Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
MÚSICA NO ENCONTRO DAS CULTURAS Uma introdução à temática da música em culturas diversas Leonardo Boccia1 1. PRELÚDIO Música e Cultura são conceitos amplos que abrigam grande variedade de temas e variações ad libitum, por meio dos quais poderíamos ensaiar e compor ao infinito. No entanto, na observação e na análise de alguns dos principais tópicos, nota-se que as referências bibliográficas sobre o assunto em diversas disciplinas acadêmicas, devido à diversidade de métodos e sistemas de notação, pouco dialogam entre si. O objetivo deste ensaio é discutir sobre música e cultura sem perder o ritmo necessário para, em conjunto com autores de diferentes campos de estudo, compor uma peça atual sobre o tema. Elementos de fusão dos conceitos em pauta, quais cultura da música, cultura da escuta musical, música no encontro das culturas, entre outros, servem de incentivo para a expansão desta narrativa, que pretende se estender para além dos conceitos consagrados, pela revisão crítica destes, frente às transformações sociais ocorridas em décadas recentes. Cultura da música, por exemplo, pode ser entendida como uma subestrutura da cultura. Contudo, a música se manifesta na cultura como uma categoria bastante independente. Cultura da escuta musical, entretanto considerando-se as “midiamorfoses” dos recentes avanços tecnológicos, é aqui entendida como uma variação, sem precedentes históricos, no jeito de se escutar música nas sociedades contemporâneas. Mas o tema “música no encontro das culturas” talvez seja o mais complexo a ser desenvolvido em um ensaio conciso como este. A experiência humana da música, segundo os etnomusicólogos, nas palavras de Bruno Nettl (1980, p. 2), “parece girar em torno de dois ideais: a unidade básica da humanidade como mostrada em música e no comportamento musical e a infinita variedade de fenômenos musicais encontrados no mundo”2. Nesse sentido, o encontro com os sistemas musicais de outras culturas prevê a pesquisa de campo e as decisões sobre que tipo de trabalho precisa ser feito e quais os métodos e as técnicas a serem utilizados. Por outro lado, devido à constante migração de músicos instrumentistas e compositores, alguns gêneros da música, assim como os próprios instrumentos musicais, passam por transformações intensas ao longo do tempo, podendo assumir novas funções no âmbito do fazer musical. Ritmos como habanera, tango e forró são exemplos do entrecruzamento musical ao longo do tempo. Instrumentos como acordeom e violão, entre outros, são plataformas de “aculturação instrumental” para reproduzir ritmos característicos e melodias unificadoras de uma cultura; esses instrumentos recebem pulsações musicais distintas em cada região e se tornam populares e preferidos. As técnicas instrumentais desenvolvidas em cada cultura musical tornam-se peculiares e distintivas, e podem se tornar complexas ao serem reproduzidas no mesmo instrumento por talentosos instrumentistas de outras tradições. Alguns instrumentos musicais preservam o mesmo formato ao longo de milhares de anos. É o caso dos instrumentos tradicionais de culturas 1 Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, compositor, instrumentista formado pela Hochschule der Künste Berlin na Alemanha. Leonardo Boccia é professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA, coordenador do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade e professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Desde 2005, coordena convênios de estudos internacionais entre a UFBA e as universidades de Roma La Sapienza (Itália) e a Jacobs University Bremen (Alemanha). 2 Tradução nossa. 2 milenares como a da Índia, em que se cultivam sistemas de transmissão oral das tradições musicais; a memória humana como patrimônio valioso para a preservação de tesouros musicais. Entre tradição e modernidade, na convivência com diversos meios de extensão, os seres humanos têm produzido magníficas formas, obras e gêneros musicais. Contudo, as classes dominantes têm exercido paulatinamente o poder “material” e “espiritual” de dominação. A indústria cultural e a sofisticada tecnologia de distribuição massiva de produtos culturais têm alcançado os lugares mais recônditos do planeta e têm produzido o que pode ser definido de “aculturação musical em rede”. Mais pessoas conectadas à rede mundial de computadores têm como instrumento musical de intercâmbio com o mundo a placa de som de seu próprio PC. A música eletrônica e os softwares livres propiciam o intercâmbio criativo entre músicos, técnicos e a produção de composições e arranjos coletivos disponibilizados no mundo virtual. Os sonidos digitalizados, purificados, sintetizados e gravados em ambientes sonoros próprios do mundo virtual propõem uma dimensão acústica poderosa e solene com que é possível conquistar uma coletividade submissa de ouvintes extasiados. Os espetáculos musicais ao vivo são manipulados por equipamentos, plugins, módulos de efeitos especiais, síntese sonora em tempo real, entre outros recursos tecnológicos; o ambiente acústico não amplificado parece estar em contradição com a sociedade hodierna. Novos equipamentos culturais — teatros e salas de concerto — são munidos de recursos de amplificação antes considerados desnecessários. Mesmo os equipamentos domésticos de recepção conquistam mudanças qualitativas que transformam a cultura da escuta e da fruição musical das representações espetaculares gravadas em mídia digital. Nesse universo de dominação tecnológica, o tema da música no encontro das culturas pode significar muito pouco ou ser uma oportunidade para discutir criticamente novos e antigos conceitos de criação, inovação musical e dominação cultural. 1.1 Espetáculo e culturas O espetáculo é um evento cultural vinculado à sociedade. Normas e desafios sociais se refletem nesses eventos desiguais, assim como as próprias contingências nas sociedades urbanas e rurais. Um tipo de construção ou discurso estético em forma de espetáculo pode ser percebido por grupos ou comunidades diversas como antagônico, por representar algo que agride o gosto e/ou as expectativas em jogo — divertimento, lazer, instrução, educação — e provoca introvisões incômodas e alheias aos desejos daqueles grupos. Por isso, espetáculos cultivados e reconhecidos por um grupo social podem se tornar hostis para outros, mesmo quando falamos de eventos culturais ou de espetáculos amplamente aceitos em uma cultura hegemônica. Seguindo esse raciocínio, é quase impossível pensar em transferir os mesmos espetáculos para espaços ou territórios diferentes sem encontrar intermediações que resultem na produção de eventos espetaculares com garantia de público e de aceitação por parte dele; sem contar com a ajuda da mídia — poder de convencimento dirigido pela elite econômica de um país —, que se incumbe de divulgar antecipadamente a chegada daquele evento nacional ou internacional; sem distribuir em todos os canais possíveis de comunicação imagens, sons e 3 discursos ou sem contar com uma equipe de produção que assegure o sucesso do evento. E, ainda, considerando que “nos valores culturais da burguesia, erige-se na cultura um reino de aparente unidade e aparente liberdade, onde as relações existenciais antagônicas devem ser apaziguadas” [, pois a] “cultura reafirma e oculta as novas condições sociais de vida”. A ideia crucial é a de afirmar um mundo mais valioso, “eternamente melhor” e diferente do mundo da labuta diária pela existência que, “a partir do interior”, cada indivíduo pode realizar para si. Desse modo, a solenidade dos objetos culturais depende dessa dimensão e “sua recepção se converte em ato de celebração eexaltação” (MARCUSE, 1997, p. 96). Épocas e culturas diversas produzem espetáculos diversos e têm propostas intelectuais diversas, ideias e ideologias contrastantes. Mudanças, reformas e revoluções envolvem pessoas em defesa da própria cultura e os campos da cultura se caracterizam por conflitos ideológicos entre as elites de poder, a classe média e a classe subalternizada. Contudo, a atividade criativa não é refém do poder econômico e político; produções alternativas de arte popular têm conquistado espaços da cultura e da mídia sem precedentes. Discursos moralizantes procuram minimizar a aceitação de manifestações populares que ironizam o comportamento social. Críticos afirmam que as representações “popularescas” são degradantes porque propõem argumentos de baixo nível, como a sexualização das letras e das danças. Essas representações lúdicas em festas de rua, carnavais, bairros, praias, ensaios públicos, encontram consentimento nas camadas mais populares da população de grandes centros urbanos, e não apenas nelas. 1.2 Arte e ação musical segundo Hegel De acordo com o pensamento teológico, metafísico e crítico de Hegel (1993, p. 30): “A matéria sobre a qual a arte se exerce é o sensível espiritualizado ou o espiritual sensibilizado”. Contudo, a arte dos espetáculos na atualidade parece se pautar em outros princípios. A ideia de um sensível espiritualizado remete a uma dimensão delicada, muito distante das normas competitivas instituídas pelo tráfico de bens culturais da arte e da música massiva. Nas lições de Estética, proferidas entre 1820 e 1829, em Heidelberg e Berlim, Hegel revela uma visão idealizada da “ciência da arte”: A imaginação criadora da arte, ou fantasia, é própria de um grande espírito e de uma grande alma, é a que apreende e engendra representações e formas, a que dá uma expressão figurada, sensível e precisa aos interesses humanos mais profundos e gerais.3 Ou ainda: “O talento artístico, por ser em parte natural, manifesta-se cedo, e procura desenvolver-se, possesso de uma inquietação, de uma agitação que lhe vem da exigência de se explicitar”4. Em outro momento, Hegel descreve a ideia de um fim último da Arte e se expressa nos seguintes termos: “Se se quiser marcar um fim último à arte, será 3 HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993. p. 30. 