .........................283 No princípio ...............................................................................................................................283 A educação como formação................................................................................................284 A formação como humanização ........................................................................................286 A escola como espaço privilegiado da formação ........................................................288 O processo do filosofar na Educação Infantil ...............295 Filosofia para crianças e filosofia com crianças .............................................................295 Filosofia e autonomia ...................................................................................................................296 Uma sociedade real ................................................................................................................298 A diferença .................................................................................................................................300 Gabarito..........................................................................................305 Referências ................................................................................329 Anotações ......................................................................................335 “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”, escreveu Karl Marx no Manifesto Comunista, referindo-se à vertiginosa velocidade das mudanças na sociedade de sua época. Hoje, mais de 150 anos depois, podemos afirmar que essa constatação continua mais do que nunca atual. Vivemos, com efeito, sob o impacto de mudan- ças cada vez mais velozes, em um tempo em que valores e certezas outrora consi- derados sólidos liquefazem-se antes mesmo que outros lhes tenham substituído. Nesse sentido, a educação é uma caixa de ressonância dessas vertiginosas transformações. Ao mesmo tempo em que as instituições de ensino são o baluar- te de algumas das mais antigas tradições, como a disciplina e a hierarquia, elas não deixam de ser profundamente afetadas pelas alterações do presente mais imediato. As rebeliões juvenis do ano de 1968, por exemplo,tiveram como palco privilegiado as universidades. Daí a importância e a urgência de pensarmos constantemente a educação. E para fazê-lo, nada melhor do que pedirmos auxílio à filosofia. E é o que faremos ao longo deste curso de Tópicos de Filosofia da Educação. Na aula inicial, intentaremos uma melhor clarificação do conceito de filoso- fia. Em seguida, da aula dois à aula 14, faremos uma viagem pela história da filosofia ocidental, desde os seus antecessores gregos até correntes recentíssimas como o Existencialismo e a Escola de Frankfurt. Assim, nessa viagem lançaremos um olhar especial sobre alguns dos principais pensadores desse longo período, e esse olhar será acompanhado de exercícios de fixação e reflexão. Ademais, cada aula será complementada com um ou mais textos extraídos preferencialmente dos próprios filósofos – isso porque acreditamos que conhecer a história da filosofia é, sobretudo, frequentar a reflexão dos pensadores que fizeram essa história. Mas, em todo caso, ler textos de filosofia ainda não é produzir filosofia e, por isso, ao fim de cada uma destas aulas, os alunos serão estimulados a ousarem pensar e refletir, à luz tanto dos filósofos estudados quanto de problemas extraídos da contemporaneidade. As aulas 15 a 18, por seu lado, abordam sob vários aspectos as relações entre filosofia e educação. Aqui são atacadas algumas questões candentes dessa problemática. Já que a educação nunca ocorre sem um substrato filosófico, ainda que latente ou oculto, é importante trazer à tona esse diálogo incontornável. É da mútua fecundação entre essas duas disciplinas, muito próximas uma da outra, que poderá surgir uma compreensão e uma prática de ensino e aprendizagem capazes não apenas de interpretar as velozes mudanças de nosso tempo como também de conduzi-las para a construção de uma sociedade mais humana. Aliás, o próprio Marx declarou, na 11.ª tese sobre Feuerbach, que “até agora os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo”. Acrescenta- mos apenas que essa missão é também – e sobretudo – dos educadores. Dessa maneira, ao fim desta apresentação, que não pretendemos longa, só nos resta desejar bons estudos e que essa viagem pelos horizontes imbricados da filosofia e da educação possa produzir muitos frutos tanto na teoria quanto na prática de nossa ação pedagógica. Otto Leopoldo Winck Apresentação Convite à filosofia A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. Maurice Merleau-Ponty Não se pode aprender a filosofia; somente se pode aprender a filosofar. Immanuel Kant Por que filosofia? Entre as matérias escolares, a filosofia é vista não raro como a mais abs- trata e a mais distante dos interesses humanos mais imediatos. Depois do declínio da teologia, na Idade Moderna, coube à filosofia, a antiga serva da teologia (conforme a máxima dos teólogos medievais), o lugar de rainha. No entanto, ela seria também destronada com o advento das ciências po- sitivas – aquelas que exigem o recurso da experimentação –, de modo que hoje é comum se perguntar o porquê da filosofia, pergunta que não é feita quando o assunto é Matemática, Física ou Biologia. Mesmo disci- plinas pertencentes ao arco das ciências humanas – como Pedagogia, Psi- cologia e Sociologia – encontram justificativas mais facilmente que a Filo- sofia. Ora, estuda-se Pedagogia para se aprimorar o processo de ensino e aprendizagem, e a Psicologia e a Sociologia são necessárias para melhor se compreender o funcionamento da mente humana e da sociedade. Mas, e a filosofia, serve para quê? Em uma cultura em que se valoriza sobrema- neira o que tem finalidade prática e utilidade imediata, o conhecimento filosófico parece fora de lugar, supérfluo e desnecessário. Todavia, é justamente aí que se revela a sua imprescindibilidade. Em uma época e uma sociedade dominadas pela técnica, com os saberes (entre outros fatores, por causa do enorme cabedal de conhecimento e experiência acumulados) sendo extremamente especializados e portanto fragmentados, é indispensável um olhar que ofereça uma crítica e rigorosa 14 Tópicos da Filosofia da Educação visão de conjunto de todo esse horizonte. É imperioso – sob o risco de não saber- mos nos localizar e portanto ficarmos privados de ação – um saber sobre esses saberes, um olhar sobre esses olhares, uma indagação sobre essas indagações, uma pergunta que nasce antes e não termina depois. Por que pensamos o que pensamos? Por que dizemos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos? Nossa reflexão tem por meta a educação e, portanto, vamos direcionar para ela nossos questionamentos. Por que tenho essas ideias acerca do processo edu- cacional? Será que não há outra maneira de se compreender esse processo? Por que falo dessa maneira sobre ou com nossos educandos? Por que me comporto dessa maneira em relação a eles? A quem interessa esse método educacional? De que ponto de vista e de que lugar social ele foi produzido? Isso é filosofia. E, aplicando-a ao processo do aprendizado, é filosofia da educação. Definições Mas, afinal, o que é filosofia? Como podemos defini-la? Existem provavelmen- te tantas definições quantas são as escolas ou correntes da filosofia. O significa- do etimológico do termo é “amor à sabedoria”: phylos = “amigo”, “amor” sophya = “sabedoria” Porém, antes do substantivo filosofia já era usado o verbo filosofar e o nome filósofo. Provavelmente Pitágoras (580-500 a.C.) foi o primeiro a autodenominar- -se filósofo, embora se discuta se o título possuía então o mesmo sentido que ganharia depois, com Platão (426-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Para esses dois nomes paradigmáticos do pensamento ocidental, a filosofia é resultante da admiração e