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NEUROCIÊNCIAS -. ,: .' : \,'" I I /)/ 60 I mentecérebroI setembro2011 •... "~~,,.. ~ -- .-- ..... «,. ~, ~ ~~ ~" ,. ~ "1-.> qAUTOR ProfessordeneurociênciadaUniversidadeDukeefundadordo Duke's CenterforNeuroengineeringedo InstitutodeNeurociênciasde Natal.É autordeMuito alémdonossoeu- A novaneurociênciaqueunecérebroe máquinas- ecomoelapodemudarnossasvidas.Esteartigofoi adaptado dotextooriginalcomautorizaçãodaeditora(CiadasLetras,2011). neura PARA TRANSMITIR TODA A RIQUEZA SONORA DE UMA PEÇA MUSICAL, A ORQUESTRA PRECISA CONTAR COM GRANDE NÚMERO DE MÚSICOS TOCANDO EM CONJUNTO; DA MESMA FORMA, UMA CÉLULA CEREBRAL ISOLADA NÃO PODE PRODUZIR UM COMPORTAMENTO: PARA QUE O CORPO FU NCION E DE FORMA ADEQUADA É PRECISO QUE HAJA COLABORAÇÃO / / por MiguelA. L Nicolelis Durante a primeirametadedo século20, os pioneirosdatécnicaderegistrodeneurônios individuaisargumentaram,com evidências quenaépocapareciamdefinitivas,quetoda informaçãosensorialamostradado mundo exterior,por meio de sensorescorpóreosespecializados- como pele,retina,ouvido interno,epitélionasale língua-, ascendiapor vias neuronais independentesparaterminar em áreascorticaisespecíficas.Essasáreasforamidentifica- dascomoos sítiosprimáriosparao processamentode infor- maçãosensorialno córtex.Elaspassarama serconhecidas como córtexprimário somestésico(processamentotátil), visual e auditivo,e ganharamgrandeproeminênciaentre os primeiros neurofisologistascorticais.Tais descobertas reforçaramdemaneirafundamentalavisãolocalizacionista do córtex (vejaquadrona pág.63).Curiosamente,durante o mesmo período, um psicólogo americano,Karl Lashley (1890-1958),despontoucomo o principalrepresentanteda visãooposta,o distribucionismo. 61 NEUROCIÊNCIAS A maiorobsessãode Lashley,desdeo início desuacarreira,foi identificaro localondeo cé- rebroestocasuas memórias,queelechamava de "engrama".Em seus experimentos,ele re- moviacirurgicamentetecidocorticalde várias áreasdo cérebrode ratos e macacos,antese depois de essesanimaisteremaprendidoum novocomportamento.Essescomportamentos podiamser apenasa realizaçãode umatarefa muito simples (identificarum objeto visual- mentee entãotentaragarrá-Io,por exemplo), ou a soluçãode um problemamais complexo (como aprender a andar em um labirinto). Depoisqueo animalcompletavaafasedetrei- namento,Lashleymediao impactoque lesões corticaisdediferentesdimensõescausavamna capacidadedo indivíduode adquirirou retero comportamentoou hábito que ele aprendera anteriormente. Utilizando essa abordagem experimental,o pesquisadortentou entender como associaçõessensório-motorassão esta- belecidasno córtex. REGISTRO DE LEMBRANÇAS Deacordocom Lashley,depoisqueos animais eramtreinadosnumatarefasimples,boaparte do córtexpodiaserremovidasemqueaperfor-. mancecomportamentalfossealterada- desde quealgumvolumedo córtexsensorialprimário utilizadoparaaprendereexecutaratarefaper- manecesseintacto.Na realidade,Lashleycal- culouque,seapenas1/60do córtexvisualpri- máriofossepoupado,os animaisconseguiam reterum hábitoviso-motoraprendidoantesda lesãocortical.Assim,quandoconfrontadocom tarefas comportamentaissimples, o cérebro dos animaisdo experimentodemonstrouser Animais que tiveram metade (ou mais) do córtex removido cirurgicamente se esqueceram dos hábitos adquiridos e precisaram ser treinados de novo extremamenteresistentee resiliente,capazde continuarprocessandoinformaçõesadespeito deextensaslesões.Emseuartigomaisfamoso, intitulado "Em busca do engrama", Lashley resumiuessesachadosna formulaçãode seu "princípio de equipotencialidade".De acordo comessaideia,os traçosdememóriasãoesto- cadosdeformadistribuídaportodaaextensão das áreascorticaisprimárias,e não em algum neurônioespecíficoouemgruposdeneurônios especializadosem