4 Ibid., p. 31. 4 ele o de revelar a verdade, o de representar, de modo concreto e figurado, aquilo que agita a alma humana”5. Na terceira seção das lições de Estética, o filósofo reflete sobre o “Modo de ação da Música”. Nessa seção, encontram-se os seguintes pensamentos: Já nos milagres de Orfeu, que são de uma época mais civilizada, bastavam os sons e os seus movimentos para domesticar os animais selvagens que se vinham deitar ao seu redor, mas não os homens, que exigiam o conteúdo de uma doutrina mais elevada [...]. Atualmente todos os exércitos possuem boas músicas regimentais, que têm por missão ocupá-los, distraí-los e incitá-los à marcha e ao ataque.6 Nessa passagem, Hegel reflete sobre a importância da música em diferentes épocas e grupos sociais. Para ele, não se deve subestimar o valor e a ação do lado musical para “povos bárbaros” e em épocas de “paixões desenfreadas”, para exercitar a valentia; os instrumentos musicais e os hinos marciais mostram sua função contundente ao longo da história da humanidade. Com isso, em relação à música, Hegel considera os valores do espírito e da alma como alicerces da criação musical: “O coração humano e as disposições da alma constituem a esfera na qual o compositor deve evoluir, e a melodia, essa pura ressonância da interioridade, é a própria alma da música”7. Em diversos momentos do texto, os conceitos idealistas acerca da ação musical e da matéria que constitui a música se repetem como um leitmotiv formador do pensamento ocidental sobre a música e da própria ação dos compositores que atuaram no âmbito musical daquela cultura durante séculos. Em claro “êxtase” intelectual, Hegel mostra-se irracional quando apela para uma dimensão mitológica da arte e afirma, por exemplo, que “A Natureza concedeu aos italianos o dom da expressão melódica” e esse dom estaria patente em antigas músicas da igreja e, “até mesmo quando a dor atinge gravemente a alma, nunca a beleza está ausente da obra que deixa transparecer um sopro de felicidade”8. O filósofo se transporta para um mundo idealizado da música onde é possível criar metáforas e estratagemas retóricos para legitimar a elevação da alma: Se portanto não deve faltar ao melódico a particularidade do sentimento, ainda menos deve faltar à música, quando ela consegue expandir em sons uma paixão ou uma criação da imaginação, elevar a alma acima do sentimento em que está mergulhada, fazê-la pairar acima do seu conteúdo, constituir-lhe assim uma região onde ela permanece desligada do sentimento que a absorvia e em que pode dedicar-se à verdadeira percepção da mesma (HEGEL, 1993, p. 519). Em uma tentativa de explicar as relações entre música e poesia, Hegel continua sua exposição, idealizando formas de interação entre ambas as expressões e procurando descrever uma possível “totalidade perfeita” do texto em relação à música: “Um texto insípido, frio, banal ou absurdo, jamais poderá provocar uma profunda e sólida obra musical”, e continua: “É certo que nas obras melódicas propriamente ditas, o texto como tal desempenha um papel menos decisivo: não deixa de ser certo, também, que elas exigem 5 HEGEL, 1993, p. 36. 6 Ibid., p. 503 7 Ibid., p. 518. 8 Ibid., p. 518. 5 um conteúdo de forte verdade”9. Conceitos como “verdade”, “conteúdos verdadeiros”, “obras poéticas completas” e a ideia de um sentimento que permanece puro, grande, nobre e, ao mesmo tempo, de uma simplicidade plástica, são uma constante nas reflexões de Hegel sobre a música. Em seguida, o filósofo esboça uma teoria sobre “a música autônoma”. O pensador alemão compara a melodia à escultura, observa certa afinidade com a pintura e reconhece que há “um grande número de traços de que a voz humana, com um registro mais simples, não pode traduzir toda a riqueza e variedade”. A música instrumental viria completá-la “para dar à expressão mais vida e animação”10. Finalizando o ensaio acerca da música, Hegel conta uma estória da sua infância e revela introvisões viscerais acerca de um músico popular: Encontro, entre as minhas recordações da mocidade, a de um “virtuose” da guitarra que compusera para o seu insignificante instrumento uma série de músicas guerreiras, totalmente falhas de gosto, Era, se não me engano, tecelão de seu ofício e, quando falava, dava impressão de um espírito obtuso. Mas, logo que ele começava a tocar, esquecíamos a ausência de gosto das suas composições, como aliás ele próprio se esquecia, e obtinha efeitos maravilhosos, porque punha toda sua alma no seu instrumento que, dir-se-ia, não conhecia execução mais elevada do que a que ele fazia ecoar nestes sons (HEGEL, 1993, p. 528). Em geral, o músico instrumentista compreende essa reflexão filosófica de Hegel e admite ser possível depositar toda alma em um instrumento musical e deduzir como a experiência juvenil do filósofo se traduzira em marca estética indelével em suas introvisões sobre música. A relação entre o que Hegel define como espírito obtuso e a capacidade desse espírito de obter efeitos maravilhosos por meio de um instrumento musical pode ser a chave para descerrar portões conceptuais que dividem opiniões acerca da criação, produção e distribuição musical nas culturas contemporâneas. 1.3 A experiência humana da música A etnomusicologia é tradicionalmente entendidacomo “o estudo da música em uma cultura”. O que mais intensamente ocupou os etnomusicólogos foram as músicas desenvolvidas, da Indonésia, do Japão e da Índia, e as músicas mais espontâneas dos ameríndios e dos africanos subsaarianos. Outras áreas estudadas por etnomusicólogos contemporâneos referem-se aos acontecimentos musicais como o reggae, o funk e o jazz, entre outros, e ainda à tradição da música folclórica de regiões particulares. Os etnomusicólogos alinham-se com a antropologia, a filosofia e a sociologia, enquanto os teóricos da música estudam muito mais estruturas, normas e procedimentos da música (BOCCIA, 1999, p. 18-26). No prefácio para o livro que reúne artigos selecionados de John Blacking11, Bruno Nettl recorda que em uma última conferência, em 1989, intitulada Challenging the Myth of 9 HEGEL, 1993, p. 521. 10 Ibid., p. 524. 11 John Anthony Randoll Blacking (1928 - 1990), antropólogo e etnomusicólogo britânico, viveu na África do Sul entre 1953 e 1969. Em 1965, pelo seu trabalho sobre as canções das crianças Venda, recebeu o título de Ph.D da University of Witwatersrand e, no mesmo ano, torna-se professor e diretor do departamento de antropologia social daquela universidade. Passou a maior parte de sua vida acadêmica na Queen’s University Belfast, na Irlanda do Norte, onde foi professor de antropologia desde 1970 até sua morte, em 1990. Grande parte de suas ideias acerca do impacto social da música pode ser encontrada em seu livro de 1973: How Musical is Man?. 6 “Ethnic” Music (1989a), cancelada devido ao agravamento da saúde de Blacking, o autor argumentava ser a composição musical em todas as culturas um processo da mesma ordem, e que por isso talvez todas as músicas devessem ser consideradas “étnicas”. Os ensaios de Blacking são ricos de pensamentos amadurecidos sobre música e experiência humana da música em outras culturas. Segundo Reginald Byron, editor do livro, na introdução aos ensaios do antropólogo inglês, a etnomusicologia de John Blacking se mostra como uma odisseia de descobertas, desvendando o funcionamento da música como meio de comunicação entre pessoas e como as congrega. De acordo com John Blacking, “a música tem sido estudada como produto das sociedades ou dos indivíduos, mas raramente como o produto de indivíduos nas sociedades”12. Blacking define a análise da música da seguinte maneira: A análise extramusical enfatiza o papel da música e dos músicos na vida social. A análise formal da música examina os modelos dos sonidos também no contexto imediato de uma tradição musical conhecida ou segundo a freqüência de certos padrões rítmicos, melódicos ou tonais que parecem ser encontrados no sistema musical de muitas culturas diferentes.13 Nesse ensaio, intitulado Expressing Human Experience through Music, Blacking pergunta: O que é música? Segundo o autor, a “música é som organizado por modelos socialmente aceitos, e fazer música se refere às formas de um comportamento apreendido”14. Continua: Cada cultura tem seu próprio ritmo, no sentido de que experiências conscientes são ordenadas em ciclos de mudanças sazonais, crescimento físico, empreendimentos econômicos, profundidade e abertura genealógica, vida e pós- vida, sucessão política ou outros fatores recorrentes que oferecem significado.15 A experiência como músico e a longa convivência com a cultura do povo venda revelam ao autor a coexistência de tempos diversos nas sociedades humanas. As sensações temporais dependem da vida em distintos contextos e influem diretamente na percepção e na criação musical de um povo. Contudo, “a criação de um mundo de tempo virtual não pode por si só comunicar emoções específicas”16. “Apesar do que alguns escritores têm afirmado, a música não pode comunicar coisa alguma para mentes despreparadas e não receptivas”17. Muitos compositores acreditam que a música é uma linguagem com a qual podem comunicar ideias e se irritam quando alguém pede que expliquem o significado de suas composições. Seguindo essa linha de raciocinio, o autor identifica quatro tipos de comunicação musical. Em primeiro lugar: Quando o movimento ideal da música (i.e. seu ritmo) e/ou a tensão dos tons (neste caso, sobretudo timbres do que linha melódica) é percebido em relação à experiência cultural e, portanto, como estímulo excitante, que pode induzir o ouvinte a estados físicos puros definindo impulsos motores e/ou tensão nervosos.18 12 BLACKING, John. How musical is man? London: Faber, 1976, p. 32. 