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MUSICA NO ENCONTRO DAS CULTURAS

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MÚSICA NO ENCONTRO DAS CULTURAS 
Uma introdução à temática da música em culturas diversas 
 
Leonardo Boccia1 
 
1. PRELÚDIO 
 
Música e Cultura são conceitos amplos que abrigam grande variedade de temas e 
variações ad libitum, por meio dos quais poderíamos ensaiar e compor ao infinito. No 
entanto, na observação e na análise de alguns dos principais tópicos, nota-se que as 
referências bibliográficas sobre o assunto em diversas disciplinas acadêmicas, devido à 
diversidade de métodos e sistemas de notação, pouco dialogam entre si. O objetivo deste 
ensaio é discutir sobre música e cultura sem perder o ritmo necessário para, em conjunto 
com autores de diferentes campos de estudo, compor uma peça atual sobre o tema. 
Elementos de fusão dos conceitos em pauta, quais cultura da música, cultura da escuta 
musical, música no encontro das culturas, entre outros, servem de incentivo para a 
expansão desta narrativa, que pretende se estender para além dos conceitos consagrados, 
pela revisão crítica destes, frente às transformações sociais ocorridas em décadas recentes. 
 
Cultura da música, por exemplo, pode ser entendida como uma subestrutura da 
cultura. Contudo, a música se manifesta na cultura como uma categoria bastante 
independente. Cultura da escuta musical, entretanto considerando-se as “midiamorfoses” 
dos recentes avanços tecnológicos, é aqui entendida como uma variação, sem precedentes 
históricos, no jeito de se escutar música nas sociedades contemporâneas. Mas o tema 
“música no encontro das culturas” talvez seja o mais complexo a ser desenvolvido em um 
ensaio conciso como este. A experiência humana da música, segundo os etnomusicólogos, 
nas palavras de Bruno Nettl (1980, p. 2), “parece girar em torno de dois ideais: a unidade 
básica da humanidade como mostrada em música e no comportamento musical e a infinita 
variedade de fenômenos musicais encontrados no mundo”2. Nesse sentido, o encontro com 
os sistemas musicais de outras culturas prevê a pesquisa de campo e as decisões sobre que 
tipo de trabalho precisa ser feito e quais os métodos e as técnicas a serem utilizados. Por 
outro lado, devido à constante migração de músicos instrumentistas e compositores, alguns 
gêneros da música, assim como os próprios instrumentos musicais, passam por 
transformações intensas ao longo do tempo, podendo assumir novas funções no âmbito do 
fazer musical. Ritmos como habanera, tango e forró são exemplos do entrecruzamento 
musical ao longo do tempo. Instrumentos como acordeom e violão, entre outros, são 
plataformas de “aculturação instrumental” para reproduzir ritmos característicos e 
melodias unificadoras de uma cultura; esses instrumentos recebem pulsações musicais 
distintas em cada região e se tornam populares e preferidos. As técnicas instrumentais 
desenvolvidas em cada cultura musical tornam-se peculiares e distintivas, e podem se 
tornar complexas ao serem reproduzidas no mesmo instrumento por talentosos 
instrumentistas de outras tradições. Alguns instrumentos musicais preservam o mesmo 
formato ao longo de milhares de anos. É o caso dos instrumentos tradicionais de culturas 
 
1 Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, compositor, instrumentista formado pela 
Hochschule der Künste Berlin na Alemanha. Leonardo Boccia é professor do Instituto de Humanidades, 
Artes e Ciências da UFBA, coordenador do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e 
Sociedade e professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal 
da Bahia. Desde 2005, coordena convênios de estudos internacionais entre a UFBA e as universidades de 
Roma La Sapienza (Itália) e a Jacobs University Bremen (Alemanha). 
2 Tradução nossa. 
 
2
milenares como a da Índia, em que se cultivam sistemas de transmissão oral das tradições 
musicais; a memória humana como patrimônio valioso para a preservação de tesouros 
musicais. 
 
Entre tradição e modernidade, na convivência com diversos meios de extensão, os 
seres humanos têm produzido magníficas formas, obras e gêneros musicais. Contudo, as 
classes dominantes têm exercido paulatinamente o poder “material” e “espiritual” de 
dominação. A indústria cultural e a sofisticada tecnologia de distribuição massiva de 
produtos culturais têm alcançado os lugares mais recônditos do planeta e têm produzido o 
que pode ser definido de “aculturação musical em rede”. 
 
Mais pessoas conectadas à rede mundial de computadores têm como instrumento 
musical de intercâmbio com o mundo a placa de som de seu próprio PC. A música 
eletrônica e os softwares livres propiciam o intercâmbio criativo entre músicos, técnicos e 
a produção de composições e arranjos coletivos disponibilizados no mundo virtual. Os 
sonidos digitalizados, purificados, sintetizados e gravados em ambientes sonoros próprios 
do mundo virtual propõem uma dimensão acústica poderosa e solene com que é possível 
conquistar uma coletividade submissa de ouvintes extasiados. 
 
Os espetáculos musicais ao vivo são manipulados por equipamentos, plugins, 
módulos de efeitos especiais, síntese sonora em tempo real, entre outros recursos 
tecnológicos; o ambiente acústico não amplificado parece estar em contradição com a 
sociedade hodierna. Novos equipamentos culturais — teatros e salas de concerto — são 
munidos de recursos de amplificação antes considerados desnecessários. Mesmo os 
equipamentos domésticos de recepção conquistam mudanças qualitativas que transformam 
a cultura da escuta e da fruição musical das representações espetaculares gravadas em 
mídia digital. 
 
Nesse universo de dominação tecnológica, o tema da música no encontro das 
culturas pode significar muito pouco ou ser uma oportunidade para discutir criticamente 
novos e antigos conceitos de criação, inovação musical e dominação cultural. 
 
1.1 Espetáculo e culturas 
 
O espetáculo é um evento cultural vinculado à sociedade. Normas e desafios sociais 
se refletem nesses eventos desiguais, assim como as próprias contingências nas sociedades 
urbanas e rurais. Um tipo de construção ou discurso estético em forma de espetáculo pode 
ser percebido por grupos ou comunidades diversas como antagônico, por representar algo 
que agride o gosto e/ou as expectativas em jogo — divertimento, lazer, instrução, educação 
— e provoca introvisões incômodas e alheias aos desejos daqueles grupos. 
 
Por isso, espetáculos cultivados e reconhecidos por um grupo social podem se 
tornar hostis para outros, mesmo quando falamos de eventos culturais ou de espetáculos 
amplamente aceitos em uma cultura hegemônica. Seguindo esse raciocínio, é quase 
impossível pensar em transferir os mesmos espetáculos para espaços ou territórios 
diferentes sem encontrar intermediações que resultem na produção de eventos 
espetaculares com garantia de público e de aceitação por parte dele; sem contar com a 
ajuda da mídia — poder de convencimento dirigido pela elite econômica de um país —, 
que se incumbe de divulgar antecipadamente a chegada daquele evento nacional ou 
internacional; sem distribuir em todos os canais possíveis de comunicação imagens, sons e 
 
3
discursos ou sem contar com uma equipe de produção que assegure o sucesso do evento. 
 
E, ainda, considerando que “nos valores culturais da burguesia, erige-se na cultura 
um reino de aparente unidade e aparente liberdade, onde as relações existenciais 
antagônicas devem ser apaziguadas” [, pois a] “cultura reafirma e oculta as novas 
condições sociais de vida”. A ideia crucial é a de afirmar um mundo mais valioso, 
“eternamente melhor” e diferente do mundo da labuta diária pela existência que, “a partir 
do interior”, cada indivíduo pode realizar para si. Desse modo, a solenidade dos objetos 
culturais depende dessa dimensão e “sua recepção se converte em ato de celebração eexaltação” (MARCUSE, 1997, p. 96). 
 
Épocas e culturas diversas produzem espetáculos diversos e têm propostas 
intelectuais diversas, ideias e ideologias contrastantes. Mudanças, reformas e revoluções 
envolvem pessoas em defesa da própria cultura e os campos da cultura se caracterizam por 
conflitos ideológicos entre as elites de poder, a classe média e a classe subalternizada. 
Contudo, a atividade criativa não é refém do poder econômico e político; produções 
alternativas de arte popular têm conquistado espaços da cultura e da mídia sem 
precedentes. 
 
Discursos moralizantes procuram minimizar a aceitação de manifestações populares 
que ironizam o comportamento social. Críticos afirmam que as representações 
“popularescas” são degradantes porque propõem argumentos de baixo nível, como a 
sexualização das letras e das danças. Essas representações lúdicas em festas de rua, 
carnavais, bairros, praias, ensaios públicos, encontram consentimento nas camadas mais 
populares da população de grandes centros urbanos, e não apenas nelas. 
 
1.2 Arte e ação musical segundo Hegel 
 
De acordo com o pensamento teológico, metafísico e crítico de Hegel (1993, p. 30): 
“A matéria sobre a qual a arte se exerce é o sensível espiritualizado ou o espiritual 
sensibilizado”. Contudo, a arte dos espetáculos na atualidade parece se pautar em outros 
princípios. A ideia de um sensível espiritualizado remete a uma dimensão delicada, muito 
distante das normas competitivas instituídas pelo tráfico de bens culturais da arte e da 
música massiva. 
 
Nas lições de Estética, proferidas entre 1820 e 1829, em Heidelberg e Berlim, 
Hegel revela uma visão idealizada da “ciência da arte”: 
 
A imaginação criadora da arte, ou fantasia, é própria de um grande espírito e de 
uma grande alma, é a que apreende e engendra representações e formas, a que 
dá uma expressão figurada, sensível e precisa aos interesses humanos mais 
profundos e gerais.3 
 
Ou ainda: “O talento artístico, por ser em parte natural, manifesta-se cedo, e 
procura desenvolver-se, possesso de uma inquietação, de uma agitação que lhe vem da 
exigência de se explicitar”4. Em outro momento, Hegel descreve a ideia de um fim último 
da Arte e se expressa nos seguintes termos: “Se se quiser marcar um fim último à arte, será 
 
3 HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993. p. 30. 
4 Ibid., p. 31. 
 
4
ele o de revelar a verdade, o de representar, de modo concreto e figurado, aquilo que agita 
a alma humana”5. 
 