do estranhamento diante do espetáculo do mundo. Enquanto para Platão a filosofia é o saber que, em face das contradições da realidade, atinge a visão do verdadeiro – isto é, das ideias –, para Aristóteles a sua função é a in- vestigação das causas e princípios das coisas. Para ele, na medida do possível, o filósofo possui, para além da particularidade de cada objeto, a totalidade do saber. Por isso, a filosofia é a ciência do ser enquanto ser e, em última instância, a ciência do princípio dos princípios, da causa última. Convite à filosofia 15 Na Idade Média, a filosofia era uma aspiração à compreensão racional dos dados da fé. Na modernidade, ela foi ganhando cada vez mais autonomia. Para Francis Bacon (1561-1626), a filosofia é o conhecimento das coisas não pelos seus fenômenos transitórios, mas pelos seus princípios imutáveis. Para René Descartes (1596-1650), ela é o saber que averigua os princípios de todas as ciências e, enquan- to filosofia primeira (a metafísica), ocupa-se da elucidação das verdades últimas. John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776), cada um por sua vez, consideram-na, em geral, como crítica das ideias abstratas e reflexão sobre a experiência. Por outro lado, Immanuel Kant (1724-1804), depois de traçar os limites da razão, concebe a filosofia como um conhecimento racional por princípios. Na corrente conhecida como idealismo alemão, a filosofia é entendida ora como o sistema do saber absoluto, dedução do mundo a partir do eu, como em Fichte (1762-1814), ora, como em Hegel (1770-1831), como a consideração pen- sante das coisas, identificando-se assim com o espírito absoluto, isto é, o espírito plenamente consciente e conhecedor de si. Para Schopenhauer (1788-1860), ela é a ciência do princípio de razão como fundamento de todos os outros saberes e como autorreflexão da vontade. No positivismo, a filosofia torna-se um com- pêndio geral dos resultados das ciências. Já para Edmund Husserl (1859-1938), ela é uma ciência rigorosa que conduz à fenomenologia1 como disciplina filosó- fica fundamental. Por outro lado, para Wittgenstein (1859-1938) e os positivistas lógicos, ela não é um saber com um conteúdo específico, mas um conjunto de atos; não um conhecimentoe sim uma atividade. Em contrapartida, para Henri Bergson (1859-1941), a filosofia tem por objeto a substância da intuição, e ainda que se utilize da ciência como instrumento, aproxima-se mais da arte. Como se vê, as definições e compreensões do que seja filosofia têm sido tão elásticas quanto contraditórias. Eis a seguir uma tentativa contemporânea de definição da filosofia: A filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é Sociologia nem Psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da Sociologia e da Psicologia. Não é política, mas a interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é História, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a filosofia sabe que está na História e que tem uma história. (CHAUÍ, 1994, p. 17) 1 Fenomenologia é o estudo dos fenômenos, ou melhor, o estudo de como o indivíduo percebe os fenômenos, isto é, tudo aquilo que é apreendido pelos sentidos ou pela consciência. 16 Tópicos da Filosofia da Educação Todavia, o importante em todas essas discussões é que, à medida que crescia a consciência do problema, erigia-se pouco a pouco uma verdadeira “filosofia da filosofia”, que tem a sua justificação no fato de a filosofia não ser nunca, por princípio, uma totalidade acabada, mas sempre uma totalidade possível. Divisão de tarefas No entanto, desde cedo essa totalidade precisou de uma repartição de tare- fas para poder abarcar os mais variados ângulos de seu múltiplo objeto. Ainda que a divisão da filosofia em diferentes disciplinas não seja comum a todos os sistemas, como ocorre em Platão ou Santo Agostinho, ela é visível em muitos outros sistemas filosóficos. Foi em Aristóteles que apareceram pela primeira vez as divisões que seriam tão influentes no curso da filosofia ocidental. É a partir de seu sistema filosófico – espécie de enciclopédia do saber de seu tempo – que se constituíram como disciplinas a lógica, a ética, a estética (poética), a Psico- logia (doutrina da alma), a filosofia política e a filosofia da natureza, todas elas dominadas pela filosofia primeira (metafísica). Ao longo do tempo, a elas viriam se acrescentar, dominando sobretudo o ensino da filosofia até o século XIX, a gnoseologia, a epistemologia, a ontologia, a sociologia, além de um conjunto de matérias como filosofia da religião, filosofia do Estado, filosofia do Direito, filosofia da história, filosofia da linguagem etc., bem como a história da filosofia. Algumas delas se tornariam autônomas, como a Psicologia e a Sociologia. Por outro lado, há aqueles que julgam, por diversos motivos, que se deve excluir do corpus filosófico disciplinas como a lógica e a metafísica. É possível estudar a filosofia de uma maneira sincrônica, isto é, abordando-a por meio de todas essas disciplinas, sem uma preocupação específica com suas evoluções temporais e os problemas decorrentes de influências, filiações, rami- ficações e desdobramentos. Também é possível estudá-la de um ponto de vista diacrônico, a partir de uma visada histórica, verificando no tempo o surgimento de suas principais correntes e o desenvolvimento de suas disciplinas. Pode-se também usar uma abordagem que se sirva de ambas as possibilidades. Por exemplo, pode-se ao mesmo tempo estudar tanto a ética e suas exigências atuais (abordagem sincrônica) quanto a sua evolução na história (abordagem diacrônica). Em nosso trabalho, privilegia- remos um enfoque diacrônico, lançando um olhar sobre alguns dos principais filósofos e escolas filosóficas da história, mas sem desprezar, em alguns momen- tos, uma óptica sincrônica. Convite à filosofia 17 A atitude filosófica e o senso comum Em que consiste uma atitude filosófica? Quando, de fato, estamos envolvidos no processo filosófico? O que há de fundamental na atitude filosófica é a sua capacidade de indagar. Perguntar: O que a coisa é? Como a coisa é? Por que a coisa é assim? Essas questões fazem parte da atitude de alguém que se coloca em uma pos- tura filosófica frente ao mundo. O filósofo é aquele que não aceita como dadas as respostas às questões com que ele se depara no mundo. De fato, a filosofia é um conhecimento instituinte na medida em que ques- tiona o saber instituído, que é o saber já posto, já estabelecido, que goza de um certo consenso. De certa forma, é tudo aquilo que se tem por verdadeiro, por natural – em um determinado momento, em uma determinada sociedade. Resu- mindo, saber instituído é o senso comum. E, nesse processo de indagação acerca desse saber institucionalizado, o ser humano vai dando novos significados ao mundo e à sua própria existência. Quando nos referimos ao conceito de senso comum, nós o relacionamos ao conhecimento fragmentado da realidade. Platão definia esse tipo de conheci- mento como doxa (“opinião”). Em outras palavras, emitimos parecer sobre tudo o que nos cerca e, no entanto, nessas opiniões nos falta uma visão da totalida- de. Não conseguimos perceber que tudo se encontra inter-relacionado. Ou seja, para que possamos ter uma visão da totalidade de um fenômeno, torna-se ne- cessário apreendê-lo na sua relação com os demais fenômenos. Embora Platão tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realida- de, os dois principais são a doxa e a episteme. Um indivíduo que vive no âmbito da doxa é alguém que localiza sua existência apenas no senso comum. Por outro lado, pensar os problemas a partir da episteme (“ciência”) é pensá- -los à luz da filosofia. Essa expressão designa a capacidade de olharmos para os fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão somente é sistemática se for rigorosa, radical e de conjunto. Para explicitar a importância desses conceitos dentro do processo do filosofar, valemo-nos de um comentário de Maria Lúcia de Arruda