13 BLACKING, loc. cit. 14 Ibid., p. 33. 15 Ibid., p. 34. 16 Ibid., p. 34. 17 Ibid., p. 35. 18 Ibid., p. 38. 7 O segundo tipo resulta de uma experiência cultural, um padrão musical que se torna signo de uma situação social ou “é acompanhado por palavras que especificam ou recordam uma situação social, sua performance pode anunciar uma situação social, pode reavivar certos sentimentos e até reforçar valores sociais”19. O terceiro tipo se dá quando certos padrões sonoros de tensão dos tons combinados com movimentos ideais e associados em uma cultura com a situação social e, portanto, com os vários sentidos que a situação tem para o indivíduo, pode ser selecionado e desenvolvido musicalmente para aumentar o efeito emocional das palavras ou de um programa dado, que não precisa ser especialmente relacionado com a situação social que o som representa.20 Finalmente, no quarto tipo de comunicação musical, mesmo que não houver palavras, programa dado ou alguma conexão aparente com a vida social, exceto a performance das pessoas, a música pode expressar ideias acerca de aspectos da sociedade e transferir para sua audiência vários graus de percepção da experiência.21 Para comprovar os quatro tipos de comunicação musical, o autor se remete à experiência de compositores em culturas diversas. Blacking cita a música dos venda, o jazz, a música de modernos compositores africanos e compositores europeus, como J. S. Bach, Wolfgang Amadeus Mozart, Benjamin Britten, entre outros. Blacking conclui o ensaio com a seguinte reflexão: “A música é som humanamente organizado e sua afetividade e valor como recurso de expressão residem enfim no tipo e qualidade da experiência humana envolvida em sua criação e representação”22. 1.4 Música de muitas culturas Intitulado Music of many Cultures, o livro de Elisabeth May, prefaciado por Mantle Hood, propõe ser uma introdução ao sistema musical tradicional de diversas culturas mundiais. Em suas primeiras páginas, o livro traz bibliografia selecionada para interessados em etnomusicologia; uma seção dedicada aos instrumentos musicais e um catálogo dos mais importantes filmes, gravações e outras fontes de pesquisa. Nas referências gerais, o leitor encontra as mais importantes enciclopédias sobre música e, em seguida, livros de reconhecidos etnomusicólogos, como Mantle Hood (Music the Unknown), Alan Lomax (Folc Song Style and Culture: A Staff Report Cantometrics), Alan P. Merriam (The antropology of music), Bruno Nettl (Music in Primitive Culture), entre outros, publicados em sua maioria nos anos 1960 e 1970. O livro de Elisabeth May (1980) vem acompanhado de três LPs compactos, com exemplos de músicas da Tailândia, Sumatra, Austrália e Uganda, para o primeiro disco; Uganda, África do Sul, Anyako, Ghana, Etiópia e Irã no segundo disco e, no terceiro disco, exemplos de músicas Jews, Native American, Alaskan Eskimos e da América do Sul. O livro tem ilustrações dos mapas das regiões estudadas, figuras e fotos dos instrumentos musicais, transcrições em partituras com letras dos temas e as escalas utilizadas em cada sistema musical. Cada artigo traz glossário, bibliografia, discografia e filmografiapublicada e disponível para pesquisa. Segundo Bruno Nettl, autor do primeiro capítulo, 19 BLACKING, 1976, p. 39. 20 Ibid., p. 41. 21 Ibid., p. 43. 22 Ibid., p. 53. (tradução nossa). 8 intitulado Ethnomusicology: Definitions, Directions, and Problems, das diversas definições usadas para explicar o que é etnomusicologia nenhuma delas é completamente satisfatória. De fato, confrontando os métodos de pesquisa dos anos 1960 com estudos realizados em anos recentes, nota-se grande variação na concepção metodológica e na escolha de temas pesquisados em etnomusicologia, além dos campos estudados, em que mais manifestações e produções musicais em diversos territórios urbanos são consideradas relevantes para o entendimento do fazer musical e dos sentidos da música no contexto atual. 1.5 Música clássica da Índia A complexidade dos elementos constitutivos da música ocidental e suas tradições de pesquisa — estudo e análise das obras grafadas e publicadas — quando comparada às tradições musicais de outras culturas, como a da Índia ou da China, revela que o poder mnemônico de algumas civilizações em transmitir suas tradições é tesouro inestimável. Essas civilizações, em sua história milenar, conseguiram preservar e transmitir a arte musical por sistemas alternativos ao da partitura musical. Em geral, o Ocidente sempre teve grande fascínio pelas culturas orientais e, dentre as tradições musicais mais estudadas no Ocidente, figura a música clássica da Índia. De acordo com Bonnie C. Wade: “Assim como nas culturas ocidentais, a música na Índia é de vários tipos folk e clássicos. A música feita e desfrutada pela maioria da folk music indiana é tão variada como a folk music em cada cultura” (WADE, 1980, p. 83). Essa variedade de música folk na Índia, além dos diversos tipos e gêneros, é marcada pela diversidade das numerosas etnias e culturas que povoam as regiões geográficas do subcontinente indiano. Wade relata que A música na tradição clássica foi padronizada pela classe alta, tocada para e por ela, formalmente na corte e agora em vilas e cidades por todo o país. A maioria da música indiana que os ocidentais ouvem vem da região norte da Índia, região que entre os séculos XIII e XIX foi invadida e governada por muçulmanos.23 A partir do século XVI, a Índia desenvolveu duas culturas musicais distintas: a Hindustānī, ao norte, e a Karnatak, ao sul do país, cada uma baseada na mesma antiga tradição, mas seguindo diferentes contingências culturais. Por meio de exemplos musicais, mapa geográfico, imagens dos instrumentos típicos e transcrições em partitura musical, o autor do artigo descreve parte dessa complexa tradição musical. A primeira parte, mais extensa, é dedicada à tradição musical Hindustānī; dela o autor descreve os instrumentos principais: Sitār, Sarod, Tablā, entre outros, os conjuntos instrumentais solistas e os que acompanham solos vocais. A melodia derivada do sistema de escalas chamado rāga é o mais importante elemento da música clássica indiana. “Definir rāga não é uma coisa simples, pois um único rāga reúne ideias musicais e extramusicais acerca da melodia que nós no Ocidente não agrupamos da mesma maneira”24. Após alguns exemplos de melodias transcritas para a pauta musical, o autor descreve o metro da tradição musical Hindustānī: Tāla é o termo usado para o sistema métrico indiano como um todo e também para cada um dos muitos metros. […] Os tālas usados na música clássica Hindustānī geralmente têm ciclos longos: tīntal e tilwada tāl têm 16 toques (16 mātrās); ektāl e chautāl, 12 toques (12 mātrās); jhūmrā tāl, 14 mātrās, para citar alguns exemplos.25 23 WADE, Bonnie C. Some principles of indian classical music. In: MAY, Elisabeth. (Org.). Music of many cultures: an introduction. Berkeley: University of California Press, 1980. p. 83. 24 Ibid., p. 85. 25 Ibid., p. 89. 9 Quanto à percussão: “Para cada golpe percutido há uma ou mais sílabas verbais (geralmente chamadas de bol). O processo de estudar percussão envolve ambos os tipos de aprendizados, o de falar o modelo percussivo in bols e o de aprender a tocá-lo”26. Para as maneiras ou formas de composição, o nome de três tipos de composições tem sido usado frequentemente — dhrupad, khyāl e gat —; dhrupad associada com a pompa e a grandiosidade da corte Mogul e com a maneira “mais correta” de cantar um rāga; khyāl a canção mais romântica e imaginativa relacionada com a lenda de Krishna, a deidade hindu, nas cortes muçulmanas; e gat, as breves melodias que servem para introduzir o tāl na performance instrumental.27 As músicas Hindustānī e Karnatak derivam da mesma tradição antiga e muitas ideias permaneceram similares ao longo dos séculos. “Ambas compartilham os conceitos de rāgas com seus grupos de características e de tāla como estrutura para realizar composições e improvisações”28. Contudo, a afinação é o primeiro fator que distingue os rāgas Karnatak de outros. A ornamentação das melodias é mais difundida na música Karnatak, e este é outro fator que a distingue da música Hindustānī. A grande diferença entre os dois sistemas musicais é uma maior atenção dispensada à classificação dos rāgas da música Karnatak, para a qual são detalhados 72 melas (tipos de melodias), enquanto para o sistema Hindustānī, apesar de se sugerir centenas de rāgas, a listagem feita em 1963 pelo musicólogo Bhatkhandes reporta a 10 thāts (tipos de melodias). O princípio da performance prática de uma melodia, um pedal contínuo e a percussão são mantidos tanto ao norte como ao sul da Índia. O pedal contínuo é usualmente tocado com um tāmbūra, que em sua construção difere do tipo do norte. A melodia cantada e os gêneros vocais ocupam o primeiro lugar. A melodia vocal é usualmente acompanhada por um violino clássico ocidental — a técnica instrumental e a postura foram adaptadas ao estilo de música Karnatak. Os instrumentos de solo primordiais são a flauta e a vīnā, esta última é um instrumento de cordas tocado com palheta.29 Mas esta é apenas uma síntese do artigo de Wade, no qual ele próprio justifica que o breve panorama sobre ambos os sistemas musicais da Índia não fazem jus à complexidade e à beleza de ambas as tradições: “Como muitos outros, um estudioso indiano diria que nós demos uma olhadela, e eu concordo, sobre as duas tradições que são tão complexas e extremamente antigas, e, entretanto, vitais na atualidade como tesouro de suas culturas”30. Apesar disso, em 1979, Bonnie C. Wade havia publicado um trabalho abrangente sobre as tradições da música clássica na Índia. 