Na terceira seção das lições de Estética, o filósofo reflete sobre o “Modo de ação da 
Música”. Nessa seção, encontram-se os seguintes pensamentos: 
 
Já nos milagres de Orfeu, que são de uma época mais civilizada, bastavam os 
sons e os seus movimentos para domesticar os animais selvagens que se vinham 
deitar ao seu redor, mas não os homens, que exigiam o conteúdo de uma 
doutrina mais elevada [...]. Atualmente todos os exércitos possuem boas 
músicas regimentais, que têm por missão ocupá-los, distraí-los e incitá-los à 
marcha e ao ataque.6 
 
 Nessa passagem, Hegel reflete sobre a importância da música em diferentes épocas 
e grupos sociais. Para ele, não se deve subestimar o valor e a ação do lado musical para 
“povos bárbaros” e em épocas de “paixões desenfreadas”, para exercitar a valentia; os 
instrumentos musicais e os hinos marciais mostram sua função contundente ao longo da 
história da humanidade. 
 
Com isso, em relação à música, Hegel considera os valores do espírito e da alma 
como alicerces da criação musical: “O coração humano e as disposições da alma 
constituem a esfera na qual o compositor deve evoluir, e a melodia, essa pura ressonância 
da interioridade, é a própria alma da música”7. Em diversos momentos do texto, os 
conceitos idealistas acerca da ação musical e da matéria que constitui a música se repetem 
como um leitmotiv formador do pensamento ocidental sobre a música e da própria ação dos 
compositores que atuaram no âmbito musical daquela cultura durante séculos. Em claro 
“êxtase” intelectual, Hegel mostra-se irracional quando apela para uma dimensão 
mitológica da arte e afirma, por exemplo, que “A Natureza concedeu aos italianos o dom 
da expressão melódica” e esse dom estaria patente em antigas músicas da igreja e, “até 
mesmo quando a dor atinge gravemente a alma, nunca a beleza está ausente da obra que 
deixa transparecer um sopro de felicidade”8. O filósofo se transporta para um mundo 
idealizado da música onde é possível criar metáforas e estratagemas retóricos para 
legitimar a elevação da alma: 
 
Se portanto não deve faltar ao melódico a particularidade do sentimento, ainda 
menos deve faltar à música, quando ela consegue expandir em sons uma paixão 
ou uma criação da imaginação, elevar a alma acima do sentimento em que está 
mergulhada, fazê-la pairar acima do seu conteúdo, constituir-lhe assim uma 
região onde ela permanece desligada do sentimento que a absorvia e em que 
pode dedicar-se à verdadeira percepção da mesma (HEGEL, 1993, p. 519). 
 
Em uma tentativa de explicar as relações entre música e poesia, Hegel continua sua 
exposição, idealizando formas de interação entre ambas as expressões e procurando 
descrever uma possível “totalidade perfeita” do texto em relação à música: “Um texto 
insípido, frio, banal ou absurdo, jamais poderá provocar uma profunda e sólida obra 
musical”, e continua: “É certo que nas obras melódicas propriamente ditas, o texto como 
tal desempenha um papel menos decisivo: não deixa de ser certo, também, que elas exigem 
 
5 HEGEL, 1993, p. 36. 
6 Ibid., p. 503 
7 Ibid., p. 518. 
8 Ibid., p. 518. 
 
5
um conteúdo de forte verdade”9. Conceitos como “verdade”, “conteúdos verdadeiros”, 
“obras poéticas completas” e a ideia de um sentimento que permanece puro, grande, nobre 
e, ao mesmo tempo, de uma simplicidade plástica, são uma constante nas reflexões de 
Hegel sobre a música. Em seguida, o filósofo esboça uma teoria sobre “a música 
autônoma”. O pensador alemão compara a melodia à escultura, observa certa afinidade 
com a pintura e reconhece que há “um grande número de traços de que a voz humana, com 
um registro mais simples, não pode traduzir toda a riqueza e variedade”. A música 
instrumental viria completá-la “para dar à expressão mais vida e animação”10. Finalizando 
o ensaio acerca da música, Hegel conta uma estória da sua infância e revela introvisões 
viscerais acerca de um músico popular: 
 
Encontro, entre as minhas recordações da mocidade, a de um “virtuose” da guitarra 
que compusera para o seu insignificante instrumento uma série de músicas 
guerreiras, totalmente falhas de gosto, Era, se não me engano, tecelão de seu ofício 
e, quando falava, dava impressão de um espírito obtuso. Mas, logo que ele começava 
a tocar, esquecíamos a ausência de gosto das suas composições, como aliás ele 
próprio se esquecia, e obtinha efeitos maravilhosos, porque punha toda sua alma no 
seu instrumento que, dir-se-ia, não conhecia execução mais elevada do que a que ele 
fazia ecoar nestes sons (HEGEL, 1993, p. 528). 
 
Em geral, o músico instrumentista compreende essa reflexão filosófica de Hegel e 
admite ser possível depositar toda alma em um instrumento musical e deduzir como a 
experiência juvenil do filósofo se traduzira em marca estética indelével em suas introvisões 
sobre música. A relação entre o que Hegel define como espírito obtuso e a capacidade 
desse espírito de obter efeitos maravilhosos por meio de um instrumento musical pode ser 
a chave para descerrar portões conceptuais que dividem opiniões acerca da criação, 
produção e distribuição musical nas culturas contemporâneas. 
 
 
1.3 A experiência humana da música 
 
A etnomusicologia é tradicionalmente entendidacomo “o estudo da música em uma 
cultura”. O que mais intensamente ocupou os etnomusicólogos foram as músicas 
desenvolvidas, da Indonésia, do Japão e da Índia, e as músicas mais espontâneas dos 
ameríndios e dos africanos subsaarianos. Outras áreas estudadas por etnomusicólogos 
contemporâneos referem-se aos acontecimentos musicais como o reggae, o funk e o jazz, 
entre outros, e ainda à tradição da música folclórica de regiões particulares. Os 
etnomusicólogos alinham-se com a antropologia, a filosofia e a sociologia, enquanto os 
teóricos da música estudam muito mais estruturas, normas e procedimentos da música 
(BOCCIA, 1999, p. 18-26). 
 
No prefácio para o livro que reúne artigos selecionados de John Blacking11, Bruno 
Nettl recorda que em uma última conferência, em 1989, intitulada Challenging the Myth of 
 
9 HEGEL, 1993, p. 521. 
10 Ibid., p. 524. 
11 John Anthony Randoll Blacking (1928 - 1990), antropólogo e etnomusicólogo britânico, viveu na África 
do Sul entre 1953 e 1969. Em 1965, pelo seu trabalho sobre as canções das crianças Venda, recebeu o título 
de Ph.D da University of Witwatersrand e, no mesmo ano, torna-se professor e diretor do departamento de 
antropologia social daquela universidade. Passou a maior parte de sua vida acadêmica na Queen’s University 
Belfast, na Irlanda do Norte, onde foi professor de antropologia desde 1970 até sua morte, em 1990. Grande 
parte de suas ideias acerca do impacto social da música pode ser encontrada em seu livro de 1973: How 
Musical is Man?. 
 
6
“Ethnic” Music (1989a), cancelada devido ao agravamento da saúde de Blacking, o autor 
argumentava ser a composição musical em todas as culturas um processo da mesma ordem, 
e que por isso talvez todas as músicas devessem ser consideradas “étnicas”. Os ensaios de 
Blacking são ricos de pensamentos amadurecidos sobre música e experiência humana da 
música em outras culturas. Segundo Reginald Byron, editor do livro, na introdução aos 
ensaios do antropólogo inglês, a etnomusicologia de John Blacking se mostra como uma 
odisseia de descobertas, desvendando o funcionamento da música como meio de 
comunicação entre pessoas e como as congrega. 
 
De acordo com John Blacking, “a música tem sido estudada como produto das 
sociedades ou dos indivíduos, mas raramente como o produto de indivíduos nas 
sociedades”12. Blacking define a análise da música da seguinte maneira: 
 
A análise extramusical enfatiza o papel da música e dos músicos na vida social. 
A análise formal da música examina os modelos dos sonidos também no 
contexto imediato de uma tradição musical conhecida ou segundo a freqüência 
de certos padrões rítmicos, melódicos ou tonais que parecem ser encontrados no 
sistema musical de muitas culturas diferentes.13 
 
Nesse ensaio, intitulado Expressing Human Experience through Music, Blacking 
pergunta: O que é música? Segundo o autor, a “música é som organizado por modelos 
socialmente aceitos, e fazer música se refere às formas de um comportamento 
apreendido”14. Continua: 
 
Cada cultura tem seu próprio ritmo, no sentido de que experiências conscientes 
são ordenadas em ciclos de mudanças sazonais, crescimento físico, 
empreendimentos econômicos, profundidade e abertura genealógica, vida e pós-
vida, sucessão política ou outros fatores recorrentes que oferecem significado.15 
 
A experiência como músico e a longa convivência com a cultura do povo venda 
revelam ao autor a coexistência de tempos diversos nas sociedades humanas. As sensações 
temporais dependem da vida em distintos contextos e influem diretamente na percepção e 
na criação musical de um povo. Contudo, “a criação de um mundo de tempo virtual não 
pode por si só comunicar emoções específicas”16. “Apesar do que alguns escritores têm 
afirmado, a música não pode comunicar coisa alguma para mentes despreparadas e não 
receptivas”17. Muitos compositores acreditam que a música é uma linguagem com a qual 
podem comunicar ideias e se irritam quando alguém pede que expliquem o significado de 
suas composições. Seguindo essa linha de raciocinio, o autor identifica quatro tipos de 
comunicação musical. Em primeiro lugar: 
 
Quando o movimento ideal da música (i.e. seu ritmo) e/ou a tensão dos tons 
(neste caso, sobretudo timbres do que linha melódica) é percebido em relação à 
experiência cultural e, portanto, como estímulo excitante, que pode induzir o 
ouvinte a estados físicos puros definindo impulsos motores e/ou tensão 
nervosos.18 
 
12 BLACKING, John. How musical is man? London: Faber, 1976, p. 32. 
13 BLACKING, loc. cit. 
14 Ibid., p. 33. 
15 Ibid., p. 34. 
16 Ibid., p. 34. 
17 Ibid., p. 35. 
18 Ibid., p. 38. 
 