Aranha. Nesse trecho, a filosofia da vida pode ser tomada como sinô- nimo de doxa, opinião, senso comum: 18 Tópicos da Filosofia da Educação A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix, radicis significa literalmente “raiz” e, no sentido derivado, “fundamento”, “base”. Portanto, a filosofia é radical enquanto explica os fundamentos do pensar e do agir. A filosofia é rigorosa porque, enquanto a filosofia de vida não leva suas conclusões até as últimas consequências, o filósofo especialista dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambiguidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem, o filósofo inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais. A filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto porque é globalizante, examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam “recortes” da realidade, a filosofia, além de poder examinar tudo (porque nada escapa ao seu interesse), também visa o todo, a totalidade. (ARANHA, 2002, p. 107) Outro aspecto a se salientar é que o conteúdo da reflexão filosófica, o tecido do seu pensar, é a trama dos acontecimentos do cotidiano. É por isso que nesse processo de indagação estão presentes tanto os temas aparentemente mais dis- tantes de nossa experiência imediata quanto os problemas com que nos depa- ramos todos os dias em nossavida. Em suma, na atitude filosófica está compreendido o pressuposto de que não podemos aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores em geral, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais de- vemos aceitá-los sem antes havê-los submetido a uma crítica radical. É por essa razão que se justifica mais uma vez a importância da filosofia em nosso trabalho como educadores: ela impede a estagnação e ressignifica a experiência. Se educar não se reduz apenas à transmissão de conhecimentos, mas é também uma refle- xão crítica sobre o que é conhecimento e sobre o que é educação, a filosofia não será apenas mais um conteúdo do processo educacional, mas o seu próprio alvo. Nem dogmatismo nem ceticismo Novamente torna-se relevante um olhar sobre a etimologia das palavras. Skeptikós significa “aquele que observa”, “que considera”. Desse modo, cético é aquele que observa e considera, tanto que conclui pela impossibilidade mesma do conhecimento. Por outro lado, dogmatikós denota “aquele que se funda em princípios”. Assim, dogmático é todo aquele que se apega aprioristicamente aos princípios de uma doutrina. Convite à filosofia 19 Dogma, por sua vez, pode ser compreendido como um princípio fundamen- tal e indiscutível de uma determinada doutrina ou teoria, não necessariamen- te religiosa. Toda vez que verdades irrefutáveis são aventadas, sem que elas possam ser demonstradas racionalmente, na verdade são dogmas que estão sendo aludidos. As tradições religiosas não têm necessariamente problemas com dogmas, pois toda fé está fundada, em última instância, em uma origem suprarracional. Todavia, sempre que na ciência se acena para verdades indemonstráveis, muitas vezes tomadas de empréstimo do senso comum ou da religião, se está resvalan- do da episteme para a doxa. No fim das contas, tanto o cético quanto o dogmático acabam produzindo uma visão imobilista do mundo. O primeiro porque acha impossível chegar-se a algum conhecimento real das coisas. O segundo, porque antes de se debruçar sobre a realidade, já traz, de antemão, as suas “verdades”. A filosofia, ao contrário, move-se entre o ceticismo e o dogmatismo – na verda- de, mais próxima do primeiro. Enquanto o cético declara que é impossível saber, o dogmático diz que tem certeza que sabe. O filósofo, por seu turno, afirma que não sabe, mas quer saber – tendo consciência, entretanto, que todo saber é par- cial e provisório. Com efeito, “a filosofia é a procura da verdade, não a sua posse” (ARANHA,1988, p. 51). Texto complementar Ciência e filosofia (DURANT, 2000, p. 26-27) Ciência é descrição analítica; filosofia é interpretação sintética. A ciência quer decompor o todo em partes, o organismo em órgãos, o obscuro em conhecido. Ela não procura conhecer os valores e as possibilidades ideais das coisas, nem o seu significado total e final; contenta-se em mostrar a sua realidade e sua operação atuais, reduz resolutamente o seu foco, concen- trando-o na natureza e no processo das coisas como são. O cientista é tão 20 Tópicos da Filosofia da Educação imparcial quanto a natureza no poema de Turguêniev: está tão interessado na perna de uma pulga quanto nos paroxismos criativos de um gênio. Mas o filósofo não se contenta em descrever o fato; quer averiguar a relação do fato com a experiência em geral e, com isso, chegar ao seu significado e ao seu valor; ele combina coisas numa síntese interpretativa; tenta montar, de maneira melhor do que antes, esse grande relógio que é o universo e que o cientista perquiridor desmontou analiticamente. A ciência nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na guerra; mas só a sabedoria – o desejo coordenado à luz de toda experiência – pode nos dizer quando curar e quando matar. Observar processos e construir meios é a ciência; criticar e coordenar fins é filosofia; e porque hoje os nossos meios e instrumentos se multiplicaram além de nossa interpretação e da nossa síntese de ideais e fins, nossa vida está cheia de som e fúria, não significando coisa alguma. Porque um fato nada é, exceto em relação ao desejo; não é completo, exceto em relação a um propósito e a um todo. Ciência sem filosofia, fatos sem perspectiva e avaliação não podem nos salvar da devastação e do desespero. A ciência nos dá o conhecimento, mas só a filosofia nos dá a sabedoria. Atividades 1. Com base nos trechos de Marilena Chauí e Will Durant que constam da aula, estabeleça os pontos de convergência e divergência entre a ciência e a filo- sofia. Convite à filosofia 21 2. Segundo as definições de filosofia que os filósofos foram estabelecendo ao longo dos tempos, relacione a coluna da esquerda com a da direita. 1. Bergson 2. Locke, Berkeley e Hume 3. Fichte 4. Wittgenstein 5. Kant 6. Husserl 7. Schopenhauer )( Ciência rigorosa que conduz à fenomenologia. )( Tem por objeto a substância da intuição. )( É um conjunto de atos desprovido de conteúdo específico. )( Crítica das ideias abstratas e reflexão da experiência. )( Ciência do princípio da razão como fundamento dos saberes. )( Sistema do saber absoluto. )( Conhecimento racional por princípios. 22 Tópicos da Filosofia da Educação 3. A respeito das proposições de Platão sobre a doxa (“opinião”, “senso comum”) e episteme (“ciência”), assinale, quanto aos enunciados seguintes, F (falso) ou V (verdadeiro). Pensar os problemas a partir da )( doxa é pensá-los à luz da filosofia. O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da reali- )( dade. Ao saber instituído ( )( episteme) contrapõe-se o saber instituinte (doxa). Doxa )( é uma reflexão rigorosa, radical e de conjunto. Episteme )( diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de maneira sistematizada. Para produzir filosofia Diante do aumento dos índices de violência em nosso país, não poucos têm defendido o incremento de medidas coercitivas como ampliação das penas, di- minuição da maioridade penal e sobretudo recrudescimento da repressão do Estado. Há ainda quem, em conversas privadas, defenda o uso da tortura na in- vestigação e a eliminação física dos criminosos. Dizem que “direitos humanos são para humanos direitos”. Segundo o que foi explanado na aula, essa linha de pensamento relaciona-se com a doxa ou a episteme? O que seria uma reflexão filosófica – rigorosa, radical e de conjunto – a respeito da violência social em nosso país? Convite à filosofia 23 Sócrates e a filosofia moral ocidental O mito é o nada que é tudo. Fernando Pessoa Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor. Pergunta, não responde. Indaga, não ensina. Marilena Chauí O gênio grego, o mito e as origens da filosofia Tanto o termo quanto o conceito de filosofia tem a sua origem na Grécia antiga, mas isso não significa que outros povos não tenham desenvolvido formas particulares de pensamento crítico. De maneira especial, encontra- mos algumas dessas formas na Índia, na China e na Pérsia. Além disso, os gregos usufruíram conhecimentos conquistados por povos mais antigos, como a astronomia dos caldeus e dos babilônicos e a agrimensura dos egípcios. No entanto, a forma de pensamento sistemático, racional e des- vinculado da religião que ficou conhecida como filosofia nós devemos às peculiaridades do gênio grego. Como era esse gênio? Podemos resumir as suas características em alguns traços básicos. Em primeiro lugar, o racionalismo, isto é, a consciência do valor má- ximo do conhecimento. Mas esse conhecimento não é abstrato e sim proveniente da expe- riência: é um conhecimento sensível. Todavia, esse conhecimento sensível não se fecha sobre si mesmo, mas transcende o real em direção ao absoluto. 