registrarlembranças. Mas Lashleytambémverificouque o cére- bro exibiamenor capacidadede recuperação de possíveistraumasquandoos animaiseram treinadosem tarefasmais complexas.Na rea- lidade,aquelescom pequenaslesõescorticais começavama exibirerrosna execuçãodessas atividades,e o número de erros aumentava proporcionalmente à quantidade de massa corticalremovidacirurgicamente.Uma vezque 50%ou maisdocórtextivessesidoremovido,os animaisiniciavamo processodeperdadohábito, requerendoumnovotreinamentoextensivopara recuperá-Io.Após certo limitede dano cortical eles não eram mais capazesde reaprendera tarefa.Com base nessasobservações,Lashley propôsumsegundoprincípio,quepassouaser conhecidocomo "efeitode massa neuronal". Elepostulouqueas memóriasresultamde "al- gum mecanismofisiológicode organizaçãoou atividadeintegradoraneural,emvezde ligações associativasespecíficas". Nos últimos50 anos, inúmerosneurocien- ~ tistascriticaramasconclusõesqueLashleytirou ~ deseusestudos.Mesmohojeemdia,asimples ~ menção de seu nome durante uma palestra f científica invariavelmentelevaa comentários @ 62 I mentecérebroI setembro2011 olocalizacionismoé umacorrentede pensamentocaracterizadapela tentativadediscriminarregiõesresponsáveispor funçõescerebrais. Derivainicialmentedafrenologiapropostapeloneuroanatomista e fisiologistaalemãoFranzGall (1758-1828),no início do século 19,que relacionavao tamanhoe a formado crâniocomaspectos do comportamento.Em 1861,PaulBrocadeterminouprejuízosde falaquese seguiama lesõesem umaparterestritado lobofrontal esquerdoe,em1870,GustavFritsche J. L. Hitzig descreveramo efeito deestímuloselétricosempartesdo córtexcerebrale promoveram movimentoemdiferentesregiõesdo corpotantode soldadosferidos quanto,posteriormente,deanimais.Críticasà posiçãolocalizacionista surgiramem 1820quandofoi constatadoquetraumasem diferentes áreasdo cérebrotendiama afetaro comportamentodeformadúbiae difusa,o quelevouos pesquisadoresa considerarqueo funcionamento do cérebrosedariacomoum todo.Quando lashley demonstrouque o prejuízodedesempenhode ratoseraprovocadopelaretiradade massacortical(edependiamaisda quantidadede materialquedo local afetado),seusdadosentusiasmarampsicólogose neuropesquisadores queviamo cérebrocomoum computadorcomplexoque,portanto,não podiater umafunçãototalmenteaniquiladapelaremoçãode umas poucaspeças.Precisamosentenderque,de maneirageral,os dados localizacionistasse referema processosrelativamentesimples,enquanto asfunçõesobservadasparaapoiara visãonãolocalizacionistase referema processosmaiscomplexos,queenvolvemdiversossentidos.É precisoconsiderarquedefatotemosumatopografiadas representações sensoriaisprimárias,porém,à medidaqueavançamosparaáreasde projeçãosecundáriae terciárianocórtexsensoriale paraas áreasde integração,cadavezmaisperdemosa possibilidadedeestabelecera relaçãoentrelugare função.No outroextremodessedebate,um grupo menor,masquetemcrescidorapidamentenasúltimasdécadas,os distribucionistas,acreditaquenossocérebrotrabalhadeformacoletiva, utilizandograndespopulaçõesde neurôniosdistribuídospor múltiplas regiõescerebrais,capazesde participardagênesedeváriasfunções simultaneamente- aparentementeutilizandoum mecanismofisiológico similara umaeleição.Miguel Nicoleliscomparao processocom um sistemade votosno qualgrandespopulaçõescelulares,localizadasem diferentesregiõescerebrais,contribuem- cadaumade umamaneira- paraum resultadofinal. (Da redação) jocosos e sorrisosirônicosda plateia.A grande razãodessaretribuiçãocáusticadeve-seaofato de Lashleyterembasadotodasas suasconclu- sões num métodoque se valiaexclusivamente da correlaçãoentreo efeitode lesõescerebrais e a performancede animaisem tarefascom- portamentais.Na opiniãode alguns,as tarefas escolhidaseramsimplesdemaise, na opinião deoutros,tãocomplexasquenenhumcontrole