1.6 Popular music Impulsionada pelo crescimento econômico e o surgimento de jovens consumidores de música popular, o estudo da popular music, desde a metade dos anos sessenta, se torna objeto de pesquisa em diversos países. Em 1990, a publicação do livro Studying Popular Music de Richard Middleton levanta, entre outras, uma discussão sobre o papel da 26 WADE, 1980, p. 92. 27 Ibid., p. 97. 28 Ibid., p. 101. 29 Ibid., p. 103. 30 Ibid., p. 104. 10 musicologia tradicional e propõe mais formas de análise musical e novos campos de estudo negligenciados pela musicologia. Segundo Franco Fabbri, que escreve a introdução da edição italiana de Studying Popular Music, o livro de Middleton constitui também um modelo de crítica cultural de altíssimo valor político. A obra de Richard Middleton (1990) é organizada em duas grandes seções, a primeira, intitulada Charting the popular: towards a historical frameworks (Redesenhando o conceito de “popular” através de uma perspectiva histórica), que por sua vez é dividida em três tópicos principais com perguntassobre o que é a popular music e com reflexões e críticas sobre as teorias de Theodor Adorno e Walter Benjamin acerca das formas e das relações de produção e consumo da popular music. A segunda seção do livro, Taking a part: towards an analytical framework (Tomar posição: rumo a uma perspectiva analítica) é disposta em quatro grandes tópicos: 1) a popular music e a musicologia; 2) a popular music na cultura; 3) a popular music como mensagem; 4) valor, prazer e ideologia na popular music. O livro traz numerosas fontes dos exemplos musicais utilizados pelo autor e uma bibliografia em que figuram autores da filosofia, musicologia, semiologia, economia, etnomusicologia, política, teoria musical, entre outros. Em 2000, Richard Middleton publica Reading Pop: approaches to textual analysis in popular music. O livro é organizado em três partes: 1) Analysing the music; 2) Words and music; 3) Modes of representation. Trata-se de uma coletânea de ensaios de vários autores, entre os quais figuram Peter Winkler, Philip Tagg, David Brakett, autor do livro Interpreting Popular Music (2000), Umberto Fiori, Timothy D. Taylor, John Moore e outros. Para os pesquisadores interessados no estudo da música no contexto da popular music e das manifestações contemporâneas da música popular no mundo, mais informações e referências estão disponíveis na Internet31. A International Association for the Study of Popular Music tem versão para a América Latina: o IASPM Rama Latino- americana32 traz, entre outras informações, os anais de congressos anteriores, os artigos estão disponíveis, em versão PDF, nas línguas espanhola e portuguesa. 1.7 Música e teoria cultural Em 1997, John Shepherd, professor de música e sociologia e diretor da escola de estudos em arte e cultura da Carleton University, Ottawa, e Peter Wicke, professor de teoria e história da popular music e diretor do centro de Popular Music Research, Humboldt University, em Berlim, publicam o livro Music and Cultural Theory (1997). O livro aborda temas da música por uma perspectiva multidisciplinar, em 10 capítulos: 1) O problema do afeto e do sentido em música; 2) A música e a teoria cultural; 3) Música e psicanálise; 4) Teorizando diferenças na linguagem e na música; 5) Música como mídia de som; 6) Música como estrutura; 7) Momento semiológico da música; 8) Música: um modelo performativo semiológico; 9) Música e linguagem na construção da sociedade; 10) Rumo à sociologia do som. Do capítulo seis, reportamos a seguinte citação: “O som tem propriedades que o distinguem claramente do sentido da visão. O som traz o mundo às pessoas por todas as direções, simultaneamente e dinamicamente” (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 126). E, ainda, a respeito da dimensão sonora do mundo: “O som sugere às pessoas que há um mundo de profundidade que é externo a elas, que as circunda, que as toca simultaneamente 31 Disponível em: <http://www.iaspm.net/>. Acesso em: 09 jun. 2009. 32 Disponível em: <http://www.hist.puc.cl/iaspm/iaspm.html>. Acesso em: 09 jun. 2009. 11 por todas as direções e que, por sua fluidez e dinamismo, requer constantemente uma resposta” (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 127)33. O livro traz extensa bibliografia multidisciplinar com destaque para a Teoria Estética de Theodor W. Adorno, nove títulos de Ronald Barthes, quatro de John Blacking, cinco de Claude Lévi-Strauss e publicações de Pierre Bourdieu, Carl Dahlhaus, Michel Chion, Philip Tagg, Simon Frith, Victor Zuckerkandl, entre outros. Seguindo a tradição multidisciplinar de pesquisa e os autores citados no referido livro, bem como nas publicações comentadas anteriormente, torna-se necessário revisitar sequências de textos clássicos que abordam a música por diferentes perspectivas. A grande temática da música tem ramificações em todas as épocas, desde as mais remotas da humanidade até os dias atuais. A pesquisa dos diversos temas contemplados neste ensaio se articula para discutir dimensões da música e da cultura nas sociedades atuais em evidência e nas que estão à margem do circuito de produção/distribuição da indústria cultural dominante. 2. TEORIAS E PRÁTICAS DA MÚSICA NO OCIDENTE Quais são os principais parâmetros da música ocidental? Na tentativa de descrever como e por que a música se move, teóricos e musicólogos voltam-se para a análise desse material e, embora de maneira parcial, desenvolvem teorias para os iniciados em música, conhecedores da escrita e da simbologia musical. Em geral, os modelos elaborados pela teoria musical do Ocidente se referem à articulação dos parâmetros da música com a forma e o conteúdo das obras e/ou para a criação, análise e interpretação destas. Entre as publicações que tratam das estruturas e das funções da música ocidental, o livro de Wallace Berry (1987) dirige-se aos estudantes de música. Organizado em três grandes capítulos, que tratam de: 1) tonalidade; 2) textura; 3) ritmo e metro, o livro de Berry desenvolve amplamente as teorias propostas e, nas palavras do próprio autor, […] espero que leitores, muitos dos quais estudantes, possam encontrar, entre os diversos enfoques de análises e critérios aqui apresentados e desenvolvidos, alguns que se tornem úteis. Esse especial interesse pode ser encontrado deparando-se com alguns novos caminhos de investigação sobre parâmetros importantes de estruturas pouco investigadas em outras obras (BERRY, 1987, p. 26). Na introdução aos capítulos do livro, o autor escreve: Fora os gêneros mais simples, é pouco provável que alcancemos sempre o entendimento completo acerca de uma experiência musical, tamanha complexidade tem seus elementos, suas ações e interações. Este livro procura se movimentar rumo a um melhor entendimento das estruturas e das experiências; e o faz por uma exploração sistemática dos elementos, das estruturas e de suas importantes inter- relações, mostrando vários enfoques para a análise de sucessões diretas de eventos que envolvem tonalidade, melodia, harmonia, textura e ritmo — cada uma dessas partes tratadas em toda a sua gama de operações potenciais (BERRY, 1987, p. 1). Berry acredita que um melhor entendimento do processo musical pode ser alcançado tanto pelo profissional como pelo amador, desde que eles executem cálculos teóricos e analíticos necessários e relativamente simples. De acordo com o autor, o trabalho desenvolvido no livro visa endereçar o leitor para uma discussão teórica e para a 33 Tradução nossa. 12 análise de certas formas de intensidade-atividade nas quais líneas funcionais e significativas de mudanças são expressas de maneira geral. “O conceito de movimento musical é criticamente aliado ao conceito de eventos progressivos, recessivos e estáticos e eventos-complexos” (1987, p. 7). Para o entendimento desse conceito, parecem existir fatores de três tipos, causadores de uma importante mudança qualitativa nos eventos sonoros contíguos. O primeiro fator é que uma sucessão de eventos sonoros é percebida como “movendo-se” no tempo. O segundo fator, de longe o mais crítico dos fatores do movimento em uma experiência musical, é associado a uma sucessão de eventos sonoros tendo qualidades mutantes. O terceiro fator tem a ver com a ilusão de um campo “espacial” in música, delineado pelo âmbito da afinação inerente ao espectro das frequências perceptíveis; isso pode ser notado também no escopo do segundo fator descrito acima, como movimento implícito em mudanças por elementos da línea de afinação da melodia (1987, p. 8).34 Na extensa introdução ao livro, Wallace Berry se preocupa em preparar o leitor para a intensa descrição dos conceitos e das formas de interação e inter-relação entre os elementos que compõem as estruturas da música.Durante toda a introdução, Berry não faz uso de exemplos gráficos em partitura musical, exceto por uns poucos signos para indicar mudanças de dinâmica e algarismos romanos para os graus das notas na escala tonal. Contudo, a partir do primeiro capítulo, o autor traz exemplos anotados na pauta musical que se estendem ao longo dos capítulos, deixando claro se tratar de um livro para músicos iniciados na leitura e análise das partituras da música. O livro é recomendado para teóricos, compositores e pesquisadores no campo da música erudita grafada e para os estudiosos que pretendem ampliar a discussão de tópicos fundamentais às funções estruturais em música. 