26 Tópicos da Filosofia da Educação Sendo otimista, como consequência de seu racionalismo, o grego ten- derá também ao pessimismo quandopressentir toda a irracionalidade do real. Contudo, todos esses traços se coadunam em um equilíbrio harmônico, como aprazia grandemente ao senso de proporções do espírito helênico1. E também outras causas colaboraram para o surgimento do pensamento filosófico: Nos séculos VII e VI a.C., a Grécia sofreu uma transformação socioeconômica considerável. De país predominantemente agrícola que era, passou a desenvolver de forma sempre crescente a indústria artesanal e o comércio. Assim, tornou-se necessário fundar centros de distribuição comercial, que surgiram inicialmente nas colônias jônicas, particularmente em Mileto, e depois também em outros lugares. As cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarretando um forte crescimento demográfico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20) Foi nas cidades ou pólis – que na Grécia eram sobretudo cidades-Estado – que se desenvolveu outra importante criação grega: a política. O desenvolvimen- to urbano com as suas instituições, e o lugar privilegiado da península grega – entreposto estratégico entre Ocidente e Oriente, arena de encontro de muitas etnias e de diversas culturas, cujo contato e rivalidade ensejaram comparações, análises e reflexões – resultaram em um ambiente propício para o surgimento da filosofia. Entre os gregos, a arte e a filosofia são devidas sobretudo aos jônios2, que souberam exprimir em alto grau o gênio helênico. Mas como se deu, a partir desse gênio, e de maneira especial entre os jônios, a gênese da filosofia grega, matriz de todo o pensamento ocidental? Primeira- mente, os gregos, como todos os povos, explicavam os fenômenos do universo e as suas origens por meio do mito. A palavra mito vem do grego mythós e deriva de dois verbos, tendo os sentidos de “contar, narrar, falar alguma coisa a alguém” e “anunciar, nomear, designar”. Para os gregos, o mito era um discurso proferido para ouvintes que recebiam o relato como verdadeiro porque este está fundado na autoridade daquele que narra. Refere-se quase sempre a algo fabuloso que se supõe acontecido em um passado remoto, imemorial, impreciso. Os mitos podem reportar-se a grandes feitos heroicos, considerados frequentemente como o fundamento e o início de uma determinada comunidade ou do gênero humano como um todo. Podem também ter como objeto fenômenos naturais e, nesse caso, costumam ser apresentados alegoricamente. Além disso, muitas vezes os mitos contêm a personificação de coisas ou de acontecimentos. 1 Helênico: que se refere à Grécia antiga, chamada Hélade, ou aos gregos antigos. 2 Os jônios eram habitantes da Jônia, conjunto de colônias da Grécia antiga nas ilhas e no litoral asiático do Mar Egeu. Sócrates e a filosofia moral ocidental 27 Para os filósofos da Antiguidade, nem sempre o mito foi entendido como oposto à razão: alguns o admitiam como invólucro da verdade. Essa concepção foi adotada, por exemplo, por Platão, que considerava as narrações mitológi- cas como um modo de expressão de verdades que escapam ao raciocínio. Em todo caso, a explicação racional, objeto da filosofia, tem a sua origem a partir do mito, desenvolvendo-se a partir dele, até sua plena autonomia. Se a explicação mítica dos fenômenos do universo é encontrada em todos os povos e em todas as épocas, devemos aos gregos os primeiros e decisivos passos da explicação racional do mundo. São muitas as maneiras que os historiadores subdividiram a história da filoso- fia clássica, que compreende um período de mais de um milênio. De um modo geral, podemos sintetizar essa época em quatro períodos: Período naturalista – também chamado cosmológico3 ou pré-socrático do final do século VII ao final do século V a.C., quando a filosofia ocupa-se fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transforma- ções na natureza. Período humanista – também denominado antropológico4 ou socrático, do final do século V e todo o século IV a.C., quando o objeto principal da filoso- fia torna-se as questões humanas, como a ética e a política. Período sistemático – do final do século IV ao final do século III a.C., quan- do a filosofia tem por tarefa reunir e sistematizar todo o conhecimento anterior sobre o mundo e o ser humano. Período helenístico – também conhecido como greco-romano ou religio- so, do final do século III a.C. até o século VI d.C. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento cristão, a filosofia interessa-se principal- mente pelas questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre a humanidade e Deus. Os filósofos naturalistas e os sofistas O primeiro período da filosofia grega toma o nome de naturalista ou cosmo- lógico porque a especulação dos filósofos voltou-se para a natureza, o mundo exterior. Esse período surgiu e se desenvolveu fora da Grécia propriamente dita, 3 Em grego, cosmos significa “mundo” e por isso esse período recebeu o nome de cosmológico. 4 Em grego, ântropos significa “homem” e por isso esse período recebeu o nome de antropológico. 28 Tópicos da Filosofia da Educação nas florescentes colônias da Ásia Menor5 e do sul da Itália, tendo o seu início nos fins do século VII e o seu término dois séculos depois. A escola jônica A primeira expressão dessa fase, inaugurando por assim dizer o pensamento ocidental, é a chamada escola jônica, que floresceu em Mileto, na Ásia Menor, ao longo do século VI. Os jônios procuravam a substância última de todas as coisas em uma única matéria, animada por uma energia interior (daí hilozoísmo, “maté- ria animada”, ser o nome dessa doutrina). Seu primeiro representante é Tales de Mileto (624-546 a.C.), para quem a água era a substância primordial de todas as coisas. Para Anaximandro (610-547 a.C.), também de Mileto, o elemento primor- dial seria o apeiron (o indeterminado, sem fim e em constante movimento). Já para Anaxímenes (585-528 a.C.), também da mesma cidade, este princípio era o ar. O expoente mais célebre dessa escola é Heráclito (aproximadamente 540-470 a.C.), de Éfeso, na Jônia. Para ele, o elemento primordial é o movimento, o eterno vir-a-ser: tudo está sujeito a um fluxo perpétuo, representado pelo fogo. O vir-a- -ser é luta, conflito de opostos, antítese de vida e morte. Esse movimento só será reconduzido à estabilidade pela sabedoria universal, que determina o acordo entre as oposições. Por esse motivo Heráclito é considerado o pai da dialética, a qual considera que a razão das coisas está na constante luta dos contrários. É de Heráclito a ideia de que o mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio, pois ao tentar um segundo banho, o rio já terá mudado, já será outro por conta do contínuo fluxo das águas. E como as coisas mudam constantemente, aquele homem já não será o mesmo homem que da primeira vez. Pitágoras e a escola itálica Pitágoras (571-497 a.C.), fundador da escola pitagórica ou itálica, nasceu em Samos, uma ilha do Mar Egeu, mas pontificou nas colônias do sul da Itália. Para ele, o princípio primordial da realidade é representado pelo número, ou seja, pelas relações matemáticas. Toda a multiplicidade do mundo e o vir-a-ser é explicado pelo pitagorismo por meio da luta dos opostos, da qual os números pares e os ím- pares são paradigmáticos. Esse conflito é reconduzido ao equilíbrio pela harmonia matemática que rege o universo todo, tanto material quanto moral. Outros repre- sentantes dessa escola são Filolau de Crótona e Árquitas de Tarento. 