experimentalfino era possível.Além disso, o estabelecimentode uma relaçãocausalentre lesõescerebraiseperformancecomportamental semprefoivistocomdesconfiançapelamaioriados neurofisiologistas. Apesardas limitaçõesclarasdo métodoea despeitodetodas as críticas,algumasválidas, outrasnemtanto,Lashleycertamentemostrou a possibilidadede o córtexfuncionarde uma maneirabemdiferente,e muitomaiscomplexa, daquela proposta pela visão localizacionista, quepredominavanaépocaemqueelerealizou seus experimentos. Nessa encruzilhadahistórica,vale a pena lembraro dito costumeirosegundoo qual as batalhasacadêmicassãotãosangrentasporque os interessesem jogo são, invariavelmente, insignificantes.Definiraverdadeiraunidadefun- cionaldocérebro,porém,éumempenhosolene. Afinal, essa buscavisa identificarexatamente quetipo de matériaorgânicadecide,em nosso nome,ondeo corpodecadaumdenóscomeça e termina,o que realmentesignificasentir-se umserhumano,quaissãoasorigensdenossas crençasarraigadase como nossos filhos,e os filhosdenossosfilhos,um diase lembrarãode nosso legadode vida.Vistas por esseângulo, poucas aventurashumanaschegampertodo - : . .r:'~'~.:';'.•' • t" . ..:.. •. ~ ')i....)1, ',11. r •• ~ - ...• '," .., 63 NEUROCIÊNCIAS graude relevânciae dramana buscapelasver- dadeirasrazõesquelevamcadaumdenósa se sentirtão irrevogavelmentediferentee únicoe, ainda assim, tão espantosamentesemelhante aosdemaissereshumanos. Uma analogiamuito simples talvezajude a esclarecera principaldistinçãoentreas duas visõesquedisputamaprimaziadecompreender comoo cérebrohumanofunciona.Imagine,por exemplo,o papeldesempenhadopelosmúsicos de uma orquestra.Se você tivessecomprado ingressoparaassistiraumaapresentaçãodessa orquestrae, na noitedo evento,chegasseao teatroe descobrissequeapenasumaviolinista apareceuparatocar,certamentese sentiriade- sapontadono final da noite.Afinal de contas, mesmoqueessaviolinistafosseumavirtuosede renomemundial,vocênãoconseguiriadeforma algumaabsorvera mensagemcontidaem toda a partiturada sinfonia. Para realmentepoder transmitirtodaariquezasonoradapeçamusical, essaorquestraprecisariacontarcomumnúmero muitomaiorde músicostocandoem conjunto. Navisãodosdistribucionistas,quandoocérebro cria uma mensagemcomplexa,destinadaa se transformarnumcomportamentoespecífico,ele estácompondoumaespéciede sinfonia.Uma sinfonianeuronal. MERCADO DE AÇÕES E CAPIVARAS Codificarumamensagemneuronaletransformá- Ia em comportamentose ações,por meio do trabalhocoletivode um grandenúmerodeele- mentosindividuais,é umatarefasemelhanteao penosoofício de uma orquestrasinfônica,em que cada músico contribui paraa elaboração de umamelodiamaiscomplexa.Mas não mais poderosaquea entoadapor 1 milhãode vozes paradestronarumditadorfardadoe clamarpor eleiçõespresidenciaisdiretas. Da mesmaformaqueum neurônioisolado nãopodeproduzirumcomportamento,umúni- cocanaliôniconãotemcomoregularo potencial da membranacelular.Parafuncionardeforma adequada,essae todas as outras membranas excitáveisdecélulasdenossocorpodependem da colaboraçãoprecisade uma populaçãode canaisiônicos.• Abordagens distribuídas para solucionar problemascruciais também funcionam bem no âmbito macroscópico na natureza. Por 64 I mentecérebroI setembro2011 exemplo, leõesafricanosem geralcaçamem grupos, sobretudo quando tentam capturar uma presagrande,como um elefanteaparen- tementevulnerávelqueestejamatandoa sede num rasopoçod'água.Isso permiteque,caso umdos leõessejamortoou feridopeloelefante indignadopelaousadiados felinos,o restante do grupo de caçadorespossa ainda ter uma grandechancede se deliciarcom uma iguaria incomparável,um"filé-mignon"deelefanteno finalda noite. Mas porqueestratégiasdistribuídasfuncio- namtãobememvariadosníveisdeorganização e emdiferentessistemas?Porque,deproteínas