2.1 Musicologia Ciência da música ou disciplina para o estudo de todos os fenômenos musicais, na prática acadêmica, a musicologia passou a ter um significado mais restrito, e refere-se hoje ao estudo da música ocidental na tradição de uma arte elaborada. A musicologia é reconhecida por tratar do factual, documental, do verificável e é positivista e não por sua compreensão da música como experiência estética (BOCCIA, 1999, p. 18). De acordo com Middleton (1990), geralmente os estudos de musicologia, teóricos ou históricos, se comportam como se a popular music não existisse; por vezes a popular music é condenada como superficial, grosseira, banal, efêmera, comercial, entre outras coisas; e às vezes é tratada com condescendência: funciona bem por aquilo que ela é (ou seja, para os outros), mas certamente não merece uma séria atenção.35 Contudo, desde os anos 90 do século passado, a musicologia conquistou novos nichos de pesquisa que se concentram em estudos dos aspectos psicológicos e cognitivos da percepção e fruição musical. 34 Tradução nossa. 35 MIDDLETON, Richard. Studying popular music. Buckingham: Open University Press, 1990. p. 151. (tradução nossa). 13 Carl Dahlhaus (1928, 1989), musicólogo alemão que contribuiu para o desenvolvimento da musicologia como disciplina de pesquisa e que publicou numerosos livros, é também o responsável pelo restabelecimento da estética como disciplina central da musicologia. Em Estética Musical36, o teórico aborda temas relevantes para a discussão da dimensão estética e da música. No ensaio dedicado à fenomenologia da música, Dahlhaus discute conceitos de tempo, assim como os apontados por John Blacking em suas reflexões sobre música, indivíduos e sociedade. Contudo, Dahlhaus analisa o fenômeno temporal por aspectos distintos e peculiares àquela tradição musicológica: No conceito ou na intuição do temps durée, do tempo ‘vivido’, que não é uniforme, mas muda rapidamente e se desvanece de modo hesitante, Henri Bergson tentou reconstruir a originária experiência do tempo, que precede a do temps espace, tempo representado em termos de espaço (DAHLHAUS, 2003, p. 110). Segundo o autor, a percepção musical supera a apreensão dos dados acústicos porque preserva o “imediatamente passado”. Por causa dessa retenção dos eventos musicais que seguem, “surge, por assim dizer, um presente ampliado; o ponto, o agora, expande-se para trecho”37. Na terceira parte do referido ensaio, intitulado Para a Fenomenologia da Música, Carl Dahlhaus define a música nos seguintes termos: A música — segundo uma communis opinio de que ninguém parece duvidar — é movimento ressoante; e a experiência de que ela é tal constitui o ponto de partida das teorias de alguns estetas musicais do séc. XX, que Rudolf Schäfke denominou “energéticos” (Geschichte der Musikästhetik im Umrissen, 1934, p. 394), pois, como semifenomenólogos e semimetafísicos, reconduzem a impressão de movimento, que parte de sequências sonoras, a uma hipotética energia, a qual — chamada por August Halm “vontade” e por Ernst Kurth “força” — é activa na música como agente e constitui a sua essência oculta (DAHLHAUS, 2003, p. 114). Por conseguinte, se uma concepção de movimento se impõe à escuta musical, será difícil descrevê-la e analisá-la sem incorrer na mistura de ideias psicológicas com as da teoria da música; “uma metáfora, em parte, física, e em parte, proveniente da filosofia da vida”38. O fenômeno do movimento está intimamente conexo com o espaço sonoro: um espaço irreal que, segundo Albert Wellek (Musikpsycologie und Musikästhetik, 1963, apêndice), se deve distinguir, por um lado, do espaço real, em que a música é localizável como ruído e, por outro, das representações espaciais, como as que são evocadas pelo conteúdo de muitas obras da música programática (DAHLHAUS, 2003, p. 114). 39 De fato, em relação à música, é muito difícil admitir que o som seja apenas o que se move no espaço, a energia e o movimento que ele produz revela parâmetros psicofísicos. Por fim, em Critérios, capítulo que encerra o livro sobre estética musical, Carl Dahlhaus acentua as seguintes ideias: “Uma prática musical que julga poder renunciar à 36 DAHLHAUS, Carl. Estética musical. Lisboa: Edições 70, 2003. 37 Ibid., p. 112. 38 Ibid., p. 114. 39 Música programática é música instrumental baseada em uma história, uma obra de arte, uma lenda, entre outros temas. 14 teoria e à crítica assemelha-se à intuição que, segundo a expressão de Kant, é cega, enquanto lhe faltar o conceito”40. Dahlhaus conclui sua obra olhando para o passado como forma ideal para a reflexão sobre as origens e os “desenvolvimentos interrompidos”: Mais gratificante do que a busca de formas prévias do moderno é a reflexão sobre os pontos de partida e os desenvolvimentos interrompidos, que foram deixados de lado pela história que até nós conduz. Descobrir no esquecido o que poderia ser útil ao presente, e ainda que seja assim mediatizado, não é o pior dos motivos que um historiador pode ter.41 2.2 Música, mídia e tecnologia No livro Músicas, Media e Tecnologias, Michel Chion (1994) prefere destacar a presença da música nas mídias, em três grandes categorias: as que preexistiam; as que se desenvolveram ao mesmo tempo; as que só puderam aparecer junto às mídias e suas técnicas. No atual panorama visual-sonoro das diversas mídias, a sonoimaginação das equipes envolvidas na produção atinge níveis que extrapolam as margens do imaginário. Não é meramente uma questão estético-comercial, mas um complexo estratégico composto de criação artística, marketing e tecnologia que normatiza os formatos dos programas transmitidos segundo estereótipos comerciais de outras bem-sucedidas produções. Para tanto, sound-designers ganham destaque. Trata-se de profissionais detentores de conhecimento tecnológico avançado que, entretanto, nem sempre são músicos. As diferenças qualitativas das produções televisivas desse concorrido negócio são marcadas pela atuação desses profissionais no campo da acústica, de novas estratégias sonoras e do marketing. O jogo de alternância entre óptico e acústico, nas mídias de tela, por seu efeito psicológico, está sendo usado, há bastante tempo, pela indústria da publicidade. Devido ao caráter da audição, cuja recepção pode ser alcançada mesmo distante do aparelho receptor, atualmente, a propaganda da TV segue princípios semelhantes aos da propaganda do rádio; ainda que o espectador se afaste da TV durante os blocos de propaganda, ele é atingido pelas mensagens sonoras. Entretanto, até os anos cinquenta do século XX, os primeiros aparelhos de TV eram equipados com um primário sistema monofônico de áudio. Devido aos cálculos rudimentares de amplitude espacial desse sistema, a monofonia oferecia uma sensação auditiva espacial muito restrita. Além disso, as altas temperaturas, geradas pelos estudos televisivos, criavam problemas para as membranas dos microfones. Aqueles utilizados pelas emissoras derádio não serviam para os estúdios de TV: devido ao intenso calor dos equipamentos, as membranas colavam. Então, novos microfones foram desenvolvidos. Durante muito tempo, pouco se fez para a melhoria do sistema áudio da TV. Enquanto, a partir de 1967, era desenvolvida a TV em cores, discutia-se, vagarosamente, sobre as mudanças do sistema áudio, de mono para multicanal, se isso era mesmo importante e se teria alguma serventia para os telespectadores/ouvintes em geral. Mais tarde, pesquisas realizadas em diversos países resultaram na criação do sistema audiotelevisivo em dois canais monofônicos. Ainda assim, a propagação dos programas televisivos e sua respectiva descrição audiofônica em dois canais monofônicos não permitiam a fruição de efeitos acústicos espaciais específicos e, por conseguinte, um elaborado sound-design não podia ser ainda percebido (SCHÄTZLEIN, 2005, p. 189). 40 DAHLHAUS, 2003, p. 139. 41 Ibid., p. 140. 