5 Na Antiguidade, era conhecida como Ásia Menor a extremidade ocidental da Ásia, em linhas gerais correspondendo ao território do que conhe- cemos hoje como Turquia. Sócrates e a filosofia moral ocidental 29 Xenófanes e a escola eleata Essa escola empresta o seu nome da cidade de Eleia, no sul da Itália, e seu fundador é Xenófanes (cerca de 570-460 a.C.), nascido em Cólofon, na Ásia Menor. Mas o seu maior representante é Parmênides de Eleia (cerca de 530-460 a.C.), para quem o elemento original das coisas é o ser, uno, idêntico, imutável e eterno, representado como umesfera suspensa no vácuo, sendo que o mundo sensível não passa de ilusão. Zenão (cerca de 495-430 a.C.), também de Eleia, discípulo de Parmênides, é famoso pelas controvérsias nas quais tentava demonstrar a inexistência do movimento. A escola pluralista Empédocles (cerca de 492-493 a.C.), de Agrigento, Sicília, toma dos eleatas a doutrina da eternidade e da imutabilidade do ser, mas o divide em quatro ele- mentos fundamentais – a terra, a água, o ar e o fogo –, explicando a multiplici- dade e a mudança dos fenômenos mediante as várias recombinações desses elementos. Como Heráclito, acreditava na realidade do movimento. Pensava, entretanto, que o amor e o ódio são as duas forças primordiais que presidem a combinação dos quatros elementos. Já para Anaxágoras (cerca de 500-428 a.C.), a realidade é constituída de uma infinidade de minúsculas partículas, eternas e imutáveis, de natureza diversa, para explicar a variedade das coisas. O nous é a inteligência imanente que con- trola e seleciona essas partículas, tirando-as do caos e ordenando-as conforme sua similaridade. Todavia, Demócrito (460-370 a.C.), natural de Abdera, na Trácia6, é o maior re- presentante dessa corrente, também chamada atomística. Para ele, o ser de Par- mênides é dividido em uma infinidade de corpúsculos simples e homogêneos, denominados átomos, os quais, suspensos no vazio, movem-se devido à diversi- dade de tamanho e à consequente diversidade de gravidade de cada uma dessas partículas. Os átomos, o vazio e o movimento constituiriam a razão de tudo. 6 A Trácia é uma região do sudeste da Europa, englobando o que hoje é o nordeste da Grécia, o sul da Bulgária e a parte europeia da Turquia. 30 Tópicos da Filosofia da Educação Os sofistas e a arte da persuasão De 500 a 448 a.C., houve as chamadas Guerras Médicas, relatadas em Histó- rias, de Heródoto. As cidades jônicas, pertencentes à Grécia e situadas na Ásia Menor, revoltaram-se contra o Império Persa e foram apoiadas por algumas ci- dades do continente, por fim sendo lideradas por Atenas. Depois das vitórias dos gregos sobre os persas, assistimos ao triunfo de Atenas, que torna-se o eixo social, político e cultural do universo grego. É o chamado século de Péricles7, quando a democracia encontra-se em seu auge. A democracia ateniense, que se tornaria fundamental para o desenvolvimento da filosofia, tem uma característi- ca essencial que a distingue da democracia moderna: é uma democracia direta, sem a mediação de representantes eleitos. Ora, para lograr que a sua opinião fosse acatada nas assembleias, o cidadão precisava ser dotado de talentos ora- tórios. Aqui entram os sofistas, mestres da eloquência, encarregados de ensinar aos jovens das famílias das classes mais abastadas a arte da persuasão. Professores encarregados de transmitir os princípios da retórica e da oratória, os sofistas alegavam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam eivados de erros, além de não terem nenhuma utilidade para a vida da pólis. Portanto, com os sofistas há uma mudança de foco na pesquisa filosófica: a preo- cupação com a natureza, que esteve no centro das atenções dos pensadores an- teriores, começa a refluir, dando lugar ao interesse pelo humano – daí também o nome de antropológica ou humanista dado a essa fase. “Com efeito, os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão da physis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne à vida do homem como membro de uma sociedade” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 73). Protágoras (cerca de 480-410 a.C.), um dos maiores nomes da sofística – junto com Górgias (484-375 a.C.) e Hípias (cerca de 435-343 a.C.) –, dizia que o homem é a medida de todas as coisas. Em relação ao período anterior, isso significava uma abertura para o subjetivismo: dizer que o homem é a medida de todas as coisas significa dizer “que as coisas são como lhe parecem; não, porém, como aparecem ao homem em geral, mas como aparecem ao homem hic et nunc [“aqui e agora”]: é verdadeiro – e é bem – o que aparece como tal a cada qual e a cada momento” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 109). Daí porque não é raro os sofistas serem acusados de relativistas e céticos – para os relativistas, tudo pode ser verdade, enquanto para os céticos não é possível alcançar a verdade. 7 Péricles foi uma das principais lideranças políticas de Atenas. Sua época, o século V a.C., foi um período de esplendor para Atenas, no qual convi- veram grandes nomes como Fídias, Sófocles, Policleto, Calícrates e Sócrates. Sócrates e a filosofia moral ocidental 31 É nesse contexto que aparece Sócrates, como um meteoro, dividindo a filoso- fia grega em antes e depois dele. O filho da parteira Nascido em Atenas (470 ou 469 a.C.), filho de um escultor e de uma parteira, desde cedo Sócrates se entregou à reflexão e ao ensino filosófico, não se deixan- do levar pelos cuidados da vida doméstica e da política. No entanto, ao contrá- rio dos outros filósofos, não fundou uma escola, preferindo ensinar em lugares públicos, como nos ginásios, nas praças e nos mercados. Exerceu um enorme fascínio sobre os atenienses, especialmente os mais jovens, mas a sua ironia e a sua atitude crítica foram-lhe aos poucos granjeando inimizades entre as par- celas influentes da sociedade. Por fim, foi acusado de corromper a juventude e demonstrar impiedade diante dos deuses da cidade. Todavia, Sócrates não quis se defender. Condenado à pena capital, morreu aos 71 anos, em 399 a.C., ingerindo cicuta – um veneno extremamente letal, ex- traído da planta de mesmo nome –, depois de ter recusado os projetos de fuga propostos por alguns de seus discípulos. Sua morte foi o coroamento de uma vida dedicada ao conhecimento e à virtude, já que ele se transformou no marco de alguém que preferiu morrer em vez de negar suas convicções. Sócrates não escreveu nada: tudo que sabemos de sua pessoa nos chegou por meio de seus discípulos, como Xenofonte e Platão – e não são poucos os de- bates da crítica para estabelecer o que é confiável nessas fontes. O certo, porém, é que Sócrates se beneficia da virada antropológica efetuada pelos sofistas. Contudo, ao contrário destes, ele não se interessa pelo ser humano empírico (o ser humano individual, como é visto e apreendido pelos sentidos), mas pelo humano em geral, com propósitos morais. Como os sofistas, ele começa por criticar o senso comum, o saber instituído, a opinião, a doxa – mas não para aí, o que não seria mais do que um ceticismo: ele transcende o saber imediato em busca do saber autêntico, que seria racio- nal e perene. Esse conhecimento estaria dentro de cada um. Para encontrá-lo, Sócrates, um filho de parteira, serve-se de uma técnica por ele chamada de mai- êutica, um método que consiste em “parir”, “dar à luz” ideias complexas a partir de perguntas simples, articuladas a partir de um determinado