a gruposde capivarase ao mercadode ações, ~ faz sentidoconfiarna interaçãode grandenú- ~ merode indivíduosparaconcretizarumatarefa F essencialou atingirumobjetivocomplexo?Para ~ respondera essaquestãofundamental,vamos ~ voltarà neurociênciae examinaras vantagensI que um código populacionalconfereà nossa 5 habilidadedepensar. g Primeiro,ao distribuiro ato de pensarpor ~ umavastapopulaçãode neurônios,o processo ~ 1 ih! evolutivoestabeleceuuma eficienteapólicede seguroparao cérebro.Na maioriadoscasos,as pessoasnão perdemfunçõescerebraisimpor- tantesquandoapenasum neurônioou peque- nos gruposdessascélulassão destruídospor um traumalocalizadoou um acidentevascular cerebral(derrame)depequenasproporções.Em geral,graçasàutilizaçãodeumaestratégiadistri- buídade administraçãode riscos,sintomasou sinaisdealgumasíndromeneurológicatendem a aparecersomentedepoisdo estabelecimento degrandeslesõesdotecidocerebral. Por um momento, imagineos riscos que correríamosse isso não fosse verdade.Quão cheiademomentostrágicosserianossavidase apenasum neurônio,em todoo cérebro,tives- se o controleabsolutosobrequalquerde seus aspectosfundamentais.O que vocêfaria,por exemplo,seo neurônioqueditaaescolhado seu timefavoritodefutebolde repentesofresseum colapsoemorresse?Comaperdadessaúnicacé- lula,afidelidadefutebolísticadeumavidainteira seriaperdidaparasempre!Emboraumnúmero razoávelde nossos neurônios morra a cada Imagine quão trágica seria a vida se apenas um neurônio tivesse o controle absoluto sobre algum aspecto fundamental- e se aquele que dita a escolha do seu time favorito de repente morresse . PARA SABER MAIS • Muito alémdo nosso eu. A nova neurociênciaque une cérebroemáquinas- ecomo elapodemudarnossasvidas. MiguelNicolelis,Companhia dasLetras,2011. dia durantetodaa nossaexistência,felizmente essas tragédiasneurobiológicaspermanecem abafadasdentrode nossamente,umavezque delasnãoresultanenhumaalteraçãofisiológica oucomportamental.A bênçãosedeve,emgran- de parte,à adoçãode um mododistribuídode operaçãono cérebro. Além dessapropriedade,os neurôniosque formam circuitosneuraissão altamenteadap- táveis, ou plásticos. Quando neurônios são lesionadosou morrem,aquelesque permane- cem ativosnum circuitosão capazesde autor- reorganizarsuas propriedadesfisiológicas,sua morfologiae a conectividadequandoexpostos aoambienteouanovastarefas;assim,pormeio desse processode reorganizaçãofuncional,o circuito remanescenteconsegue,em muitas ocasiões,suplantara perdade algunsde seus elementoscelulares. Esse comportamento extremamentenão linearampliasobremaneiraacapacidadedesses sistemasnervososde gerarprodutoscompor- tamentaisque podem,simplesmente,emergir numa fagulhade tempo e eletricidade.Circui- tos neuraisformadospor milhõesou mesmo bilhõesdeneurôniosproduzemcontinuamente propriedadesemergentes,a exemplodeoscila- ções,padrõesde disparo rítmicosque podem serresponsáveisporumaenormevariedadede funçõescerebrais,como diferentesestadosdo ciclovigília-sono,oumediarestadospatológicos, comocrisesepiléticas.Propriedadesemergentes são responsáveispor outrasfunçõescerebrais rotineiras,mas altamentecomplexas,como a percepçãodo mundoque noscerca,a geração de expectativassobreeventosfuturose nosso sensodeexistircomoindivíduosúnicos.Notopo dessalistaresideaquelaquepodeserconsidera- daamaiordádivaa nósconcedidapelosventres explosivosde supernovasesmaecidas- a cons- ciênciahumana. Como meugrandeamigoRodneyDouglas, da Universidade de Zurique, recentemente sugeriu,o cérebrofuncionade fatocomo uma orquestra muito peculiar, na qual a música produzidapode,quaseque instantaneamente, .modificar a configuração dos instrumentos musicais e dos músicos e, nesse processo, compor uma melodiacompletamenteinédita. Tudo isso sema presençade nenhummaestro de batutanamão! nec 65