15 Atualmente, modernos aparelhos de TV são equipados com circuitos receptores para o sistema digital. A amplificação do som é feita por aparelhos que transformam o ambiente doméstico em “grandes” salas de cinema, grandes no sentido acústico, pela ampliação espacial que os sonidos proporcionam. Fala, música e ruídos amplificados atingem os espectadores/ouvintes por todos os lados. No plano visual é preciso um investimento maior em espaço físico, qualidade e tamanho da tela: tela plana, de plasma, LCD ou projetores multimídia. Conectando a uma televisão, devidamente equipada, pelo menos quatro caixas de som, procedimentos surround possibilitam a distribuição sonora circular no ambiente. Dessa maneira, a qualidade do plano acústico televisivo se aproxima das modernas salas de cinema. Isso vale para a qualidade dos filmes de cinema na TV, para os filmes feitos para televisão, programas de auditórios e espetáculos televisivos, entre outros formatos de transmissão, além da publicidade. A relação entre mídia audiovisual e cultura da música é também o tema do livro do teórico da Slovak Academy of Science, Jurai Lexmann, publicado recentemente em língua inglesa, na Alemanha (2009). O autor descreve em linguagem concisa os seguintes tópicos: cultura da música e mídia; música e civilização, modalidades de mídia audiovisual e música; música e vínculos com a mídia; música e gêneros da produção audiovisual e recepção televisiva. Logo no primeiro capítulo, em music culture, Lexmann afirma: “Music culture (cultura da música) é uma subestrutura da cultura de um ser civilizado e sua definição depende do entendimento e do funcionamento real da cultura como um fator global”, e continua: A musicologia tradicional toma em conta a circulação social da música de acordo com o modelo musical work-interpretation-reception. Esse é normalmente o caso da música artificial europeia. Esse modelo que tem cerca de 100 anos, atualmente se tornou mais complicado e mudou em diversos aspectos. As linhas gerais de criação de uma obra musical, sua interpenetração artística, performance, distribuição na sociedade e na recepção social estão conectadas com outros fatos culturais inevitáveis para o funcionamento da música. A natureza de uma obra musical tem mudado fundamentalmente no sentido que a mídia eletrônica pode transferir toda manifestação musical em um trabalho artístico. Além disso, a mídia eletrônica tem conseguido posição privilegiada no domínio da distribuição musical e no desenvolvimento de uma consciência musical (LEXMANN, 2009, p. 13).42 O sistema de distribuição da mídia eletrônica é extremamente eficiente e pode transferir, em segundos, dados complexos de áudio e imagens em formatos de trabalhos artísticos de altíssima definição. Essa nova consciência tecnológica em trânsito nas redes virtuais é tema que se revela no encontro das culturas audiovisuais do mundo. Além das grandes distribuidoras que dominam o mercado, a rede oferece canais para a troca de arquivos de música e imagens e permite o encontro criativo entre culturas distintas. Trata- se de novos fatos culturais que precisam ser analisados sob uma perspectiva interdisciplinar. 2.3 Hegemonias audiovisuais De acordo com Gramsci, grupos hegemônicos (“blocos culturais”) existem dentro de cada sociedade. Todas as interações sociais requerem contextos de significação, framings discursivos compartilhados e assim um esforço interpretativo para essas 42 Tradução nossa. 16 hegemonias. Nos meios de comunicação de massa, essa luta é administrada através de dicotomização: “Nós” nos opomos aos “outros”; o “próprio” se opõe ao “estranho”; os “amigos” se opõem aos “inimigos”. “A construção hegemônica” envolve a exclusão consciente de grupos que competem no discurso. A hegemonia constrói divisões antagônicas (fronteiras) na ordem social onde certos grupos alcançam domínio e autoridade em relação àqueles grupos cuja alternativa de demandas opostas são excluídas (THOMSEN; ANDERSEN, 2000, p. 167). “Hegemonia” foi definida em ciências políticas como “domínio, supremacia e liderança de Estados sobre outros Estados”, como na década de oitenta do século passado; em um senso estreito representa “liderança de um querer, que segue voluntariamente” (TUDYKA, 2003, p. 12); veja também Jervis (1989), Keohane (1984), Leggewie (2003, p. 46-50) e Meyer (2001). De acordo com Habermas (2004, p. 75), por exemplo, o atual governo dos EUA se considera uma superpotência exclusiva que tem a tarefa de defender-nos do risco de um fundamentalismo (possivelmente equipado com armas de destruição em massa) e implementar processos de modernização político- global e econômica (HABERMAS apud LUDES, 2005, p. 23-24). Na composição e na manipulação sonora de programas e noticiários das maiores emissoras de TV, em todo o mundo, memórias coletivas e negligências, casualidades e mesmo pastiches ou colagens emergem em várias culturas com elementos globais e transculturais. Na maioria dos programas televisivos, essas reminiscências sonoras são sistematizadas e codificadas no sentido de melodias ou “compassos-chave”, conceito que abrange sons, melodias e estereótipos. No caso do plano sonoro que acompanha as retrospectivas de fim de ano na TV nota-se, por exemplo, uma manipulação das imagens pela retórica dos sonidos, e, mesmo em outras mídias de tela, isso é comum. A suposição de que o cinema, a TV e o vídeo convencionais seriam sistemas que recusam o silêncio e, portanto, um vazio na trilha sonora, equivale a um defeito (ARMES, 1999, p. 190) é lugar comum, quando se pensa no espaço que as imagens em movimento ocupam na intersecção com as outras mídias. Parte-se da ideia de que a hegemonia visual preenche a maior parte do espaço oferecido nas mídias de tela. Essa afirmação não toca em questões fundamentais que envolvem ritmo, polirritmia e deslocamento constitutivos da composição audiovisual. A manipulação dos elementos diegéticos com aqueles adicionados em fase de pós-produção (voz, som e ruídos) atinge a audiência e provoca inúmeros estímulos que completam a experiência do ver, ou melhor, não apenas completam essa experiência como a (re)organizam pela incidência rítmico-retórica moldada na montagem do plano sonoro. A voz imprime um caráter discursivo que per se é uma enérgica manipulação do espaço sonoro. Pense-se na narração de uma catástrofe natural, a morte de um Papa ou de um evento esportivo. Cada jornalista imprime um caráter retórico ao programa e o faz modificando o tom da sua voz, mas, sobretudo, retocando o fator rítmico de sua fala. O deslocamento rítmico se complica na inserção da música e dos efeitos sonoros que, junto a sequências de cortes das imagens, expande o ciclo de ambiência espacial televisional para no mínimo quatrodimensões distintas: 1) imagens na tela; 2) espaço diegético; 3) plano sonoro da pós-produção; 4) espaço receptivo. As intersecções das mídias envolvidas se darão especialmente por combinações rítmicas que moldam e manipulam intensamente o teor da informação. Não há aqui, nem é mesmo a questão mais importante, uma ordenação hierárquica em que elementos de uma linguagem possam ser definidos como prioritários em relação às outras linguagens de mídia. Uma pausa, um “buraco” na trilha sonora é um elemento rítmico que enfatiza as sequências de imagens em que a poética visual atua com seus próprios meios. O ritmo dos cortes desses momentos “silenciosos” é igualmente um modo de transmitir imagens e mensagens. 17 2.4 Audiovisão Por um lado, temos a dimensão em que audição e visão são partes integrantes de um mesmo corpo. Por outro, cada sentido ocupa um momento exclusivo de apreciação. Ouvir sem olhar, contemplar em silêncio. Desse modo, focam-se os sentidos como instrumentos de uma mesma orquestra ou enquanto solistas de uma mesma composição. A arte de criar obras audiovisuais nas quais os sentidos da visão e da audição — audiovisão — sejam projetados por técnicas elaboradas é recurso essencial para as modernas produções das mídias de tela; dimensão tecnológica audiovisual que se iniciou com o cinema sonoro há cerca de oitenta anos. Essa moderna dimensão tecnológica é, por sua vez, fruto dos experimentos em música e artes cênicas de épocas anteriores43. O desenvolvimento das artes e os avanços da tecnologia propiciaram novos conceitos estéticos, poéticos, sensoriais, técnico-sintéticos de manipulação análoga artesanal e de digitalização para leitura do computador. “Quanto mais as artes se desenvolvem tanto mais dependem uma das outras” (FOSTER, 1927 apud EISENSTEIN, 1936, p. 2002). No livro O sentido do filme, no terceiro capítulo, Sergei Eisenstein (2002) traz de volta o diálogo dos processos de hibridação nas artes. Os conceitos elaborados por Eisenstein em sua teoria do cinema mostram acurada percepção em relação aos meios usados para compor uma obra cinematográfica. Ele se propõe a examinar as novas tarefas, métodos e dificuldades propostas pelo cinema sonoro. E, nessas intensas reflexões, Eisenstein propõe questionamentos que, por definirem a essência da montagem cinematográfica e apesar de todas as inovações tecnológicas, continuam atuais. A tecnologia transforma os procedimentos de produção e aporta novos resultados à elaboração das linguagens. Por meio da digitalização de imagens, som e texto, a qualidade das gravações e das reproduções é sensivelmente transformada. Mas, o que a tecnologia mal pode resolver é a medição das irregularidades dos sentidos e da filigrana dos pesos e das decisões pessoais, na interpretação e composição de uma obra de arte. A interpretação humana, mais complexa que o próprio ser humano desconfie, resulta de sofisticados cálculos sensoriais que se nutrem da ousadia criativa do artista. “Não deve haver limites arbitrários à variedade dos meios expressivos que podem ser usados pelo cineasta” (EISENSTEIN, 2002, p. 52). Os fenômenos audiovisuais deverão, portanto, ser analisados de forma abrangente, mas qual seria a plataforma ideal para iniciarmos essa análise? Segundo Eisenstein (2002, p. 53), “devemos ter plena consciência dos meios e dos elementos através dos quais a imagem se forma em nossa mente”. Para isso, ao analisarmos obras clássicas, torna-se importante observar as anotações do processo de criação e as primeiras impressões do artista envolvido naquele processo criativo. Para explicar suas ideias e mais especificamente o conceito de montagem vertical, Eisenstein volta-se para a prática constitutiva do filme Alexandre Nevsky (1939). Assim como Stanislawski para o teatro, na montagem do filme, Eisenstein se reporta às analogias com a partitura orquestral e afirma que, da imagem da partitura orquestral para a da partitura audiovisual, é necessário 43 Na primeira metade do séc. XVIII, quando na Alemanha o teatro musical era ainda uma derivação exclusivamente estrangeira, na maioria das vezes de origem italiana, iniciava-se na Inglaterra o gênero da Ballad Opera, uma espécie de comédia com argumentos satíricos populares e com interlúdios cantados destinados a influenciar o Singspiel alemão. O primeiro exemplo do gênero foi a The Beggar’s Opera de John Gay, representada em Londres, em 1728. A parte musical desse trabalho ficou a cargo de J. Chr. Pepusch e era composta de melodias populares assim como de temas de compositores famosos, tais como Purcell e Handel (BOCCIA, 1999, p. 2). 