7
O segundo tipo resulta de uma experiência cultural, um padrão musical que se torna 
signo de uma situação social ou “é acompanhado por palavras que especificam ou 
recordam uma situação social, sua performance pode anunciar uma situação social, pode 
reavivar certos sentimentos e até reforçar valores sociais”19. O terceiro tipo se dá quando 
 
certos padrões sonoros de tensão dos tons combinados com movimentos ideais e 
associados em uma cultura com a situação social e, portanto, com os vários 
sentidos que a situação tem para o indivíduo, pode ser selecionado e 
desenvolvido musicalmente para aumentar o efeito emocional das palavras ou 
de um programa dado, que não precisa ser especialmente relacionado com a 
situação social que o som representa.20 
 
Finalmente, no quarto tipo de comunicação musical, 
 
mesmo que não houver palavras, programa dado ou alguma conexão aparente 
com a vida social, exceto a performance das pessoas, a música pode expressar 
ideias acerca de aspectos da sociedade e transferir para sua audiência vários 
graus de percepção da experiência.21 
 
Para comprovar os quatro tipos de comunicação musical, o autor se remete à 
experiência de compositores em culturas diversas. Blacking cita a música dos venda, o 
jazz, a música de modernos compositores africanos e compositores europeus, como J. S. 
Bach, Wolfgang Amadeus Mozart, Benjamin Britten, entre outros. Blacking conclui o 
ensaio com a seguinte reflexão: “A música é som humanamente organizado e sua 
afetividade e valor como recurso de expressão residem enfim no tipo e qualidade da 
experiência humana envolvida em sua criação e representação”22. 
 
1.4 Música de muitas culturas 
 
Intitulado Music of many Cultures, o livro de Elisabeth May, prefaciado por Mantle 
Hood, propõe ser uma introdução ao sistema musical tradicional de diversas culturas 
mundiais. Em suas primeiras páginas, o livro traz bibliografia selecionada para 
interessados em etnomusicologia; uma seção dedicada aos instrumentos musicais e um 
catálogo dos mais importantes filmes, gravações e outras fontes de pesquisa. Nas 
referências gerais, o leitor encontra as mais importantes enciclopédias sobre música e, em 
seguida, livros de reconhecidos etnomusicólogos, como Mantle Hood (Music the 
Unknown), Alan Lomax (Folc Song Style and Culture: A Staff Report Cantometrics), Alan 
P. Merriam (The antropology of music), Bruno Nettl (Music in Primitive Culture), entre 
outros, publicados em sua maioria nos anos 1960 e 1970. 
 
O livro de Elisabeth May (1980) vem acompanhado de três LPs compactos, com 
exemplos de músicas da Tailândia, Sumatra, Austrália e Uganda, para o primeiro disco; 
Uganda, África do Sul, Anyako, Ghana, Etiópia e Irã no segundo disco e, no terceiro disco, 
exemplos de músicas Jews, Native American, Alaskan Eskimos e da América do Sul. O 
livro tem ilustrações dos mapas das regiões estudadas, figuras e fotos dos instrumentos 
musicais, transcrições em partituras com letras dos temas e as escalas utilizadas em cada 
sistema musical. Cada artigo traz glossário, bibliografia, discografia e filmografiapublicada e disponível para pesquisa. Segundo Bruno Nettl, autor do primeiro capítulo, 
 
19 BLACKING, 1976, p. 39. 
20 Ibid., p. 41. 
21 Ibid., p. 43. 
22 Ibid., p. 53. (tradução nossa). 
 
8
intitulado Ethnomusicology: Definitions, Directions, and Problems, das diversas definições 
usadas para explicar o que é etnomusicologia nenhuma delas é completamente satisfatória. 
De fato, confrontando os métodos de pesquisa dos anos 1960 com estudos realizados em 
anos recentes, nota-se grande variação na concepção metodológica e na escolha de temas 
pesquisados em etnomusicologia, além dos campos estudados, em que mais manifestações 
e produções musicais em diversos territórios urbanos são consideradas relevantes para o 
entendimento do fazer musical e dos sentidos da música no contexto atual. 
 
1.5 Música clássica da Índia 
 
A complexidade dos elementos constitutivos da música ocidental e suas tradições 
de pesquisa — estudo e análise das obras grafadas e publicadas — quando comparada às 
tradições musicais de outras culturas, como a da Índia ou da China, revela que o poder 
mnemônico de algumas civilizações em transmitir suas tradições é tesouro inestimável. 
Essas civilizações, em sua história milenar, conseguiram preservar e transmitir a arte 
musical por sistemas alternativos ao da partitura musical. Em geral, o Ocidente sempre 
teve grande fascínio pelas culturas orientais e, dentre as tradições musicais mais estudadas 
no Ocidente, figura a música clássica da Índia. De acordo com Bonnie C. Wade: “Assim 
como nas culturas ocidentais, a música na Índia é de vários tipos folk e clássicos. A música 
feita e desfrutada pela maioria da folk music indiana é tão variada como a folk music em 
cada cultura” (WADE, 1980, p. 83). Essa variedade de música folk na Índia, além dos 
diversos tipos e gêneros, é marcada pela diversidade das numerosas etnias e culturas que 
povoam as regiões geográficas do subcontinente indiano. Wade relata que 
 
A música na tradição clássica foi padronizada pela classe alta, tocada para e por 
ela, formalmente na corte e agora em vilas e cidades por todo o país. A maioria 
da música indiana que os ocidentais ouvem vem da região norte da Índia, região 
que entre os séculos XIII e XIX foi invadida e governada por muçulmanos.23 
 
A partir do século XVI, a Índia desenvolveu duas culturas musicais distintas: a 
Hindustānī, ao norte, e a Karnatak, ao sul do país, cada uma baseada na mesma antiga 
tradição, mas seguindo diferentes contingências culturais. Por meio de exemplos musicais, 
mapa geográfico, imagens dos instrumentos típicos e transcrições em partitura musical, o 
autor do artigo descreve parte dessa complexa tradição musical. A primeira parte, mais 
extensa, é dedicada à tradição musical Hindustānī; dela o autor descreve os instrumentos 
principais: Sitār, Sarod, Tablā, entre outros, os conjuntos instrumentais solistas e os que 
acompanham solos vocais. A melodia derivada do sistema de escalas chamado rāga é o 
mais importante elemento da música clássica indiana. “Definir rāga não é uma coisa 
simples, pois um único rāga reúne ideias musicais e extramusicais acerca da melodia que 
nós no Ocidente não agrupamos da mesma maneira”24. Após alguns exemplos de melodias 
transcritas para a pauta musical, o autor descreve o metro da tradição musical Hindustānī: 
 
Tāla é o termo usado para o sistema métrico indiano como um todo e também 
para cada um dos muitos metros. […] Os tālas usados na música clássica 
Hindustānī geralmente têm ciclos longos: tīntal e tilwada tāl têm 16 toques (16 
mātrās); ektāl e chautāl, 12 toques (12 mātrās); jhūmrā tāl, 14 mātrās, para 
citar alguns exemplos.25 
 
23 WADE, Bonnie C. Some principles of indian classical music. In: MAY, Elisabeth. (Org.). Music of many 
cultures: an introduction. Berkeley: University of California Press, 1980. p. 83. 
24 Ibid., p. 85. 
25 Ibid., p. 89. 
 
9
Quanto à percussão: “Para cada golpe percutido há uma ou mais sílabas verbais 
(geralmente chamadas de bol). O processo de estudar percussão envolve ambos os tipos de 
aprendizados, o de falar o modelo percussivo in bols e o de aprender a tocá-lo”26. Para as 
maneiras ou formas de composição, 
 
o nome de três tipos de composições tem sido usado frequentemente — 
dhrupad, khyāl e gat —; dhrupad associada com a pompa e a grandiosidade da 
corte Mogul e com a maneira “mais correta” de cantar um rāga; khyāl a canção 
mais romântica e imaginativa relacionada com a lenda de Krishna, a deidade 
hindu, nas cortes muçulmanas; e gat, as breves melodias que servem para 
introduzir o tāl na performance instrumental.27 
 
As músicas Hindustānī e Karnatak derivam da mesma tradição antiga e muitas 
ideias permaneceram similares ao longo dos séculos. “Ambas compartilham os conceitos 
de rāgas com seus grupos de características e de tāla como estrutura para realizar 
composições e improvisações”28. Contudo, a afinação é o primeiro fator que distingue os 
rāgas Karnatak de outros. A ornamentação das melodias é mais difundida na música 
Karnatak, e este é outro fator que a distingue da música Hindustānī. A grande diferença 
entre os dois sistemas musicais é uma maior atenção dispensada à classificação dos rāgas 
da música Karnatak, para a qual são detalhados 72 melas (tipos de melodias), enquanto 
para o sistema Hindustānī, apesar de se sugerir centenas de rāgas, a listagem feita em 1963 
pelo musicólogo Bhatkhandes reporta a 10 thāts (tipos de melodias). 
 