assunto. Assim ele explicava o seu método: 32 Tópicos da Filosofia da Educação A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulheres, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande superioridade de minha arte consiste [...] na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera ou faculdade ou fruto legítimo e verdadeiro. (apud PENHA, 1994, p. 35) Daí também a sua máxima: gnothi seauton, “conhece-te a ti mesmo”. O aludido preceito socrático pretende mais do que orientar o indivíduo ao simples conheci- mento de si próprio. Seu alcance é maior: é um convite [...] ao aprofundamento da condição humana, do qual [...] nos desviamos quando levados pelo conhecimento enciclopédico sobre a natureza das coisas. (PENHA, 1994, p. 33) Partindo desse pressuposto, Sócrates constrói uma ética racionalista, na qual a virtude passa a ter um papel fundamental. Mas em que consiste a virtude? Antes de mais nada, ela se identifica com o conhecimento.Os gregos chama- vam-na areté, “significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfei- çoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 88). Desse modo, ele nos diz que a causa do mal é a ignorância: se conhecêssemos o bem, não praticaríamos o mal. Por essa razão, o conhecimento de si mesmo é condição suficiente e necessária para a obtenção da areté. O autodomínio e a liberdade são as bases para se atingir a virtude. Para ele, o ser humano é o artífice da sua própria felicidade ou infelicidade. Mas, afinal, o que é o ser humano para Sócrates? “O homem é sua alma, en- quanto é perfeitamente a sua alma que o distingue especificamente de qual- quer outra coisa. E, por alma, Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 87). Por isso, a essência do ser humano – segundo Sócrates – é sua psyché. Nesse sentido, ele é considerado o fundador da filosofia moral do Ocidente. Outra ideia relevante no pensamento socrático é a noção de humildade. Sua máxima “só sei que nada sei” é ilustrativa disso. Quando era elogiado por seus discípulos, ele fazia tal afirmação. Para demonstrar que esse era um valor incor- porado em sua prática cotidiana, Sócrates construía suas afirmações a partir da relação dialógica com seus interlocutores. Além disso, a dialética socrática é per- passada pela ironia. Em sua etimologia, o conceito de ironia significa “a arte de interrogar”. Quando Sócrates utilizava tal recurso, tinha por objetivo mostrar que aquele com quem estava dialogando na verdade estava ignorando o que julga- va conhecer. Por meio desse processo, desejava tornar seu interlocutor cônscio da própria ignorância para que ele pudesse partir em busca da verdade. Sócrates e a filosofia moral ocidental 33 Finalmente, mais que suas palavras, sua postura como filósofo mostrou-nos que a filosofia não é uma forma de conhecimento hermético, fechado, reservado somente a uma elite de iniciados: Sócrates interpelava os transeuntes com quem se deparava e discutia com eles os temas do cotidiano. Refletia, por exemplo, sobre a liberdade, o amor, a amizade, a verdade – questões que nos tocam a todos. Comentando a morte de Sócrates, Marilena Chauí afiança que [...] o maior erro dos juízes foi não terem ouvido o mais importante ensinamento de Sócrates, isto é, que todos os homens são iguais porque todos são capazes de ciência, todos são dotados de uma alma racional na qual se encontra a verdade e todos são capazes de virtude. Razão, ciência, verdade e virtude são universais e todos os homens são, por natureza, capazes delas. (CHAUÍ, 2000, p. 155) Mártir da filosofia e da fidelidade aos seus princípios, Sócrates permanece vivo até hoje, não só em seu exemplo, mas sobretudo como base da construção do edifício da moral do Ocidente. Texto complementar Sócrates e Polo (PLATÃO, 1986, p. 98-102) SÓCRATES: – [...] Vê, pois, se estás disposto a ceder-me o turno da argumen- tação, respondendo às perguntas. Eu creio deveras que nós – eu, tu e toda gente – julgamos pior cometer a injustiça do que sofrê-la, e pior do que ex- piá-la não a expiar. POLO: – Mas, a meu ver, nem eu, nem ninguém mais, o admitimos. Quem, se não tu, a cometer uma injustiça, preferiria sofrê-la? SÓCRATES: – Eu? Sim, como tu e toda gente. POLO: – Ora, ora! Nem eu, nem tu, nem ninguém mais. SÓCRATES: – Então, não vais responder? POLO: – Mas como não? Estou até ansioso por saber o que, afinal, vais dizer! SÓCRATES: – Então, para o saberes, faze de conta que estou principiando a inter- rogar-te e dize-me, Polo, o que achas pior: praticar uma injustiça, ou sofrê-la? 34 Tópicos da Filosofia da Educação POLO: – Sofrê-la, ora! SÓCRATES: – E o que é mais feio? Ser autor ou ser vítima duma injustiça? Responde. POLO: – Ser autor. SÓCRATES: – Sendo mais feio, não é, então, pior? POLO: – Absolutamente não. SÓCRATES: – Compreendo. Não consideras a mesma coisa, parece, o belo e o bom, o mau e o feio. POLO: – Não, realmente. SÓCRATES: – Que dizes a isto? Todas as coisas belas, como objetos, cores, formas, ressonâncias, costumes, é sempre sem relação alguma que lhes atri- buis a beleza? Por exemplo, comecemos pelos objetos belos; não os chama belos tendo em vista, em cada caso, os fins a que servem, ou algum prazer, caso se delicie quem os contempla? Fora desses pontos de vista, podes men- cionar alguma outra razão da beleza dos objetos? POLO: – Não posso. SÓCRATES: – Não se dá o mesmo com tudo mais? Formas, cores, não as declara belas em razão de certo prazer ou certa utilidade, ou por ambos os motivos? POLO: – Sim. SÓCRATES: – Não é assim também quanto às ressonâncias e tudo que con- cerne à música? POLO: – Sim. SÓCRATES: – Outrossim, no tocante às leis e costumes, sem dúvida, os que são belos não fogem a estas qualificações de úteis, agradáveis, ou ambas as coisas. POLO: – Acho que não. SÓCRATES: – À beleza de instrução sucede o mesmo, não é? POLO: – Por sem dúvida! Agora, Sócrates, estás acertando, quando defines o belo pelo prazer e pelo bem. SÓCRATES: – Portanto o feio será aferido pelos opostos, pela dor e pelo mal. POLO: – Forçosamente. SÓCRATES: – Quando, portanto, de duas coisas belas, uma seja mais bela, Sócrates e a filosofia moral ocidental 35 assim é por sobrelevar num dos dois predicados referidos, ou em ambos, isto é, ou no prazer, ou na utilidade, ou nesta e naquele. POLO: – Perfeitamente. SÓCRATES: – E quando de duas coisas feias uma é mais feia, assim é por so- brelevar ou na dor, ou no dano. Ou não é forçosamente assim? POLO: – É, sim. SÓCRATES: – Adiante. Que dizíamos há pouco sobre praticar e sofrer injusti- ça? Não dizias que sofrê-la é pior, mas praticá-la é mais feio? POLO: – Dizia. SÓCRATES: – Então, se praticá-la é mais feio do que sofrê-la, assim é por ser mais doloroso e sobrelevar em dor, ou dano, ou ambas as coisas. Não é isso também forçoso? POLO: – Como não? SÓCRATES: – Ora, examinemos em primeiro lugar se praticar uma injustiça so- breleva em dor sofrê-la e se padecem mais os autores do que as vítimas. POLO: – Isso, Sócrates, absolutamente não. SÓCRATES: – Então, não é em dor que sobrelevas? POLO: – Não, por certo. SÓCRATES: – Se na dor, não, não sobrelevaria portanto em ambos os motivos. POLO: – Não, é claro. SÓCRATES: – Resta, pois, a outra razão? POLO: – Sim. SÓCRATES: – O dano? POLO: – Naturalmente. SÓCRATES: – Ora, se praticar uma injustiça sobreleva em dano, será pior do que sofrê-la. POLO: – Claro que sim. SÓCRATES: – É ou não é fato que anteriormente a maioria das pessoas e tu também concordáveis em que é mais feio ser o autor do que a vítima? POLO: – Sim. 36 Tópicos da Filosofia da Educação SÓCRATES: – E revelou-se agora pior. POLO: – Aparentemente. SÓCRATES: – Acaso, entre o mais e o menos danoso e feio, preferirias o pri- meiro? Não hesites em responder, Polo; não te fará dano algum. Ao contrário, confia-te bravamente à razão como a um médico e responde sim ou não à minha pergunta. POLO: – Bem, Sócrates, eu não preferiria. SÓCRATES: – Alguém no mundo o faria? POLO: – Não creio, a pensar assim. SÓCRATES: – Portanto, eu dizia a verdade: nem eu, nem tu, nem qualquer outra pessoa preferiríamos cometer injustiça a sofrê-la, por ser mais danoso. Atividades 1. Segundo o princípio primordial que os filósofos naturalistas ou cosmológi- cos aventaram para a origem das coisas, relacione a coluna da esquerda com a da direita. a) Anaximandro de Mileto b) Demócrito c) Pitágoras d) Tales de Mileto e) Empédocles f) Anaxímenes de Mileto g) Heráclito )( A água. O )( apeiron (o indeterminado, sem fim e em terno movimento). )( O ar. )( Terra, água, ar e fogo. )( O movimento, o vir-a-ser representado pelo fogo. )( O número. )( O átomo. Sócrates e a filosofia moral ocidental 37 2. Com baseno conceito de maiêutica e no exemplo desse conceito apresenta- do no texto complementar, vamos fazer um exercício prático. Para tanto, vamos dividir a turma dois a dois. Em cada dupla, um faz o papel de Sócrates e o outro o de interlocutor do filósofo. O primeiro, com base no conteúdo da aula, deve procurar extrair a verdade a partir do método socrá- tico de pergunta e resposta. O segundo deve se deixar conduzir até que do senso comum se chegue a ideias mais pertinentes e perspicazes. Depois, os alunos devem registrar os resultados. Eis alguns exemplos de temas que podem ser abordados nesses diálogos socráticos: A educação é o único caminho para o desenvolvimento de um país. A mulher só se realiza plenamente na maternidade. Artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua. 38 Tópicos da Filosofia da Educação 3. Leia abaixo uma letra do compositor Chico Buarque. Bom conselho Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança Venha, meu amigo Deixe esse regaço Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu faço Aja duas vezes antes de pensar Corro atrás do tempo Vim não sei de onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio o vento Na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade Agora responda: quais são os pontos de contato entre essa letra e o método socrático? Sócrates e a filosofia moral ocidental 39 Para produzir filosofia Em um país de alfabetização tardia e com péssimos índices de leitura, somos levados a acreditar em qualquer opinião apresentada em letra impressa. Mas nem sempre essas opiniões são o resultado de uma reflexão de índole filo- sófica, isto é, que vai até a raiz do problema. Muitas vezes, elas não passam do que realmente são, isto é, uma opinião. A exemplo de Sócrates, procure desconstruir o que há de superficial – isto é, atrelado ao senso comum – em algumas das ideias veiculadas nos jornais da imprensa diária. Platão e o nascimento da razão ocidental Platão: atleta e poeta Ao contrário de Sócrates, que era filho de membros das classes popu- lares, Platão era de ascendência aristocrática. Seu pai orgulhava-se de ter o rei Codros entre os seus antepassados e sua mãe de ter parentesco com Sólon1. Nascido em Atenas (428 ou 427 a.C.), seu nome original era Aris- tócles. Platão é apelido, derivado, segundo alguns, de seu porte atlético (ombros largos) ou, segundo outros, da largueza de seu estilo. Com sua origem, era natural que desde cedo Platão visse na carreira política o seu destino. Aos 20 anos de idade travou contato com Sócrates – 40 anos mais velho – e por oito anos usufruiu de seus ensinamentos e de sua amizade. A morte trágica do mestre imprimiu uma marca em todas as fases de seu pensamento. Ele passou a desprezar a democracia e as massas, ideando um modo de governo dirigido pelos mais sábios e capazes. A partir disso, fez várias viagens com o intuito de instruir-se. Conheceu o Egito, o sul da Itália, (onde estabeleceu relações com os pitagórigos), a Sicília (onde não teve sucesso no intento de influenciar positivamente o rei, tendo sido vendido como escravo, sendo resgatado mais tarde). De volta a Atenas, fundou nos jardins do parque dedicado ao herói Academos a sua célebre escola, destinada a desenvolver as ideias de Sócrates e a rebater as dos sofistas. A Academia, como ficou conhecida, adquiriu grande prestígio, a ela acorrendo homens de todos os cantos e ali sendo desenvolvidos os ideais de uma educação para a autonomia do indivíduo. O ideal da educação autônoma significa: 1 Sólon (640-560 a.C.) foi um estadista e poeta ateniense. Autor de um código de leis que introduziu grandes reformas nos primeiros 25 anos do século VI a.C., em Atenas. Essas leis enfraqueceram significativamente o poder da aristocracia, que se baseava nos privilégios de nascimento. Sólon substituiu as leis draconianas por um estatuto menos severo, que se tornaria a base para as leis clássicas surgidas posteriormente. 42 Tópicos da Filosofia da Educação em primeiro lugar, ensinar o livre espírito de pesquisa, o compromisso do pensamento apenas com a verdade; em segundo lugar, estimular a autodeterminação ética e política. Em vez de transmitir doutrinas, a Academia ensina a pensar ou, como lemos no Mênon, que é um dos textos de Platão, “o dever de procurar o que não sabe- mos”. Em vez de transmitir valores éticos e políticos, a Academia ensina a criá-los, isto é, a propô-los a partir da reflexão e da teoria. Ali estudaram, entre outros, o matemático Eudóxio e o jovem Aristóteles. Nela prevaleceu o espírito socrático: a discussão oral e o desenvolvimento do vigor intelectual do estudante, sendo menos importantes as exposições escritas (CHAUÍ, 2000, p. 175). Finalmente, em 347 a.C., aos 80 anos de idade, reconhecido e admirado, morre Platão, tendo sido velado por uma verdadeira multidão. De sua grandeza nos dá testemunho um dos maiores pensadores do século XX: “Poucos filósofos, se é que algum, alcançaram a sua amplitude e profundidade e nenhum o supe- rou. Qualquer pessoa que se dedique à investigação filosófica será insensata se ignorá-lo” (RUSSELL, 2002, p. 107). Praticamente toda a sua produção chegou até nós, compreendendo 36 diá- logos, 13 epístolas e uma coleção de definições, esta provavelmente apócrifa – isto é, pode ser que tais definições sejam erroneamente atribuídas a Platão, não há certeza se a sua autoria realmente é do mestre. Seu interesse abarca as mais diversas áreas do conhecimento: ciências, matemática, retórica, arte, política etc. Suas obras mais importantes e conhecidas são: Apologia de Sócrates, em que resgata os pensamentos do mestre; O Banquete, em que versa sobre o amor de uma forma dialética; A República, em que analisa desde a política e a ética até questões metafí- sicas, como a imortalidade da alma. No entanto, um problema sobre a real compreensão do pensamento platôni- co diz respeito às “doutrinas não escritas”. Antigas fontes referem que, na Acade- mia, Platão ministrou cursos cujo teor ele não quis deixar por escrito. Para ele, “O conhecimento dessas coisas não é de forma alguma transmissível como os outros conhecimentos” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20). Para muitos estudiosos, esse as- pecto é decisivo para se ter uma visão de conjunto da filosofia platônica, e essa tradição oral pode ser de certa forma reconstituída pelos escritos dos discípulos de Platão. Além disso, é bom ter presente que Platão, a despeito de ter expulsado Platão e o nascimento da razão ocidental 43 de sua república os poetas, é um filósofo de inspiração poética. Por trás do sábio, é visível, em sua produção, a veia do artista, manifestada no recurso às metáforas, às fábulas e aos mitos. No tocante ainda à sua obra, deve-se destacar a influência de Sócrates. É ver- dade que em seus escritos percebem-se elementos de diversos filósofos pré- -socráticos, como Parmênides e Heráclito, por exemplo. Contudo, nenhuma influência foi tão grande e decisiva quanto a de Sócrates, a ponto de em seus livros, sobretudo nos diálogos socráticos, ser difícil distinguir aquilo que é do mestre e aquilo que é efetivamente de Platão. Assim, é por meio dos textos de Platão que conhecemos as ideias de Sócrates, e é por meio de Sócrates, tornado seu porta-voz, que conhecemos as ideias de seu discípulo mais