18 adicionar uma “pauta” de imagens visuais. Seguindo suas próprias leis, essa pauta acompanha o movimento da música e essa estrutura de montagem “polifônica” pode ser extraída da experiência com o cinema mudo. Foi exatamente este tipo de “colagem”, além de tudo complicada (ou talvez simplificada?) por outra linha — a trilha sonora —, que tentamos obter em Alexandre Nevsky, especialmente na sequência dos cavaleiros alemães que atacavam avançando no gelo. Aqui as linhas da tonalidade do céu — nebuloso ou limpo, do ritmo acelerado dos cavaleiros, dos rostos em primeiro plano e dos planos de conjunto, a estrutura tonal da música, seus temas, seus ritmos, seus tempi etc. — criaram uma tarefa não menos difícil do que a da sequência muda acima. Muitas horas foram gastas para fundir estes elementos num todo orgânico (EISENSTEIN, 2002, p. 56). As reflexões de Eisenstein quanto à montagem do filme “em música” se reportam aos tempi da música em relação às imagens e revelam, por exemplo, relações entre tonalidades nebulosas ou limpas do céu com a estrutura tonal da música, seus temas, seus ritmos. De fato, a relação entre os elementos acústicos e visuais se processa por parâmetros de reflexão e vibração e favorecem o amálgama ou seu contrário, entre outros matizes. Nesse caso, o todo orgânico a que Eisenstein se refere não é necessariamente um todo unânime ou harmonioso. A montagem polifônica pode ser entendida como uma montagem “ponto contra ponto” em que linhas independentes realçam as qualidades estéticas do filme e dos sonidos. Sem dúvida, Eisenstein está consciente das dificuldades da montagem de uma criação audiovisual, quando explica: Ao combinar a música com a sequência, esta sensação geral é um fator decisivo, porque está diretamente ligada à percepção da imagem da música assim como dos quadros. Isto requer constantes correções e ajustamentos dos aspectos individuais para preservar o importante efeito geral.44 Muito embora as técnicas de montagem da época de Eisenstein pouco se assemelhem com as utilizadas hoje nos estúdios cinematográficos, entre elas os recursos de digitalização, efeitos especiais de computador; sofisticados equipamentos de mixagem de áudio e imagens e precisas técnicas de sincronização, a preocupação com a apurada escolha da coincidência ou da discordância entre tempi musicais e visuais continua sendo o elemento mais trabalhoso que, de certo modo, distingue o estilo dos diretores e lhes marca a obra. No quarto capítulo do mesmo livro, Eisenstein aborda o tema da forma e do conteúdo na prática. Aqui o autor expõe os métodos de montagem em Alexander Nevsky, a questão da correlação entre música e cor como complemento na montagem criativa e o papel decisivo que, segundo o autor, é desempenhado pela estrutura da imagem da obra e suas correlações com o som. O tema da montagem audiovisual é retomado por Michel Chion em L’áudio-vision. Son et image au cinéma (1990). Chion traz ideias e reflexões originais acerca dessa dimensão. O livro trata de temas fundamentais para as novas formas de arte e de entretenimento e revela conceitos essenciais à audiovisão:Os códigos do teatro, da televisão e do cinema, em compensação, têm criado para cada um de nós convenções muito fortes, determinadas de um tipo de rendição mais que de uma verdade literal, e estas convenções submergem 44 EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. p. 56. 19 facilmente nossa experiência e a substituem, tornando-se a referência do real (CHION, 2002, p. 108).45 O autor aborda os níveis técnicos da produção e pós-produção do plano acústico junto ao das imagens e, devido a motivos técnicos, a elaboração do audiovisual segue códigos específicos. Chion se refere ao realismo da reportagem de uma guerra verdadeira, por exemplo, por estar a imagem trêmula e oscilante, com defeitos de foco, enquanto outra reportagem de imagens impecáveis parece se deslocar da cena real. Da mesma maneira para o som, a sensação de realismo está ligada a uma sensação de incômodo: de flutuação do sinal, de interferência e de problemas com o microfone etc., efeitos esses que podem ser simulados em estúdio, na pós-sincronização, e postos em cena (em Alien, por exemplo, o incômodo acústico foi estudado para reforçar o efeito de realismo).46 2.5 Música e indústria cultural Martin Jay, professor de história da University of Califórnia, Berkeley, dedicou atenção aos pensadores da Escola de Frankfurt e em um ensaio, publicado no Brasil em 1988, Jay traz uma interpretação do pensamento de Theodor W. Adorno. De acordo com o historiador, o estilo de Adorno resiste à tradução e os primeiros trabalhos traduzidos para o inglês alertavam o leitor com a seguinte nota: “a tradução do intraduzível”47. De fato, as reflexões de Adorno são extremamente complexas e polêmicas em relação à música e à indústria cultural; refletem um período caótico das sociedades europeias da primeira metade do século XX. Nascido em Frankfurt em 1903, Theodor Adorno vivera as angústias das duas grandes guerras e a perseguição nazista. Contudo, os pensamentos de Adorno constituem uma “constelação” de ideias originais que continuam instigando os estudiosos da música e da indústria cultural. Em um dos ensaios mais polêmicos, intitulado O fetichismo da música e a regressão da audição (1938), Adorno critica o consumo nas sociedades modernas e a banalização da música como produto descartável. Nas palavras de Adorno: O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que “valores” sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria (ADORNO, 1999, p. 77). 45 Tradução nossa. 46 CHION, Michel. L’audiovisione: suono e immagine nel cinema. Torino: Lindau, 2001, p. 180. 47 Além de talentoso filósofo e sociólogo, Adorno era um músico e compositor sério, que tinha uma grande dívida para com as técnicas atonais revolucionárias que absorvera da escola de música moderna de Schönberg, em Viena, no decorrer da década de 20. Ele não apenas escreveu sobre todas as facetas da música, tanto clássica quanto popular, como teve seu estilo “atonal” de escrever — na realidade, de pensar — afetado pelos princípios de composição que havia dominado em sua juventude. Embora não se tenha deixado influenciar de maneira uniforme por todas as correntes do modernismo estético, como evidencia a duradoura divergência com Benjamin a respeito do surrealismo, Adorno sempre foi um ardoroso defensor da arte moderna contra toda tentativa de retorno a alternativas clássicas ou realistas. Pode-se dizer que outros marxistas ocidentais, como Louis Althusser, Ernst Bloch ou Galvano Della Volpe também promoveram o modernismo, mas Adorno foi o único que poderia reivindicar legitimamente ter sido ele mesmo um modernista (JAY, 1988, p. 18). 20 De acordo com Adorno, a música é utilizada como instrumento para a propaganda comercial e sua modificação de função toca os próprios fundamentos da relação entre arte e sociedade. Outros ensaios de Adorno estão reunidos no livro Prismas (1998) e, entre eles, uma caracterização de Walter Benjamin. Outras obras essenciais de Adorno são: Mínima Moralia (1945), Dialética do Esclarecimento (1947) e, publicada após sua morte, Teoria Estética (1968). Mas, para Lexmann (2009), “a música se manifesta na cultura como uma categoria bastante independente”, e um alto nível de autonomia é preservado por ela. Isto é: Mesmo quando penetra outras atividades ou artes, a música, como um desses componentes, preserva seu alto nível de compactividade (por exemplo, é possível categorizar música fílmica no formato de trilha sonora independente do próprio filme, para propósitos de escuta da música em si, porém, seria problemático pensar em retirar partes do tratamento visual, temas ou ruídos para fruição independente).48 Esse nível de autonomia se deve a sua própria matéria que desloca o ar e o transforma em ambiente sonoro de tipos diversos, desde o mais sublime até um espaço de tortura auditiva. Em geral, os autores que escrevem sobre música têm se preocupado com a função da música nos diversos contextos sociais, na cultura e nas mídias modernas e sobre a transformação da arte musical em produto de arte de massa. Falar em “arte de massa” e pensar sobre as inter-relações desses produtos e dos sistemas massivos de distribuição é tema essencial para o filósofo norte-americano Noël Carrol, em A Philosophy of Mass Art. O que é exatamente um sistema massivo de distribuição? Noël Carroll (1998), um dos raros filósofos contemporâneos que admite a arte de massa como arte, o define como uma tecnologia com capacidade de distribuir a mesma performance ou o mesmo objeto para mais de um receptor simultaneamente. Por meio de técnicas de compressão de áudio, essa mesma tecnologia de distribuição massiva distribui arquivos comprimidos de música (MP3) pela Internet. Contudo, para evitar perda de qualidade, os arquivos de áudio nem sempre são comprimidos ou são comprimidos apenas por meio de algoritmos específicos de compressão. Segundo Wyatt, AC3 e Dolby E são algoritmos de redução bit-rate, usados em filmes e na TV, em que se usa comprimir o sinal multicanal para um único canal compacto (2005, p. 43). Em comparação com a arte de vanguarda, por exemplo, Carrol define as diferenças nos seguintes termos: A arte de vanguarda é desenhada para ser difícil, para ser intelectualizada, esteticizada e frequentemente moralmente desafiante e não é acessível àqueles que não possuem certo background de conhecimento ou sensibilidades adquiridas.49 Para Carrol, a arte de massa, ao contrário, é feita para ser simples e acessível a mais pessoas, com um mínimo de esforço. A arte de massa deve ser compreensível a uma audiência não treinada na primeira tentativa50. 