O princípio da performance prática de uma melodia, um pedal contínuo e a 
percussão são mantidos tanto ao norte como ao sul da Índia. O pedal contínuo é 
usualmente tocado com um tāmbūra, que em sua construção difere do tipo do 
norte. A melodia cantada e os gêneros vocais ocupam o primeiro lugar. A 
melodia vocal é usualmente acompanhada por um violino clássico ocidental — 
a técnica instrumental e a postura foram adaptadas ao estilo de música 
Karnatak. Os instrumentos de solo primordiais são a flauta e a vīnā, esta última 
é um instrumento de cordas tocado com palheta.29 
 
Mas esta é apenas uma síntese do artigo de Wade, no qual ele próprio justifica que 
o breve panorama sobre ambos os sistemas musicais da Índia não fazem jus à 
complexidade e à beleza de ambas as tradições: “Como muitos outros, um estudioso 
indiano diria que nós demos uma olhadela, e eu concordo, sobre as duas tradições que são 
tão complexas e extremamente antigas, e, entretanto, vitais na atualidade como tesouro de 
suas culturas”30. 
Apesar disso, em 1979, Bonnie C. Wade havia publicado um trabalho abrangente 
sobre as tradições da música clássica na Índia. 
 
 
1.6 Popular music 
 
Impulsionada pelo crescimento econômico e o surgimento de jovens consumidores 
de música popular, o estudo da popular music, desde a metade dos anos sessenta, se torna 
objeto de pesquisa em diversos países. Em 1990, a publicação do livro Studying Popular 
Music de Richard Middleton levanta, entre outras, uma discussão sobre o papel da 
 
26 WADE, 1980, p. 92. 
27 Ibid., p. 97. 
28 Ibid., p. 101. 
29 Ibid., p. 103. 
30 Ibid., p. 104. 
 
10
musicologia tradicional e propõe mais formas de análise musical e novos campos de estudo 
negligenciados pela musicologia. Segundo Franco Fabbri, que escreve a introdução da 
edição italiana de Studying Popular Music, o livro de Middleton constitui também um 
modelo de crítica cultural de altíssimo valor político. 
 
A obra de Richard Middleton (1990) é organizada em duas grandes seções, a 
primeira, intitulada Charting the popular: towards a historical frameworks (Redesenhando 
o conceito de “popular” através de uma perspectiva histórica), que por sua vez é dividida 
em três tópicos principais com perguntassobre o que é a popular music e com reflexões e 
críticas sobre as teorias de Theodor Adorno e Walter Benjamin acerca das formas e das 
relações de produção e consumo da popular music. A segunda seção do livro, Taking a 
part: towards an analytical framework (Tomar posição: rumo a uma perspectiva analítica) 
é disposta em quatro grandes tópicos: 1) a popular music e a musicologia; 2) a popular 
music na cultura; 3) a popular music como mensagem; 4) valor, prazer e ideologia na 
popular music. O livro traz numerosas fontes dos exemplos musicais utilizados pelo autor 
e uma bibliografia em que figuram autores da filosofia, musicologia, semiologia, 
economia, etnomusicologia, política, teoria musical, entre outros. 
 
Em 2000, Richard Middleton publica Reading Pop: approaches to textual analysis 
in popular music. O livro é organizado em três partes: 1) Analysing the music; 2) Words 
and music; 3) Modes of representation. Trata-se de uma coletânea de ensaios de vários 
autores, entre os quais figuram Peter Winkler, Philip Tagg, David Brakett, autor do livro 
Interpreting Popular Music (2000), Umberto Fiori, Timothy D. Taylor, John Moore e 
outros. Para os pesquisadores interessados no estudo da música no contexto da popular 
music e das manifestações contemporâneas da música popular no mundo, mais 
informações e referências estão disponíveis na Internet31. A International Association for 
the Study of Popular Music tem versão para a América Latina: o IASPM Rama Latino-
americana32 traz, entre outras informações, os anais de congressos anteriores, os artigos 
estão disponíveis, em versão PDF, nas línguas espanhola e portuguesa. 
 
1.7 Música e teoria cultural 
 
Em 1997, John Shepherd, professor de música e sociologia e diretor da escola de 
estudos em arte e cultura da Carleton University, Ottawa, e Peter Wicke, professor de 
teoria e história da popular music e diretor do centro de Popular Music Research, 
Humboldt University, em Berlim, publicam o livro Music and Cultural Theory (1997). O 
livro aborda temas da música por uma perspectiva multidisciplinar, em 10 capítulos: 1) O 
problema do afeto e do sentido em música; 2) A música e a teoria cultural; 3) Música e 
psicanálise; 4) Teorizando diferenças na linguagem e na música; 5) Música como mídia de 
som; 6) Música como estrutura; 7) Momento semiológico da música; 8) Música: um 
modelo performativo semiológico; 9) Música e linguagem na construção da sociedade; 10) 
Rumo à sociologia do som. 
 
Do capítulo seis, reportamos a seguinte citação: “O som tem propriedades que o 
distinguem claramente do sentido da visão. O som traz o mundo às pessoas por todas as 
direções, simultaneamente e dinamicamente” (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 126). E, 
ainda, a respeito da dimensão sonora do mundo: “O som sugere às pessoas que há um 
mundo de profundidade que é externo a elas, que as circunda, que as toca simultaneamente 
 
31 Disponível em: <http://www.iaspm.net/>. Acesso em: 09 jun. 2009. 
32 Disponível em: <http://www.hist.puc.cl/iaspm/iaspm.html>. Acesso em: 09 jun. 2009. 
 
11
por todas as direções e que, por sua fluidez e dinamismo, requer constantemente uma 
resposta” (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 127)33. O livro traz extensa bibliografia 
multidisciplinar com destaque para a Teoria Estética de Theodor W. Adorno, nove títulos 
de Ronald Barthes, quatro de John Blacking, cinco de Claude Lévi-Strauss e publicações 
de Pierre Bourdieu, Carl Dahlhaus, Michel Chion, Philip Tagg, Simon Frith, Victor 
Zuckerkandl, entre outros. 
 
 Seguindo a tradição multidisciplinar de pesquisa e os autores citados no referido 
livro, bem como nas publicações comentadas anteriormente, torna-se necessário revisitar 
sequências de textos clássicos que abordam a música por diferentes perspectivas. A grande 
temática da música tem ramificações em todas as épocas, desde as mais remotas da 
humanidade até os dias atuais. A pesquisa dos diversos temas contemplados neste ensaio se 
articula para discutir dimensões da música e da cultura nas sociedades atuais em evidência 
e nas que estão à margem do circuito de produção/distribuição da indústria cultural 
dominante. 
 
2. TEORIAS E PRÁTICAS DA MÚSICA NO OCIDENTE 
 
Quais são os principais parâmetros da música ocidental? Na tentativa de descrever 
como e por que a música se move, teóricos e musicólogos voltam-se para a análise desse 
material e, embora de maneira parcial, desenvolvem teorias para os iniciados em música, 
conhecedores da escrita e da simbologia musical. Em geral, os modelos elaborados pela 
teoria musical do Ocidente se referem à articulação dos parâmetros da música com a forma 
e o conteúdo das obras e/ou para a criação, análise e interpretação destas. Entre as 
publicações que tratam das estruturas e das funções da música ocidental, o livro de 
Wallace Berry (1987) dirige-se aos estudantes de música. Organizado em três grandes 
capítulos, que tratam de: 1) tonalidade; 2) textura; 3) ritmo e metro, o livro de Berry 
desenvolve amplamente as teorias propostas e, nas palavras do próprio autor, 
 
[…] espero que leitores, muitos dos quais estudantes, possam encontrar, entre os 
diversos enfoques de análises e critérios aqui apresentados e desenvolvidos, 
alguns que se tornem úteis. Esse especial interesse pode ser encontrado 
deparando-se com alguns novos caminhos de investigação sobre parâmetros 
importantes de estruturas pouco investigadas em outras obras (BERRY, 1987, p. 
26). 
 
Na introdução aos capítulos do livro, o autor escreve: 
 
Fora os gêneros mais simples, é pouco provável que alcancemos sempre o 
entendimento completo acerca de uma experiência musical, tamanha complexidade 
tem seus elementos, suas ações e interações. Este livro procura se movimentar rumo 
a um melhor entendimento das estruturas e das experiências; e o faz por uma 
exploração sistemática dos elementos, das estruturas e de suas importantes inter-
relações, mostrando vários enfoques para a análise de sucessões diretas de eventos 
que envolvem tonalidade, melodia, harmonia, textura e ritmo — cada uma dessas 
partes tratadas em toda a sua gama de operações potenciais (BERRY, 1987, p. 1). 
 
Berry acredita que um melhor entendimento do processo musical pode ser 
alcançado tanto pelo profissional como pelo amador, desde que eles executem cálculos 
teóricos e analíticos necessários e relativamente simples. De acordo com o autor, o 
trabalho desenvolvido no livro visa endereçar o leitor para uma discussão teórica e para a 
 
33 Tradução nossa. 
 
12
análise de certas formas de intensidade-atividade nas quais líneas funcionais e 
significativas de mudanças são expressas de maneira geral. “O conceito de movimento 
musical é criticamente aliado ao conceito de eventos progressivos, recessivos e estáticos e 
eventos-complexos” (1987, p. 7). Para o entendimento desse conceito, parecem existir 
fatores de três tipos, causadores de uma importante mudança qualitativa nos eventos 
sonoros contíguos. O primeiro fator é que uma sucessão de eventos sonoros é percebida 
como “movendo-se” no tempo. O segundo fator, de longe o mais crítico dos fatores do 
movimento em uma experiência musical, é associado a uma sucessão de eventos sonoros 
tendo qualidades mutantes. 
 
O terceiro fator tem a ver com a ilusão de um campo “espacial” in música, 
delineado pelo âmbito da afinação inerente ao espectro das frequências 
perceptíveis; isso pode ser notado também no escopo do segundo fator descrito 
acima, como movimento implícito em mudanças por elementos da línea de 
afinação da melodia (1987, p. 8).34 
 
Na extensa introdução ao livro, Wallace Berry se preocupa em preparar o leitor 
para a intensa descrição dos conceitos e das formas de interação e inter-relação entre os 
elementos que compõem as estruturas da música.Durante toda a introdução, Berry não faz 
uso de exemplos gráficos em partitura musical, exceto por uns poucos signos para indicar 
mudanças de dinâmica e algarismos romanos para os graus das notas na escala tonal. 
Contudo, a partir do primeiro capítulo, o autor traz exemplos anotados na pauta musical 
que se estendem ao longo dos capítulos, deixando claro se tratar de um livro para músicos 
iniciados na leitura e análise das partituras da música. O livro é recomendado para teóricos, 
compositores e pesquisadores no campo da música erudita grafada e para os estudiosos que 
pretendem ampliar a discussão de tópicos fundamentais às funções estruturais em música. 
 