célebre. As vigas do pensamento platônico Assim como em Sócrates, para Platão a filosofia tem um objetivo prático, moral: a incumbência de resolver os grandes problemas da vida. Todavia, ao contrário de seu mestre, que restringia o âmbito da filosofia ao ser humano, Platão a estende a toda a realidade. Nas pegadas de Sócrates, Platão também distingue um conhe- cimento sensível (a opinião, a doxa) e um conhecimento intelectual (a ciência, a episteme). Mas enquanto Sócrates fazia derivar o segundo do primeiro, para Platão o universal e imutável conhecimento intelectualnão pode se originar do conheci- mento sensível, particular e mutável. Nas palavras de João da Penha (1994, p. 36): As ideias estão separadas das coisas, o mundo inteligível está fora e acima do mundo sensível. A multiplicidade e instabilidade das coisas resultam de uma ilusão dos sentidos. A única reali- dade objetiva, perfeita, são as ideias, não passando aquilo que vemos de pálidas representa- ções daquelas. As coisas são cópias imperfeitas e fugazes de arquétipos de modelos ideais. É no mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste, que habitam as ideias, essência de tudo o que existe e de suas perfeições. Jostein Gaarder (1999, p. 100) apresenta um exemplo significativo dessa teoria de Platão: Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o “exemplar” isolado do cavalo, este sim “flui”, “passa”. Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira “forma do cavalo” é eterna e imutável. Desse modo, os conceitos ou ideias que temos em nossa mente são eternos e imutáveis, e por isso, necessários2. São os arquétipos, isto é, formas ou mode- los espirituais a partir dos quais todos os fenômenos são formados. A realidade, 2 Necessário, em filosofia, é tudo aquilo que não pode não ser; que não há outra forma de ser. É algo inelutável. 44 Tópicos da Filosofia da Educação por sua vez, é mutável e imperfeita, ou seja, contingente3. O conhecimento por meio dos sentidos e o conhecimento por meio da razão trazem resultados com- pletamente diferentes. Os dados dos sentidos apenas nos permitem apreender simulacros (cópias imperfeitas) das ideias, levando-nos a formular opiniões não raro contraditórias e superficiais sobre a realidade. No entanto, a experiência sensível que nos é dada pelos sentidos é funda- mental para desencadear o processo de conhecimento. O conhecimento ocorre quando nos recordamos imperfeitamente dos arquétipos que a alma teria con- templado no mundo das ideias antes do nascimento corporal. A esse proces- so dá-se o nome de anamnesis (reminiscência). Trata-se, todavia, do nível mais baixo do conhecimento. O mundo das ideias, por sua vez, só pode ser intuído pela razão, o que implica uma ruptura radical com os dados dos sentidos a que estamos acostumados. O conhecimento, para Platão, passa ainda por três níveis fundamentais: o conhecimento sensível, que é efetuado pelos sentidos no mundo dos fenômenos; o conhecimento discursivo, que implica o conhecimento da matemáti- ca, a única ciência que possui uma natureza não corpórea; o conhecimento intelectivo, ao qual só a filosofia é capaz de levar, por meio de um corte completo com a experiência sensorial. Por meio desses três níveis, a mente se eleva do múltiplo e sensível até o uno, universal e inteligível. Para Platão, ainda, o divino é representado pelo mundo das ideias, no ápice do qual se encontra a ideia do bem, seguida de três ideias que a caracterizam: a beleza; a proporção; a verdade. Como a multiplicidade dos fenômenos é unificada pelas respectivas ideias, unas e imutáveis, do mesmo modo a multiplicidade das ideias encontra a sua unidade na ideia do bem, que é o ser sem o qual não se entende o vir-a-ser. E, embora ela apresente atributos divinos, a essa realidade suprema falta o poder 3 Contingente, em filosofia, é o contrário de necessário, ou seja, é aquilo que existe mas poderia não existir. Platão e o nascimento da razão ocidental 45 criador, ou melhor, ordenador, de que é dotado o demiurgo, o qual, ainda que superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para ordenar o mundo, extraindo o cosmos do caos. Da mesma maneira que o demiurgo, mas subordinado a ele, as almas têm uma função mediadora entre as ideias e a matéria. Segundo Platão, existem três tipos de alma: alma concupiscente, própria dos vegetais; alma irascível, própria dos animais; alma racional, exclusiva do ser humano. Mas no ser humano os três tipos de alma encontram-se reunidos hierarqui- camente. A alma racional, destinada ao conhecimento das ideias, localiza-se na cabeça e tem como virtude principal a sabedoria. A alma irascível, asso- ciada à vontade, situa-se no peito e tem por virtude cardeal a força. A alma concupiscente, por seu turno, tem por sede o ventre e como virtude capital, a moderação. A alma racional controla as outras duas, e por meio das três virtu- des obtém-se o pleno domínio do corpo e das paixões, alcançando-se assim a justiça e a felicidade. Nesse sentido, o corpo seria um obstáculo para a natureza racional do ser humano. A moral platônica, portanto, ancorada no dualismo corpo-alma, é uma moral ascética, de renúncia ao mundo. O objetivo da humanidade encontra-se além deste mundo, na contemplação do mundo das ideias. Quanto ao destino individual das almas depois da morte, segundo Platão, as almas dos filósofos e de todos que souberam se desprender do mundo sensível voltam para o mundo das ideias; as dos seres apegados à matéria vão para um lugar de danação; enquanto as outras se reencarnam em corpos mais ou menos nobres segundo o bem ou mal que tiverem praticado. Aliás, para Platão, cabe também aos filósofos o governo de sua república ideal e nela haveria basicamente três classes: a dos filósofos, encarregados da direção do estado; a dos guerreiros, responsáveis pela sua defesa; a dos produtores – agricultores e artesãos –, os quais, submetidos aos ou- tros, seriam os responsáveis pela sua sustentação econômica. 46 Tópicos da Filosofia da Educação Compreendendo que os interesses privados, domésticos, não raro entram em choque com os interesses da coletividade, Platão não hesita em sacrificar os primeiros em proveito dos últimos. Todavia, se a natureza do Estado é sobretudo ética, o seu fim principal é pedagógico: antes de mais nada, o Estado deve zelar pelo bem espiritual dos cidadãos, educando-os na virtude, e somente em um segundo momento ele deve se ocupar com o bem-estar desses cidadãos. O legado de Platão Se Aristóteles, o mais famoso discípulo de Platão, seria o responsável por grande parte da construção do arcabouço científico do Ocidente, caberia ao mestre o estabelecimento de sua estrutura espiritual. Opondo o mundo das ideias ao mundo da matéria, Platão criaria as condições – que seriam reforçadas mais tarde pelo cristianismo – para que se produzisse durante muitos séculos uma repulsa profunda por tudo que estivesse relacionado com a ordem material e sensível, como o corpo e a sexualidade, em proveito do mundo do espírito, da mente, das ideias. Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na identidade ocidental, nós devemos a Platão. Não poucos pensa- dores, entre os quais Nietzsche, tentariam mais tarde desconstruir essa herança. Em todo caso, de certa forma Platão foi a pedra fundamental do edifício filosó- fico e espiritual do Ocidente. Não é tarefa de pouca monta livrarmo-nos de sua influência. Textos complementares Imaginemos uma caverna separada do mundo (CHAUÍ, 2000, p. 195) Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, ge- ração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada nem se locomover, forçados a olharem apenas para a parede do fundo e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passam no mundo exterior Platão e o nascimento da razão ocidental 47 sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais, cujas sombras são projetadas na parede da ca- verna. Os
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