48 JAY, Martin. As idéias de Adorno. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 13-14. 49 CARROL, Noël. A philosophy of mass art. New York: Oxford University Press, 1998, p. 191. (tradução nossa). 50 Ibid., p. 192. 21 A tessitura da mídia de massa no mundo contemporâneo se dá também pela combinação ficcional e tecnológica de programas televisivos, em formato digital, e pelas tendências ideológicas e culturais que atravessam fronteiras, modificando a audiovisão do mundo. Os programas-espetáculo televisivos são finalizados em fase de pós-produção; técnicos de mixagem, editores de imagens, sound-designers e diretores do programa cumprem uma agenda de tarefas em equipe e em sequência. A pós-produção de áudio se refere àquela parte do processo de produçãoque lida com tracklaying, mixing e mastering of a soundtrack (WYATT, 2005, p. 3). Nesses procedimentos de finalização das produções audiovisuais, citações musicais, fragmentos de canções e/ou gravações de música instrumental são mesclados em novos construtos de mídia, junto aos efeitos sonoros, e fluem para dentro e para fora das imagens em movimento. Devido aos acertos com gravadoras e selos de distribuição transnacionais, influentes emissoras de TV divulgam fortemente temas musicais de sucesso internacional oferecidos pelo sistema massivo de distribuição mundial. 2.6 Recepção, distribuição e produção da música Em 2008, a Gabler Edition Wissenschaft publica na Alemanha um livro organizado por Gerhard Gensch, Eva Maria Stökler e Peter Tschmuck, intitulado Musikrezeption, Musikdistribuition und Musikprodution; recepção, distribuição e produção da música são tópicos principais para as contribuições contidas no referido livro. Cada autor apresenta análises distintas sobre a cultura da música na atualidade. Por exemplo, é de Gunnar Otte o ensaio intitulado Lebesstil und Musikgeschmack (“Estilo de vida e gosto”), de Michael Huber o artigo referente à distribuição da música digital: Digitale Musikdistribution und die Krise der Tonträgerindustrie (“Distribuição digital da música e a crise da indústria fonográfica”) e, ainda, de Alfred Smudits, pesquisador do Institut für Musiksoziologie Universität Wien, Soziologie der Musikproduktion (“Sociologia da produção da música”), entre outras contribuições. Deste último ensaio, reportamos a seguir algumas ideias. De acordo com o autor: “Quem fala hoje de produção da música, se refere, em geral, a formas específicas e maneiras de produção da indústria cultural associando conceitos como os dos estúdios de gravação, produção fonográfica e atividades dos produtores da música”. O autor lembra da complexidade de se produzir música cantando ou tocando e que aqueles que escrevem música produzem partes essenciais a esse ciclo de produção. Portanto, “as tecnologias de gravação e de estúdios de gravação, desenvolvidas ao longo do século XX, [...] devem ser consideradas apenas como uma nova, e hoje muito dominante, variante da produção da música”51. A produção da música é uma categoria histórica que está exposta a constantes mudanças e que este contexto de produção deve ser considerado por uma perspectiva sociocultural e pelas teorias acerca da tecnologia da comunicação. “Os processos de transformação do fazer cultural, que podem ser considerados influenciados pelas novas tecnologias de comunicação, são entendidos aqui como ‘midiamorfoses’, das quais podem ser reconhecidas cinco tipos diversos”52. De acordo com o autor, o primeiro tipo é gráfico, trata-se da “midiamorfose da escrita”; o segundo tipo gráfico é a “midiamorfose reprográfica”, que surge com a invenção da imprensa. A invenção da fotografia e do gramofone resulta no terceiro tipo, a “midiamorfose químico-mecânica”. Os outros dois tipos podem ser identificados, a partir do século XX, como “midiamorfose eletrônica”, pela qual começa a industrialização da cultura e, finalmente, desde os anos oitenta do século passado, a “midiamorfose digital”. 51 SMUDITS, 2008, p. 241. 52 Ibid., p. 241-242. 22 Com o conceito de “midiamorfose”, o autor abre a discussão acerca das mudanças socioculturais da produção da música e discute em detalhes cada tipo descrito acima. O primeiro tópico desenvolvido no ensaio é o da produção da música e da industrialização da cultura, seguido do surgimento da indústria cultural e das mudanças gerais da vida musical; a produção musical na era da “midiamorfose eletrônica” e finalmente: a produção musical na era da “midiamorfose digital”. Trata-se de ensaio criteriosamente desenvolvido, que se distingue pela clareza e pela coerência dos temas abordados, além da elaboração avançada do conceito “Mediamorphose” adotado por Kurt Blaukopf no livro Beethovens Erben in der Mediamorphose, em 1989. 3. INSTRUMENTOS E MÚSICA As escavações arqueológicas referentes ao período paleolítico não revelaram vestígios de tambores (instrumentos com membranas estendidas) ou instrumentos de cordas. Nas escavações referentes ao período neolítico, entretanto, foram descobertos instrumentos com membranas estendidas e de cordas, como harpas primitivas, cetras e arcos para friccionar as cordas. Em geral, os instrumentos musicais tradicionais são ordenados sob quatro tipos básicos: 1) idiofones (percutidos); 2) aerofones; 3) membranofones; 4) cordofones. Contudo, os instrumentos musicais a partir do século XX, tais como teclados, guitarras, samplers e sequenciadores, entre outros, e os mais recentes processadores de uma infinidade de timbres digitalizados, como as placa de som dos computadores, são classificados como instrumentos eletrofones ou eletrônicos. O livro de Curt Sachs, publicado em 1940, apresenta uma história dos instrumentos musicais, desde seus primórdios até o século XX. Trata-se de um extenso estudo sobre a evolução dos instrumentos musicais ao longo do tempo e seu desenvolvimento até alcançarem as formas atuais dos instrumentos de orquestra da música ocidental. Curt Sachs organiza os tópicos do livro em quatro grandes partes: 1) As épocas primitivas e pré- históricas; 2) Antiguidade; 3) A Idade Média e 4) Ocidente moderno. O nono capítulo do livro de Sachs é dedicado aos instrumentos musicais da América Central e da América do Sul, e é desse capítulo que citamos aqui alguns trechos. De acordo com o autor: “Em duas regiões do continente americano os índios conseguiram relativamente um alto nível de civilização — na América Central, particularmente no México e no noroeste da América do Sul, particularmente no Peru”53. Sachs comenta que na América Central dos povos nahua e dos astecas não havia instrumentos cordofones e que, além de seus instrumentos idiofones para marcar o ritmo, o único instrumento capaz de produzir uma melodia simples era uma pequena flauta, “chamada çoçoloctli, huilacapitztli ou tlapitzalli, no México, e cuiraxezaqua em Tarascan”54. Entre os instrumentos idiofones da América Central, Curt Sachs lembra que apenas dois tipos de chocalhos eram conhecidos, enquanto várias formas de tambores eram bastante difundidas, percutidos unicamente com os dedos. Quanto à América do Sul, o autor se concentra na análise da época pré-colombiana do Peru, além de países vizinhos, como Colômbia, Bolívia e Chile. Seriam originários dessas regiões as flautas de Pan, feitas de cana ou de pedaços sólidos de madeira, argila, pedra ou metal. Contudo, a flauta de Pan era muito conhecida também no leste e sul da Ásia e nas ilhas do Pacífico. Ainda na América do Sul, as flautas eram feitas de cana ou de 53 SACHS, Curt. The history of musical instruments. New York: W. W. Norton & Company, 1940. p. 192. 54 Ibid., p. 192. 23 osso, vários tipos de flauta eram conhecidos e um de formato peculiar foi encontrado no extremo norte de São Salvador: Uma figura de cerâmica representando um homem sentado próximo de um barril contendo duas cavidades conexas preenchidas com água. Quando balançado de lado a lado na mão do tocador o ar é empurrado para o alto do apito.55 Os peruanos conheciam também instrumentos idiofones; chocalhos, sinos de metal, entre outros, e tambores cilíndricos, além de cornetas. Finalizando o capítulo, o autor se pergunta se na era paleolítica esses instrumentos foram trazidos para a América, vindos da China. Para Sachs é difícil não levar em conta a conexão entre as flautas chinesas e sul- americanas, tanto as entalhadas como as de Pan. De acordo com o autor, os antigos instrumentos americanos existem no mundo todo, mas exceto por alguns poucos
Compartilhar