2.1 Musicologia 
 
Ciência da música ou disciplina para o estudo de todos os fenômenos musicais, 
 
na prática acadêmica, a musicologia passou a ter um significado mais restrito, e 
refere-se hoje ao estudo da música ocidental na tradição de uma arte elaborada. 
A musicologia é reconhecida por tratar do factual, documental, do verificável e 
é positivista e não por sua compreensão da música como experiência estética 
(BOCCIA, 1999, p. 18). 
 
De acordo com Middleton (1990), 
 
geralmente os estudos de musicologia, teóricos ou históricos, se comportam 
como se a popular music não existisse; por vezes a popular music é condenada 
como superficial, grosseira, banal, efêmera, comercial, entre outras coisas; e às 
vezes é tratada com condescendência: funciona bem por aquilo que ela é (ou 
seja, para os outros), mas certamente não merece uma séria atenção.35 
 
Contudo, desde os anos 90 do século passado, a musicologia conquistou novos 
nichos de pesquisa que se concentram em estudos dos aspectos psicológicos e cognitivos 
da percepção e fruição musical. 
 
 
34 Tradução nossa. 
35 MIDDLETON, Richard. Studying popular music. Buckingham: Open University Press, 1990. p. 151. 
(tradução nossa). 
 
13
Carl Dahlhaus (1928, 1989), musicólogo alemão que contribuiu para o 
desenvolvimento da musicologia como disciplina de pesquisa e que publicou numerosos 
livros, é também o responsável pelo restabelecimento da estética como disciplina central 
da musicologia. Em Estética Musical36, o teórico aborda temas relevantes para a discussão 
da dimensão estética e da música. No ensaio dedicado à fenomenologia da música, 
Dahlhaus discute conceitos de tempo, assim como os apontados por John Blacking em suas 
reflexões sobre música, indivíduos e sociedade. Contudo, Dahlhaus analisa o fenômeno 
temporal por aspectos distintos e peculiares àquela tradição musicológica: 
 
No conceito ou na intuição do temps durée, do tempo ‘vivido’, que não é 
uniforme, mas muda rapidamente e se desvanece de modo hesitante, Henri 
Bergson tentou reconstruir a originária experiência do tempo, que precede a do 
temps espace, tempo representado em termos de espaço (DAHLHAUS, 2003, p. 
110). 
 
Segundo o autor, a percepção musical supera a apreensão dos dados acústicos 
porque preserva o “imediatamente passado”. Por causa dessa retenção dos eventos 
musicais que seguem, “surge, por assim dizer, um presente ampliado; o ponto, o agora, 
expande-se para trecho”37. 
 
Na terceira parte do referido ensaio, intitulado Para a Fenomenologia da Música, 
Carl Dahlhaus define a música nos seguintes termos: 
 
A música — segundo uma communis opinio de que ninguém parece duvidar — é 
movimento ressoante; e a experiência de que ela é tal constitui o ponto de partida 
das teorias de alguns estetas musicais do séc. XX, que Rudolf Schäfke denominou 
“energéticos” (Geschichte der Musikästhetik im Umrissen, 1934, p. 394), pois, como 
semifenomenólogos e semimetafísicos, reconduzem a impressão de movimento, que 
parte de sequências sonoras, a uma hipotética energia, a qual — chamada por 
August Halm “vontade” e por Ernst Kurth “força” — é activa na música como 
agente e constitui a sua essência oculta (DAHLHAUS, 2003, p. 114). 
 
Por conseguinte, se uma concepção de movimento se impõe à escuta musical, será 
difícil descrevê-la e analisá-la sem incorrer na mistura de ideias psicológicas com as da 
teoria da música; “uma metáfora, em parte, física, e em parte, proveniente da filosofia da 
vida”38. 
 
O fenômeno do movimento está intimamente conexo com o espaço sonoro: um 
espaço irreal que, segundo Albert Wellek (Musikpsycologie und Musikästhetik, 
1963, apêndice), se deve distinguir, por um lado, do espaço real, em que a 
música é localizável como ruído e, por outro, das representações espaciais, 
como as que são evocadas pelo conteúdo de muitas obras da música 
programática (DAHLHAUS, 2003, p. 114). 39 
 
De fato, em relação à música, é muito difícil admitir que o som seja apenas o que se 
move no espaço, a energia e o movimento que ele produz revela parâmetros psicofísicos. 
 
Por fim, em Critérios, capítulo que encerra o livro sobre estética musical, Carl 
Dahlhaus acentua as seguintes ideias: “Uma prática musical que julga poder renunciar à 
 
36 DAHLHAUS, Carl. Estética musical. Lisboa: Edições 70, 2003. 
37 Ibid., p. 112. 
38 Ibid., p. 114. 
39 Música programática é música instrumental baseada em uma história, uma obra de arte, uma lenda, entre 
outros temas. 
 
14
teoria e à crítica assemelha-se à intuição que, segundo a expressão de Kant, é cega, 
enquanto lhe faltar o conceito”40. Dahlhaus conclui sua obra olhando para o passado como 
forma ideal para a reflexão sobre as origens e os “desenvolvimentos interrompidos”: 
 
Mais gratificante do que a busca de formas prévias do moderno é a reflexão 
sobre os pontos de partida e os desenvolvimentos interrompidos, que foram 
deixados de lado pela história que até nós conduz. Descobrir no esquecido o que 
poderia ser útil ao presente, e ainda que seja assim mediatizado, não é o pior dos 
motivos que um historiador pode ter.41 
 
 
2.2 Música, mídia e tecnologia 
 
 No livro Músicas, Media e Tecnologias, Michel Chion (1994) prefere destacar a 
presença da música nas mídias, em três grandes categorias: as que preexistiam; as que se 
desenvolveram ao mesmo tempo; as que só puderam aparecer junto às mídias e suas 
técnicas. No atual panorama visual-sonoro das diversas mídias, a sonoimaginação das 
equipes envolvidas na produção atinge níveis que extrapolam as margens do imaginário. 
Não é meramente uma questão estético-comercial, mas um complexo estratégico composto 
de criação artística, marketing e tecnologia que normatiza os formatos dos programas 
transmitidos segundo estereótipos comerciais de outras bem-sucedidas produções. 
 
 Para tanto, sound-designers ganham destaque. Trata-se de profissionais detentores 
de conhecimento tecnológico avançado que, entretanto, nem sempre são músicos. As 
diferenças qualitativas das produções televisivas desse concorrido negócio são marcadas 
pela atuação desses profissionais no campo da acústica, de novas estratégias sonoras e do 
marketing. O jogo de alternância entre óptico e acústico, nas mídias de tela, por seu efeito 
psicológico, está sendo usado, há bastante tempo, pela indústria da publicidade. Devido ao 
caráter da audição, cuja recepção pode ser alcançada mesmo distante do aparelho receptor, 
atualmente, a propaganda da TV segue princípios semelhantes aos da propaganda do rádio; 
ainda que o espectador se afaste da TV durante os blocos de propaganda, ele é atingido 
pelas mensagens sonoras. Entretanto, até os anos cinquenta do século XX, os primeiros 
aparelhos de TV eram equipados com um primário sistema monofônico de áudio. Devido 
aos cálculos rudimentares de amplitude espacial desse sistema, a monofonia oferecia uma 
sensação auditiva espacial muito restrita. Além disso, as altas temperaturas, geradas pelos 
estudos televisivos, criavam problemas para as membranas dos microfones. Aqueles 
utilizados pelas emissoras derádio não serviam para os estúdios de TV: devido ao intenso 
calor dos equipamentos, as membranas colavam. Então, novos microfones foram 
desenvolvidos. Durante muito tempo, pouco se fez para a melhoria do sistema áudio da 
TV. Enquanto, a partir de 1967, era desenvolvida a TV em cores, discutia-se, 
vagarosamente, sobre as mudanças do sistema áudio, de mono para multicanal, se isso era 
mesmo importante e se teria alguma serventia para os telespectadores/ouvintes em geral. 
Mais tarde, pesquisas realizadas em diversos países resultaram na criação do sistema 
audiotelevisivo em dois canais monofônicos. Ainda assim, a propagação dos programas 
televisivos e sua respectiva descrição audiofônica em dois canais monofônicos não 
permitiam a fruição de efeitos acústicos espaciais específicos e, por conseguinte, um 
elaborado sound-design não podia ser ainda percebido (SCHÄTZLEIN, 2005, p. 189). 
 
 
40 DAHLHAUS, 2003, p. 139. 
41 Ibid., p. 140. 
 
15
 Atualmente, modernos aparelhos de TV são equipados com circuitos receptores 
para o sistema digital. A amplificação do som é feita por aparelhos que transformam o 
ambiente doméstico em “grandes” salas de cinema, grandes no sentido acústico, pela 
ampliação espacial que os sonidos proporcionam. Fala, música e ruídos amplificados 
atingem os espectadores/ouvintes por todos os lados. No plano visual é preciso um 
investimento maior em espaço físico, qualidade e tamanho da tela: tela plana, de plasma, 
LCD ou projetores multimídia. Conectando a uma televisão, devidamente equipada, pelo 
menos quatro caixas de som, procedimentos surround possibilitam a distribuição sonora 
circular no ambiente. Dessa maneira, a qualidade do plano acústico televisivo se aproxima 
das modernas salas de cinema. Isso vale para a qualidade dos filmes de cinema na TV, para 
os filmes feitos para televisão, programas de auditórios e espetáculos televisivos, entre 
outros formatos de transmissão, além da publicidade. 
 
A relação entre mídia audiovisual e cultura da música é também o tema do livro do 
teórico da Slovak Academy of Science, Jurai Lexmann, publicado recentemente em língua 
inglesa, na Alemanha (2009). O autor descreve em linguagem concisa os seguintes tópicos: 
cultura da música e mídia; música e civilização, modalidades de mídia audiovisual e 
música; música e vínculos com a mídia; música e gêneros da produção audiovisual e 
recepção televisiva. Logo no primeiro capítulo, em music culture, Lexmann afirma: “Music 
culture (cultura da música) é uma subestrutura da cultura de um ser civilizado e sua 
definição depende do entendimento e do funcionamento real da cultura como um fator 
global”, e continua: 
 
A musicologia tradicional toma em conta a circulação social da música de 
acordo com o modelo musical work-interpretation-reception. Esse é 
normalmente o caso da música artificial europeia. Esse modelo que tem cerca 
de 100 anos, atualmente se tornou mais complicado e mudou em diversos 
aspectos. As linhas gerais de criação de uma obra musical, sua interpenetração 
artística, performance, distribuição na sociedade e na recepção social estão 
conectadas com outros fatos culturais inevitáveis para o funcionamento da 
música. A natureza de uma obra musical tem mudado fundamentalmente no 
sentido que a mídia eletrônica pode transferir toda manifestação musical em um 
trabalho artístico. Além disso, a mídia eletrônica tem conseguido posição 
privilegiada no domínio da distribuição musical e no desenvolvimento de uma 
consciência musical (LEXMANN, 2009, p. 13).42 
 
O sistema de distribuição da mídia eletrônica é extremamente eficiente e pode 
transferir, em segundos, dados complexos de áudio e imagens em formatos de trabalhos 
artísticos de altíssima definição. Essa nova consciência tecnológica em trânsito nas redes 
virtuais é tema que se revela no encontro das culturas audiovisuais do mundo. Além das 
grandes distribuidoras que dominam o mercado, a rede oferece canais para a troca de 
arquivos de música e imagens e permite o encontro criativo entre culturas distintas. Trata-
se de novos fatos culturais que precisam ser analisados sob uma perspectiva 
interdisciplinar. 
 
 
2.3 Hegemonias audiovisuais 
 
 De acordo com Gramsci, grupos hegemônicos (“blocos culturais”) existem dentro 
de cada sociedade. Todas as interações sociais requerem contextos de significação, 
framings discursivos compartilhados e assim um esforço interpretativo para essas 
 
42 Tradução nossa. 
 
16
hegemonias. Nos meios de comunicação de massa, essa luta é administrada através de 
dicotomização: “Nós” nos opomos aos “outros”; o “próprio” se opõe ao “estranho”; os 
“amigos” se opõem aos “inimigos”. “A construção hegemônica” envolve a exclusão 
consciente de grupos que competem no discurso. A hegemonia constrói divisões 
antagônicas (fronteiras) na ordem social onde certos grupos alcançam domínio e 
autoridade em relação àqueles grupos cuja alternativa de demandas opostas são excluídas 
(THOMSEN; ANDERSEN, 2000, p. 167). “Hegemonia” foi definida em ciências políticas 
como “domínio, supremacia e liderança de Estados sobre outros Estados”, como na década 
de oitenta do século passado; em um senso estreito representa “liderança de um querer, que 
segue voluntariamente” (TUDYKA, 2003, p. 12); veja também Jervis (1989), Keohane 
(1984), Leggewie (2003, p. 46-50) e Meyer (2001). De acordo com Habermas (2004, p. 
75), por exemplo, o atual governo dos EUA se considera uma superpotência exclusiva que 
tem a tarefa de defender-nos do risco de um fundamentalismo (possivelmente equipado 
com armas de destruição em massa) e implementar processos de modernização político-
global e econômica (HABERMAS apud LUDES, 2005, p. 23-24). Na composição e na 
manipulação sonora de programas e noticiários das maiores emissoras de TV, em todo o 
mundo, memórias coletivas e negligências, casualidades e mesmo pastiches ou colagens 
emergem em várias culturas com elementos globais e transculturais. Na maioria dos 
programas televisivos, essas reminiscências sonoras são sistematizadas e codificadas no 
sentido de melodias ou “compassos-chave”, conceito que abrange sons, melodias e 
estereótipos. No caso do plano sonoro que acompanha as retrospectivas de fim de ano na 
TV nota-se, por exemplo, uma manipulação das imagens pela retórica dos sonidos, e, 
mesmo em outras mídias de tela, isso é comum. 
 A suposição de que o cinema, a TV e o vídeo convencionais seriam sistemas que 
recusam o silêncio e, portanto, um vazio na trilha sonora, equivale a um defeito (ARMES, 
1999, p. 190) é lugar comum, quando se pensa no espaço que as imagens em movimento 
ocupam na intersecção com as outras mídias. Parte-se da ideia de que a hegemonia visual 
preenche a maior parte do espaço oferecido nas mídias de tela. Essa afirmação não toca em 
questões fundamentais que envolvem ritmo, polirritmia e deslocamento constitutivos da 
composição audiovisual. A manipulação dos elementos diegéticos com aqueles 
adicionados em fase de pós-produção (voz, som e ruídos) atinge a audiência e provoca 
inúmeros estímulos que completam a experiência do ver, ou melhor, não apenas 
completam essa experiência como a (re)organizam pela incidência rítmico-retórica 
moldada na montagem do plano sonoro. 
 A voz imprime um caráter discursivo que per se é uma enérgica manipulação do 
espaço sonoro. Pense-se na narração de uma catástrofe natural, a morte de um Papa ou de 
um evento esportivo. Cada jornalista imprime um caráter retórico ao programa e o faz 
modificando o tom da sua voz, mas, sobretudo, retocando o fator rítmico de sua fala. O 
deslocamento rítmico se complica na inserção da música e dos efeitos sonoros que, junto a 
sequências de cortes das imagens, expande o ciclo de ambiência espacial televisional para 
no mínimo quatrodimensões distintas: 1) imagens na tela; 2) espaço diegético; 3) plano 
sonoro da pós-produção; 4) espaço receptivo. As intersecções das mídias envolvidas se 
darão especialmente por combinações rítmicas que moldam e manipulam intensamente o 
teor da informação. Não há aqui, nem é mesmo a questão mais importante, uma ordenação 
hierárquica em que elementos de uma linguagem possam ser definidos como prioritários 
em relação às outras linguagens de mídia. Uma pausa, um “buraco” na trilha sonora é um 
elemento rítmico que enfatiza as sequências de imagens em que a poética visual atua com 
seus próprios meios. O ritmo dos cortes desses momentos “silenciosos” é igualmente um 
modo de transmitir imagens e mensagens. 
 
 
17
2.4 Audiovisão 
 
 Por um lado, temos a dimensão em que audição e visão são partes integrantes de 
um mesmo corpo. Por outro, cada sentido ocupa um momento exclusivo de apreciação. 
Ouvir sem olhar, contemplar em silêncio. Desse modo, focam-se os sentidos como 
instrumentos de uma mesma orquestra ou enquanto solistas de uma mesma composição. A 
arte de criar obras audiovisuais nas quais os sentidos da visão e da audição — audiovisão 
— sejam projetados por técnicas elaboradas é recurso essencial para as modernas 
produções das mídias de tela; dimensão tecnológica audiovisual que se iniciou com o 
cinema sonoro há cerca de oitenta anos. Essa moderna dimensão tecnológica é, por sua 
vez, fruto dos experimentos em música e artes cênicas de épocas anteriores43. 
 
O desenvolvimento das artes e os avanços da tecnologia propiciaram novos 
conceitos estéticos, poéticos, sensoriais, técnico-sintéticos de manipulação análoga 
artesanal e de digitalização para leitura do computador. “Quanto mais as artes se 
desenvolvem tanto mais dependem uma das outras” (FOSTER, 1927 apud EISENSTEIN, 
1936, p. 2002). No livro O sentido do filme, no terceiro capítulo, Sergei Eisenstein (2002) 
traz de volta o diálogo dos processos de hibridação nas artes. Os conceitos elaborados por 
Eisenstein em sua teoria do cinema mostram acurada percepção em relação aos meios 
usados para compor uma obra cinematográfica. Ele se propõe a examinar as novas tarefas, 
métodos e dificuldades propostas pelo cinema sonoro. E, nessas intensas reflexões, 
Eisenstein propõe questionamentos que, por definirem a essência da montagem 
cinematográfica e apesar de todas as inovações tecnológicas, continuam atuais. 
 
A tecnologia transforma os procedimentos de produção e aporta novos resultados à 
elaboração das linguagens. Por meio da digitalização de imagens, som e texto, a qualidade 
das gravações e das reproduções é sensivelmente transformada. Mas, o que a tecnologia 
mal pode resolver é a medição das irregularidades dos sentidos e da filigrana dos pesos e 
das decisões pessoais, na interpretação e composição de uma obra de arte. A interpretação 
humana, mais complexa que o próprio ser humano desconfie, resulta de sofisticados 
cálculos sensoriais que se nutrem da ousadia criativa do artista. “Não deve haver limites 
arbitrários à variedade dos meios expressivos que podem ser usados pelo cineasta” 
(EISENSTEIN, 2002, p. 52). 
 
Os fenômenos audiovisuais deverão, portanto, ser analisados de forma abrangente, 
mas qual seria a plataforma ideal para iniciarmos essa análise? Segundo Eisenstein (2002, 
p. 53), “devemos ter plena consciência dos meios e dos elementos através dos quais a 
imagem se forma em nossa mente”. Para isso, ao analisarmos obras clássicas, torna-se 
importante observar as anotações do processo de criação e as primeiras impressões do 
artista envolvido naquele processo criativo. Para explicar suas ideias e mais 
especificamente o conceito de montagem vertical, Eisenstein volta-se para a prática 
constitutiva do filme Alexandre Nevsky (1939). Assim como Stanislawski para o teatro, na 
montagem do filme, Eisenstein se reporta às analogias com a partitura orquestral e afirma 
que, da imagem da partitura orquestral para a da partitura audiovisual, é necessário 
 
43 Na primeira metade do séc. XVIII, quando na Alemanha o teatro musical era ainda uma derivação 
exclusivamente estrangeira, na maioria das vezes de origem italiana, iniciava-se na Inglaterra o gênero da 
Ballad Opera, uma espécie de comédia com argumentos satíricos populares e com interlúdios cantados 
destinados a influenciar o Singspiel alemão. O primeiro exemplo do gênero foi a The Beggar’s Opera de 
John Gay, representada em Londres, em 1728. A parte musical desse trabalho ficou a cargo de J. Chr. 
Pepusch e era composta de melodias populares assim como de temas de compositores famosos, tais como 
Purcell e Handel (BOCCIA, 1999, p. 2). 
 
18
adicionar uma “pauta” de imagens visuais. Seguindo suas próprias leis, essa pauta 
acompanha o movimento da música e essa estrutura de montagem “polifônica” pode ser 
extraída da experiência com o cinema mudo. 
 
Foi exatamente este tipo de “colagem”, além de tudo complicada (ou talvez 
simplificada?) por outra linha — a trilha sonora —, que tentamos obter em 
Alexandre Nevsky, especialmente na sequência dos cavaleiros alemães que 
atacavam avançando no gelo. Aqui as linhas da tonalidade do céu — nebuloso 
ou limpo, do ritmo acelerado dos cavaleiros, dos rostos em primeiro plano e dos 
planos de conjunto, a estrutura tonal da música, seus temas, seus ritmos, seus 
tempi etc. — criaram uma tarefa não menos difícil do que a da sequência muda 
acima. Muitas horas foram gastas para fundir estes elementos num todo 
orgânico (EISENSTEIN, 2002, p. 56). 
 
As reflexões de Eisenstein quanto à montagem do filme “em música” se reportam 
aos tempi da música em relação às imagens e revelam, por exemplo, relações entre 
tonalidades nebulosas ou limpas do céu com a estrutura tonal da música, seus temas, seus 
ritmos. De fato, a relação entre os elementos acústicos e visuais se processa por parâmetros 
de reflexão e vibração e favorecem o amálgama ou seu contrário, entre outros matizes. 
Nesse caso, o todo orgânico a que Eisenstein se refere não é necessariamente um todo 
unânime ou harmonioso. A montagem polifônica pode ser entendida como uma montagem 
“ponto contra ponto” em que linhas independentes realçam as qualidades estéticas do filme 
e dos sonidos. Sem dúvida, Eisenstein está consciente das dificuldades da montagem de 
uma criação audiovisual, quando explica: 
 
Ao combinar a música com a sequência, esta sensação geral é um fator 
decisivo, porque está diretamente ligada à percepção da imagem da música 
assim como dos quadros. Isto requer constantes correções e ajustamentos dos 
aspectos individuais para preservar o importante efeito geral.44 
 
Muito embora as técnicas de montagem da época de Eisenstein pouco se 
assemelhem com as utilizadas hoje nos estúdios cinematográficos, entre elas os recursos de 
digitalização, efeitos especiais de computador; sofisticados equipamentos de mixagem de 
áudio e imagens e precisas técnicas de sincronização, a preocupação com a apurada 
escolha da coincidência ou da discordância entre tempi musicais e visuais continua sendo o 
elemento mais trabalhoso que, de certo modo, distingue o estilo dos diretores e lhes marca 
a obra. 
 
No quarto capítulo do mesmo livro, Eisenstein aborda o tema da forma e do 
conteúdo na prática. Aqui o autor expõe os métodos de montagem em Alexander Nevsky, a 
questão da correlação entre música e cor como complemento na montagem criativa e o 
papel decisivo que, segundo o autor, é desempenhado pela estrutura da imagem da obra e 
suas correlações com o som. 
 O tema da montagem audiovisual é retomado por Michel Chion em L’áudio-vision. 
Son et image au cinéma (1990). Chion traz ideias e reflexões originais acerca dessa 
dimensão. O livro trata de temas fundamentais para as novas formas de arte e de 
entretenimento e revela conceitos essenciais à audiovisão:Os códigos do teatro, da televisão e do cinema, em compensação, têm criado 
para cada um de nós convenções muito fortes, determinadas de um tipo de 
rendição mais que de uma verdade literal, e estas convenções submergem 
 
44 EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. p. 56. 
 
19
facilmente nossa experiência e a substituem, tornando-se a referência do real 
(CHION, 2002, p. 108).45 
 
 O autor aborda os níveis técnicos da produção e pós-produção do plano acústico 
junto ao das imagens e, devido a motivos técnicos, a elaboração do audiovisual segue 
códigos específicos. Chion se refere ao realismo da reportagem de uma guerra verdadeira, 
por exemplo, por estar a imagem trêmula e oscilante, com defeitos de foco, enquanto outra 
reportagem de imagens impecáveis parece se deslocar da cena real. Da mesma maneira 
para o som, a sensação de realismo está ligada a uma sensação de incômodo: 
 
de flutuação do sinal, de interferência e de problemas com o microfone etc., 
efeitos esses que podem ser simulados em estúdio, na pós-sincronização, e 
postos em cena (em Alien, por exemplo, o incômodo acústico foi estudado para 
reforçar o efeito de realismo).46 
 
2.5 Música e indústria cultural 
 
Martin Jay, professor de história da University of Califórnia, Berkeley, dedicou 
atenção aos pensadores da Escola de Frankfurt e em um ensaio, publicado no Brasil em 
1988, Jay traz uma interpretação do pensamento de Theodor W. Adorno. De acordo com o 
historiador, o estilo de Adorno resiste à tradução e os primeiros trabalhos traduzidos para o 
inglês alertavam o leitor com a seguinte nota: “a tradução do intraduzível”47. 
 
De fato, as reflexões de Adorno são extremamente complexas e polêmicas em 
relação à música e à indústria cultural; refletem um período caótico das sociedades 
europeias da primeira metade do século XX. Nascido em Frankfurt em 1903, Theodor 
Adorno vivera as angústias das duas grandes guerras e a perseguição nazista. Contudo, os 
pensamentos de Adorno constituem uma “constelação” de ideias originais que continuam 
instigando os estudiosos da música e da indústria cultural. 
 
Em um dos ensaios mais polêmicos, intitulado O fetichismo da música e a 
regressão da audição (1938), Adorno critica o consumo nas sociedades modernas e a 
banalização da música como produto descartável. Nas palavras de Adorno: 
 
O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente 
psicológicos. O fato de que “valores” sejam consumidos e atraiam os afetos 
sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou 
apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de 
mercadoria (ADORNO, 1999, p. 77). 
 
45 Tradução nossa. 
46 CHION, Michel. L’audiovisione: suono e immagine nel cinema. Torino: Lindau, 2001, p. 180. 
47 Além de talentoso filósofo e sociólogo, Adorno era um músico e compositor sério, que tinha uma grande 
dívida para com as técnicas atonais revolucionárias que absorvera da escola de música moderna de 
Schönberg, em Viena, no decorrer da década de 20. Ele não apenas escreveu sobre todas as facetas da 
música, tanto clássica quanto popular, como teve seu estilo “atonal” de escrever — na realidade, de pensar — 
afetado pelos princípios de composição que havia dominado em sua juventude. Embora não se tenha deixado 
influenciar de maneira uniforme por todas as correntes do modernismo estético, como evidencia a duradoura 
divergência com Benjamin a respeito do surrealismo, Adorno sempre foi um ardoroso defensor da arte 
moderna contra toda tentativa de retorno a alternativas clássicas ou realistas. Pode-se dizer que outros 
marxistas ocidentais, como Louis Althusser, Ernst Bloch ou Galvano Della Volpe também promoveram o 
modernismo, mas Adorno foi o único que poderia reivindicar legitimamente ter sido ele mesmo um 
modernista (JAY, 1988, p. 18). 
 
20
De acordo com Adorno, a música é utilizada como instrumento para a propaganda 
comercial e sua modificação de função toca os próprios fundamentos da relação entre arte 
e sociedade. Outros ensaios de Adorno estão reunidos no livro Prismas (1998) e, entre 
eles, uma caracterização de Walter Benjamin. Outras obras essenciais de Adorno são: 
Mínima Moralia (1945), Dialética do Esclarecimento (1947) e, publicada após sua morte, 
Teoria Estética (1968). 
 
Mas, para Lexmann (2009), “a música se manifesta na cultura como uma categoria 
bastante independente”, e um alto nível de autonomia é preservado por ela. Isto é: 
 
Mesmo quando penetra outras atividades ou artes, a música, como um desses 
componentes, preserva seu alto nível de compactividade (por exemplo, é 
possível categorizar música fílmica no formato de trilha sonora independente do 
próprio filme, para propósitos de escuta da música em si, porém, seria 
problemático pensar em retirar partes do tratamento visual, temas ou ruídos para 
fruição independente).48 
 
Esse nível de autonomia se deve a sua própria matéria que desloca o ar e o 
transforma em ambiente sonoro de tipos diversos, desde o mais sublime até um espaço de 
tortura auditiva. 
 
 Em geral, os autores que escrevem sobre música têm se preocupado com a função 
da música nos diversos contextos sociais, na cultura e nas mídias modernas e sobre a 
transformação da arte musical em produto de arte de massa. Falar em “arte de massa” e 
pensar sobre as inter-relações desses produtos e dos sistemas massivos de distribuição é 
tema essencial para o filósofo norte-americano Noël Carrol, em A Philosophy of Mass Art. 
O que é exatamente um sistema massivo de distribuição? Noël Carroll (1998), um dos 
raros filósofos contemporâneos que admite a arte de massa como arte, o define como uma 
tecnologia com capacidade de distribuir a mesma performance ou o mesmo objeto para 
mais de um receptor simultaneamente. Por meio de técnicas de compressão de áudio, essa 
mesma tecnologia de distribuição massiva distribui arquivos comprimidos de música 
(MP3) pela Internet. Contudo, para evitar perda de qualidade, os arquivos de áudio nem 
sempre são comprimidos ou são comprimidos apenas por meio de algoritmos específicos 
de compressão. Segundo Wyatt, AC3 e Dolby E são algoritmos de redução bit-rate, usados 
em filmes e na TV, em que se usa comprimir o sinal multicanal para um único canal 
compacto (2005, p. 43). Em comparação com a arte de vanguarda, por exemplo, Carrol 
define as diferenças nos seguintes termos: 
 
A arte de vanguarda é desenhada para ser difícil, para ser intelectualizada, 
esteticizada e frequentemente moralmente desafiante e não é acessível àqueles 
que não possuem certo background de conhecimento ou sensibilidades 
adquiridas.49 
 
 Para Carrol, a arte de massa, ao contrário, é feita para ser simples e acessível a mais 
pessoas, com um mínimo de esforço. A arte de massa deve ser compreensível a uma 
audiência não treinada na primeira tentativa50. 
 
 
48 JAY, Martin. As idéias de Adorno. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 13-14. 
49 CARROL, Noël. A philosophy of mass art. New York: Oxford University Press, 1998, p. 191. (tradução 
nossa). 
50 Ibid., p. 192. 
 
21
 A tessitura da mídia de massa no mundo contemporâneo se dá também pela 
combinação ficcional e tecnológica de programas televisivos, em formato digital, e pelas 
tendências ideológicas e culturais que atravessam fronteiras, modificando a audiovisão do 
mundo. Os programas-espetáculo televisivos são finalizados em fase de pós-produção; 
técnicos de mixagem, editores de imagens, sound-designers e diretores do programa 
cumprem uma agenda de tarefas em equipe e em sequência. A pós-produção de áudio se 
refere àquela parte do processo de produçãoque lida com tracklaying, mixing e mastering 
of a soundtrack (WYATT, 2005, p. 3). Nesses procedimentos de finalização das produções 
audiovisuais, citações musicais, fragmentos de canções e/ou gravações de música 
instrumental são mesclados em novos construtos de mídia, junto aos efeitos sonoros, e 
fluem para dentro e para fora das imagens em movimento. 
 
 Devido aos acertos com gravadoras e selos de distribuição transnacionais, 
influentes emissoras de TV divulgam fortemente temas musicais de sucesso internacional 
oferecidos pelo sistema massivo de distribuição mundial. 
 
2.6 Recepção, distribuição e produção da música 
 
Em 2008, a Gabler Edition Wissenschaft publica na Alemanha um livro organizado 
por Gerhard Gensch, Eva Maria Stökler e Peter Tschmuck, intitulado Musikrezeption, 
Musikdistribuition und Musikprodution; recepção, distribuição e produção da música são 
tópicos principais para as contribuições contidas no referido livro. Cada autor apresenta 
análises distintas sobre a cultura da música na atualidade. Por exemplo, é de Gunnar Otte o 
ensaio intitulado Lebesstil und Musikgeschmack (“Estilo de vida e gosto”), de Michael 
Huber o artigo referente à distribuição da música digital: Digitale Musikdistribution und 
die Krise der Tonträgerindustrie (“Distribuição digital da música e a crise da indústria 
fonográfica”) e, ainda, de Alfred Smudits, pesquisador do Institut für Musiksoziologie 
Universität Wien, Soziologie der Musikproduktion (“Sociologia da produção da música”), 
entre outras contribuições. Deste último ensaio, reportamos a seguir algumas ideias. De 
acordo com o autor: “Quem fala hoje de produção da música, se refere, em geral, a formas 
específicas e maneiras de produção da indústria cultural associando conceitos como os dos 
estúdios de gravação, produção fonográfica e atividades dos produtores da música”. O 
autor lembra da complexidade de se produzir música cantando ou tocando e que aqueles 
que escrevem música produzem partes essenciais a esse ciclo de produção. Portanto, “as 
tecnologias de gravação e de estúdios de gravação, desenvolvidas ao longo do século XX, 
[...] devem ser consideradas apenas como uma nova, e hoje muito dominante, variante da 
produção da música”51. A produção da música é uma categoria histórica que está exposta a 
constantes mudanças e que este contexto de produção deve ser considerado por uma 
perspectiva sociocultural e pelas teorias acerca da tecnologia da comunicação. “Os 
processos de transformação do fazer cultural, que podem ser considerados influenciados 
pelas novas tecnologias de comunicação, são entendidos aqui como ‘midiamorfoses’, das 
quais podem ser reconhecidas cinco tipos diversos”52. De acordo com o autor, o primeiro 
tipo é gráfico, trata-se da “midiamorfose da escrita”; o segundo tipo gráfico é a 
“midiamorfose reprográfica”, que surge com a invenção da imprensa. A invenção da 
fotografia e do gramofone resulta no terceiro tipo, a “midiamorfose químico-mecânica”. 
Os outros dois tipos podem ser identificados, a partir do século XX, como “midiamorfose 
eletrônica”, pela qual começa a industrialização da cultura e, finalmente, desde os anos 
oitenta do século passado, a “midiamorfose digital”. 
 
51 SMUDITS, 2008, p. 241. 
52 Ibid., p. 241-242. 
 
22
 
Com o conceito de “midiamorfose”, o autor abre a discussão acerca das mudanças 
socioculturais da produção da música e discute em detalhes cada tipo descrito acima. O 
primeiro tópico desenvolvido no ensaio é o da produção da música e da industrialização da 
cultura, seguido do surgimento da indústria cultural e das mudanças gerais da vida musical; 
a produção musical na era da “midiamorfose eletrônica” e finalmente: a produção musical 
na era da “midiamorfose digital”. Trata-se de ensaio criteriosamente desenvolvido, que se 
distingue pela clareza e pela coerência dos temas abordados, além da elaboração avançada 
do conceito “Mediamorphose” adotado por Kurt Blaukopf no livro Beethovens Erben in 
der Mediamorphose, em 1989. 
 
3. INSTRUMENTOS E MÚSICA 
 
As escavações arqueológicas referentes ao período paleolítico não revelaram 
vestígios de tambores (instrumentos com membranas estendidas) ou instrumentos de 
cordas. Nas escavações referentes ao período neolítico, entretanto, foram descobertos 
instrumentos com membranas estendidas e de cordas, como harpas primitivas, cetras e 
arcos para friccionar as cordas. Em geral, os instrumentos musicais tradicionais são 
ordenados sob quatro tipos básicos: 1) idiofones (percutidos); 2) aerofones; 3) 
membranofones; 4) cordofones. Contudo, os instrumentos musicais a partir do século XX, 
tais como teclados, guitarras, samplers e sequenciadores, entre outros, e os mais recentes 
processadores de uma infinidade de timbres digitalizados, como as placa de som dos 
computadores, são classificados como instrumentos eletrofones ou eletrônicos. 
 
O livro de Curt Sachs, publicado em 1940, apresenta uma história dos instrumentos 
musicais, desde seus primórdios até o século XX. Trata-se de um extenso estudo sobre a 
evolução dos instrumentos musicais ao longo do tempo e seu desenvolvimento até 
alcançarem as formas atuais dos instrumentos de orquestra da música ocidental. Curt Sachs 
organiza os tópicos do livro em quatro grandes partes: 1) As épocas primitivas e pré-
históricas; 2) Antiguidade; 3) A Idade Média e 4) Ocidente moderno. O nono capítulo do 
livro de Sachs é dedicado aos instrumentos musicais da América Central e da América do 
Sul, e é desse capítulo que citamos aqui alguns trechos. De acordo com o autor: “Em duas 
regiões do continente americano os índios conseguiram relativamente um alto nível de 
civilização — na América Central, particularmente no México e no noroeste da América 
do Sul, particularmente no Peru”53. Sachs comenta que na América Central dos povos 
nahua e dos astecas não havia instrumentos cordofones e que, além de seus instrumentos 
idiofones para marcar o ritmo, o único instrumento capaz de produzir uma melodia simples 
era uma pequena flauta, “chamada çoçoloctli, huilacapitztli ou tlapitzalli, no México, e 
cuiraxezaqua em Tarascan”54. Entre os instrumentos idiofones da América Central, Curt 
Sachs lembra que apenas dois tipos de chocalhos eram conhecidos, enquanto várias formas 
de tambores eram bastante difundidas, percutidos unicamente com os dedos. 
 
Quanto à América do Sul, o autor se concentra na análise da época pré-colombiana 
do Peru, além de países vizinhos, como Colômbia, Bolívia e Chile. Seriam originários 
dessas regiões as flautas de Pan, feitas de cana ou de pedaços sólidos de madeira, argila, 
pedra ou metal. Contudo, a flauta de Pan era muito conhecida também no leste e sul da 
Ásia e nas ilhas do Pacífico. Ainda na América do Sul, as flautas eram feitas de cana ou de 
 
53 SACHS, Curt. The history of musical instruments. New York: W. W. Norton & Company, 1940. p. 192. 
54 Ibid., p. 192. 
 
23
osso, vários tipos de flauta eram conhecidos e um de formato peculiar foi encontrado no 
extremo norte de São Salvador: 
 
Uma figura de cerâmica representando um homem sentado próximo de um 
barril contendo duas cavidades conexas preenchidas com água. Quando 
balançado de lado a lado na mão do tocador o ar é empurrado para o alto do 
apito.55 
 
Os peruanos conheciam também instrumentos idiofones; chocalhos, sinos de metal, 
entre outros, e tambores cilíndricos, além de cornetas. Finalizando o capítulo, o autor se 
pergunta se na era paleolítica esses instrumentos foram trazidos para a América, vindos da 
China. Para Sachs é difícil não levar em conta a conexão entre as flautas chinesas e sul-
americanas, tanto as entalhadas como as de Pan. De acordo com o autor, os antigos 
instrumentos americanos existem no mundo todo, mas 
 
exceto por alguns poucos

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